Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O que resolvem as manifestações?

 

Depois de um tempo de acalmia – mais artificial do que real – vemos que voltaram as manifestações à rua. As motivações são várias e para diferentes gostos. Os intervenientes parecem ser de outras épocas...embora mais envelhecidos. Nalguns casos os materiais de contestação, senão são os mesmos, assemelham-se no grafismo e nos slogans. Os organizadores são os de antanho e surgiram outros, ao menos na forma tentada. Os números arregimentados (totais ou parciais) variam conforme as fontes e os possíveis interesses em jogo...

1. No meio de toda esta resssuscitação de contestações há perguntas que emergem, mesmo sem ser preciso grande esforço, de memória ou de interpretação. Quem ganha com a deslocação de tanta gente para as manifestações? Serão só as empresas de camionagem? Quanto custa participar nalguma das manifestações – viagens, desfiles ou organização? Não haverá uma certa manipulação dos participantes por parte de forças especializadas em tais eventos? Não se nota um certo saudosismo da reivindicação de rua, quando se perdeu nos votos? Efetivamente, o que resolvem as manifestações, estas ou tantas outras, feitas ou fazer? Para além da verborreia, fica algo que possa dignificar quem participa em tais manifestações?

2. As causas das manifestações mais recentes não andam longe das de otros tempos: do setor da educação, contra o custo de vida, por melhores salários, contra teses da classe operária – se é que esta ainda existe – ou até por motivações ético-sociais. Dá a impressão que os ingredientes dos manifestantes começam a ser repetitivos, sem grande inovação e, por isso, com resultados previstos ou mesmo insignificantes. Não está em causa o direito constitucional – artigo 45.º – de usar tais meios para fazer ouvir a sua voz, mas, diga-se em abono da verdade, que cansa ver pessoas a monte, aos gritos e com algum esgar de ódio para com tudo e para com todos.

3. Se quiséssenos usar uma linguagem imagética mais popular diríamos: o cântaro tantas vezes vai à fonte, que um dia se parte. Parece ser isto que pode tipificar as recorrentes manifestações: já ninguém liga a este meio de reivindicar político-sindicalista, está esgotado e bastante espremido. À exceção das imagens televisivas pouco mais se aproveita para a resenha histórica do tema. Se trocassem as imagens de outros momentos, seriam pouco diferentes das de hoje...pelos professores ou contra o custo de vida, dos sindicatos ou convocadas pelas redes sociais... Nalguns casos até parece que são os mesmos intervenientes, com todos os tiques e gestos sem diferença!

4. Em tempos não muito recuados houve um jornal que fez uma avaliação dos rostos das pessoas ao longo de duas décadas, nas capas dos jornais, tendo chegado à conclusão de que as pessoas se foram fechando progressivamente e manifestando alguma angústia...e mesmo sem se darem conta ansiedade quanto ao futuro, no presente.

De facto, sinto algo de preocupante quando vejo os rostos dos manifestantes nos eventos mais recentes: por ali perpassa muito ódio, se destila bastante perturbação e se manifesta uma sociedade prestes a explodir de vingança, senão até de violência em alto grau.

5. Perante esta deambulação sobre a utilidade das manifestações, poderemos considerar que tais formas de manifestar a discordância com o poder e/ou a pretensão de impor as suas ideias aos outros estão ultrapassadas como processo reivindicativo. Precisamos de encontrar novas formas e com outros ingredientes e parceiros. Apesar do razoável acolhimento das iniciativas propostas, parece chegada a hora de mudar a comunicação para atingir os fins pretendidos. Aquela liturgia de certa esquerda já não cativa quem pensa pela própria cabeça. Diga-se em avaliação final: aquele ambiente de quase-manada desaguará no sem-sentido e na falta de concretização das pretensões.

Aquelas arruadas não resolvem nada, embora possam afagar o ego de muitos dirigentes...



António Sílvio Couto

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Ataques a direitos

Por estes dias temos vindo a assistir, na forma tentada, de modo ostensivo e quase provocatório, por parte das autoridades governamentais, a ataques de direitos pessoais e de propriedade privada…em matéria de habitação. Há quem já considere o que está a acontecer como se fosse uma intervenção coletivista assanhada à maneira de comportamentos de outros regimes, que não democráticos…

Nota-se um recrudescimento das antíteses: público – privado; de todos (teoricamente) – de cada um; do estado – dos particulares. Decorridos quase cinquenta anos após a revolução de abril/74, vemos o acenar de fantasmas, por certas forças, eivadas de clichés que foram sendo exorcizados noutras paragens…Esta hidra tem muitas cabeças…venenosas!

1. Tentando resolver um problema complicado – o da habitação – o governo lançou para a praça pública a tentativa de uma nova lei de habitação, tendo em conta as famílias com menos recursos e os jovens. A nova lei parece estar assente em três pilares: disponibilização de mais solos para construção de habitação pública; incentivos à construção de habitação por parte de promotores privados, que poderá ser feito através de benefícios fiscais; incentivos para os proprietários colocarem mais casas no mercado de arrendamento e, assim, apoiar os jovens no arrendamento de habitação.

Os executores deste plano serão (ou seriam) o governo central e as autarquias, tendo como suporte 2.700 milhões de euros procedentes do ‘plano de recuperação e resiliência’.

Para conseguir concretizar este plano – colocar mais casas no mercado de habitação – o governo pretende lançar mão de meios dos privados, nalguns casos – como apareceu em primeira linha – de uma espécie de ‘nacionalização’ à força de casas que não estejam ocupadas como habitação permanente…

2. Como se vai concretizar este plano? Estar-se-á a fomentar a responsabilidade ou a acomodação? Com este aceno de ‘casa própria’ não andaremos a fazer promessas sem capacidade de execução? Não estarão criadas algumas das condições para que emerja uma vaga de ocupação de casas – os ‘okupas’ –, onde estas estiverem sem uso? Por que nunca se fez nada de relevante para incentivar o desejo de adquirir casa-própria? Não teremos andado sob forte pressão social para conquistar outros produtos e não a casa de habitação? Para quando reformular o sistema marxista de ‘habitação-social’ das décadas de oitenta e noventa do século passado? Não estará na hora de produzir outra coisa que não sejam os bairros sociais, onde se amontoam problemas e situações de risco social e de segurança? Este novo projeto para a habitação será justo senão obrigar a corresponsabilizar os beneficiários?

3. Segundo dados conhecidos, há, em Portugal, 77,3% de pessoas que vivem em casa própria, havendo 22,7% que optou por viver em casa arrendada. Ora, perante estes elementos, a nova lei de habitação foca-se numa razoável minoria, colocando o resto da população sob desconfiança para com quem quer implementar esta nova regulamentação. Tendo em conta as perguntas colocadas anteriormente, precisamos de não nos deixarmos ir numa certa onda um tanto populista, que deseja dar aquilo se não tem. camuflando pelo qual quase-nunca se lutou. Efetivamente, muito daqueles que poderão ser dos beneficiados pela nova lei da habitação parece que preferem gastar as suas economias naquilo que flui e não querendo apostar na estabilidade pessoal e familiar, mesmo que isso exija constrangimentos e sacrifícios. Gastar no restaurante em vez de aferrolhar para cumprir com a renda de casa parece menos apelativo do que tentar flutuar sobre os problemas…até porque – pensam – ‘alguém’ há- de pagar…

4. A simbólica da ‘casa-para-todos’ não pode ser servida por ideologias que privilegiam a visão de que outros farão aquilo que me compete. No contexto sociopolítico atual podemos identificar quem queira dar aquilo que não foi pedido, almejando com isso recolher uns votitos de circunstância. Certas forças partidárias usam da especialidade de querem acirrar o desejo, mesmo que esse possa não ser exequível. Há ataques dos quais se colhe o fruto bem mais tarde do que seria desejável. Previsivelmente as eleições serão em 2026!



António Sílvio Couto

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Cuidados para com os animais

Está estacionada há semanas, na zona onde resido, um veículo automóvel contendo, nas partes laterais, propaganda quanto a serviços de tratamento a animais: consultas, vacinação, análises, ecografia, nutrição, serviço fúnebre...tudo em consultório móvel.

Sejam quem forem os animais beneficiados de tais produtos, terão certamente – ao menos ao nível teórico – melhores propostas de cuidado do que boa parte dos humanos...

1. De entre as ‘propostas’ enumeradas, no tal escaparate, há uma que, de alguma forma, me intriga, aquela que se refere ao ‘serviço fúnebre’, não só pelo significado do mesmo – quanto às pessoas – mas sobretudo pela alcance que se desejará conferir a tal ‘cerimónia’. Para além do invólucro em que é colocado o ‘defunto’ – vulgarmente designado de caixão – que outros adereços serão apresentados? Haverá velório? Que tipo de flores serão sugeridas? Onde será enterrado o ‘defunto’? Qual o epitáfio a colocar? Se for o caso de ser incinerado, qual o destino a dar aos restos? Já teremos columbários para os animais defuntos? Serão privados ou autárquicos?

2. É notório que os animais – em geral e os ditos de estimação e/ou de companhia – foram conquistando adeptos, defensores (mais ou menos aguerridos), promotores dos ‘seus’ direitos e mesmo de regalias em manifestações algo exotéricas, senão até ideológicas. Vai crescendo uma tendência de quase trocar o cuidado dos humanos pelos animais, numa cultura que tem tanto de inédita, quanto de servidora de outros intentos nem sempre claros aos mais atentos. Repare-se que há quem coloque como designação de identificação nomes que, anteriormente, eram colocados a pessoas e agora são dados aos (seus) animais...

3. Na cultura do nosso tempo há quem chame a esta corrente de excecionalidade quanto à natureza humana, de ‘animalismo’, como posição – filosófica e política – de quem procura a defesa dos animais, advogando medidas de salvagurada do seu bem-estar e liberdade, opondo-se a atividades que envolvam algum tipo de sofrimento ou exploração animal... quase equiparando (ou sobrepondo) os animais aos humanos. Certas agremiações políticas e de defesa dos animais, nalguns casos, parecem ser mais lutadoras pelos ‘seus’ animais do que pelos humanos. Temos visto exageros que parecem corresponder a desequilíbrios de alguns humanos, não se sabendo se estes não precisarão de alguma terapia para se compreenderem e amarem corretamente...sem entrarem em compensações para com os animais!

4. Vejamos o que diz o Catecismo da Igreja Católica sobre esta temática dos animais, desde a sua integração na ‘obra da criação de Deus’ até à sua relação com os humanos e passando pelos cuidados a prestar-lhes condignamenrte.

- «O sétimo mandamento exige o respeito pela integridade da criação. Os animais, tal como as plantas e os seres inanimados, são naturalmente destinados ao bem comum da humanidade, passada, presente e futura. O uso dos recursos minerais, vegetais e animais do universo não pode ser desvinculado do respeito pelas exigências morais. O domínio concedido pelo Criador ao homem sobre os seres inanimados e os outros seres vivos, não é absoluto, mas regulado pela preocupação da qualidade de vida do próximo, inclusive das gerações futuras; exige um respeito reli­gioso pela integridade da criação» (n.º 2415).
- «Os animais são criaturas de Deus. Deus envolve-os na sua solicitude providencial. Pelo simples facto de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória. Por isso, os homens devem estimá-los. É de lembrar com que delicadeza os santos, como São Francisco de Assis ou São Filipe de Néri, tratavam os animais» (n.º 2416).
- «É contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas. É igualmente indigno gastar com eles somas que deveriam, prioritariamente, aliviar a miséria dos homens. Pode-se amar os animais, mas não deveria desviar-se para eles o afeto só devido às pessoas» (n.º 2418).



António Sílvio Couto

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Se fosse rico…

 

Ao ver certas manifestações e reações quanto às pessoas que investem, porque são ricas ou têm poder económico, sinto dentro de mim uma repulsa quase incontrolável. Se fosse rico, nunca faria uma empresa para dar emprego a ninguém. Se fosse rico, nunca investiria na construção de casas para colocar em aluguer. Se fosse rico e tivesse capacidade económica, nunca me prestaria a ser ofendido por fazer algo – por muito pouco que fosse – que tivesse de estar alicerçado no reconhecimento (mínimo) de alguém.

Sim, em tudo isto circula uma visão e mesmo uma espécie de comportamento alicerçado na mentalidade marxista – clara ou mais diluída – de setor de classe, numa envolvência assaz arreigada no comportamento de governantes e de governados (ou será manipulados?). Agora já de forma menos disfarçada!

1. A velha mentalidade de que são só ‘trabalhadores’ aqueles que labutam com a força braçal ou física, torna-se antítese para com aqueles que têm de gerir ganhos e/ou de pagarem os salários. Que isto se propague entre funcionários de capital não-público ainda se poderá aceitar, mas que isto se dê nos ditos trabalhadores que são os da função pública soa a usurpação das palavras e mesmo dos contextos socioeconómicos. Dá a impressão que os conceitos de trabalho, de salário, de investimento, de relações laborais, de participação nas empresas, etc. continua ainda sob a alçada terminológica do aprendido no ‘capital’ de karl marx, pois séculos decorridos continuamos a reger-nos a modos de sermos ainda da revolução industrial e do tempo do carvão ou da serventia industrial dos teares e manufaturados dos tempos das guerras mundiais. O padrão estatizante de certos regimes falidos e derrotados continua a preencher muitas cabeças no parlamento, no governo, nas autarquias e mesmo na maior parte da comunicação social…essa que é feita e paga por quem a controla.

2. Não será um bem comum a capacidade de investimento? Não será de utilidade pública construir casas e colocá-las ao serviço dos outros? Porque será que pessoas ligadas aos partidos da (pretensa) esquerda e ou seu sindicalismo tentacular nunca criaram nem geriram empresas? Não será que sabem desfazer, mas não são capazes de construir? Não é, sobretudo, a iniciativa privada quem paga os impostos e suporta o patrão-estado? Os fundos deste não são mais repartidos pelos seus servidores do que por aqueles que geram riqueza? Os que agora protestam investiram alguma coisa para que houvesse futuro e melhor bem comum? Não foi ao tacho do estado-patão que foram buscar os meios para se pavonearem dentro e fora do país?

3. Fique claro: o estado só deve fazer, de forma complementar, aquilo que a iniciativa privada – essa que é, por vezes, rotulada, de exploradora – é capaz de fazer avançar os povos e as culturas. Tanta gente se dependura no ‘estado’ para que não se descubra a sua acomodação, alguma mediocridade e tanta da incompetência. Se tempos houve que pessoas se dedicaram ao ‘serviço público’ por escolha, hoje isso parece um resquício sem nexo… embora ainda bem pago. Por que será que tantos querem entrar no funcionalismo público? Não será pelas regalias e prebendas camufladas? Por que será que tanto defendem o ‘serviço nacional de saúde’ e se veem, em paralelo, sistemas próprios de classe? Quem viu algum político nas salas de espera dos hospitais apinhados de gente? Defendem o que é público, mas, quando estão prestes a morrer, recorrem ao privado… não foi assim com alguns dos corifeus da política e do sindicalismo?

4. Mais claramente: se fosse rico não ousaria investir numa qualquer empresa para depois se ofendido, ultrajado e difamado…como se vê por aí. Se fosse rico, não colocaria uma só casa no mercado de arrendamento, pois os inquilinos nem sempre são sérios na forma e no conteúdo. Se fosse rico ou com possibilidades de fazer algo pelos outros ponderaria muito bem, pois esses a quem, por vezes, se quer fazer bem ou atenuar o seu mal-estar não se coíbem de fazer vida-à-larga, enquanto quem os ajuda conta os centavos para honrar as suas obrigações…

Agora que o governo se vai apoderar daquilo que não lhe pertence – numa nacionalização encapotada – veremos crescer os incumprimentos dos beneficiados. Com o populismo ao desbarato me enganas!



António Sílvio Couto

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Última recomendação

 


«É necessário que, sobre o tema dos abusos de crianças, a Igreja assuma um movimento claramente oposto ao até agora verificado, designadamente construindo formas de reflexão de «dentro para fora», hierarquicamente estruturadas de «baixo para cima», isto é, indo do seu próprio interior e organização para as pessoas, dos padres, dos membros do clero até aos seus superiores, para o que urge definir um plano comum de organização transversal e longitudinal homogéneo, ultrapassando o modelo atual em que cada diocese ou paróquia tem, afinal, o seu modelo próprio. Na verdade, se é certo que cada membro pode e deve ter a sua sensibilidade natural sobre os assuntos a abordar, a mensagem e a prática global final têm de revelar uma perspetiva comum ao todo que a Igreja Católica constitui».

Lemos isto na página 460 do relatório da ‘comissão independente para o estudo dos abusos sexuais na Igreja católica’ em Portugal. Com efeito, das páginas 447 a 460 são feitas algumas recomendações, primeiramente gerais (5), depois à Igreja católica – para uma outra cultura (6), o lugar da vítima (4), reparação da vítima (cinco alíneas), da ocultação à desocultação (2), arquivos históricos da Igreja, medidas de prevenção (7) e de formação (dois pontos, com diversas alíneas) – e, por fim, são apresentadas sugestões (12) à sociedade em geral.
Atendendo à envolvência daquela que poderemos considerar uma espécie de ‘conclusão final’, sentiremos mais e melhor o que tantas pessoas dizem sobre a Igreja católica em Portugal, num misto de vergonha e de confusão, se atendermos às centenas de testemunhos apresentados neste relatório.
Embora possa parecer algo ousado, senão mesmo uma intromissão na esfera da vida sacramental católica, essa sugestão de ‘rever a imposição de sigilo de confissão em matéria de crimes sexuais contra crianças por membros da Igreja Católica’, naquilo que se refere ao lugar da vítima. podemos e devemos olhar para as ideias contidas nesta ‘última recomendação’ como algo a levar muito a sério nesta matéria contundente para com decénios de uma vida ‘sistémica’ da Igreja católica em Portugal.

* ‘A Igreja assuma um movimento claramente oposto ao até agora verificado’ naquilo que se refere ao trato para com as crianças, na vertente de ‘abusos sexuais’. Tem de mudar muita coisa, desde a educação até à vivência, dos gestos até aos comportamentos, dos sinais menos percetíveis até aos mais complexos, num tempo excessivamente erotizado em que precisamos de gerar e de gerir nas pessoas sentimentos de maior pureza, vivencial e não meramente formal. Apesar de tudo, as crianças já não são mais inocentes, como tantas vezes se quis dar a entender…

* ‘Construindo formas de reflexão de «dentro para fora», hierarquicamente estruturadas de «baixo para cima». Efetivamente algo tem de mudar, pois estas formas de reflexão – de dentro para fora e de baixo para cima – implicam tudo e todos. Ninguém está acima da lei, mas também não pode estar abaixo da mesma, como, por vezes, temos visto em certas notícias, onde parece que querem antes matar do que fazer reconhecer o mal feito…

* ‘Urge definir um plano comum de organização transversal e longitudinal homogéneo, ultrapassando o modelo atual’. Apesar do peso do passado alicerçado numa visão clericalista e da dificuldade em aceitar e em viver a mudança, torna-se essencial, que encetemos um processo de revisão de tantas coisas que foram mal feitas e de querer aprender com os erros. Com efeito, aquilo que foi feito, por alguns, mancha, ofende e ultraja todos, fazendo-nos solidários na desgraça e mesmo na má-conduta.

Estamos a viver tempos – dias e meses – de profunda provação. Não se sentir amachucado por tudo isto seria não sermos dignos de sermos Igreja. Esta santa na sua essência e pecadora na sua existência precisa de entrar, desde já, num tempo prolongado de quaresma, como oportunidade de conversão a Deus e aos outros. Dentro de dias ouviremos: ‘lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar’ e ainda: ‘convertei-vos e acreditar no Evangelho’… Agora é o tempo favorável, agora é o tempo da salvação… Ninguém está excluído!



António Sílvio Couto

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Confessemos os nossos pecados!

 


No início da celebração, particularmente, de cada eucaristia temos esta proposta a todos os participantes, seja qual for a instância pessoal ou comunitária.

«Irmãos, para celebrarmos dignamente os santos mistérios, reconheçamos que somos pecadores» – exortação geral… Guardam-se alguns momentos de silêncio… e o sacerdote-presidente diz: «confessemos os nossos pecados» – convite a todos. Rezando todos e cada um: «confesso a Deus todo-poderoso e a vós, irmãos, que pequei muitas vezes»...

Esta breve observação serve para colocarmos algum ponto-de-ordem na discussão – já anteriormente vista, mas por estes dias mais exacerbada – sobre a condição de pecadores em Igreja, nisso que nos guia e faz continuar na ‘santa Igreja dos pecadores’ – santa por essência e pecadora por existência… no tempo e no espaço.

1. A apresentação do relatório da ‘comissão independente para o estudo dos abusos sexuais de crianças na igreja católica’ (CI), no passado dia 13 de fevereiro (aniversário do falecimento da Irmã Lúcia) trouxe um tanto à luz, de forma mais organizada (se bem que digam ainda incompleta) a descrição deste fenómeno em Portugal entre 1950 e 2022. Mais de um ano decorrido – a comissão foi criada em finais de 2021 – os dados podem ser considerados pouco abonatórios, senão condenatórios do comportamento de bastantes membros da Igreja católica… e não são só padres, como por vezes, se tem querido dar a entender!

Os dados que, de seguida, apresentamos foram os fornecidos na apresentação pública do relatório. A CI validou 512 dos 564 testemunhos recolhidos. A CI enviou 25 casos ao ministério público, reconhecendo que a maioria destes já prescreveu, A média de idades das vítimas tem, hoje, 52,4 anos, residindo a maioria em território nacional. Em criança, os abusados que deram testemunho, cerca de sessenta por cento residia com os pais. Dos abusados mais de metade (52%) continua a afirmar-se católicos e 25% dizem-se praticantes. A maioria dos abusadores eram homens e dois terços destes eram padres. Os abusos – alguns de forma repetida e continuada – ocorreram quando as vítimas tinham entre dez e catorze anos de idade. A maior parte dos abusos ocorreu em espaços físicos da igreja ou em escolas e seminários.

2. Na apreciação – juízos (de valor, éticos e jurídicos), críticas (fundadas ou extrapoladas), conjeturas (de tempo, de espaço ou mesmo de ideologia) e sugestões (sem grande ousadia num futuro próximo) – surgidas nas horas subsequentes àquela apresentação podemos registar algumas opiniões que têm tanto de sincero, quanto de depreciativo, senão mesmo de anticristão primário. Não está em causa não aceitar o que foi dito, mas antes tentar discernir se isso pretende continuar a onda justicialista, mesmo no interior da Igreja católica, onde se a misericórdia tem espaço e oportunidade… para todos. À justiça o que é da justiça e ao perdão, dado e recebido, o que é dom de Deus!

Citamos sem referir quem o disse.

- A Igreja como instituição tem de repensar a sua atuação no futuro, porque em muitos casos não teve a noção, noutros casos teve a noção mas subavaliou.

- Já não vale a pena dizer que não aconteceu… Aconteceu de forma intensa e dramática.

- Não basta pedir perdão, há que expulsar os predadores da igreja, pô-los na prisão e tratá-los.

- A grande humildade da Igreja.

- É uma ferida aberta que nos envergonha e nos dói… A dor não prescreve… Os abusos de menores são crimes hediondos… O caminho da justiça encontrará sempre lugar no coração misericordioso de Deus.

3. Embora este seja mais um momento significativo de provação e de purificação da e na Igreja, ele manifesta de novo o paradoxo dos cristãos no mundo, na medida em que nas vicissitudes da vida os fiéis (ministros, leigos e religiosos) são chamados a revelar a grandeza pela fragilidade e esta, experimentada, aponta para mais longe do que aquilo que se capta… Com efeito, alguns aspetos têm de ser revistos e outros aferidos às condições do nosso tempo: temos de saber ver o essencial sem ficar na espuma e nas nuvens!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Via-sacra com as profissões

                                   
                                 
A devoção da via-sacra tem razoável aceitação entre os católicos, sobretudo, do sul da Europa, naquilo que é um exercício de piedade popular em ligação à vivência da Quaresma.

Há muitas e várias formas de meditar os mistérios da Paixão-Morte-Ressurreição de Jesus. No contexto atual das propostas de esquemas há, pelo menos duas, que têm alguma aceitação: uma mais tradicional (onde se incluem as três quedas de Jesus e os encontros com a Verónica e Maria) e outra dita mais bíblica, que foi proposta pelo Papa João Pulo II, por ocasião do jubileu do ano 2000.
Quanto aos temas a desenvolver em cada sugestão de via-sacra, podem ser vários e devem ajudar a rezar algum aspeto mais particular da vida humana e eclesial.
Ao longo dos anos tenho procurado não cair na rotina do ritmo da via-sacra, tendo – nalguns casos – sido essas propostas publicadas pela Paulinas Editora. Já foram desenvolvidas sugestões de via-sacra versando os seguintes temas: obras de misericórdia (2007), com os pecados capitais e sociais (2010), nas mãos de Deus pelas mãos dos homens (2012), via crucis - via lucis (2013), na via-sacra olhamos...na via lucis somos olhados (2014)... Outros temas foram rezados (como a família ou a Igreja, caminho de Deus nos caminhos dos homens...e até houve uma via-sacrea para crianças), mas sem publicação de maior difusão.
Este ano senti a necessidade de enfrentar um outro desafio: colocar as etapas da Paixão de Jesus em confronto com as diversas profissões, numa leitura cristã das mesmas e numa consonância com aspetos subjacentes aos textos bíblicos. Sigo a proposta de via-sacra bíblica de João Paulo II.

Em sumário as ‘estações’ da via-sacra e as profissões em análise/oração:

1. Jesus em ao Jardim das Oliveiras (Mt 2,3-38) – o setor do ensino pode ser colocado aqui nesta etapa da Paixão de Cristo, pois, à semelhança de Jesus em agonia, assim esta área social e profissional tem estado em caminho duro de via-sacra. Os problemas e as dificuldades, as contestações e os anseios desta profissão têm feito correr muito tempo de discussão.

2. Jesus, traído por Judas, é preso (Mt 26,47-49) – as forças de segurança mais na sua função de ordem pública do que de repressão sobre quem não-cumpra as leis e possa perturbar a convivência social.

3. Jesus é condenado pelo sinédrio (Mt 26,57-59) – o mister de exercer a justiça – juízes e advogados – ao nível de tornar a sociedade mais equilibrada nas leis, nos comportamentos e nas relações humanas das pessoas umas com as outras.

4. Jesus é renegado, três vezes, por Pedro (Mt 26,69-74) – a comunicação social – escrita, falada ou visionada – como espaço e oportunidade de testemunhar Jesus, mas onde, tantas vezes, os cristãos se envergonham de manifestar o seu seguimento de Jesus.

5. Jesus é julgado por Pilatos (Mt 27,11-14.25-26) – os que fazem a vida politica – desde a mais simples até à mais complexa, da sincera e verdadeira até à mais rebuscada e ardilosa…Também aqui podemos encontrar ou não cristãos que podem servir ou se servem dos lugares de decisão.

6. Jesus é flagelado e coroado de espinhos (Mt 27,27-30) – consideramos a profissão de representação com atores, nos diversos palcos da arte e da vida. Na subtileza de fazer sonhar, os atores podem também ofender a dignidade da pessoa humana, não respeitando nem sendo respeitados na sua vida artística.

7. Jesus é carregado com a cruz (Mt 27,31) – olhamos para as várias formas de trabalho mais ou menos esforçado, como a construção civil, na agricultura, nas pescas, isto é, no designado ‘setor primário’ como aquele que produz resultados económicos devido ao uso da força do trabalho.

8. Jesus é ajudado pelo Cireneu a levar a cruz (Mt 27,32) – de atividades profissionais de atenção aos outros podemos enquadrar aqui quem trabalha na área da saúde, do voluntariado ou mesmo em ações de benemerência.

9. Jesus encontra as mulheres de Jerusalém (Lc 23,27-32) – olhamos para quem trabalha no setor da solidariedade social – santa casa da misericórdia, centro paroquial e outras associações organizadas da caridade na Igreja católica – tanto os órgãos sociais como os profissionais, na área da infância/adolescência e de velhos.

10. Jesus é crucificado (Mt 27,33-38) – o desporto, desde o amador e simples até ao profissional e mais complexo. De facto, este setor socioprofissional, por vezes, torna-se um espaço difícil para dar testemunho do ser cristão, pois, entre vitórias e derrotas nem sempre é fácil manter o equilíbrio, o bom senso e a total verdade…

11. Jesus promete o seu reino ao «ladrão arrependido» (Lc 23,39-43) – olhamos para o setor do turismo, como atividade humana, na sua dimensão cultural e como fator económico.

12. Jesus na cruz: a mãe e o discípulo (Jo 19,25-27) – quem dedica a vida vocacionalmente aos outros, como as congregações de religiosas e de religiosos, que tantas vezes se dedicam aos seus irmãos... sobretudo nas situações de maior condicionamento humano, social e também eclesial.

13. Jesus morre na cruz (Mt 27,45-50) – olhamos para aqueles que fazem dos meios de viação espaço de vida, isto é, quantos andam na estrada, pelos mares e pelos ares, servindo outros cidadãos que igualmente viajam e percorrem os caminhos da vida rumo à eternidade.

14. Jesus é colocado no sepulcro (Mt 27,57-61) – para aqueles que exercem a profissão de darem sepultura ao corpo dos outros, seja pelo enterramento seja pela mais recente vivência da incineração. Para além de uma atividade humana podemos olhar para esta função social como uma obra de misericórdia.

Esta sugestão de vivência da ‘via-sacra com as profissões’ – estas aqui vistas ou podiam ser outras – pode ajudar a ver as nossas ocupações de vida à luz e na referência à Paixão de Cristo. Assim o vivamos e rezemos.



António Sílvio Couto




sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Paloncismo generalizado

 

Quem observar com o mínimo de atenção a situação do nosso país poderá caraterizá-la com uma palavra de incidência popular simples, direta e quase-provocatória: somos uns palonços. Este termo significa: pessoa que se deixa facilmene enganar e prejudicar; pessoa que revela ingenuidade e falta de bom senso; pessoa que é pouco inteligente; pacóvio, papalvo, parvo, imbecil...

Diante destas definições poder-se-á questionar: seremos todos, assim, tão palonços ou querem fazer de nós isso que dará sossego aos instrutores? A forma como nos dizem (ou não) certas coisas não nos fazem parecer palonços na condução de tantas das questões públicas? Viveremos, sem disso nos darmos conta, num regime de palonços, onde uns habilidosos tentam ludibriar outros à custa da sua ignorância? Até onde irá este sistema de paloncismo tácito, onde uns tantos contam com a sua esperteza, embora negligenciando a inteligência dos outros?

1. Efetivamente o ambiente socio-político em que estamos configura, para além do desinteresse geral, uma certa tonalidade cinzenta, onde a melhor forma de estar é viver nessa simulação de que ‘tudo está bem’, embora se perceba que nada está de acordo com tal visão...desfocada da realidade. Em geral posições desta natureza costumam ser caraterísticas de épocas de crise, com falta de liderança e numa espécie de acomodação sem ética... que quase se torna imoral. Nota-se que os governantes promovem – mesmo sem disso se darem totalmente conta – esta ambiência, pois sem haver contestação no essencial pode-se condescender com protestos parcelares. Em tempos da sociedade romana era tipificado com a expressão: ’pão e jogos’. Hoje vemos mais estes do que aquele... A maioria – se ainda existir, de facto – conquistada para governar, há um ano atrás, tem sido o melhor exemplo de paloncismo nos tempos mais recentes!

2. Quando vemos as horas intermináveis de discussão sobre os futebóis percebemos melhor que o paloncismo em geral é servido em abundância e em doses quase monumentais. Gastar tempo com coisas inúteis é outra caraterística do paloncismo reinante. Enquanto se fala disso, não se atende, efetivamente, ao que é importante. Quem não conhece essa outra expressão: discussões de lana-caprina (lã de cabra), isto é, se o pêlo que cobre a cabra é ou não lã, como acontece com a ovelha. O uso desta expressão quer significar que estamos a falar (ou discutir) sobre um assunto sem interesse, uma bagatela insignificante. Olhar alguns dos ‘problemas’ com que certas pessoas se ocupam vemos que se corre o risco de fazer de um ‘fait-divers’ (distração) algo que é empolado e pode ganhar importância sem, de verdade, a ter...

3. Sem pretendermos desqualificar o ‘nosso’ parlamento podemos vê-lo como a ‘casa do paloncismo’ por excelência, pois ali se tratam – muitas vezes até de forma menos educada – temas e problemas, assuntos e questões, coisas e loisas, que nos fazem crer que eles/elas ainda não se viram na condição de ridículos, nem se atêm à amostragem de quase-inutilidade na forma e no conteúdo como discutem ou decidem, afinal, a vida de todos. Aqueles espaços merecem melhores ocupantes, pois já testemunharam ínclitas figuras, insignes tribunos e excecionais líderes. Agora não conseguimos dar crédito a quem não se dignifica, antes mais parece servir a ideologia. Esta é uma das vertentes mais nefastas do paloncismo, pois nos desmotiva por falta de liderança e nos afunda por negligência nas escolhas...

4. Mais um pouco – muito pouco mesmo – e bateremos no fundo, num descalabro atroz e de onde será difícil sair, tal o amorfismo para onde nos conduziram, bloqueando quem conteste ou queira sair da monotonia de não destoar... E nem a constestação mais ressabiada esconde a tentativa de colocar tudo e todos sob o seu manto de que sem eles tudo cairá, quando, afinal, com eles e por eles nos atolharemos ainda mais, pois a visão é curta e as perspetivas muito mesquinhas.

Com dizia o escritor romano Cícero: ‘o tempora, o mores’ – oh tempo, oh costumes... que tempo este em que vivemos e que moral/ética com que nos conduzimos! Antes como agora, podemos e devemos interrogar-nos.



António Sílvio Couto

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Carta aberta ao presidente da ‘fundação JMJ’

 

Tenho admirado o esforço colocado em levar por diante a realização das ‘Jornadas mundiais da juventude’ em 2023, no próximo mês de agosto, em Lisboa. As diversas iniciativas e os vários momentos de visibilidade dados ao acontecimento como se percebe e se pretende que seja mais celebrativo do que mero ajuntamento de pessoas. De tudo quanto se tem visto para concretizar o projeto se pode ver que tem havido uma tentativa de coordenar os múltiplos intervenientes.

Mais uma vez se quis transformar um espaço lúgubre e de má imagem num lugar que há de ser mais bonito do que era anteriormente: de um aterro poderá surgir um jardim…

Apesar de certas controvérsias sobre os gastos, temos visto uma aferição ao essencial, numa tentativa de coadunar o evento com a personalidade do Papa Francisco: assim se consiga o testemunho da dignidade com a dignificação.

A receção aos símbolos das JMJ – a cruz e o ícone de Nossa Senhora – tem sido nas diferentes dioceses um verdadeiro apelo à participação dos jovens com uma referência ao essencial da nossa fé, centrada na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, como nos diz o apóstolo. Por vezes o burburinho social nem sempre é acompanhado por sinais de maior evangelização e interpelação de todos…os de boa vontade.

1. Tenho, no entanto, ficado um tanto desiludido, senão mesmo apreensivo, para com a ausência de uma proposta clara da mensagem que, certamente, motivará a deslocação de tantos jovens a Lisboa e arredores.

Eles não procurarão condições ultra-especiais para alojamento, até porque já estarão habituados aos condicionalismos de outros eventos – religiosos ou não tanto – em que têm participado.

Eles não exigirão oportunidade de refeições supra-reconfortantes, pois já estão treinados na frugalidade de outros momentos de encontro e de convívio.

Eles não se eximirão a sacrifícios de vária ordem, até porque se desinstalarão para aqui virem e disporem do tempo como oportunidade de novas experiências… de vida e de fé.

2. É perante estes dados assaz positivos e reveladores da riqueza dos jovens do nosso tempo que considero e questiono:

– Temos feito a apresentação clara, séria e serena da mensagem do Evangelho ou temo-nos entretido com questiúnculas de teor mais material?

– Conseguimos falar de Jesus, como o centro da nossa fé ou andaremos derramados em posições sociológicas que já deviam ter sido resolvidas?

– Onde estão pública e notoriamente as catequeses (ou com outro termo) de caminhada para a grande celebração da semana das JMJ?

– Atendendo à possibilidade de virem jovens de muitas partes do Planeta, temos olhado com atenção para os problemas que os afligem ou ainda nem percebemos de onde veem e para onde vão?

– Mais uma vez recordo a frase – ‘não importa por que vem, mas como vão’ – teremos programado algo que lhes respondo ao mais fundo da sua procura?

– Não andaremos a depreciar os nossos jovens, dando-lhe uma eventual comida – espiritual e religiosa – recessa, que já nem os adultos lhe pegam?

– Não será que certas devoções ocasionais já estão desarticuladas com as questões que os jovens querem ver respondidas em palavras, gestos e sinais?

– Teremos, de facto, dado a entender aos jovens que queremos aprender com a sua disponibilidade e não impingindo-lhes temáticas que eles já não querem nem apreciam?

3. Já estamos a menos de seis meses das JMJ e paira no ar um tempo de apreensão. Mais de quatro anos decorridos sobre a atribuição do evento a Lisboa e parece que só agora acordamos para uma realidade que marcará – para o bem ou para o mal – o nosso país nas próximas décadas. Será que teremos uma renovada JPII (juventude João Paulo II) em decisão cristã e compromisso? Não está a faltar nada de essencial?



António Sílvio Couto

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Escravatura do futebol


Mesmo para quem possa gostar do futebol como desporto, a compra-e-venda de jogadores de futebol soa a escravatura, sobre a qual quase todos se calam, de forma cúmplice senão conivente ou conveniente. Para enquadrar os milhões – em euros ou em dólares – com que são transacionados os executantes da bola, houve quem lhe chama-se ‘indústria’ – se ele produzisse algo – mas considero que se deveria, antes, situar como ‘comércio’, na medida em que se vende e compra o que está no circuito económico.

Cheira-me a desonestidade intelectual a condenação da escravatura em tempos da Idade Antiga (e não só) e agora ficamos em silêncio, podendo até contribuir – pela ida aos estádios ver os jogos ou assistindo-os pela televisão – para que este neo.esclavagismo perdure no tempo e no espaço.

1. Que tem um rapaz de vinte e pouco anos de mais arte do que os gladiadores romanos? Que diferença faz ser ‘bom-de-bola’ ou ser artista no uso da espada ou da sica? Não serão uns e outros usados para dar espetáculo, mesmo que possam estar presos por contratos de senhores que os manipulam? Não andaremos a enganar os mais novos com o fascínio do sucesso, se forem bons jogadores? O atrativo do dinheiro não fará com que muitos jovens vivam iludidos com um sucesso fugaz e mal explicado? Até quando seremos incongruentes e falsos…nisto que envolve a arte da bola – tenha o formato, o tamanho ou a velocidade que lhe dermos – sobretudo se for da nossa cor clubística? Qual o significado de vender um rapaz, que joga bem (ou melhor do que outros) à bola, por mais de cem milhões de euros? A cultura da inteligência não valerá mais do que a arte-da-bola? Um médico ou um professor, que tanto (certamente) estudaram, valem menos que um bom artilheiro em campo de jogo?

2. A distorção da matéria começa, desde logo, pela linguagem: comprar e vender homens, fazer preço e regatear custos, preferir uns e preterir outros, uns até fazem de moeda de troca para adquirir os ditos melhores. Normalmente os artistas da bola emergem de estratos da população quase em situação de pobreza. Descobertos são cuidadosamente tratados porque podem vir a dar bom proveito. Habitualmente não cuidaram dos estudos, trocando os livros por um pouco de couro arredondado, esmerando-se na habilidade em o tratar. Recorrentemente são tratados como ignorantes, pois se deixam explorar por quem pagar melhor, embora entreguem a outros a negociação da sua pessoa (executante e imagem). Quando atingem o estatuto de vedetas originam figuras quase ridículas, dado que entram em extravagâncias, algumas delas a roçar o caricato, numa ostentação de novo-riquismo. Quantos tiveram fortunas e esbanjaram-nas em poucos anos, vindo a morrer na penúria e até na desgraça…pessoal, familiar e social.

3. Apesar dos casos do passado nada se aprendeu para o presente. Muitos, vitimas da própria fama, tornaram-se ainda mais escravos da sociedade que os aplaudiu quando não souberam retirar-se do campo ou não se advertiram do desgaste rápido da ‘profissão de jogador’. Não chegar aos quarenta anos com carreira de jogador é o costume, coisa que faz destes homens – agora também de mulheres – escravos sugados até ao tutano e sem direito a reclamação.

Os dois séculos e meio de futebol organizado – terá surgido assim em 1863 – não conseguiram debelar, pelo contrário, a sensação de que de desporto já pouco tem, a não ser a possibilidade de o despojar de tanto do dinheiro que envolve, faz correr e – porque não – serve para limpar.

4. Por muito que se possa gostar de futebol – sobretudo se for uma prática desportiva e sem dinheiro envolvido – não podemos calar as formas de escravatura que atualmente apresenta. Tentemos libertar estes novos escravos e alertemos os vindouros para que se não deixem explorar com seduções de sucesso… pois, só no dicionário é que ‘sucesso’ aparece antes de ‘trabalho’. Tempos virão em que os campos de jogo serão pasto de outras competições. O futebol poderá ser considerado ‘desporto de massas’, mas, na sua maioria estas são acríticas ou quase-ignorantes. É hora de acordar!



António Sílvio Couto

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O escândalo do palco

 


A faceta que mais me escandaliza no assunto do palco-altar das JMJ 2023 é algo que não vi ainda referido. Com efeito, os custos podem atordoar alguns dos mais rigoristas em matéria de aspetos materiais. Outros como que se confundem com a mistura entre entidades públicas e questões privadas… se bem que a Igreja católica não pode ser lida no sentido estrito de privado. Outros ainda aproveitam para sacar da memória eventos e obras ditas faraónicas no passado, mas que agora consideram aceitáveis.

A mim cria-me engulhos bem mais difíceis de tragar: aquele espaço onde vai ser celebrada a missa e outros momentos certamente de repercussão espiritual, poderá vir a ser usado para fins soezes e contrários ao projeto primeiro… Este é o meu escândalo e pomo de discórdia…silenciosa.

1. Dizia, há dias, o lead da manchete um jornal entre o sarcástico e o provocatório: «um bispo com a mania das grandezas e um autarca ansioso por agradar à custa do erário público estão a transformar a jornada mundial da juventude num negócio pouco católico»… E, para ilustrar o assunto com algo mais religioso-bíblico, era citado Mt 6, 24: ‘ninguém pode servir a dois senhores: vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro’. Que tem esta observação de real ou mesmo de credível? Como poderemos entender as intervenções recentes destes personagens aqui referidos? Andará o assunto a ser bem tratado ou o que tem sido dito é apenas a ponta de um icebergue em deslocação no mar atribulado da nossa sociedade com tiques de cristandade profana?

2. Como seria expetável com o aproximar das JMJ 2023 são como que plantadas – a propósito ou a despropósito – notícias para descreditar o evento naquilo que ele tem sinal religioso, como marca da presença dos cristãos no mundo e até como referência universal aos valores do Evangelho.

* As JMJ são um sinal religioso num mundo cada vez menos atento às coisas de teor espiritual. Não será isto uma espécie de pedra de tropeço para quem vive como se Deus não existisse? Não será ponto de incómodo para tantos que pretendem deixar que Deus esteja morto e enterrado na consciência dos mais novos?

* As JMJ são uma marca indelével da presença dos cristãos no mundo e difundida em todos os continentes, povos, culturas e línguas. Os jovens não estão todos, afinal, fascinados pela sociedade de consumo. Muitos ainda olham para o Alto com uma visão de futuro e de compromisso. Ao ver tantos jovens vindos de todas as partes do mundo, isso não provocará medo aos cultivadores do materialismo de vida? A ver por anteriores jornadas talvez seja preferível desdenhar do que ser confundido…

* As JMJ só tem razão de ser, se forem alicerçadas nos valores do Evangelho, esse que continua vivo e atrai quem dele se aproxima. Num tempo de alguma desorientação não será fascinante ver tantos jovens que nos alertam para que não chafurdemos só nas coisas passageiras? Com tantas promiscuidades de vária índole, não será alentador que possa haver um fermento, que pretende ser sal da terra e luz do mundo?

3. Ardilosamente tem sido trazido à colação o choque dos custos do dito palco – onde será colocado o altar para a celebração com o Papa – com as dificuldades acirradas do povo. Ora este, pelo que temos visto, continua a gastar o que tem e o que não tem, sem olhar as despesas nem esboçando a mínima economia. Dá a impressão que vivemos num país a várias velocidades, onde, quando interessa, nos fazemos passar por ricos e noutras circunstâncias entramos num miserabilismo atroz, sem saída nem futuro. Haja coragem e diga-se que os custos do palco-para-o-altar do Papa serve lindamente como arma de arremesso contra o cristianismo em geral e a Igreja católica em particular. Escusam de se esconderem sob o manto do proletarismo barato…

4. Efetivamente o meu escândalo está aí: a muito custo aceitarei que se dessacralize aquele altar para se tornar o espaço em lugar de diversão, sob a fúria do capitalismo musical ou de qualquer outra senhoria, que possa ofender Deus e os valores do Evangelho. Senhores promotores daquela obra tão polémica: não deixem que seja profanado aquilo que tanto gosto lhes deu em contestar. Sigam, no mínimo, o que deveio com o espaço onde decorreu a Expo/98 e tudo valerá a pena… Não sejamos mesquinhos nos nossos intentos!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

‘Sofrimento físico E psicológico e espiritual’ – razões para a eutanásia?

Se os excelentíssimos deputados/as proponentes da mais recente versão da lei de despenalização da morte medicamente assistida – vulgo eutanásia – a tivessem redigido com estes dois ‘e’, talvez os juizes do tribunal constitucional (TC) não a declarassem inconstitucional.

Só que os legisladores cairam na tentação de poupar nos ‘e’ e a coisa correu para o torto... e já vai em quatro tentativas de ‘modernizarem’ o país com leis progressistas, ousadas e contra-a-vida...

1. Foi com alguma surpresa e um tanto de admiração que ouvimos o TC rejeitar mais uma vez a proposta de lei de despenalização da eutanásia, aduzindo razões de redação do texto e que, mesmo sem disso se terem apercebido os mentores, poderia não ser claro quanto ao sujeito da ‘doença’/’sofrimento’ explicativo da mesma motivação. De facto não é uma questão de português escrito, mas de entendimento copulativo do tal sofrimento catalizador das razões coordenadas, sincrónicas e progressivas: físico e psicológico e espiritual... todos em conjugação e não só como a mera soma das parcelas. Não haverá nesta interpretação do TC algo mais do que uma decisão política, mas antes também filosófico-humanista?

2. Fique claro: mais esta decisão pela inconstitucionalidade da famigerada proposta de despenalização da eutanásia não pode ser substituída por essa outra sugestão anacrónica de referendo ao tema. Não, a vida não se referenda, nunca!

Mais uma vez sobre este assunto há quem confunda oportunidade com oportunismo, criando a sensação de que a coisa se resolve por reclamar o tal referendo. Com efeito, este correrá o risco de se voltar contra quem o propõe, na medida em que se nota um certo clima tendencioso para a aceitar a eutanásia como solução para questões de saúde fisíca, psicológica e mesmo espiritual... sobretudo se colocarmos o ‘e’ entre as diversas variantes de não-saúde. Não haverá algum erro de paralaxe em todo este processo ideológico em favor da despenalização da eutanásia? O referendo mudaria as consciências atédos mais acomodados ou continuaria a ser desculpa para adiar melhores condições de saúde para todos?

3. Confesso que o que mais me custa aceitar na discusão sobre a despenalização da morte medicamente assistida é uma certa afirmção contra a evolução da medicina e quase estagnando em aspetos que são por demais claros de que a investigação no campo da saúde – nas mais diversas vertentes – é uma das maiores conquistas da humanidade. Propor a eutanásia tornar-se-ia uma espécie de atestado de incompetência quanto às vitórias contra tantas doenças graves, entretanto vencidas, e que continuarão a ser subjugadas pela inteligência humana... A quem interessa tanta pressa em ter licença para matar, legalmente?

4. Uma outra preocupação me perpassa a mente e o coração quanto à razoavel aceitação da eutanásia para com certos aspetos em matéria de sofrimento. Com facilidade ouvimos na voz popular expressões como esta; estava a sofrer tanto, ainda bem que Deus se lembrou dele! Não será isto uma espécie de autanásia encapotada? Não revelará um desabafo deste tipo algo que denuncia uma não-educação cristã para o valor redentor do sofrimento? Perante esta frase não estaremos a reconhecer que temos refletido e rezado pouco (ou nada) quanto ao significado mais profundo do sofrimento como participação – atual e atualizada – na paixão de Cristo? De que adianta andar a fazer rituais na quaresma – via-sacra ou procissões de Passos – se depois quase toleramos a eutanásia de forma subtil?

5. É um facto: as questões da vida tornaram-se fulcrais para entendermos a nossa cultura, muitas vezes mais hedonista do que equilibrada ou mesmo enquadrada pelos valores do Evangelho. Aberta a ‘caixa de pandora’ com o aborto tudo poderá acontecer... desde que impeça de prosseguir os intentos egoístas, totalitários ou materialistas...Não somos senhores da vida, mas meros administradores da mesma como dom de Deus e para ser colocada ao serviço dos outros!



António Silvio Couto