Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sábado, 30 de dezembro de 2023

Família – ontem, hoje e no futuro

 


Se há conceito que está em catastrófica transformação é o da família. Aquilo que era mais ou menos certo e válido há cinquenta anos, hoje é quase motivo de chacota de uma parte dos nossos coetâneos. Aquilo que era considerado valor, hoje provoca riso em boa parte dos nossos concidadãos. Aquilo que fazia acreditar e motivar a vida de tantas pessoas, hoje tornou-se como que algo desprezível, antiquado ou mesmo sem significado.

1. Lemos na constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ sobre a Igreja no mundo atual, do Concílio Vaticano II (1965): «A família - na qual se congregam as diferentes gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena e a conciliar os direitos pessoais com as outras exigências da vida social - constitui assim o fundamento da sociedade. E por esta razão, todos aqueles que têm alguma influência nas comunidades e grupos sociais, devem contribuir eficazmente para a promoção do matrimónio e da família. A autoridade civil há de considerar como um dever sagrado reconhecer, proteger e favorecer a sua verdadeira natureza, assegurar a moralidade pública e fomentar a prosperidade doméstica. Deve salvaguardar-se o direito de os pais gerarem e educarem os filhos no seio da família. Protejam-se também e ajudem-se convenientemente, por meio duma previdente legislação e com iniciativas várias, aqueles que por infelicidade não beneficiam duma família» (n.º 52).

À luz das propostas de há cerca de sessenta nos como que nos fica o travo amargo de que a família, para além de estar em crise de identidade, tornou-se uma espécie de caleidoscópio de influências não-assentes nem efetivamente capazes de nos darem a entender para onde caminhamos.

2. É claro que o combate à família, alicerçada nos valores judeo-cristãos, tem hoje imensos promotores, mesmo que escondidos na sombra de outras ideias trazidas à luz da convivência humana. Com facilidade vemos a palavra ‘família’ ser substituída por ‘famílias’, numa abertura a algo que ultrapassa os conceitos cristão mais básicos. Assim vemos considerar ser ‘família’ um conglomerado de pessoas sem vínculo estável, mas podem viver de forma conjunta até que resulte tal união. Podemos ver como considerado ‘família’ a união entre pessoas do mesmo género, mesmo sem vínculo legal ou legalizado. Por vezes, ouve-se considerar ser da ‘família’ até os animais de estimação ou outros.

3. A evolução dos conceitos revela e faz movimentar os comportamentos. Estes, por vezes, podem revelar o que há de menos bom na pessoa humana, como o egoísmo e os interesses mais ou menos mesquinhos, bem como elevados ideais, por vezes ofuscados pelo barulho que fazem os que contestam. É isso que acontece quando é tratado o tema da família: pretende-se impor um tipo de família onde cada um como que usa os outros enquanto lhe são favoráveis. Isto seria a tal ‘cultura do descarte’, onde as pessoas são usadas e depois deitadas fora como coisas. Onde estará nesta dimensão de família o cuidado de uns pelos outros? Como se compreenderá uma sociedade onde os outros são vistos como adversários senão mesmo como inimigos?

4. Já na década de sessenta do século passado o Concílio Vaticano II alertava, na constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ sobre certos riscos e perigos que atentavam contra a família. «a dignidade desta instituição [a família] não resplandece em toda a parte com igual brilho. Encontra-se obscurecida pela poligamia, pela epidemia do divórcio, pelo chamado amor livre e outras deformações. Além disso, o amor conjugal é muitas vezes profanado pelo egoísmo, amor do prazer e por práticas ilícitas contra a geração. E as actuais condições económicas, socio-psicológicas e civis introduzem ainda na família não pequenas perturbações. Finalmente, em certas partes do globo, verificam-se, com inquietação, os problemas postos pelo aumento demográfico (...) as profundas transformações da sociedade contemporânea, apesar das dificuldades a que dão origem, muito frequentemente revelam de diversos modos a verdadeira natureza de tal instituição» (n.º 47). Questões como a vida, o relacionamento das pessoas, certas questões fraturantes continuam a ofuscar a dignidade da família.

5. A família é essencial. Denegri-la ou vilipendiá-la terá as suas consequências.



António Sílvio Couto

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Interpretando ‘coisas’ do Natal

 

Por estes dias tentei entender ‘coisas’ que acontecem por ocasião do Natal – por que passam as pessoas tanto tempo a mesa, preparando e degustando iguarias inigualáveis? Qual a razão de terem mais tempo para as conversas umas com as outras? Como explicar certos rituais não-religiosos, mas com incidência quase mitológica? O que levou a verificar-se um progressivo afastamento dos sinais religiosos (cristãos em particular), foi a acomodação, o consumismo ou a banalização do imediato sobre o espiritual? Com tanta superficialidade na celebração do Natal, ainda haverá sentido humano e cultural para o continuarmos a tentar vivenciar? Que alcance têm as expressões: boas festas ou feliz Natal?

1. O Natal como o vemos traduzido na vida de tantas pessoas corre o risco de se reduzir a uma época gastronómica de algum interesse, aliado a ritmos de uma sociedade que vive mais ao sabor do ventre do que da mente ou do coração. As toneladas de alimentos que foram comprados por estes dias, traduzidas no monte de lixo produzido em consequência. Será que se passa assim tanta fome ao longo do ano e neste tempo se pretende colmatar as lacunas? Dá a impressão que estamos a atingir o colapso cultural, preenchendo-o com coisas materiais ou que satisfazem a dimensão materialista mais exacerbada. Além de perigoso este percurso poderá trazer-nos grandes riscos até ao nível da saúde. Valerá a pena não fazer-de-conta que está tudo controlado, pois de pouco importa que cuidemos do corpo (biológico e sensitivo), se depreciarmos ou negligenciarmos os aspetos psicológicos e mesmo espirituais. Muito honestamente estes são indícios de um final de ciclo humano e histórico…

2. Dedicar tempo aos outros é um outro fator essencial no tempo de Natal: dar espaço para a partilha, as conversas e as recordações, o convívio, o estar com os outros, as visitas a familiares e amigos, até a troca de presentes pode ser vista como positiva nas relações humanas e sociais… algo esfriadas por ocasião da recente pandemia. Por vezes faltam-nos oportunidades para dar tempo aos outros, nalguns casos arranjamos desculpas pouco convincentes para não atendermos mais e dedicadamente àqueles que vivem ao pé de nós. Se o tempo de Natal conseguir recuperar o tempo perdido, será muito benéfico e teremos todos a ganhar numa sociedade tão egoísta e interesseira como aquela em que nos é dado viver. Todos temos muito a aprender, já e enquanto é tempo…

3. Mesmo na configuração religiosa cristã/católica há rituais que precisam de ser entendidos, explicados ou mesmo revistos. Continuar a fazer como era costume ou por mera tradição de pouco valerá, na hora de dar sentido às coisas, mesmo as mínimas. Ocorrendo, este ano, oitocentos anos sobre a feitura do primeiro presépio por São Francisco de Assis, podemos e devemos aproveitar a oportunidade de explicar a razão de ser desta tradição católica, sem infantilizar o assunto, mas antes dando-lhes conteúdo e atualidade. Celebrações como ‘a missa do galo’ – sua origem e significado; gestos como o ‘beijar do menino’; representações com sabor a memória (com teatros ou encenações), alusivos ao nascimento de Jesus ou à adoração dos magos…são – ou eram – alguns dos temas tradicionais do tempo de Natal. Mas não podem ser como eram antes, pois muita coisa mudou, mesmo nos conhecimentos religiosos prévios. Temos de partir de que as pessoas não sabem e devemos fazer as coisas explicando tudo a todos.

4. Neste como em tantos outros pontos da época da cristandade, o Natal é usado por crentes e não crentes para finalidades pouco adequadas à sua origem e desenvolvimento histórico e cultural. Mais do que um tempo de gastronomia, o Natal precisa de ir ao fundo da questão da nossa condição humana mais básica e fraterna. Mais do que um tempo de ‘exaltação’ da família, precisa que sejam revistos os valores familiares mais essenciais, comprometidos e com alcance contínuo. Mais do que um tempo onde se lembram os mais necessitados – sobretudo na versão material – precisamos de aprender a cuidar uns dos outros com gestos verdadeiramente imbuídos de atenção…todos os dias do ano.

Fiz a minha interpretação de ‘coisas’ neste Natal. Cada deverá fazer a sua de forma simples e humilde.



António Sílvio Couto

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Sinais anódinos do Natal

 


É assunto que sempre me deixa inquieto, mas este ano ainda mais, até pela advertência vinda no norte do país, onde um padre (ainda jovem) se fez eco de uma espécie de ostracização do presépio em certos círculos sociais. Dá a impressão que os sinais cristãos do Natal têm vindo a encolher e, nalguns casos, a serem retirados, sabe-se porquê e para quê.

Os exemplos que ilustram este texto são disso algo revelador de que o Natal deixou de ser para festejar o nascimento de Jesus para ser trocado, substituído ou camuflado por outros intentos nem sempre claros tão pouco facilmente precetíveis...

1. As fotos apresentadas são de uma instituição relacionada com a Igreja católica e de um autarca em funções. Será que as ‘estrelas’ ganharam a disputa com a Estrela que é Jesus? Será que certos adereços vingaram sobre a mensagem cristã? Até que ponto não andaremos a brincar com coisas sérias, adjuvando-lhe tiques de neo-paganismo? Será que o dito respeito por quem não se sente cristão terá de fazer destes uma espécie de cobardes anónimos? Se aqueles que Lhe dizem pertencer são os primeiros a desertar, que futuro nos resta esperar?

2. Dá a impressão que os leves resquícios de cristianismo que havia na nossa sociedade estão a ser ardilosamente combatidos por forças bem organizadas e, porque não dizê-lo, combativas, seletivas e com propósitos definidos. As decorações de rua e dos espaços comerciais tresandam a consumismo. As linguagens incentivam a ficar pelo comer-e-pelo-beber, deixando de fora os valores típicos do cristianismo da fraternidade e da solidariedade. Sob a capa de tolerância de tudo e para com todos vão sendo varridos para debaixo do tapete social ou para fora do contexto cultural múltiplos valores humanos e de índole espiritual. O cristianismo quase só serve para promover a função horizontalista da vida, esquecendo o mistério de encarnação do Verbo. Com estes sinais caminharemos para um esvaziamento do verdadeiro sentido do Natal...

3. Citamos um pequeno excerto do recente livro do Papa Francisco, O meu presépio:
«São dois os sinais que, no Natal, nos guiam para reconhecer Jesus. Um é o céu cheio de estrelas. São tantas, infinitas, mas entre todas brilha uma especial, que impele os Magos a deixar as suas casas e a iniciar uma viagem, um caminho que não sabem aonde os vai levar. Acontece o mesmo na nossa vida: em certo momento, uma ‘estrela’ especial convida-nos a tomar uma decisão, a fazer uma escolha, a iniciar um caminho. Devemos pedir a Deus com força que nos mostre essa estrela que nos impele para além dos nossos hábitos, porque essa estrela levar-nos-á a contemplar Jesus, aquele Menino nascido em Belém que quer a nossa felicidade plena.
Naquela noite que se tornou santa pelo nascimento do Salvador encontramos um outro sinal poderoso: a pequenez de Deus. Os anjos mostram aos pastores um menino nascido numa manjedoura. Não um sinal de poder, de autossuficiência ou de soberba. Não. O Deus eterno reduz-Se a Si próprio a um ser humano indefeso, pobre, humilde. Deus rebaixou-Se para que nós possamos caminhar com Ele e para que Ele possa pôr-Se ao nosso lado; Deus não quer pôr-Se acima ou longe de nós.
Espanto e maravilha são os dois sentimentos que emocionam todos, pequenos e grandes, perante o presépio, que é como um Evangelho vivo que transborda das páginas da Sagrada Escritura. Não interessa como se arranja o presépio, se é sempre igual ou diferente todos os anos; o que importa é que ele fale à nossa vida».

4. Enquanto é tempo tentemos discernir (estas e outras) formas capciosas de combater ao Natal, mesmo que imbuídas de laivos de compreensão para com quem pensa e sente diferente de nós. Será que eles nos dedicam idêntica atitude? Não sejamos ingénuos nem papalvos... Os filhos das trevas são mais espertos do que os filhos da luz, mas será que são inteligentes?



António Sílvio Couto

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Ser e estar presente...neste Natal

 

Por entre a azáfama de ver pessoas em correria, buscando compras, com sacos e mais atarefamento – qual trituradora consumista – refreio tal tendência, recorrendo à memória de infância: não havia presentes, não tínhamos o hábito de os dar nem de os receber, ficando a simples vivência de estarmos presentes uns aos outros e com isso de sermos e, sobretudo, de vivermos o Natal.

1. Efetivamente, hoje, estarmos assoberbados de coisas, começando ainda longe da data natalícia (essa de referência que é a de Jesus) a conjeturar sobre o modo de oferecer presentes, que, em muitos dos casos, se convertem em prendas, isto é, em que cada um dá (ou pretende oferecer) aos outros aquilo no qual vai preso, numa capciosa tendência de se fazer notado a quem se deseja agraciar.
Tanto quanto é percetível vemos uma tendência de coisificação dos sentimentos e da forma de os expressar. Com facilidade ouvimos as pessoas referirem: amo uma coisa (comida, roupa, objeto) e gosto de alguém (humano). Ora, a ordem de preferência deveria ser ao contrário: amo uma pessoa e gosto de uma coisa (mesmo que esta até possa ser um animal, mais ou menos de estimação). Deste modo, isso a que designamos de ‘presentes’ podem envolver algo mais do que circunstâncias, mesmo que sejam muito válidas ou avalizadas pela nossa conveniência.

2. Mais uma vez podemos escutar certos slogans que por serem tão repetidos quase conseguem tornar-se estilo de vida. Um deles foi – ‘o melhor do Natal são os presentes’! Não há maior falsidade e pior manipulação do que esta, pois, o melhor presente do Natal é Jesus, o Filho de Deus nascido em condição humana. É do seu nascimento que decorre a nossa fraternidade humana e em que todos n’Ele somos irmãos. Esse é o presente que mais adequadamente podemos tributar uns aos outros, fazendo-nos presença de companhia, de cuidado, de estima e mesmo de respeito até pelas diferenças.

3. A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) lançou uma campanha de segurança rodoviária de Natal e de Ano Novo, intitulada: "O melhor presente é estar presente". Eis uma forma concreta de cuidar e de respeitar os outros, quando circulamos nas estradas. A boa mobilidade exige atendermos aos outros, prevenindo-nos dos riscos e cuidando das dificuldades. Se isto pode e deve acontecer quando andamos nas estradas também deveria ter idêntico acolhimento noutros setores da nossa vida pessoal e social.

4. A trituradora do consumismo não olha a meios para atingir os seus fins, que, na maior parte dos casos, começa por nos ofuscar a mente, continua nas desculpas da falta de tempo e acaba na insensibilização aos outros, a começar dentro da própria casa. No rescaldo dos parcos dois anos de pandemia estas caraterísticas ganharam outra potencialidade e expressão: de egoísmo em fechamento fomos criando como que carapaças de indiferença, nalguns casos quase sem disso nos darmos conta. Por isso, numa espécie de compensação descontrolada acordamos, por ocasião do Natal, para ainda olharmos, nem que seja de soslaio, para os que nos são próximos, numa tentativa de deles nos aproximarmos...

5. Certas campanhas (ditas) solidárias como que cheiram a ritual com mofo: os mais desfavorecidos precisam de ajudar e suporte ao longo de todo o ano e não só nesta época. É verdade que seria grave se já não o atendêssemos por esta ocasião, mas é muito pouco que saiam do escondimento de forma tão fugaz e algo tolerada...socialmente.

6. Não haverá, na minha memória, alguém que pode precisar da minha presença neste Natal?



António Sílvio Couto

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Premiar (novamente) a incompetência?

 Com a demissão do sr. Costa, a 7 de novembro, entramos num novo ciclo político em Portugal: por

causa de uma suspeita sobre o chefe do governo, este caiu e, de repente, uma maioria parlamentar claudicou com menos de dois anos de mandato... e o país entrou num frenesim eleitoral, que, em 2024, será, no continente, de dois atos para votação: março (legislativas) e junho (europeias). Mas eis que, repentinamente, se erguem tentáculos de reclamação, numa espécie de desresponsabilização das culpas próprias, atirando-as aos outros, a ver se pega...

1. Deveremos ser dos poucos países civilizados onde ainda os ocupantes de cargos políticos são tratados pelos títulos pretensamente académicos. Pior ainda é quando são eles mesmos a tratarem-se entre si com tais qualificações, como se estivessem a dirigir-se a entidades estranhas à linguagem normal e simples. Desgraçadamente os que ganham a vida nos trabalhos da política foram formados noutras áreas do saber e/ou profissionais, mas é na vida de serviço público que eles auferem os ganhos. Não seria de questionar que haja pessoas vindas da advocacia a mandar em autarquias ou que formados em engenharia sejam titulares de mandatos no parlamento? Não seria necessário e útil haver ‘escolas de política’ mais do que espaços de mentalização partidária/ideológica? Até onde continuará a ir a conivência com termos na condução dos destinos coletivos arietes de interesses económicos, esconsos e quase subterrâneos? Por que nos admiraremos da balbúrdia ambiental se uns se dizem defensores do (pretenso) equilíbrio climático, quando são suportados por forças que vivem (efetivamente) ancoradas naquilo que dizem combater?

2. Mais uma vez temos de pronunciar-nos sobre propostas políticas que já deram provas de incompetência reiterada. Se assim não fosse por que faliram em menos de anos de serem escolhidos, votados e empossados como responsáveis do país? Estamos num tempo em que a memória das pessoas é curta, seletiva e, por vezes, incongruente. A julgar – de forma simples, sincera e sem preconceitos – pelos resultados da governação, somos tentados em considerar que falta quem seja capaz de assumir com responsabilidade as ‘funções que lhe são confiadas’ – como dizem no ato de posse e sob juramento. Terá havido erro de casting nas escolhas? Não será já difícil pescar para que haja diferentes na qualidade e na competência? A avaliar pela redundância das personagens vistas nota-se que são poucos os que se sujeitam a terem a vida pessoal e familiar devassada.

3. Há questões do pretenso cardápio do ‘estado social’, como a saúde ou a educação que não se resolvem com o afunilamento estatal, pois a morosidade, a incerteza e até a falta de qualidade são colmatadas por outras entidades ostracizadas pela ideologia reinante. Segundo números publicitados – a fonte não é irrelevante – haverá 3,5 milhões de portugueses (ou aqui residentes) que têm complemento de seguro de saúde. Por que se terá de ignorar estes dados? A culpa não será só da falta de profissionais de saúde nos meios estatais...

4. Certos slogans – o que é público é de todos, o que é privado é de alguns; em defesa da escola pública; justiça cara para os pobres – podem encobrir algo mais do que disfarces de circunstância, na medida em que tudo depende de quem quer impingir uma pretensa ideia. Com efeito, alguns dos promotores daqueles slogans são os primeiros a desmentir o que dizem, pois, se a (dita) escola pública não responde às necessidades dos que dela necessitam, então só servirá para desmotivar quem nela ainda participa.

5. Mais do que banalidades e de ataques pessoais - muitas vezes funcionando como assassinato de caráter - precisamos nas propostas para as eleições que se avizinham de conteúdos com clareza, de sabermos qual é o caminho a seguir e de termos opção e não coação. Não acabará nada e muito menos será o final de ninguém. Saibamos ver as lições do passado e saberemos entender o presente e o futuro...



António Sílvio Couto

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Parvoíce vence, reina e desespera

 

Deu-me a volta à capacidade de saber entender as coisas, de perceber o significado das pessoas e de interpretar o sentido das massas o pouco que vi e de relance de um tal programa intitulado ‘isto é gozar com quem trabalha’. Dito com sendo o último deste ano, decorreu no Fundão e as verbas auferidas revertiam para os bombeiros locais. O ‘centro de negócios’ estava cheio, com bilhetes entre três e dez euros.

1. Do comediante-apresentador parece que já lhe conhecemos o estilo, mangando com tudo e com todos, como se fosse a última bolacha do pacote do humorismo nacional. Como não podia deixar de ser esforçou-se por impingir umas piadas sobre temas lisboetas - o caso das gémeas brasileiras e afins, a construção plausível de um novo aeroporto, certas obras na capital e alfinetadas aos políticos. O humorista de serviço tentou justificar o programa em direto com centenas de pessoas numa espécie de delírio coletivo não justificado, a não ser por terem uns momentos de visibilidade televisiva como figurantes que tiveram de pagar a participação... Aqueles beirões das fraldas da Serra da Estrela aplaudiam, rindo de forma um tanto desabriada e quase desconcertante. Sabe-se lá por quê?

2. Mais do que olhar para as tiradas insonsas do humorista ficou-me essa espécie de parvoíce generalizada daquele público. Não entendi as reações daquela gente: riam por tudo ou quase nada, aplaudiam comentários nalguns casos sem nexo e onde as matérias seriam mais graves do que brejeiras para servirem de pasto para o jocoso. Ao ver a diversidade de pessoas naquele espetro de público perpassou-me pela mente que já batemos mesmo no fundo. Aliás, o humorista começou o dito programa por fazer trocadilho com ‘fundão’ e o estado do país a caminho do fundo.

3. Perante este programa nota-se com alguma clareza o roçar da falência na criatividade do humor no nosso país. Como se não bastasse a falta de matéria para continuar a ganhar a vida a mofar com os outros, ainda temos de ser confrontados com públicos que, de forma acrítica, aplaudem tudo e o resto do que saia da boca de quem tem fama, mas dá a impressão que se lhe fechou o sentido da oportunidade... Talvez tenha de mudar de ramo!

4. Inquietou-me seriamente observar um certo contentamento das pessoas que assistiam numa espécie de festa pré-natalícia à la carte, isto é, um acontecimento que levou à cidade figuras da televisão e colocou na pantalha figurinhas esquecidas no recôndito do interior. Efetivamente estamos muito mal de massa crítica no nosso país. A manipulação é nitidamente o melhor retrato daquilo que nos tem sido impingido: vinga quem não pensa e faz da anedótico algo que serve para entreter os incautos. O sucesso de certos programas televisivos - com as telenovelas a arrastarem-se meses a fio sem nexo nem conteúdo - que ainda ocupam as pessoas, continuam a tratá-las como desprovidas de capacidade crítica...

5. Ignorância a quanto obrigas. Portugal merece mais e melhor, tanto no litoral como no interior, ao norte como no sul, no continente e nas ilhas...



António Sílvio Couto

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

A última bolacha do pacote...

 

Ouvi, por estes dias, a expressão: sente-se a última bolacha do pacote... Tentei esclarecer-me sobre o conteúdo desta pequena frase e descobri aspetos interessantes para a conduta pessoal e para o relacionamento com os outros, tanto em aspetos positivos como em referências (possivelmente) negativas.

1. Tentando uma explicação descritiva da frase - a última bolacha do pacote. Desde logo entendendo que assim se considera ou quem tal deseja que o/a tenham nessa conta, significando: sentir-se o máximo, o maior dos maiores, ser o centro das atenções, como supra-sumo, numa espécie de insubstituível, a quem todos (que, afinal, poderão ser muito poucos) colocam nos píncaros, pretendendo ter a última (e derradeira) palavra...

2. Quem vive desta forma como ‘a última bolacha do pacote’ será uma pessoa equilibrada ou sofrerá de algum defeito menos claro? Como conviver com pessoas que possam ter este síndrome de ‘última bolacha do pacote’? Serão pessoas - ou seremos pessoas - de fácil trato ou que apresentam complexos de difícil gestão? Não haverá - mais do que se pensa - pessoas que se comportam e que constroem a sua vida à luz dessa incapacidade de insubstituição e/ou de gestão da diferença? Certos conflitos - tácitos ou explícitos - no relacionamento das pessoas de umas com as outras terá explicação nesta frase aparentemente simples, mas algo complexa? Não haverá quem use de prepotência sob a forma de ter a última palavra, quando não aprendeu sequer a gaguejar o mínimo para comunicar com os outros, correta e dignamente?

3. É difícil ser equilibrado no processo de auto-conhecimento e no relacionamento com os outros, que são mais do que ‘lobos uns dos outros’, como nos disseram certos autores. A visão equilibrada de si mesmo e dos outros devem fazer-nos conhecer a nós mesmos e reconhecermos as qualidades e os defeitos pessoais, as qualidades e dons dos outros, assim como as virtudes e os pecados pessoais e alheios. Estamos num tempo em que não é fácil lidar com a verdade, que é mais do que um conceito ético, mas deve ser critério de valor para nos aceitarmos e para vivermos no trato com os outros, desde os que pensamos conhecer até aos desconhecidos e ocasionais nos meandros da vida.

4. «Assim, em virtude da graça que me foi dada, digo a todos e a cada um de vós que não se sinta acima do que deve sentir-se; mas sinta-se preocupado em ser sensato, de acordo com a medida de fé que Deus distribuiu a cada um» (Rm 12,3). Esta recomendação de São Paulo é, além, de útil, um incisivo critério de vida, na medida em que ninguém é tão bom como se julga nem tão insignificante como se possa considerar. Neste caleidoscópio da vida, urge cultivar mais o bem senso do que exibir petulâncias egoístas e que viram facilmente rejeição. De muitas e variadas formas podemos e devemos atender às nossas mazelas, vendo e discernindo aquilo que os outros nos permitem auto-julgar.

5. Usando a interpretação da ‘última bolacha do pacote’, não a deixemos perder o sabor nem que se esfarele por já não ser apreciada convenientemente.



António Sílvio Couto

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Banco alimentado pela fome?

 

Pelo menos duas vezes ao ano (nas campanhas públicas de recolha de géneros, sobretudo, de natureza alimentar) ouvimos falar do ‘banco alimentar contra a fome’ (BA), uma iniciativa de solidariedade social, que, desde 1991, tenta dar ajuda a quase quatrocentas mil pessoas, que os vinte e um ‘bancos’, espalhados por todo o país recebem e distribuem meios de subsistência mínima. A última recolha decorreu, como habitualmente, no primeiro fim-de-semana de dezembro junto das grandes superfícies comerciais aderentes, tendo coletado cerca de 2.300 toneladas de géneros que serão distribuídos, posteriormente, pelas mais de 2.600 instituições de solidariedade social suportadas...

1. Desde 2001 que a federação nacional dos ‘bancos alimentares contra a fome’ (BA) é gerida pela mesma figura, visualizada por ocasião de cada campanha. Os mais de quarenta mil voluntários dão corpo a uma iniciativa que, nestes mais de trinta anos, tentam atenuar as ‘fomes’ de milhares de pessoas (dizem que quase meio milhão), direta ou indiretamente, assistidos pelo ‘banco alimentar’... sob a forma de cabazes ou através de refeições confecionadas. Atendendo aos dados sobre a pobreza no nosso país são cada vez os que recorrem aos serviços do BA, numa espiral que tem tanto de complexa, quanto de questionante sobre este problema sócio-político-económico...

2. Deixo, antes de tudo, um tributo de reconhecimento aos milhares de participantes ativos nesta ação de benemerência em favor de quem consubstancia a fragilidade de pessoas, de famílias e de grupos. Este tema parece apresentar algumas pontas soltas e, nalguns casos, tentáculos mais profundos da natureza e da conduta humana. Deixamos questões, que, posteriormente, vamos abordar. Não haverá pessoas que estão há tempo demais em situação de dependência de terceiros para gerirem a sua condição de vida? Nos serviços de ajuda será feito tudo quanto se pode para tirar esses ‘pobres’ da sua fragilização? Não se dá, vezes em excesso, a sensação de que os ‘pobres’ sustentam muitas estruturas, estatais e não só? Por que se pretende ter preso pela boca quem podia (e devia) assumir a sua vida com mais coragem e rigor? Não andaremos a fazer dos ‘pobres’ promotores e beneficiados de setores sócio-políticos - partidos, sindicatos, associações de assistência, mesmo religiosa - que não os querem (inconscientemente) autónomos nem independentes?

3. Efetiva e desgraçadamente muita gente vive à custa dos pobres. Recordo a bizarra estória de umas senhoras bem conceituadas e com posses, que davam esmola aos seus pobres, de forma regular, desde gerações. Um dia reunirão de emergência, pois, era preciso pôr em ordem alguns atropelos: algumas andavam a tirar os pobres umas às outras... isso não era aceitável nem muito recomendável.
Em 2021, 1,7 milhões de pessoas encontravam-se em risco de pobreza, em Portugal. Isto significa que viviam com rendimentos inferiores a 551 euros mensais. Possivelmente os dados posteriores ao final da pandemia agravaram estas cifras, criando pessoas e famílias ainda mais endividadas e dependentes de ajuda exterior para conseguirem sustentar-se minimamente.

4. Os participantes nas campanhas de recolha de géneros deixam-nos a impressão que talvez não estejam totalmente bem instruídos sobre a matéria que servem, pois, ouvem-se destas frases: isto é para os pobrezinhos (como se nunca chegassem a poder ser como eles), ou ainda: hoje por eles amanhã por nós... Ora, talvez devessem ser revistas as datas de recolha mais intensiva - fim de maio e início de dezembro - na medida em que certos grupos participantes (escuteiros ou adolescentes da catequese) esquecem as suas obrigações para se entreterem com aquilo que pode funcionar como distração. Estes exemplos são do espaço onde me situo...

5. Nesta sociedade nitidamente de sobrevivência dá a impressão que continuamos a favorecer e a incentivar gestos, atitudes e comportamentos de alguma sobranceria e não a cultivar a convivência simples, leal e fraterna.



António Sílvio Couto

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Confrontos...sempre os teremos

 


Dizem certas informações que, desde o início da nossa identidade nacional, nascemos do confronto entre um filho (rebelde) e sua mãe. Em múltiplas circunstâncias históricas, sociais e mesmo culturais, o confronto entre grupos, facções e até visões diferentes tem sido a marca constante e quase identitária do nosso ‘eu coletivo’, manifestado em pequenos indícios mais individuais senão individualistas.

1. Não será, no entanto, abusivo querer fazer coincidir confrontos com contendas ou lutas com conflitos de interesses? As marcas (ditas) partidárias não serão confundidas com posicionamentos ideológicos? Certas facções intestinas dos partidos políticos não serão mais tentáculos de pretensões de grupo ou teor individual? Nas tentativas de conquistar o poder – interno e exterior – não haverá deslealdades que manifestam a (má) qualidade dos intervenientes? Certas guerrilhas não servem mais aos oportunistas do que aos que têm competência e preparação? Não deveríamos ter percebido já que alguns usam da estratégia de dividir para reinar, colocando sob suspeita tudo e todos, menos eles? Ainda não entendemos os truques dos manipuladores, iniciados na arte da dialética marxista, em que se servem de todos para atingirem os seus (mesquinhos) objetivos?

2. Recorrendo à memória dos ‘episódios’ históricos trazemos à lembrança essa façanha do tempo dos romanos. Com efeito, a invasão da Península Ibérica pelos romanos não foi pacífica. As tribos nativas desta região – denominadas, genericamente, por lusitanos – lutavam pelas suas terras e aplicavam ao exército romano várias derrotas. Foram tantos os revezes que os lusitanos, chefiados por Viriato, infligiram aos romanos, que estes pediram um acordo de paz. Para negociar a desejada paz, Viriato enviou três emissários que não eram lusitanos, os quais. em vez de negociarem o tratado de paz, o general romano subornou, prometendo-lhes uma avultada recompensa, se conseguissem assassinar Viriato. Na expectativa de tal recompensa romana, apunhalaram mortalmente Viriato, enquanto dormia.
Ora, para tentarem escapar à vingança dos lusitanos, os três traidores dirigiram-se para Roma, onde esperavam receber a recompensa pela traição. No entanto, o prémio que os romanos lhes ofereceram foi a sua execução em praça pública, onde os seus corpos ficaram expostos, com um cartaz que dizia: “Roma não paga a traidores”.

3. Muito daquilo que vivemos na nossa condição sócio-política não passa de uma orquestração habilidosa de certos proponentes, que, deambulando na sombra, conjeturam a criação de distrações de somenos, tornando-as casos de ‘grande’ importância e assim se ocupam horas e horas de discussão, comentários e diatribes, ameaças e suspeições, sem que nada disso signifique o que nos quiseram impingir... Um dos exemplos mais bizarros foi a discussão a propósito do IUC (imposto único de circulação): este ocupava apenas duas páginas no OE/2024 com mais de trezentas que o documento continha... e, de repente, caiu por inoperância de quem o propôs ou por negligência na sua prossecução.

4. É preciso que haja opções claras para a governação do nosso país. Em menos de dois anos uma maioria caiu de podre, desmembrou-se de interesses e deixou cair a máscara nos conluios ideológicos. Ver recauchutadas certas propostas parece que estamos, mais uma vez, a apostar no futuro errado ou, pelo menos, complicado. Para quem se guia pelo estatal, não estará na hora de perceber que isso não resulta sem a intervenção de quem não depende da esmola do poder? Coarctar a iniciativa privada é truncar a capacidade de investimento. Pendurar-se no Estado é favorecer a possibilidade de corrupção, onde todos pagam e só alguns – os funcionários e afins – beneficiam...

5. Os traidores terão a sua paga, mais cedo do que tarde. Votar é dar-lhes o prémio!



António Sílvio Couto

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Bodes expiatórios... à la carte

 

A situação sócio-política nacional está deveras confusa, quantos aos casos, em relação às situações, atendendo às pessoas, considerando as oportunidades, tendo em conta o presente e tentando interpretar o futuro. Desde o dia 7 de novembro entramos em descalabro. A demissão do chefe do governo lançou nuvens de suspeitas. A marcação das eleições baralhou. A aferição dos partidos à contenda denota que a qualidade está em nítida rutura. Emergem acusações. Trepida tudo e todos em convulsões. O país está a afundar-se e poucos se obrigam a impedi-lo...

1. ‘Bodes expiatórios’
Há expressões usadas na linguagem habitual que, por vezes, precisam de ser enquadradas e explicadas. ‘Bode expiatório’ é uma delas. Vejamos a sua origem.
Em Lv 16,1-22 encontramos a narrativa da festa da expiação’ ou do grande perdão - em hebraico Yom kippur - em que o sumo-sacerdote tomava dois bodes, juntamente com um novilho, ao lugar de sacrifício, como parte dos sacrifícios do Templo de Jerusalém. No templo os sacerdotes sorteavam um dos bodes. Um era oferecido em holocausto no altar de sacrifício com o novilho. O segundo tornava-se o bode expiatório, pois o sacerdote impunha as mãos sobre a cabeça do animal e confessava os pecados de todo o povo de Israel. Posteriormente, o bode era deixado ir para o deserto, levando sobre si os pecados de todo o povo, para ser reclamado pelo anjo caído Azazel.
Em sentido figurado, um ‘bode expiatório’ é alguém que é escolhido arbitrariamente para levar (sozinho) a culpa de uma calamidade, crime ou de qualquer evento negativo (embora não o tenha cometido). A busca do ‘bode expiatório’ é um ato irracional de determinar que uma pessoa ou um grupo de pessoas, ou até mesmo algo, seja responsável de um ou mais problemas sem a constatação real dos fatos.

2. No contexto sócio-político que estamos a viver convulsivamente vermos surgirem – à la carte (como é conveniente) – acusações diversas sem que os verdadeiros culpados assumam as consequências dos seus atos. À negligência governativa apontam a justiça como a culpada, sem que se tenham esquecido que foram os legisladores quem deram poder para que se cumpram as leis feitas... Ao colapso das estruturas (ditas) democráticas foram os diversos governos e governantes que se desautorizaram com negociatas por debaixo da mesa... Das reclamações de incompetência de vários intervenientes podemos perceber que já só a pescar-no-aquário conseguiram encontrar quem quisesse aceitar que não os menos maus para os postos de governação... Aos fazedores da comunicação social convém fabricar uns tantos peões-de-brega, pois assim podem distrair e escarafunchar outras situações pestilentas, que não as suas vidas de ocasião...

3. Quem não se apercebeu já que certos fazedores de opinião usam de habilidades e rebuscadas manhas para branquearem os seus preferidos? Com que destreza ainda encontram ideias novas nos recauchutados discursos de antanho. Falta-nos liberdade de não querermos impor quem nos seja mais simpático ou de proximidade ideológica. As guerras de sucessão deixarão vir à tona tantos lacraus que morderão mesmo que sejam ajudados a safarem-se do pântano para onde empurram o país. Sente-se no ar um certo cheiro a conspiração e onde mais uma vez teremos de escolher entre o mau e o pior.

4. Temas como a saúde, a educação, a justiça, a segurança (social e individual), trabalho e salários, a habitação e tantos outros temas urgentes e necessários não podem ser escondidos por tricas e debates de baixa qualidade nem poderemos ficar reduzidos aos ataques de mediocra moralidade, pois todos tem culpas na situação a que chegamos. Não atirem pedras uns aos outros, pois podem fazer ricochete e causarem mais estragos do que pensam.

5. Portugal merece melhor!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Aprender a ‘dar espaço’... à luz do presépio

 


Neste ano ocorrem 800 anos sobre a ´feitura’ do primeiro presépio ao tempo de São Francisco de Assis. Sobre o tema o Papa Francisco tornou público um livro, intitulado – ‘O meu presépio’ – onde faz uma explicação-interpretação da sua forma de ver esta manifestação cristã, das figuras que o compõem e mesmo do modo de construir o presépio. Já, em 2019, o mesmo Papa tinha tornado pública uma carta apostólica – ‘Admirabile signum’ – sobre o significado e valor do presépio.

Lanço, então, algumas sugestões sobre a necessidade de ‘dar espaço’ à meditação perante as várias figuras do presépio...neste Natal.

1. Citamos do texto que se conhece:
«São dois os sinais que, no Natal, nos guiam para reconhecer Jesus. Um é o céu cheio de estrelas. São tantas, infinitas, mas entre todas brilha uma especial, que impele os Magos a deixar as suas casas e a iniciar uma viagem, um caminho que não sabem aonde os vai levar. Acontece o mesmo na nossa vida: em certo momento, uma ‘estrela’ especial convida-nos a tomar uma decisão, a fazer uma escolha, a iniciar um caminho. Devemos pedir a Deus com força que nos mostre essa estrela que nos impele para além dos nossos hábitos, porque essa estrela levar-nos-á a contemplar Jesus, aquele Menino nascido em Belém que quer a nossa felicidade plena.
Naquela noite que se tornou santa pelo nascimento do Salvador encontramos um outro sinal poderoso: a pequenez de Deus. Os anjos mostram aos pastores um menino nascido numa manjedoura. Não um sinal de poder, de autossuficiência ou de soberba. Não. O Deus eterno reduz-Se a Si próprio a um ser humano indefeso, pobre, humilde. Deus rebaixou-Se para que nós possamos caminhar com Ele e para que Ele possa pôr-Se ao nosso lado; Deus não quer pôr-Se acima ou longe de nós.
Espanto e maravilha são os dois sentimentos que emocionam todos, pequenos e grandes, perante o presépio, que é como um Evangelho vivo que transborda das páginas da Sagrada Escritura. Não interessa como se arranja o presépio, se é sempre igual ou diferente todos os anos; o que importa é que ele fale à nossa vida».

2. Quantas vezes ouvimos dizer que ‘é preciso dar espaço’ para que possa ser colocada outra coisa, retirando algo que estava a ocupar esse tal espaço. A noção de ‘espaço’ pode ser variável, tanto mais quanto esse possa ser subjetivo. Com efeito, dizem os entendidos em matéria de assuntos psicológicos que a descoberta de ‘espaço’ e de ‘tempo’ carateriza a nossa perceção de lugar e história, isto é, quem somos e onde estamos... num determinado lugar e em relação a quê e a quem.
Neste tempo de consumismo é habitual vermos – em nós e à nossa volta – que se dá um preenchimento do espaço (interior e exterior) das pessoas com coisas, numa quase insaciável vontade de ter mais do que, porventura, de ser, verdadeiramente. Se há época do ano em que isso parece estar mais ativo é no tempo de Natal: a sociedade de consumo fascina as pessoas com o desejo de ter mais, de ter muito e de ter melhor.

3. É com espanto e maravilha – nas palavras do texto citado do Papa – que podemos e devemos colocar-nos diante do presépio: nele somos desafiados a ‘dar espaço’, isto é, a que tenhamos espaço em nós mesmos (no mais íntimo do nosso ser), que demos espaço aos outros (nos lugares onde nos encontramos com eles - na família, no trabalho, na sociedade ou na Igreja) e que consigamos, acima de tudo, que Deus tenha o seu espaço condigno e necessário.

4. Uma sugestão simples: habitualmente colocamos na manjedoura do presépio uma imagem de Jesus-Menino, que está de braços abertos. Por momentos paremos e perguntemos-lhe o que Ele deseja receber de cada um nós, mais do que qualquer pedido a que Ele nos dê o que mais desejamos...



António Sílvio Couto

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Da mão aberta ao punho cerrado

 
A mão comporta uma forte e significativa linguagem de comunicação, pois através das mãos nós nos damos a conhecer e conhecemos os outros. Por vezes há pessoas que falam com as mãos, mesmo sem ser em linguagem gestual - essa específica para pessoas não-ouvintes. Se a mão é tão importante na nossa comunicação, ela configura estilos e modos nas diversas áreas do relacionamento humano. Vamos tentar refletir sobre duas das imensas forma de liguagem das mãos: a mão aberta e o punho cerrado...sobretudo agora que nos preparamos para viver um período de confronto político mais aceso.

1. Quem não terá já reparado que ideologicamente as mãos abertas – seja qual for a postura dos dedos – aparecem-nos mais conotadas com as (apelidadas) forças de direita e que, por seu turno, o punho cerrado como que simboliza as (ditas) ideias de esquerda. Haverá nisto algum fundo de verdade? Que raízes histórico-ideológicas podem ser aferidas a estas possíveis interpretações? Será que os ‘nossos’ políticos e afins compreendem esta distinção? Já se terão apercebido que qualquer destes gestos não é anódino,antes envolve linguagens atinentes? Como explicar, de forma simples e clara, a significação de tais comunicações de massas? Numa época de simbologias não será conveniente para todos conhecermos e sabermos o significado das coisas e dos gestos?

2. Nós falamos com mãos e as mãos falam daquilo que nós somos, isto é, a nossa forma de expressão oral é complementada com a expressão gestual. A mão simboliza uma acção ou uma obra e encerra a magia do coração; por isso transmite os seus sentimentos. As mãos amam, falam (por gestos) e acariciam, tocam e deixam-se tocar; as mãos tranquilizam e agridem, desejam e repelem; comunicam amor e agressão, serviço e domínio sobre o outro. Por isso a nossa língua é rica em expressões acerca da mão.
Na comunicação pelas mãos podemos percecionar a mensagem que nós queremos dizer e o que os outros nos pretendem transmitir. As mãos são arma e utensílio mesmo na linguagem política e ideológica...

3. O punho cerrado ou punho erguido é símbolo de solidariedade e de apoio a causas relacionadas com conflitos sociais como racismo, xenofobia, sexismo, entre outras mazelas que fragilizam as relações humanas. Também tem sido utilizado o punho cerrado como saudação para expressar unidade, força, desafio ou orgulho de pertencer a um grupo social e politicamente minoritário. A saudação remonta a antiga Assíria como um símbolo de resistência em face da violência.
No século XIX, o punho fechado como símbolo de enfrentamento esteve presente durante o episódio da comuna de Paris (1871), dos mártires de Chicago (1886) e na revolta dos Boxers (1899-1901). No século XX, o símbolo da mão foi largamente utilizado na revolução russa (1917-1921), como saudação vermelha, na guerra civil espanhola (1936-1939), como saudação anti-fascista, e também na Alemanha, como saudação nazista. Foi sinal usado ainda pelas lutas nacionalistas e de descolonização na América, África e Ásia, do movimento feminista e do movimento negro, chegando ainda às insurreições da atualidade...

4. Agora que estamos a entrar na refrega eleitoral em vias das próximas eleições antecipadas precisamos de estar atentos aos gestos – talvez mais contundentes dos que as palavras – daqueles que nos querem impingir a sedução ao voto. Felizmente nestas lides da democracia cada um só tem um voto, embora haja quem queira parecer que o seu é de qualidade e que intente fazer valer mais do que o dos outros.
De uma coisa estou certo: o punho cerrado pode refletir união e combate, mas não dá nada a não ser revolta, reivindicação e esmagamento, ao invés da mão aberta que pode receber e dar, por muito pouco que seja...hoje como ontem!
Não sigo nem voto nos proponentes e seguidores do punho cerrado. Nunca!



António Sílvio Couto

terça-feira, 21 de novembro de 2023

250 mil abortos (legais)… desde 2007

 

Os dados estão publicados. As fontes são minimamente credíveis: desde 2007 foram praticados, em Portugal, mais de 250 mil abortos de forma legal, isto é, cumprindo as regras higieno-sanitárias, as etapas da lei e em locais devidamente autorizados.

A Federação Portuguesa pela Vida (FPV) divulgou os resultados de um estudo sobre “A realidade do aborto em Portugal”, que apontam para 256 070 abortos realizados por opção da mulher, desde 2007. A notícia foi lançada, no dia 18 de novembro, pela Agência Ecclesia, ligada à Igreja católica.

1. Das hostes eclesiais não vimos qualquer comentário e/ou reação sobre o assunto, nem dos bispos e tão pouco pelos leigos e famílias. Os dados da FPV apontam para que, em 2021, houve 79.582 nascimentos, enquanto 195 mil mulheres abortaram desde que esta lei entrou em vigor, em 2007. Os números são duros e quase dramáticos, mas não podemos calá-los ou escondê-los ao sabor do (pretenso) politicamente correto.

2. Sem pretendermos pintar a situação com cores ainda mais escuras e tenebrosas, se acrescentarmos a estes dados os abortos ilegais, não será difícl de chegarmos à cifra simbólica de mais de meio milhão de abortos no nosso país, naquela (nesta) época? Apesar de se tentar branquear a questão por alguns mentores e difusores dos números do aborto, nada faz crer que a não-penalização – nessa tão eufemística quão enganosa designação de despenalização da interrupção voluntária da gravidez – tenha feito desaparecer o fenómeno do aborto clandestino e das vítimas que continua a deixar...direta e indiretamente.

3. Haverá alguma relação entre o ‘inverno demográfico’ na Europa e a difusão (vulgarização) do aborto? Os milhares de crianças mortas antes de nascer não teriam contribuído para o rejuvenescimento da população portuguesa e europeia? Por que não se faz – ideológica e acintosamente – uma correlação entre os dois fenómenos e como que se aceita como facto-feito o risco de perdermos a identidade pela não-opção em ter filhos? Não estará subjacente à recorrência ao aborto – há situações agravadas a partir do segundo filho – uma espécie de planeamento familiar de recurso?

4. Os mentores e continuadores desta matança não gostam que se lhes apresentem os números e com razoável habilidade escondem que os hospitais objetores da prática do aborto crescem, de norte a sul, pela consciência de que os médicos e outros servidores da saúde não se sentem vocacionados para matar, mas para defender e salvar a vida. Nas entrelinhas tais defensores do aborto deixam sair o queixume de que algumas equipas pró-aborto estão envelhecidas e cansadas, não será antes que estão mais conscientes e despertas para o valor da vida?

5. Este tema, desde a sua origem, sempre foi e será uma questão cultural, mais do que uma circunstância de saúde ou de conduta das mulheres. Não esqueçamos que a difusão do cristianismo na sociedade/cultura romana se deu na medida em que os cristãos eram contra a prática da matança das crianças – dito infanticídio – e pelo respeito pela vida na família. O choque, nessa época, foi grande e marcante, assim como o deve ser hoje, nesta sociedade hedonista e cultivadora do descartável, tanto na primeira como na derradeira etapa da existência.

6. A compreensão para com que praticou o aborto – já encontrei pessoas que carregaram esse fardo por mais de setenta anos – não pode deixar-nos indiferentes às mazelas que esta ferida social, psicológica e espiritual deixa em tantas pessoas. Muitas vezes foram as circunstâncias que fizeram caminhar para tal beco, mas hoje devemos apostar na educação sexual pela responsabilidade. Mais do que seria desejável continua a pulular a ignorância em tantos/as daqueles/as que ainda usam as coisas da Igreja. Sem medo nem preconceito é preciso dizer claramente: o aborto mata!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Mensagem para os ‘nossos’ políticos (*)

 


Se usarmos os clássicos 5W – who (quem), what (o quê), where (onde), when (quando) e why (porquê) – poderemos encontrar pistas para esta ‘mensagem’, que tem tanto de despretenciosa quanto de preocupada para com as inquietações e as leituras em saber para onde poderá ir a nossa (portuguesa e europeia) ‘vida política’ a curto e a médio prazo.

Excentíssimos senhores,
considero como qualidades necessárias para o exercício desta ‘arte da política’ – como lhe chamava Aristóteles – certas potencialidades humanas – em linguagem cristã, diz-se virtudes ou dons – básicas: a educação cívica, o respeito pela diferença, o serviço da verdade (por palavras e ações), a lealdade para com eleitos e eleitores, a lisura de trato com as coisas económicas (públicas e/ou privadas), a honestidade de caráter com todos (incluindo simpatizantes e opositores), a assunção das responsabilidades (antes, durante e depois do exercício de alguma faceta do poder), a aceitação das vitórias e das derrotas com transparência e serenidade...

Excelentíssimos senhores e senhoras,
agradeço a vossa disponibilidade para estarem ao serviço das coisas públicas, sobretudo neste tempo em que parece estar tudo e todos sob suspeita. De facto, é quase ignóbil que seja vilipendiada a privacidade de que está ao serviço dos outros. Mais do que o efémero da fama será sempre de defender o bom nome, a honra e a tranquilidade da família, quantas vezes prejudicada pelo tempo que não lhes dedicaram. Os incómodos inerentes ao exercício da vossa função pública nem sempre é devidamente pago (económica e civicamente) e isso poderá explicar certos ‘casos’ que, desgraçadamente, são extrapolados para todos. Merecem que seja distinguido o ‘trigo do joio’, no sentido geral e nas formas particulares. Embora a verdade se manifesta, esta nem sempre consegue deixar rastos de menos-boa-crença quando algo surge a manchar uns poucos...

Senhores e senhoras que ainda querem estar (ou continuar) na vida da política,
- Pelo vosso comportamento ajudem a criar uma boa onda de credibilidade da vossa presença e ação.
- Procurem excluir das vossas listas os oportunistas e fazedores do descrédito até agora reinante.
- Cuidem de que sejam mais vistos pela competência do que pela conivência com o antes e o ‘dejá vu’.
- Sejam exigentes na elaboração - seja qual for o partido ou ideologia - das listas dos que serão submetidos à votação.
- Mais do que atenderem à satisfação dos interesses de grupos (económicos, lóbis ou ideológicos) que saibam promover o bem comum na forma e no conteúdo.
- Auguro que, pela qualidade dos executantes, sejam exorcizados os interesseiros, os bajuladores, os trapaceiros e quantos se servirem da política para enriquecer sem freio nem moral...

Queiram desculpar esta missiva, mas só a escrevi porque acredito que ainda haverá homens e mulheres que sabem e querem estar na vida política com sentido e cuidado dos outros. Que sejam mais e melhores!



(*) Membros/simpatizantes/beneficiários dos partidos políticos, autarcas, deputados (em exercício ou candidatos), governantes, assessores...juvenis ou retirados.



António Sílvio Couto

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Dar espaço


Por vezes ouvimos dizer que ‘é preciso dar espaço’ para que possa ser colocada outra coisa, retirando algo que estava a ocupar esse tal espaço. A noção de ‘espaço’ pode ser variável, tanto mais quanto esse possa ser subjetivo. Com efeito, dizem os entendidos em matéria de assuntos psicológicos que a descoberta de ‘espaço’ e de ‘tempo’ carateriza a nossa perceção de lugar e história, isto é, quem somos e onde estamos... num determinado lugar e em relação a quê e a quem.

Neste tempo de consumismo é habitual vermos - e nós e à nossa volta - que se dá um preeenchimento do espaço (interior e exterior) das pessoas com coisas, numa quase insaciável vontade de ter mais do que, porventura, de ser. Se há época do ano em que isso parece estar mais ativo é no tempo de Natal: a sociedade de consumo fascina as pessoas com o desejo de ter mais, ter muito e ter melhor.
Atendendo a estas questões sugerimos para a preparação do Natal deste ano a expressão: ‘dar espaço’, naquilo que implica ou que possa exigir que tenhamos espaço em cada um de nós (no mais íntimo do nosso ser), que demos espaço aos outros (nos lugares onde nos encontramos com eles - na família, no trabalho, na sociedade ou na Igreja) e que consigamos, acima de tudo, que Deus tenha o seu espaço condigno e necessário.

= Etapas da caminhada

As propostas de caminhada do Advento deste ano podem ser faseadas, isto é, a partir da Palavra de Deus de cada domingo em que acolhemos e deixamo-nos interpelar ainda por algumas (mais simbólicas) ‘figuras’ do presépio.

Como linguagem de suporte podemos servir-nos da ‘estrela-do-mar’ na sua figuração.
Em cada semana (apontamos o domingo) ligando a alguma das figuras mais representativas de preparação para o Natal..e, se quisermos incluir uma outra dinâmica, as velas da ‘coroa do Advento’ com uma coloração diferente por semana
- 1.ª semana (dia 3) - ovelhas como sinais de simplicidade; na ‘coroa’ acendemos uma vela de cor verde;
- 2.ª semana (dia 10) - vaca e burro como sinais de aconchego animal; na ‘coroa’ acendemos uma vela de cor vermelha;
- 3.ª semana (dia 17) - Maria como expressão de maternidade; na ‘coroa’ acendemos uma vela de cor de rosa (em consonância com o domingo gaudete);
- 4.º domingo (dia 24) - José como significação da paternidade; na ‘coroa’ acendemos uma vela de cor azul.
No centro da ‘estrela-do-mar’ poderemos colocar uma pequena imagem do Menino Jesus, proporcional à dimensão da mesma estrela. Seria um bom presente a oferecermos a quem considerarmos que gostaríamos de fazer presença neste Natal.



António Sílvio Couto



quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Identidade e questionamento

 

“Je suis ce que je suis

et si je suis ce que je suis
qu’est-ce que je suis?»
(Sou o que sou e se sou o que sou, o que é que eu sou?)
Esta frase - no original em francês e traduzida - pode conter algo suscetível de fazer-nos refletir sobre diversos aspetos da nossa vida pessoal, familiar e coletiva/social/eclesial. Efetivamente urge conhecer-se na verdadeira identidade, sem subterfúgios ou compensações, sem duplicidades ou mecanismos de substituição, antes enfretando-se a si mesmo e aceitando os outros como eles são, verdadeiramente.

1. É bem mais habitual do que se julga encontrarmos pessoas que se guiam pela aparência do social, desde os critérios de conduta, passando pela indumentária (carros, roupagens, festas e amigos) que usam ou até mesmo que pertença a algum grupo das redes (ditas) sociais... valem pelo que mostram e não pelo que são. Em certas ocasiões ostentam os títulos académicos (se os têm) mais como forma de impressionar os outros do que pela valorização que eles significam. Recordo o episódio de um senhor que ostentava um anel de formatura de um curso considerado de relevo social, mas cuja forma de falar, deturpando as palavras e a conjugação das frases, não condizia com tal graduação académica. Depois de alguns dias de convivência abordei-o, questionando qual era o curso simbolozado por aquele anel, ao que ele respondeu, comprei-o numa ourivesaria... e assim tentava impressionar os frequentadores do café famoso que geria...numa cidade de renome.

2. Com relativa facilidade podemos ainda encontrar pessoas que, de alguma forma, renegam as suas origens e as da sua família, tentando com isso dar a impressão de que se colocam numa fasquia social acima – na maior parte das vezes é fora – ofendendo os antecessores e podendo deseducar os sucessores. Infelizmente os exemplos são muitos e em quase todos como que nos percorre a sensação de que sob a máscara de certas figuras se encobre um quê de complexidade no equilíbrio emocional e psicológico de tantos em excesso.

3. A avaliar por alguns comportamentos de pessoas com quem convivemos habitualmente – de forma direta ou indireta – precisamos de ter uma chave de leitura bem mais apertada do que seria desejável, se tudo decorre-se em conformidade com critérios ‘normais’ entre todos. Vivemos num contexto social onde as pessoas se relacionam e criam redes de proximidade: umas vezes dão-se a conhecer, noutras tentam impressionar e, na maior parte das situações, procuram tirar proveito daqueles que consideram ‘amigos’ – no conceito mais vasto ou restrito – seja via redes sociais ou no contacto direto. É calamitoso que haja pessoas com milhares de ‘amigos’ no faceboock, mas solitários (sós, tristes e abandonados) na hora da verdade.

4. Cada vez mais e melhor precisamos de aprender a conjugar a multiplicidade de ‘imagens’ que temos de nós mesmos, que damos aos outros, que os outros têm de nós e que eles possivelmente nos querem apresentar.

Qual é a imagem que eu tenho de mim mesmo? Está alicerçada na verdade ou vivo na aparência do que quero que os outros vejam ou pensem de mim? Aceito-me como sou ou tento encobrir, pelo disfarce, aquilo que não gosto ou não aceito em mim mesmo? Qual o grau de autoestima que cultivo? Não será exagerado e pouco verdadeiro?
No trato com os outros aceito-os como eles são? Distorço as suas qualidades e/ou defeitos? Vejo neles o que não são? Critico-os ou adulo-os? As suas qualidades fazem-me sombra? Sou moderado nas apreciações que faço dos outros, sobretudo daqueles que penso conhecer melhor? Tento aproveitar-me dos ‘amigos’ que digo ter?

Numa palavra: amo e estimo os outros porque me amo – com qualidades e defeitos, virtudes e falhas/pecados – a mim mesmo?



António Sílvio Couto

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O que ofende – as perguntas ou as respostas?

 

Quem não ouviu já frases – tipo chavão ou quase idiomáticas – como estas: perguntar não ofende; só se deve responder àquilo que nos perguntam; quem pergunta quer saber; antes de saber as respostas devemos deixar fazer as perguntas; quem pergunta quer ser esclarecido; dar respostas com educação...etc.

De facto, nem sempre aquilo que é perguntado deverá ser respondido, pois desta ação de resposta poderá decorrer algo que correrá o risco de faiscar no perguntador ou nas entrelinhas suscitadas.

1. Por vezes o silêncio é a melhor resposta a certas perguntas, sobretudo àquelas que se percebe que podem envolver má-fé ou, pelos menos, menos boa intenção. Efetivamente, recordo, há anos, uma simples intervenção do então Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, que a uma questão colocada por uma jornalista, respondeu direta e secamente: ó menina, isso é pergunta que se faça! Com efeito, há quem mais do que querer esclarecer-se – e através das perguntas que faz ajudar outros a serem esclarecidos – procura mais entalar aquele/aquela a quem está a questionar. Isto será tanto mais grave quanto o interlocutor questionado possa cair na esparrela de dizer tudo e o resto que não lhe é perguntado...

2. Num tempo de velocidade – psicológica até mais do que real – as perguntas podem ajudar a saber mais, mas também podem confundir quem ouça ou veja. Em certos casos da comunicação social em uso no nosso país encontramos perguntadores que não passam de tripé de microfone, pois aquilo que dizem, sob a alçada de pretensa pergunta, é já conversa encomendada, senão mesmo soprada do estúdio. Aquele simulado microfone no ouvido serve para quê? A insistência no mesmo tema, se já foi respondido, é feita com que intenção? Disparar sem parar perguntas e mais questões não será mais para tentar colher de quem fala aquilo que talvez não queira dizer?

3. Recordo, quando andava nas lides do jornalismo ativo, um certo ‘jornaleiro’, que entrava mudo e saia calado das ditas ‘conferências de imprensa’, mas nas páginas do seu jornal, no dia seguinte, ele referia que quem falou respondeu às ‘suas’ perguntas, sem que se lhe tivesse ouvido a voz em tempo algum. Ainda hoje vemos certos papagaios de televisões e de jornais que usam o mesmo truque: com a verborreia de perguntar não deixam ninguém esclarecer nem dão espaço a que outros possam colocar perguntas com lealdade e sem manhas. A dita pressa em informar corre o risco de se tornar um espaço de criação de factos relevantes com questões insignificantes e quase miseráveis do ponto de vista do verdadeiro interesse do público.

4. Nos dias mais recentes temos assistido a uma quantidade razoável de situações onde os que perguntam e aqueles que são perguntados precisam de saber respeitar-se: os perguntados não podem tentar ofender a inteligência dos outros, menosprezando so seus neurónios enferrujados; os perguntadores mais do que desviarem a atenção do essencial devem permitir que, quem esteja sob a pressão de responder, o faça com liberdade e não embarcando nas subtilezas da manipulação preconceituosa de lóbis e ideologias.

5. Urge, por isso, fomentar a verdadeira liberdade de comunicação, onde todos se respeitem e façam dessa atividade um autêntico serviço à verdade. Por muito que dela se reclamem, em certos fazedores da comunicação social, nota-se que mais do que servi-la, ofendem-na com meias-verdades, senão mesmo mentiras e difamações... As apelidadas ‘fake news’ (notícias falsas) são mais normais do que se julga e pululam nos órgãos de comunicação com regularidade. É importante comunicar, mas torna-se indiscutível saber fazê-lo. É essencial perguntar, mas é urgente conhecer os meios e as formas mais corretas. Informar e ser informado é um direito e dever com regras e obrigações de todos...



António Sílvio Couto

sábado, 11 de novembro de 2023

Num país de galambices

O dia 7 de novembro de 2023 ficará na história como uma data marcante da nossa quase meio-centenária democracia: um chefe do governo – suportado por uma maioria parlamentar – teve de pedir a demissão por razões mais ou menos esconsas e subterrâneas, isto é, pelas manobras ardilosas de um certo ministro e afins que foi espalhando má reputação – à mistura com jogos de influência – a ponto de colocar em causa regras mínimas do Estado e da governação.

A chave do problema – de seu nome João Galamba, de 47 anos – tem deambulando pela área do ambiente, embora esteja, por agora, a decidir sobre matérias de infraestruturas de grande alcance… lidando mais uma vez com muito, mas mesmo muito, dinheiro, tal como no passado a que dizem respeito as matérias sob investigação… concessões de exploração de lítio e de hidrogénio verde.

1. Andava o país entretido a tentar resolver o imbróglio do (dito) serviço nacional de saúde, quando rebentou a bomba no palácio de S. Bento: o chefe de governo estava metido no enredo – sabia ou foi usado na matéria – por outros intervenientes, alguns deles próximos nas ideias do partido. Em menos de cinco horas tudo se resolveu pela renúncia ao cargo do PM e fomos vendo cair outros por arrastamento…

2. Com que velocidade emergiram certos figurões – da área judicial, mas também do foro legislativo – a insurgirem-se contra quem questionou o comportamento dos prevaricadores: a justiça passou de elemento de paz social para estar na mira da acusação pelos apaniguados dos agora denunciados. Numa mentalidade muito portuguesa passou-se a questionar o árbitro e não a revoltarem-se contra os maus jogadores… É assim no futebolês e também na política de baixa moral: na hora da derrota a culpa é sempre dos outros!

3. Quando se pensava que o tráfico de influências andaria um pouco mais arredado dos espaços do poder, eis que volta a estar na ordem do dia e mais uma vez pela mão dos mesmos de outras épocas. Ainda não saiu para julgamento um anterior PM socialista e novamente está outro na liça. Isto será coincidência ou sina? Que há de tão propício neste setor ideológico para que, ciclicamente, tenhamos de ser confrontados com novos intérpretes, mas com defeitos antigos e repetidos? O povo que vota continuará a insistir na dose em engano, quando os dados são por demais óbvios?

4. Pasme-se na avaliação que a comunicação social – no geral e em certos particulares – faz destes enredos: promotores e seduzidos pelo poder dos mais fortes, aparecem como ‘virgens ofendidas’ na sua honorabilidade, quando fizeram parte dos banquetes e deram cobertura às façanhas de ontem como às de hoje. Eis que uns tantos querem parecer defensores do bem alheio quando não sabem cuidar do que é seu; que são bons a dar conselhos, mas não os seguem para si mesmos; que têm boas intenções, mas não as vivem minimamente.

5. Por muito que nos custe ouvir e de termos de reler: há um povo nos confins da Europa que não se governa nem se deixa governar. Somos algo irrisório no mapa das ‘democracias’ ocidentais: desde que nos deem pão e jogos facilmente nos levam pela demagogia. Uns trocos a mais ao final do mês, uns tostões de desconto em certos produtos, umas benesses de ocasião ou promoções à socapa… eis como nos vão ludibriando vez após vez e ninguém desconfia quando a mísera esmola cresceu um pouquito.

6. Neste país de galambices são poucos os que tentam destoar da manada e se o fizerem correm o risco de serem apelidados de populistas, de reacionários, de defensores dos valores extremistas. Estamos formatados para continuar a seguir os passos que nos têm levado ao abismo? Até quando nos enganam com papas e bolos? No virar da esquina se adivinha mais uma crise de identidade, mais do que económica ou social…



António Sílvio Couto

terça-feira, 7 de novembro de 2023

O ‘cavalo-de-tróia’ já chegou...


 Tinha a sensação de que algo de muito nefasto está a acontecer no nosso país. Por estes dias – infelizmente – pude confirmar: cidadãos de países do extremo oriente pululam em diversos pontos das nossas cidades: Santarém ou Setúbal, Lisboa ou Braga, Albufeira ou Cascais...vemos a deambularem, sorrateiramente, cidadãos com tez de outras paragens geográficas, dedicando-se a atividades – comerciais ou de restauração, nos espaços de conforto ou de estética, na agricultura ou em situações de substituição de tarefas rejeitadas pelos autóctones – nem sempre entendíveis pelos lusos, numa espécie de invasão em lugares significativos e simbólicos de cada localidade.

1. Somos na prática um país dependente da imigração – mais de 10% da população residente tem origem noutros países que não Portugal – mas isso não nos deve induzir numa certa resignação e excesso de abertura em receber tudo e todos que queiram para cá virem. Numa escala de troca de serviços poderemos considerar que a necessidade da substituição em áreas já não desejadas para os nossos ‘trabalhadores’ deveriam fazer-nos refletir mais naquilo que temos estado a fazer. A aventura de partir pode ter muitas e díspares explicações, mas no fundo da maioria dos casos reside uma busca para uma resposta que, por vezes, envolve mais mistério do que razões explicáveis... Se bem repararmos a maioria dos migrantes é triste e espalha esse ambiente interior, disfarçado de barulhento... à semelhança da sua terra de origem.

2. Talvez nos falte capacidade de discernimento para sermos rigorosos quanto ao futuro próximo. À luz de certos métodos político-sociais é mais fácil rotular de xenofobia com a subdivisão de racismo a quem ouse defender uma maior atenção a quem chega. Talvez seja mais sensível dar um ar de democrata evitar refletir sobre as causas de quem nos procura, negligenciando as consequências de saber o que se poderá seguir a curto e a médio prazo. Talvez possa ser mais conveniente tentar enganar-se com não enfrentar os problemas do que em procurar entender o que estamos a dar sem resolver o mais importante: essas pessoas não serão reduzidas as coisas (números, faturas e impostos) em vez de lhes resolvermos a fuga dos nossos próprios problemas sem resposta?

3. Qual é a mentalidade comum do migrante? Ter e dar melhores condições humanas para si e para os seus. Isso o fez arriscar sair da sua terra, mas esta será sempre o seu lugar de referência e como que a nostalgia do regresso. E nem os internacionalistas mais arrejados deixam de sentir que o seu ponto de regresso é a casa de partida. Lá no fundo todos temos um quê de saudade de onde vimos, mesmo que nem sempre saibamos para onde vamos ou para onde queremos ir. Pasme-se que os defensores dos migrantes quase sempre são ou foram isso mesmo nalguma etapa da sua vida. Ousaria considerar que a defesa dos migrantes encobre um desejo profundo de que eles não o deveriam ser, por muito que deles possam precisar para certas tarefas que já não fazem...

4. Há uma espécie de confluência de imigrantes que nos deveria fazer refletir: muitos são procedentes de regiões do Planeta onde a faceta da religião-ideologia está mais arreigada. Sem temer ser confrontado com a tal teoria da conspiração, com que certas mentes rotulam quem coloque questões, deixo breves perguntas. Certa tolerância de alguma ‘esquerda’ não cheira a combate ao cristianismo sob a forma de defesa da imigração anticristã? Não andaremos a deixar que o ‘cavalo-de-tróia’ – essa simbólica de fazer penetrar algo disfarçado no castelo em defesa – seja montado, entre e até dissimine a capacidade de poder fazer implodir a sociedade ocidental e europeia em particular? Na nossa sonsice generalizada não andaremos a dar trunfos – que mais cedo do que tarde serão triunfos – a quem nos pode aniquilar cá dentro, em caso de ataque consertado com o exterior? Porque há tanto sucesso nas manifestações pró-muçulmanas nas sociedades e culturas dos países europeus? Já vimos o crescimento – em números reais – dos muçulmanos no nosso país?



António Sílvio Couto

sábado, 4 de novembro de 2023

Não deviam ter começado!

 


"Desta vez foi alguém do vosso lado que começou. Não deviam".

Foi desta forma algo paternalista que o Presidente da República portuguesa se dirigiu a um dirigente palestiniano como que a repreendê-lo - e nele a todos os seus compatriotas - quanto ao início do conflito entre Israel e a grupo Hamas de origem palestiniana, que atacou os israelitas no passado dia 7 de outubro... e desde então assistimos a uma guerra destruidora de tudo e de todos.

1. Será que o PR português se imiscuiu na refrega? Tomou partido por uma das partes com o que disse? Confundiu advertência privada com posição política? Não tem direito de se exprimir, quando tantos outros (duma certa esquerda pacifista de garras afiadas) já se venderam - como de costume - à parte agora (e mais uma vez) beligerante? Ser por Israel é vergonha e pelos que atacam é honra? Não faltará honestidade mental e cívica a tantos defensores de quem esbentrou o subsolo da Palestina? Em boa parte dos mentores deste secular conflito continuam a correr-lhes nas veias o espírito de Caim contra Abel... Se não conhecem a estória leiam o guru da Azinhaga e meditem as propostas lá contidas!

2. Qual cena do recreio da escola, o senhor professor quis dar ‘tau-tau’ aos meninos que andam à luta, engalfinhando-se até que um seja vencido. O pior é que a sensação que temos é que nenhum ganhará a batalha e tão pouco a guerra. Os que assistem à bulha como que acirram ainda mais os contendores e daquilo a pouco nada nem ninguém os fará parar, pois se sentem enfurecidos pelos apoios que seriam dispensados... Tal como no contexto da escola, os matulões que patrocinam a barafunda saem sempre a ganhar, ontem como hoje!

3. Este retrato do conflito israelo-palestiniano como que nos dá a sensação que mais este problema entre vizinhos será um foco de animosidade local e geral, deixando perceber que as duas partes são mais do que aquilo parecem mostrar. Vejam-se as reações extremadas e extremistas de certas sociedades - entre as quais a de Portugal - onde rapidamente se desenterram posições ideológicas, se mostram simpatias e se arregimentam protestos e apoios quase impensáveis. Não esqueçamos as palavras pouco diplomáticas do secretário-geral da ONU e das reações em favor e contra, bem como as declarações do PR português, que vimos citando neste texto: um e outro, mesmo que amigos entre si e ambos concidadãos, disseram coisas tendo como referência uma e outra das partes da barricada e foi claro de ver o que sobre um e para com outro foi reagido... A Palestina continua a ser terra abençoada e de múltiplas contradições, tal como reza sua história milenar!

4. Embora este acentuado conflito na Palestina dure há tempo de mais, ele reflete vários problemas e que dificilmente terão solução a contento de todos: questões religiosas - várias fés (abraâmicas) ali têm referência; situações de luta pela água - num espaço quase desértico esta é algo precioso; convivência cultural - mais do que religião temos aspetos de visão de vida; explosão demográfica - muita gente para curto terreno; incidências do passado não resolvidas e que emergem ciclicamente... São estes e outros ingredientes que tornam tão efervescente esta porção do planeta Terra. Será complicado encontrar a resolução de algo que tem mais para prosseguir na conflitualidade do que para se resolver na pacificação. Será avisado e de bom senso não se meter na questão, pelo contrário tomar partido só o prolonga no tempo e fora do espaço...

5. Aquela que apelidam de ‘terra santa’ continua a ser sacrificada e ser pedra de tropeço na história humana. Até quando?



António Sílvio Couto

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Perdemos a memória…pessoal e coletiva?

 

Por ocasião do recente ‘dia de fiéis defuntos’ podemos ver – ainda não é reconhecer – um sinal algo perigoso da nossa condição e cultura coletiva e como reflexo de muitas atitudes pessoais: um abandono crescente da ausência das pessoas a recordarem – de forma assumida e pública – a lembrança dos seus mortos, antepassados, familiares ou não.

Sou procedente de uma região do país com outra vivência e envolvência social, onde o respeito pelos mortos tem quase um culto exacerbado. E aquilo que vejo não só me custa como me escandaliza. Por isso, esta breve partilha, reflexão ou quase grito de revolta não só quanto ao presente, mas atendendo ao futuro próximo.

1. Desde já uma observação de interesses: considero que se devia acabar com os feriados religiosos com incidência civil, pois, esta dimensão civilista obriga quem tem de estar no serviço religioso e não cumpre a finalidade para a qual foi feito o ‘feriado religioso’. Datas como 1 de novembro, 8 de dezembro, sexta-feira santa, corpo de Deus, Assunção funcionam como feriados civis mas que, de verdade, são ’dias santos’ e para os católicos com obrigação de preceito religioso. Faço parte de um minoria que não os usufrui… Não gosto, no entanto, de contribuir para a preguiça alheia, dando-lhe cobertura que seria escusada, se houvesse verdade no conteúdo e na forma.

2. Fixemos a atenção neste fenómeno cultural crescente que é a privatização da morte, senão mesmo o varrê-la para fora do nosso alcance de inquietação, como se, desta forma, a evitássemos ou mesmo dela conseguíssemos escapar.

Li, há dias, esta observação: «há crianças que não vão ao funeral de familiares diretos porque ficam traumatizadas, mas no halloween, os papás [e mamãs] vestem-nos de mortos-vivos e bruxas». Este incisivo revela bem a incongruência de tanta gente, que critica uns comportamentos e promove o mesmo, só que em contexto diferente.

Sem qualquer juízo de valor podemos ver que se torna difícil ser coerente, tanto nas ideias como nos comportamentos e, pior, como que se brinca com assuntos sérios banalizando-os com atitudes, gestos, palavras e preconceitos.

3. Recordo de lembrança frases como estas: um país sem memória é um país sem futuro; um povo sem memória é um povo sem história; um povo que não conhece a sua história está fadado a repeti-la… Por estas quase sentenças podemos tentar perceber que, muito daquilo que somos hoje, está inscrito na vivência dos nossos antepassados e que nós próprios fazemos parte da construção do futuro com as lições – boas ou menos boas e mesmo más – que colhemos do passado. Por isso, o crescente abandono às nossas referências históricas – pessoais, familiares, sociais, culturais e coletivas – torna-se, além de perigoso, uma espécie de atentado à nossa sobrevivência como pessoas e instituições: antes de nós já houve vivência e depois de nós continuará a existir vida, mas esta dependerá da forma como soubermos referenciar-nos aos valores essenciais e não meramente às intriguices de circunstância…

4. Nesta sociedade de consumo em que vivemos podemos entender um tanto melhor essa ortopráxis materialista com que tantas pessoas se deixam conduzir, isto é, guiados mais pelas coisas materiais das quais têm experiência e vivência, esquecendo os valores psicológico-espirituais. Com que facilidade vemos resvalarem para o esquecimento valores que foram critérios de vida de muitos dos nossos antepassados. Com que velocidade temos visto serem perdidas causas de pessoas que eram motivo de exemplaridade na vida familiar e social. Embora os tempos sejam outros – como dizem certas vozes – os valores da gratidão, da honestidade, da lealdade… são intemporais e precisam de ser promovidos, vividos e reconhecidos.

5. Embora o sepultamento em cemitério fosse um acicate ao não esquecimento (memória), que dizer das repercussões do rápido vulgarizar da cremação, não iremos esquecer mais anónima e facilmente?



António Sílvio Couto

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Sê quem tu quiseres’ – qual o significado?

 


Quando li esta frase – ‘sê quem tu quiseres’ – andei a cogitar por várias horas. Ela pode proporcionar aspetos positivos, mas também criar confusões ou suscitar dimensões menos boas, senão mesmos negativas. Ela pode ser um slogan, mas também poderá comportar desafios e envolver mistérios pessoais e sociais. Ela pode referir-nos coisas de bem e, porque não, insinuar comportamentos desviantes...

1. Fui em busca da origem mais recente desta frase – ‘sê quem tu quiseres’ – e encontrei a referência à nova insígnia com o lema do triénio 2023-2026 do corpo nacional de escutas em Portugal, onde cada escuteiro é desafiado a definir o que quer ser, para onde quer seguir e que caminho quer percorrer. Aqui se acentua, em sumário, a componente do ‘querer’, certamente essencial, mas que pode não ser o mais importante numa etapa pedagógica e em fases de crescimento e maturidade da pessoa.

2. Coloquemos (hipotéticas ou reais) situações em que esta frase – ‘sê quem tu quiseres’ – pode conter, em primeiro plano, aspetos positivos na vida das pessoas, isto é, casos em que o querer pode e deve ser alicerce e força de conduta na hora da afirmação da vontade: quando alguém deseja atingir um objetivo de melhorar a sua vida (seja em que nível for); quando se tenta ultrapassar questões de limitação humana e social; quando para atingir os fins se procura desenvolver os meios adequados, corretos e proporcionais; quando mais do que tropeçar nas dificuldades (interiores ou exteriores) se procura construir algo de benéfico e salutar...

3. Ao nível religioso (e de algum modo filosófico) podemos encontrar uma expressão que, de certa maneira, consubstancia a ideia subjacente àquela frase – ‘sê quem tu quiseres’ – que se designa de ‘livre-arbítrio’. Este consiste na capacidade que cada pessoa tem de escolher as ações e qual o caminho que quer seguir, na liberdade de opção de cada um.

Diz-nos o Catecismo da Igreja Católica: «A liberdade é o poder, radicado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, praticando assim, por si mesmo, acções deliberadas. Pelo livre arbítrio, cada qual dispõe de si. A liberdade é, no homem, uma força de crescimento e de maturação na verdade e na bondade. E atinge a sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa bem-aventurança» (n.º 1731). Será que agimos de forma livre, segundo Deus? Será que de Deus acolhemos a sua liberdade para sermos livres n’Ele? Não será que, na maior parte das vezes, não somos livres na linguagem de Deus e do seu Espírito santo em nós?

4. No entanto, esta frase – ‘sê quem tu quiseres’ – não poderá induzir em erro quem pretenda ‘impingir’ a pretensa ideia de que a dimensão afetivo-sexual teria uma possibilidade de cada querer ser o que lhe convenha? Isso não afetaria a linguagem e os comportamentos a contento do freguês ou à la carte? Não teremos neste âmbito ético/moral algo que está a resvalar para uma certa libertinagem, que terá, em breve, consequências mais graves do que as que advertimos? Não seria avisado que tais propostas devessem ser escrutinadas, atendendo às mais díspares insinuações, com boa-fé?

5. Ñum tempo de razoável relativismo ético como que se torna urgente ser sagaz – outra forma de dizer prudente – para que frases como a que temos vindo a analisar não tenham (nem possam ter) interpretações menos adequadas ou até subliminares. Mesmo que tentando uma explicação e um enquadramento mais ou menos aceitável, será preciso que os projetos de pessoas e de associações contribuam para a informação-formação-maturidade de todos e de cada um. Não sei se foi totalmente o caso em apreço...

6. «’Tudo é permitido’ mas nem tudo é conveniente. ‘Tudo é permitido’, mas nem tudo edifica. Ninguém procure o seu próprio interesse mas o dos outros» ( 1 Cor 10,23-24).



António Sílvio Couto