Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



terça-feira, 30 de maio de 2023

Interpretando sinais dos ‘filhos da pandemia’

 

As crianças nascidas nos anos da pandemia – mais declaradamente de 2020 a 2022 – parecem apresentar caraterísticas muito específicas, tanto elas como os pais. O meu campo de constatação são os momentos de celebração do batismo de alguns desses exemplares. Nota-se um certo protecionismo, algum acanhamento e mesmo insegurança no contacto extra-familiar.

1. Devido ao processo sócio-humanitário-político decorrente das precauções podemos conferir ao tempo da pandemia uma análise muito específica, pois todos precisamos de aprender a lidar com algo tão generalizado, que a todos deixou perplexos, amedrontados e mesmo à deriva... Foi um tempo assaz difícil de discernir, onde fomos protegendo os mais próximos, não sem riscos ou exageros e até excessos.

2. Nalguns casos temos visto crianças em atitude de defesa para quem possa intrometer-se no seu campo de ação. Fomos vendo crianças em desconfiança, talvez pelos receios higieno-sanitários incutidos, numa proporção que poderá deixar resquícios no seu desenvolvimento psicológico e espiritual. Quando uma criança se agarra ao pescoço dos pais ou avós de forma quase-obsessiva poderemos considerar da sua insegurança e expressão de vulnerabilidade...inconsciente. O circuito familiar destas crianças foi, normalmente, afunilado com tudo quanto possa ser significativo para o seu crescimento normal e normalizado.

3. Se tivermos em conta que o comportamento das crianças aquilata da maturidade dos adultos, então, temos largo e longo plano de reflexão sobre estes ‘filhos da pandemia’. Com efeito, os anos de pandemia do ‘covid 19’ foram tempos de grande provação social, humana, cultural e mesmo espiritual. Os mais novos – nascidos nessa época ou a nascer nesse período – tiveram muito particular atenção, gerando e sendo gerados com cuidados redobrados, pois não sabíamos o que fazer, tal a estupefacção que aquele fenómeno gerou. Esses que aqui designamos de ‘filhos da pandemia’ necessitam de especial referência, não como menos-válidos, mas como cidadãos psicologicamente condicionados, mesmo sem disso se aperceberem.

4. É notório que a pandemia de ‘covid-19’ no espaço de três anos e três meses – em Portugal de 2 de março de 2020 a 6 de maio de 2023, como data acertada pela OMS para ser declarada em extinção – deixou razoáveis consequências. Para além dos mortos – sete milhões – e dos infetados – 765 milhões ao nível global – há caraterísticas que emergiram de forma mais ou menos visível e tantas outras de índole pessoal. Atendendo ao isolamento prioritário para que o vírus não se propagasse, isso deixou influência nas pessoas e na sua saúde psicológica e mental: ansiedade, depressão, síndrome de Burnout (nas tarefas laborais), transtorno obsessivo compulsivo (cuidados higieno-sanitários), dependência química (em ordem a combater o stress)... foram alguns dos sinais que vieram para ficar com a pandemia e que levará anos a voltar à normalidade.

5. Todos nós, de algum modo – tácito ou explícito – somos ‘filhos da pandemia’. Aceitar tal procedência poderá ajudar-nos a conhecer-nos melhor, aceitando as limitações inerentes e sendo mais compreensivos para com os outros, que vivem idêntica situação. Tudo mudou desde 2020. O execrável chavão – ‘vai ficar tudo bem’ – foi desmontado pelo comportamento das pessoas. Mesmo sem disso nos darmos conta ficou bem à mostra a fragilidade de todos e de cada um. Não somos mais invencíveis, pois um sopro de vírus fez abanar toda a construção... A velha expressão ‘estamos todos no mesmo barco’ foi, no tempo da pandemia, mais do que clara e incisiva. Temos de encetar esforços para que não continuemos a desculpar-nos com a pandemia para vivermos esta espécie de ambiente egoísta em que boa parte nos posicionamos. Mais do que apontarmos o dedo aos outros, precisamos de corrigir-nos com humildade e verdade, já!



António Sílvio Couto

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Volodymyr ou Vladimir – quem ganhará?

 

Quinze meses depois da invasão da Ucrânia pela Rússia vemos constantemente estes dois homens – Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky – respetivamente presidentes da Rússia e da Ucrânia – em confronto bélico e de personalidades, conquistando apoios ou animosidades ao perto e ao longe.

Depois da estupefação geral em finais de fevereiro do ano passado, vemos prolongar-se um conflito que tem servido para trazer à luz algo do pior do nosso tempo, com sinais preocupantes à mistura com recordações de um passado com mais de sete décadas e que deixou marcas ainda não-superadas...

1. Como noutras situações bélicas, os números são possíveis, deixando a desconfiar para com uns os outros e todos sobre o resto. Estima-se que a Rússia sofreu 180 mil mortos e feridos, enquanto a Ucrânia teve 100 mil mortos ou feridos em ação, juntamente com 30 mil mortos civis.
Todos vimos e, nalguns casos, atendemos, a onda de refugiados ucranianos, bem como fomos participando, cada a seu modo, no socorro às vítimas de guerra, que já dura há tempo em excesso.

2. Apesar de serem povos afins, russos e ucranianos - diz quem os conhece de perto - são muito idênticos e as ‘atrocidades’ ditas de uns podem, em breve, ser denunciadas por outros. Por isso, certas benesses da União Europeia e da Nato para com a Ucrânia podem voltar-se contra os benemerentes, na medida em que nem sempre a razão está só de um lado, embora seja revoltante a ocupação expansionista russa nesta fase da história da Europa. Valha-nos a subtileza de que a entrada e aceitação nestas duas organizações - UE e Nato - exigem que haja paz e democracia no território do candidato...

3. Embora sejam duas personalidades distintas e quase antagónicas, Zelensky e Putin como que simbolizam os seus povos, naquilo que têm de excelente ou até de malévolo. Por vezes aparecem-nos como representantes de visões sociopolíticas divergentes, no entanto, não passam de figuras - naquilo que tal expressão representa - sob as quais se encobrem outros pensamentos, visões ou leituras da vida em contexto de confronto quase cultural. Não podemos esquecer que as ‘zangas’ atuais já foram cumplicidades noutras épocas, por concordância ou sob condicionamento estratégico.

4. Putin tem escola na longa tradição russa, que nos dois últimos séculos viveu sob a tutela de grandes façanhas e numa tentativa de ser um dos eixos da política europeia e internacional. A pomposa imagem de brilho e fascínio, que tantas vezes ostenta, parece continuar a seduzir os ocupantes do poder a partir de Moscovo - dos czares à momenclatura comunista se alimenta ainda hoje Putin, não se sabendo em qual delas se encontra de verdade ou aonde quer chegar como utopia. Dúvidas continuam a ser lançadas sobre o Ocidente quanto à sua cultura pretensamente democrática...

5. Por seu turno, Zelensky chegou ao poder, em 2019, ridicularizando-o, como ‘presidente-palhaço’. Assumiu o papel, depois de eleito, e tem lutado pela sobrevivência daquela nação...sempre sob a forma de tentativa e menos com o reconhecimento tão credível como, por vezes, tenta incutir. O seu ar arrapazado em veste militar parece nem sempre dar-lhe a força credível, embora se lhe dê alguma tolerância. As forças ocidentais quase que o usam como arma-de-arremesso contra Moscovo e o que tal poder significa, agora e no passado.

6. Completados quase quinhentos dias de belicismo - 15 meses - continuamos sem saber quem vai ganhar a guerra na Ucrânia, mais por inépcia do Ocidente do que por estratégia das forças russas. Estas continuam a estar sob suspeita e contestação dentro e fora da tutela de Putin. Quando se esgotarem os stocks das armas em desuso perceberemos quem canta vitória, mesmo que o adversário seja vencido pela inoperância e o cansaço. Como semelhantes com dificuldade reconhecerão a derrota!


António Sílvio Couto

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Seremos um país amofinado?

 

A avaliar por diversos sinais podemos questionar-nos se não seremos um país de amofinados, isto é, de pessoas (instituições também) aborrecidas, preocupadas, apoquentadas, emburradas, arreliadas, incomodadas, afligidas, apreensivas, receosas… em tal dose que o todo nacional parece enfermar desta doença endémica e sistémica…

No role de situações vemos que vários campos de atividade manifestam situações de amofinação, desde os mais comuns e (já) quase clássicos, como a educação, a saúde e o mundo laboral até aos mais subtis como o espaço desportivo ou as lides político-partidárias, sem esquecermos os indícios das intrigas nas (ditas) redes sociais e no trato de vizinhança…

1. Quais poderão ser, então, os indícios deste ambiente de amofinação? As reações intempestivas de certas pessoas, serão já reveladoras desta condição pessoal e social? Os trejeitos de intolerância manifestam esse ser amofinado, mesmo que não-consciente? Certos posicionamentos reivindicativos apontam para que a amofinação ganha espaço à compreensão e à aceitação da diferença? Quais são os fatores que têm contribuído para esta sensação de pundonores agravados com que nos vimos a culpabilizar de forma crescente? Que consequências teremos a curto e a médio, se continuarmos a valorizar mais o que nos separa do que aquilo que nos ainda une?

2. Mesmo que de forma um tanto abusiva este texto que estou a escrevinhar já revela alguma consciencialização de estar suscetível a sentir-me amofinado. Com efeito, não vejo por ai muita gente a interrogar-se sobre este clima pouco alegre ou contente e até feliz. Nota-se no rosto das pessoas que andam apreensivas e que com facilidade e podem tornar agressivas, senão mesmo violentas em palavras, atitudes e gestos. Dá a sensação que as pessoas se podem comparar a balões que se foram enchendo e, ao mais pequeno deslize, podem rebentar (explodir) com uma simples fricção… bastará algo que faça a ignição.

3. Vejamos um exemplo deste país amofinado. As quezílias e turbulências dos futebóis é uma espécie de parâmetro em que nos podemos ver e rever. Com que facilidade se geram problemas, dentro e fora do terreno de jogo, parecendo saber como começaram, mas que dificilmente atingiremos como vão terminar. Dá a impressão que uns tantos incentivam, cultivam e alimentam esta amofinação. As horas gastas para esquadrinhar as razões de tais pseudoproblemas fazem com que os que gostam daquele desporto desliguem e deixem esses papagaios a falar entre si… Literalmente nesta fase do campeonato o clima de amofinação só serve aos incompetentes e cangalheiros da modalidade…

4. Noutro campo de atividade: a vida político-partidária. Foi degradante das pessoas e atentatório para as instituições o que aconteceu recentemente: horas e horas, mesmo pela madrugada fora, os inquéritos a certos desvios (ético-profissionais, cívicos e criminais) num tal ministério… onde se insere a transportadora aérea. De facto, aquilo foi voar demasiado baixo e sob a conduta menos adequada. Cresceu em mim esta sensação de amofinado, num país a viver mais sob a tutela do egoísmo do que do serviço, a lutar pelos interesses pessoais do que a atender aos valores cívicos dos outros.

Se fossemos honestos e sinceros trocaríamos os nomes da maior dos ministérios para os seus antagónicos: da saúde para o da doença; da educação para o da ignorância; do trabalho para o da preguiça; dos negócios estrangeiros para o das tricas nacionais; das finanças para o da pedinchice; da cultura para o da subsidiodependência; da habitação para o das barracas… numa palavra: sem governo, antes de amofinados à espera que não apareça quem o substitua.

5. Sobre as ‘Jornadas Mundiais da Juventude – Lisboa 2023’ vejo também muita amofinação. Se até os padres para concelebrarem e poderem confessar têm de se inscrever e pagar cinquenta euros! Apesar de tudo não vemos, nas nossas hostes, tanto entusiasmo como seria expetável…Por que será?



António Sílvio Couto

sexta-feira, 19 de maio de 2023

A par com o mundo: de que modo?

 


Quem ouça uma estação de rádio de âmbito nacional conhecerá este slogan entre o publicitário e o quase-identitário. Se tem a ver com esta vertente de identidade que dirá de quem fazer a comunicação – tanto humana como a (dita) religiosa – que possa fazer-nos acreditar em algo sério e credível? Se nos quedarmos pelo publicitário, com que ‘mundo’ se está a par?

A estação radiofónica em causa tomou ainda como epiteto – ‘emissora católica portuguesa’. Assim sendo que mundo mostra, serve e anuncia? Será, naquela observação pertinente, uma entidade que mede o temperatura (termómetro) ou deveria ser, antes termóstato, isto é, que influencia (para mais ou para menos) a temperatura do meio onde se encontra?

1. Enquanto serviço da Igreja católica em Portugal, a entidade que nos suscita esta reflexão comporta ou revela – desgraçadamente – o estado da nossa Igreja nos diversos itens de presença: estamos, mas não influenciamos, ocupamos espaço, mas não marcamos a diferença… há riso com, mas não risco para! Se usássemos uma expressão evangélica poderíamos recorrer ao sal que perdeu o sal, correndo o risco de ser pisado e lançado fora!

2. Desde a primeira hora a Igreja foi vista, sentida e entendida como sinal de paradoxo, isto é, de contradição, de questionamento, de provocação e, por que não, de perseguição e, consequentemente, de testemunho/martírio. Desde a linguagem até aos atos, a Igreja esteve – e está – sob sério escrutínio, não deixando qualquer dúvida sobre a inconciliação com o mundo e aquilo que se opõe a Deus. Por isso, certas atitudes de conformismo para com as coisas do mundo será, além de atraiçoar a mensagem do Evangelho, um incorrer em censura e, em muitos casos, em condenação.

3. Estar a ‘par com o mundo’ poderá ainda comportar uma necessária adequação da linguagem da Igreja para que seja entendida pelo mundo. No entanto, aquela precisa de não descer tanto ao nível do interlocutor que se confundam conceitos, termos e valores. Valeria a pena recorrer ao inquestionável método tomista de definição dos termos para que não estejamos a usar palavras idênticas, mas dando-lhes significados diferentes…conforme possa convir. É assinalável um certo esforço da Igreja, se bem que nem sempre seja correspondida…

4. Por estes dias celebra-se o ‘dia mundial das comunicações sociais’ (domingo da ascensão), sob o tema: falar com o coração, testemunhando a verdade no amor.

Eis um breve excerto da mensagem do Papa Francisco:

«’Também na Igreja há grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. É o dom mais precioso e profícuo que podemos oferecer uns aos outros». Duma escuta sem preconceitos, atenta e disponível, nasce um falar segundo o estilo de Deus, que se sustenta de proximidade, compaixão e ternura. Na Igreja, temos urgente necessidade duma comunicação que inflame os corações, seja bálsamo nas feridas e ilumine o caminho dos irmãos e irmãs. Sonho uma comunicação eclesial que saiba deixar-se guiar pelo Espírito Santo, gentil e ao mesmo tempo profética, capaz de encontrar novas formas e modalidades para o anúncio maravilhoso que é chamada a proclamar no terceiro milénio. Uma comunicação que coloque no centro a relação com Deus e com o próximo, especialmente o mais necessitado, e esteja mais preocupada em acender o fogo da fé do que em preservar as cinzas duma identidade autorreferencial. Uma comunicação, cujas bases sejam a humildade no escutar e o desassombro no falar e que nunca separe a verdade do amor».

5. Quanto mais adequada for a comunicação – em linguagem clara e com estilo simples – melhor seremos capazes de fazer acontecer a mensagem de Jesus. A nossa comunicação atingirá nos outros aquilo que em cada um de nós foi tocado…Assim o queremos e desejamos!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Não seremos já ex-terra de Santa Maria?

 

Embora a expressão ‘terra de Santa Maria’ seja, no sentido estrito dada à região medieval da Santa Maria da Feira, ela pode e tem sido aplicada ao todo do território português e com especial incidência à devoção que temos para com Nossa Senhora. Com efeito, desde os alvores da nacionalidade podemos ver alguma relação com Santa Maria na nossa história coletiva, tenha a evocação que se Lhe possa dar, desde Santa Maria do Castelo (Guimarães) até à Senhora da Conceição (Vila Viçosa), passando por Santa Maria de Braga ou Senhora da Batalha ou a mais emblemática, desde há mais de um século, Nossa Senhora de Fátima... Daqui o epíteto que diversos papas nos deram de sermos ‘terra de Santa Maria’, pois a Ela entregues e dedicados...ao menos em teoria.

1. Quem estiver mais ou menos atento poderá encontrar, em cada concelho e por vezes multiplicado, algum lugar de maior devoção a Nossa Senhora. Por ocasião do mês de maio ali acorrem peregrinações e fazem-se notar diversas devoções, em conformidade com as necessidades mais ingentes daquela região. Por vezes essas manifestações da piedade popular – muito para além da religiosidade subjacente – configuram aspetos de vida pessoais, familiares e comunitários. Ignorar esses sinais seria como que incorrer na negação da identidade de cada povo...

2. Em contraste com este magma espiiritual vemos emergirem tufos de materialismo, por vezes vertidos em posições políticas e em decisões ideológicas. Vejamos um sinal disto nos tempos mais recentes, no que toca às datas de aprovação da eutanásia e a sua relação com momentos evocativos com a devoação a Nossa Senhora e a Fátima em particular. As quatro últimas datas de aprovação da eutanásia – eufemisticamente dita de ‘despenalização da morte medicamente assistida’ – têm alguma proximidade a Fátima e aos acontecimentos ali verificados. Referimo-nos apenas aos momentos mais recentes e têm por pano de fundo – com a lei votada pelos deputados em maioria – de permeio com as idas-e-regressos (em três anos e três meses) entre o Parlamento, a Presidência da República, o Tribunal Constitucional e seus adjacentes: 20 de fevereiro de 2020 (em plena pandemia) – festa litúrgica dos pastorinhos Francisco e Jacinta Marto; 7 de dezembro de 2022 – véspera da Imaculada Conceição; 13 de fevereiro de 2023 – memória do falecimento da Irmã Lúcia, vidente de Fátima; 12 maio de 2023 – véspera da primeira peregrinação aniversária das aparições na Cova de Iria.

Até que ponto quiseram fazer encaixar os factos com as datas? Haverá mera coincidência? Não deveremos questionar a subtileza? Não durmamos... Foi audível a denúncia do Papa Francisco sobre este assunto no dia seguinte à mais recente aprovação da eutanásia: somos um país que aprova leis para matar!

3. Nota-se que boa parte da população portuguesa está num processo acelerado de descristianização, senão na teoria ao menos na prática. Esse designado ‘ateísmo prático’ vai conquistando adeptos e muitos deles ainda se envernizam de religião, embora dentro de uma lógica mais individualista do que comunitária. Factores diversos têm contribuído para este viver como ‘se Deus não existisse’. Múltiplas desculpas têm sido aventadas, algumas com espaço para crescerem, mas tantas outras não passam de subtil acomodação ao consumismo galopante e com cada vez maior número de fiéis.

4. Que fazer, então perante este cenário? Não terá chegado a hora de nos questionarmos todos, colocando em causa os métodos, as estratégias e assumindo as consequências mais do que atirando as culpas para os outros? Tantos anos de ‘catequese’ – termo indevidamente dado ao processo de ensino/passatempo das crianças nas paróquias – que resultados conferem? Tantos escuteiros nos agrupamentos – agora que se comemora o centenário do CNE em Portugal – e os efeitos esfumam-se em quase-nada?

A ‘terra de Santa Maria’ está neo-pagã. Os sinais estão à vista. É tempo de acordar...



António Sílvio Couto

terça-feira, 16 de maio de 2023

Vivência comunitária personalizada

 

Ao aproximarmo-nos da celebração do Pentecostes talvez possa útil que nos acerquemos dos relatos do mesmo nos Atos dos Apóstolos e possamos ver as consequências do Espírito Santo na vida da Igreja nascente. Algo de novo aconteceu. Como o podemos atualizar? Que vertentes precisamos de aprofundar? Estaremos vivos na força do Espírito Santo?

Ora, se há dimensão que revela riqueza humana e espiritual é a força da comunidade dos irmãos, desde os primórdios da Igreja. No entanto, essa dimensão poderosa e essencial do cristianismo não se dissolve num ‘coletivo’ ou num anonimato, pelo contrário, cada pessoa é e faz a Igreja, tornando esta, com o seu contributo, um espaço de maior presença de Deus.

Após a acrisolada época da pandemia somos sentindo uma espécie de abandono dos participantes na vida comunitária regular da Igreja. Depois da ‘religião das pantufas’, servida no conforto do sofa, torna-se difícil voltar a sair de certos clichés de acomodação: estar com os outros precisa de vencer barreiras de egoísmo e de defesa higienista. Atendendo a essa frase atribuída a Bento XVI poderemos considerar que muitos ‘não sairam [da Igreja comunidade e templo] porque nunca chegaram a entrar’.

Lemos nos Atos dos Apóstolos: «Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão e às orações» (2, 42). Estes aspetos são considerados os pilares da comunidade primitiva: o ensino (didaskalia), a comunhão (koinonia), a fracção pão (eucaristia) e as orações… todos estes aspetos sob a expressão ‘eram assíduos’, isto é, numa participação comprometida de todos.

Centramos a nossa atenção nestes quatro pilares da comunidade, tendo ainda em conta outros sumários do livro dos Atos dos Apóstolos (cf. 4, 32-35; 5, 12-15)… tentando descobrir, hoje, implicações destes mesmos sinais:

* Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos

Esta fundamental vertente de formação na doutrina da Igreja percorre os mais diversos estados e estádios da caminhada cristã: todos e nas mais diferentes idades precisamos de aprender, dado que nada nem ninguém está formado completamente. Eclesiásticos, religiosos/as e leigos/as precisam sempre de estudar as coisas de Deus, pois se não o fizerem correm o risco de entrar na rotina e cairão com facilidade na reprodução de ideias já feitas e vazias, logo sem resposta aos desafios de cada tempo.

Se nas ciências e atividades humanas é preciso estar em continua atualização tanto mais nas coisas sobre Deus, dado que Ele se revela a quem dele se aproxima e com Ele passa o seu tempo de vida. Nalguns casos pode-se chamar ‘atualização permanente’, noutros dir-se-á que é preciso ter gosto por aprender, mas sempre numa crescente fidelidade ao conhecimento de Deus, nas pequenas como nas grandes coisas do dia-a-dia.

Precisamos de recorrer à doutrina da Igreja (em tantos dos seus aspetos e vertentes), conhecê-la, estudá-la e, sobretudo, vivê-la. São Jerónimo (século IV) dizia que desconhecer a Sagrada Escritura é ignorar o próprio Cristo. Não haverá por aí muitos ignorantes, mesmo sem o reconhecerem?

«A Igreja é apostólica, porque está fundada sobre os Apóstolos. E isso em três sentidos:
– foi e continua a ser construída sobre o «alicerce dos Apóstolos» (Ef 2, 20), testemunhas escolhidas e enviadas em missão pelo próprio Cristo;
– guarda e transmite, com a ajuda do Espírito Santo que nela habita, a doutrina, o bom depósito, as sãs palavras recebidas dos Apóstolos;
– continua a ser ensinada, santificada e dirigida pelos Apóstolos até ao regresso de Cristo, graças àqueles que lhes sucedem no ofício pastoral: o colégio dos bispos, «assistido pelos presbíteros, em união com o sucessor de Pedro, pastor supremo da Igreja» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 857).

* Eram assíduos à união fraterna (comunhão)

Esta vertente decorre da presença aos irmãos, através da força interior de Deus neles e na sua expressão exterior de uns para com os outros. A comunhão fraternal (koinonia) exprime-se pela comunhão de sentimentos e de fé, bem como pela partilha de bens (cf. At 4, 32-35: tinham tudo em comum e ninguém chamava seu ao que lhe pertencia). Com efeito, esta vivência da partilha fraternal revela e cimenta a força daquela comunhão enraízada na força do Espírito Santo. A unidade – comum-unidade – é um factor bem acentuado na comunidade de Jerusalém e que há de repercutir-se em toda a vivência e testemunho dos discípulos de Jesus.Os sinais de rutura – heresia ou cisma – serão combatidos desde a primeira hora. Nada nem ninguém pode atentar contra a comunhão dos irmãos. A oração sacerdotal de Jo 17 é disso um testemunho por excelência: unidos como irmãos, tal o Pai e o Filho.

Por vezes podemos ser ‘instrumentos’ de divisão – mesmo sem disso nos darmos conta – mais do que seria desejável. Estarmos atentos aos possíveis sinais de rutura da comunhão é tarefa de continua vigilância. Não podemos ficar numa saudosa utopia de que os primeiros cristãos viviam em comunhão e nós hoje não conseguimos tal desiderato; na medida em que o Espírito de Deus faz comunhão, assim devemos comprometer-nos em fazer da nossa vivência em Igreja um testemunho de fraternal caridade ativa e não presumida.

* Eram assíduos à fracção do pão (eucaristia)

Antes de mais é preciso explicar esta expressão naquilo que tem de raiz judaica e como foi vivida no contexto dos cristãos da comunidade inicial.

«Fracção do Pão, porque este rito, próprio da refeição dos judeus, foi utilizado por Jesus quando abençoava e distribuía o pão como chefe de família, sobretudo aquando da última ceia. É por este gesto que os discípulos O reconhecerão depois da sua ressurreição e é com esta expressão que os primeiros cristãos designarão as suas assembleias eucarísticas. Querem com isso significar que todos os que comem do único pão partido, Cristo, entram em comunhão com Ele e formam um só corpo n' Ele» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 1329).

Este terceiro pilar da comunidade de Jerusalém coloca-nos diante da realidade da eucaristia, como o sacramento da fracção do pão. Com efeito, nos evangelhos encontramos referência ‘à fracção do pão’ (cf. Lc 24, 35) numa alusão à eucaristia, bem como em 1 Cor 10, 16: «o pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo?»

Na celebração atual da eucaristia temos e vivemos ainda este gesto da fracção do pão. Com efeito, como diz a Instrução Geral ao Missal Romano (n.º 321), quando se refere a este sinal: «o gesto da “fracção do pão” – assim era designada a Eucaristia na época apostólica – manifesta de modo mais expressivo a força e o valor de sinal da unidade de todos em um só pão e de sinal da caridade, pelo facto de um só pão ser repartido entre os irmãos».

* Eram assíduos às orações

«Estas orações são, em primeiro lugar, as que os fiéis ouvem e lêem nas Escrituras; mas eles actualizam-nas, em particular as dos salmos, a partir da sua realização em Cristo. O Espírito Santo, que assim recorda Cristo à sua Igreja orante, também a conduz para a verdade integral e suscita formulações novas que exprimirão o insondável mistério de Cristo operante na vida, sacramentos e missão da Igreja. Estas formulações desenvolver-se-ão nas grandes tradições litúrgicas e espirituais. As formas da oração, tais como as revelam as Escrituras apostólicas canónicas, continuam a ser normativas da oração cristã» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 2625).

O espaço da realização comunitária era o culto, do qual faziam parte a fracção do pão – a Eucaristia (cf. At 2, 46; 20,7; Lc 24,35) e as orações; no conteúdo, estas deviam ser cristãs (cf. At 1,14; 4,24; 14,11.18), embora os crentes continuassem a frequentar o templo (cf, Lc 24,53).

Feito este percurso comunitário pelos quatro pilares da Igreja primitiva, onde fica a intervenção pessoal de cada pessoa na construção, por cada um de nós, desta Igreja onde nascemos, celebramos, crescemos e vivemos?

De facto, ao refletirmos sobre algumas das figuras dos evangelhos e dos Atos dos Apóstolos (*), cada um a seu modo, um contributo para que a Igreja fosse crescendo. Todos, a partir da referência a Jesus, foram chamados e enviados como testemunhas. O que seria a Igreja sem o contributo de Pedro ou de Paulo, de João ou de André? Que dizer ainda sem a participação de Agostinho de Hipona ou de Bento XVI (Joseph Ratzinger), de Francisco de Assis ou de Teresa de Ávila?

O Espírito Santo derramou em cada um os seus dons, fazendo-os carismas para as comunidades e a Igreja. Hoje, como no passado, temos de amadurecer esta complementar vivência do compromisso pessoal na força comunitária, um e outra fazem de cada cristão um convertido de mãos dadas com seus irmãos e irmãs em igual processo de humilde caminhada na fé, pela esperança e com caridade.



António Sílvio Couto

sábado, 13 de maio de 2023

Eutanásia: Fátima e Nossa Senhora


As quatro últimas datas de aprovação da eutanásia – eufemisticamente dita de ‘despenalização da morte medicamente assistida’ – têm alguma proximidade a Fátima e aos acontecimentos ali verificados. Referimo-nos apenas aos momentos mais recentes e têm por pano de fundo – com a lei votada pelos deputados em maioria – de permeio com as idas-e-regressos (em três anos e três meses) entre o Parlamento, a Presidência da República, o Tribunal Constitucional e seus adjacentes: 20 de fevereiro de 2020 (em plena pandemia) – festa litúrgica dos pastorinhos Francisco e Jacinta Marto; 7 de dezembro de 2022 – véspera da Imaculada Conceição; 13 de fevereiro de 2023 – memória do falecimento da Irmã Lúcia, vidente de Fátima; 12 maio de 2023 – véspera da primeira peregrinação aniversária das aparições na Cova de Iria.

1. Será coincidência com tais datas? Haverá alguma marcação ao fenómeno de Fátima? Será uma estratégia de distração por parte da camada dos políticos, tentando ofuscar quem foi ou vai a Fátima? Estará subjacente uma espécie de contestação à mensagem de sofrimento, por vezes, acentuada pela mensagem de Fátima? Quem se dei contar de que as datas em apreço valem mais do que dias do calendário?

2. O problema foi tão reiterado que quase venceu pelo esgotamento os antagonistas. Foi idêntico o processo quanto ao aborto: pé-ante-pé entramos – como dizem os promotores – na senda da civilização. Mas será a opção pela morte – prévia ou antecipada – um rasgo de civilização? Para mim é um retrocesso atroz e que pode tornar-se irreversível. Sou pela vida, por isso, é mais um dia triste a somar a tantos outros, mesmo que possa ser de festa para outros ‘mais inteligentes’...

3. Sinto pena por haver pessoas que aplaudem estas decisões em favor da morte, tenha ela a faceta que tiver. Claramente estamos em pistas diferentes e seguimos valores antagónicos. Devia haver, no entanto, mais compreensão para quem não quer a eutanásia. Ora isso não se vê nos defensores da dita, pois consideram – pelos trejeitos e observações – que, quem não pensa como eles, não passa de um troglodita quase medievalesco surreal.

4. Efetivamente joga-se muito mais do que parece em todo este cenário pró-eutanásia: a vida só é digna quando é feliz e risonha ou quando todos me fazem a vontade… Como poderemos ser tão superficiais se ainda estamos neste grau de cultura humana e civilizacional. O que mais apreciamos não foi aquilo pelo que mais nos deu luta pela conquista? Como conciliar o amadurecimento de uma pessoa, se esta desistir ao primeiro problema? Este facilitismo materialista trará consequências, particularmente, para os mais novos, pois se não tiverem as coisas a seu jeito poderão não vingar na vida e com sucesso?

5. Sejamos claros e honestos: a vida nunca se referenda. Acredito que poderá surgir uma nova vaga – e não tem a ver com nenhum partido político – que reflita sobre o valor da vida e possa reverter as decisões por agora tomadas. E nem a obrigação constitucional do Presidente da República em promulgar a lei será capaz de nos entristecer. Na semana em que se comemorou a vitória sobre o regime nazi, podemos ver outros populistas – de alguma esquerda, trotskistas e, sobretudo, desmiolados – a fazerem vingar a condenação de inocentes…Ao menos haja coerência!

6. Recordando o mandamento da Lei de Deus: ‘não matar nem causar outro dano a si mesmo ou ao próximo’.



António Sílvio Couto

quarta-feira, 10 de maio de 2023

A caminho de Fátima…

 


Por estes dias temos visto, através das televisões sobretudo, imagens de imensos grupos de peregrinos a caminho de Fátima, tanto do norte como do sul…todos fazem do santuário da Cova da Iria o termo de suas caminhadas… As modalidades são diversas, as motivações das mais díspares, as organizações muito diversificadas: todos querem atingir o almejado por forma a estarem lá para as celebrações.

1. Pelo que se pode dizer e saber, encetar o ‘caminho de Fátima’ continua a ser algo de muito pessoal, por vezes religioso e nem sempre tão católico, mas acima de tudo envolvendo o mistério do relacionamento entre os humanos e Deus, mesmo que este possa ser visto numa nebulosa de crença. De ano para ano cresce esta expressão religiosa. Creio que ninguém ousa julgar seja quem for e muito menos depreciar o esforço de meter pés a caminho e gastar alguns dias nesta romagem simbólica de vida e da própria vida.

2. Andando em busca de estórias sempre surgem relatadas vivências do foro pessoal-íntimo que nos deixam admirados do misto de razões e da complexidade das reações. Correndo o risco de exagerar quase se pode dizer que cada peregrino – e são aos milhares – tem motivações, que exprime de forma visível e tantas outras que guarda no mais profundo segredo do seu coração. O respeito pelas atitudes dos peregrinos faz dos caminhos de Fátima uma enciclopédia de sábia consulta para conhecermos a natureza humana, hoje como ontem.

3. Acrisolados pela recente pandemia não sabemos se houve um aumento de peregrinos a percorrerem os caminhos de Fátima. Parece, no entanto, haver uma melhor organização dos grupos, onde a dimensão espiritual é contemplada à semelhança dos aspetos físicos, de saúde e alimentares. É nesta confluência de dimensões que podemos atender à visão integral e integrada da experiência de peregrinação. Estima-se que não seja desvirtuada a caminhada com outros fatores mais mundanos e dalguma moda…

4. Estamos numa época de encruzilhada, notando-se mais os sinais de individualismo do que de sentido comunitário, onde se sobrepõe o ‘eu’ ao ‘nós’, mesmo quando este parece estar numa conjugação de pequenos ‘eus’. Não está em causa avaliar quem se faz peregrino dos caminhos da Fátima, mas antes precisamos de discernir as reais motivações e as implicações na vivência/celebração da fé cristã em Igreja. Com efeito, muitos dos fregueses do santuário de Fátima situam-se nas franjas da vida paroquial, deixando bastante a desejar sobre o compromisso no concreto da vida… de Igreja católica.

5. Agora que temos estamos em abordagem da sinodalidade na Igreja, urge investir na formação de cristãos que atendam mais aos outros do que a si mesmos, dando tempo e espaço para que consigamos aceitar os dons dos outros e favorecendo a possibilidade de que esses dons se tornem carismas, isto é, graças em favores dos demais. Qual tem sido a função do santuário de Fátima neste aspeto da Igreja? Não se favorecerá mais a vida individualista do que a dimensão comunitária? Apesar de algum esforço não se atende mais à promessa cumprida do que às consequências do compromisso pelos outros?

6. Segundo dados mais ou menos oficiais, os números dos peregrinos de Fátima que comungam nas missas ali celebradas não atinge um décimo dos participantes. Não será este um fator a ter em conta na pastoral daquele santuário? Mesmo com tanta gente a frequentar o santuário, torna-se importante não nos quedarmos pelas aparências, pois estas podem enganar quem se fique pelas exterioridades… Fátima é caminho, mas também pode ser espaço e oportunidade de mais e melhor conversão a Deus e aos outros, em Igreja!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Dia da mãe

 


Neste dia da mãe quero dizer-vos, Senhor:
- Obrigado pela dádiva
da maternidade,
pois através desta fonte
de renovação da existência
nos mostrais como é grande
o vosso amor para connosco,
quando tantas mães aceitam fê-lo
com generosidade e entrega em ternura.
Hoje, Senhor quero colocar-vos
todas as mães pela sua correspondência criadora.
Através delas, Vós, Senhor,
celebrais a vida
que de Vós jorra continuamente.
Hoje, Senhor quero apresentar-vos

também as mães psicológicas
e espirituais,
pois através da sua entrega
dais coração e consolo a tantos
dos vossos filhos e filhas
sem aconchego e ternura.
Hoje, Senhor, quero ainda
pedir perdão por tantas mães
que ofenderam o dom da maternidade
pela recusa de seus filhos,
recorrendo a opções de morte.
Perdoai-lhes, Senhor,
e recolocai-as na Vossa paz
pelo arrependimento
e pela confiança em Vós.
Maria, nossa mãe, rogai por nós.

Eu trabalhador, me acuso!

 

Deixa-me sempre alguma confusão ver e ouvir certos ‘sábios’ do sindicalismo reclamarem do aumento dos salários, tendo como parâmetro médio o número de cerca de mil e quatrocentos euros/mensais. Estes dados (mais ou menos oficiais) referem que os atingidos são pessoas com formação superior ou formação técnica na área e que trabalham nas grandes cidades do nosso país.

Quando se quer falar de dinheiro – auferido e vertido em impostos – convém comparar com outros países. Em que ponto estamos na escala europeia? Talvez seja útil ver ainda o número de portugueses que recebem o ‘ordenado mínimo’... em contexto estamos na linha da produção de riqueza. Com que meios poderemos fazer tais aumentos reclamados?

1. Segundo as instâncias europeias com o assunto das estatísticas podemos recolher os seguintes dados: a média anual dos salários na União Europeia anda pelos 33,5 mil euros. Os dados de Portugal situam-se nos 19, 3 mil euros. Os salários mais elevados estão no Luxemburgo (com 72 mil euros), na Dinamarca (63 mil euros) e na Irlanda (50 mil euros). Itália, Espanha, Malta ou Chipre também apresentam uma média mais alta do que Portugal. O salário médio mais baixo é registado na Bulgária (10,4 mil euros), na Hungria (12,6 mil euros) e na Roménia (13 mil euros). A Grécia também está entre os países com um salário médio mais baixo do que Portugal. O salário médio em Portugal corresponde assim a 58% da média da UE e a 68% da média em Espanha.

2. Segundo dados do governo português mais de 50% dos trabalhadores receberam salários inferiores a mil euros, em 2022, uma percentagem que sobe para 65% no caso dos jovens com menos de 30 anos. Seguindo ainda dados oficiais na análise aos salários médios pagos no mercado de trabalho português pode perceber-se que, no final de 2022, o salário médio nas atividades ligadas à agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca era de 933 euros, o mais baixo entre os diferentes tipos de atividade... enquanto nas atividades de eletricidade, gás, vapor, água quente e fria e ar frio, a remuneração média era de 3.521 euros, quase quatro vezes mais... Outro dado digno de registo é que empresas com um a quatro trabalhadores registavam um salário médio mensal de 1.027 euros, enquanto empresas com 250 a 499 trabalhadores pagavam, em média, 1.909 euros.

3. Desde janeiro deste ano que o salário mínimo nacional é de 760 euros. Estima-se que 30% da população usufrua deste ‘vencimento’ mensal.

4. Vejamos coisas concretas e com incidências pessoais. De facto, ao ver os dados dos salários nacionais quedo-me abaixo dos da agricultura/pesca e um pouco acima do ‘ordenado mínimo’ em vigor. Recebo 850 euros ilíquidos... não atingindo os treze mil euros anuais e que, por um pouco menos, quase ficava fora da declaração obrigatória...Isto de se ser normal no trato com as coisas dos impostos, obriga-nos a cumprir e dá-nos direito de reclamar. Já passou o tempo em que os eclesiásticos eram vistos como exceções no relacionamento com o dinheiro, pois eram vistos como ‘alguém’ que não se submetia às obrigações dos outros cidadãos e podiam colocar-se (ou ser colocado) em plano superior de entidade quase-fora deste mundo. Hoje vivemos fruto do nosso trabalho e usufruindo de todos os direitos e obrigações de quaisquer outros trabalhadores... Não sei se outros da vida pública poderão dizer e confirmar o mesmo?

5. «No trabalho, a pessoa exerce e cumpre uma parte das capacidades inscritas na sua natureza. O valor primordial do trabalho pertence ao próprio homem, seu autor e destinatário. O trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho. Cada um deve poder tirar do trabalho os meios de subsistência, para si e para os seus, e a possibilidade de servir a comunidade humana» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 2428).



António Sílvio Couto

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Água: símbolo da vida e sinal de cultura

 


A água é um dos elementos mais significativos da história da Humanidade, nela, dela e por ela podemos compreender a cultura dos povos e mesmo as diversas expressões religiosas. Embora seja um elemento natural, a água exprime diferentes modos e atitudes do ser humano e das civilizações. Tida durante muito tempo como recurso quase-inesgotável, vemos, cada vez mais, a água como sinal em risco e meio de vida a preservar.

1. Será muito útil que assumamos a relação com a água – no nosso concreto com o curso do Rio Tejo – mesmo como componente de índole religiosa cristã. Se atendermos ao contexto da diocese de Setúbal mais de quatro quintos das paróquias têm relação com a água dos rios – Tejo e Sado – e mar numa extensão significativa. Mas haverá alguma diferença nessa abordagem? Percebe-se pelo anúncio da Palavra de Deus – pregação ou religiosidade – que estamos na proximidade das águas? Sensibilidade às coisas marítimas reduz-se a certos artefactos mais ou menos ligados ao mar e ao rio? Como se pode fazer uma correta leitura e vivência das coisas com sabor a água, enquanto fonte de diálogo humano e religioso?

Vamos tentar esmiuçar estas questões:

2. De facto, não se nota – grosso modo – diferença entre a expressão de fé em sequeiro e essa outra com alguma ligação a água. No entanto, é muito diferente a forma de propor e de viver a fé em cada um destes contextos. Valerá a pena olhar a sábia forma de comunicação de Jesus através das parábolas para compreendermos a diferença e o modo específico de o viver. Pena seja que não haja a mínima sensibilidade dos responsáveis diocesanos, quando têm de equacionar as mudanças nas paróquias – diga-se párocos e não só – pois tal atenção mediria se estamos a atender para onde se vai mais do que para resolver a função de quem vai para aquele lugar…


3. É de todo em todo importante não só saber qual a mensagem a comunicar, mas sobretudo deve ser tido em conta a quem essa mensagem é dirigida. O código marítimo é simples, mas não simplório, tornando-se essencial adequar a linguagem ao público a que ela é destinada. Reparemos mais uma vez no método de ensino de Jesus: foi com palavras simples e imagens interpelativas que o Mestre soube dar-se a conhecer e interpelar quem O ouvia. Por vezes complicamos o que é fácil e embrulhamos nas teias da confusão aquilo que quanto mais simples melhor é.


4. Não será pela assunção de colocar artefactos marítimos – redes, remos, boias… barcos ou simples miniaturas… roupas ou adereços – no contexto da celebração da fé – missas ou procissões, encontros ou colóquios – ou na sua proximidade, que fará de uma iniciativa algo que tenha a falar de Deus, com Deus ou para Deus…com sabor a sal e com mensagem recebida dos elementos da natureza onde a água está presente. Torna-se importante saber onde se quer chegar para que não caiámos no ridículo de termos sinais muito bonitos, mas pouco (ou nada) interessantes para a mensagem que se deseja comunicar.

No caso do rio Tejo há elementos que precisam de ser alocados aos espaços ribeirinhos, mas não podem ser buscados para entreter nem para ocuparem um ‘buraco’ de não-interesse à luz dos desejos daqueles que usam tais adereços. Depois de tanto tempo de costas voltadas para o rio, o movimento de olhar de frente o Tejo estava emperrado, mais pelo desinteresse do que por razões racionais e emotivas.


5. As terras de ‘ribatejo’ – de uma de outra margem – precisam de se unirem para verem com verdade e sensibilidade aquilo que as une e não tanto os motivos que as molestam e/ou separam. Por muito que isso possa ‘custar’ as certas forças, a dimensão religiosa do Tejo sobrepõe-se mesmo aos intentos económicos, tanto os do passado como os atuais. Já reparamos que há tantas ‘senhoras’ (de grande devoção) nas fraldas do rio Tejo? Como se explica que muitas dessas invocações tenham a ver com as atividades humanas desenvolvidas, tendo o Tejo por cenário? O teor marítimo dessas festas não se esgota em atividades de entreter nem se pode confundir com uns barcos em desfile mais ou menos lustroso.


6. O Tejo é, sobretudo, um veio de união, mas essa parece andar fugidia de habitantes e visitantes. Naquilo que há cultura de índole cristã diz respeito torna-se urgente criar sinergias entre todos sem preconceitos nem clichés ideológicos. Não há donos do rio nem assalariados do lazer, mas antes todos – e são muitos e bastante diversificados – devem dar o seu contributo em abertura de uns aos outros. O rio Tejo merece mais do que campanhas ou propostas enganosas: saído da fonte deve unir povos e culturas por onde passa.


7. Quando percebermos o rio descobriremos a nossa identidade marítima, sobre as águas, ao sabor da maré e perscrutando a voz de Deus por aí…


António Sílvio Couto

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Visão de governantes sobre os governados, ontem como hoje

Eis uma estória... verdadeira ou não, mas simplesmente provocadora:

Numa da suas reuniões, Hitler pediu que lhe trouxessem uma galinha. Agarrou-a fortemente com uma das mãos enquanto a depenava com a outra. A galinha, desesperada pela dor, quis fugir mas não pôde.
Assim, Hitler tirou-lhe todas as penas, dizendo aos seus colaboradores: “Agora, observem o que vai acontecer”.
Hitler soltou a galinha no chão e afastou-se um pouco dela. Pegou num punhado de grãos de trigo, começou a caminhar pela sala e a atirar os grãos de trigo ao chão, enquanto os seus colaboradores viam, assombrados, como a galinha, assustada, dorida e a sangrar, corria atrás de Hitler e tentava agarrar alguns grãos. A galinha seguia-o para todos os lados.
Então, Hitler olhou para os seus ajudantes, que estavam totalmente surpreendidos, e lhes disse: “Assim, facilmente, se governa os estúpidos. Viram como a galinha me seguiu, apesar da dor que lhe causei?
Tirei-lhe tudo... as penas e a dignidade, mas, ainda assim ela segue-me em busca de farelos”.
Assim é a maioria das pessoas, seguem os seus governantes e políticos, apesar da dor que estes lhes causam e, mesmo que lhes tirem a saúde, a educação e a dignidade, pelo simples gesto de receber um benefício barato ou algo para se alimentar por um ou dois dias, o povo segue aquele que lhe dá umas simples migalhas.

1. Quem não for governante como que se pode rever na fase de governado, mesmo que ainda não se sinta totalmente galinha depenada ou não corra já atrás dos grãos lançados do ‘poder’ para a sua autossustentação ou até em ordem à manipulação. Com que subtileza as forças do poder usam os outros para que se calem e obedeçam. Com que desfaçatez se engendram truques para ter os governados presos pela boca. Com que habilidade são apresentadas ‘soluções’ que manipulam os que delas são favorecidos.

2. Mesmo que de forma subtil há muitos governantes que são – consciente ou inconscientemente – seguidores das técnicas de Hitler, esse famigerado ditador a quem ninguém deseja ser associado. Alguns pretensamente ‘democratas’ articulam esquemas idênticos ao da galinha depenada, pois conseguem criar nos votantes a sensação de que vão resolver os ‘seus’ problemas, mas o que fazem não passa de arregimentar aduladores que, seduzidos pela boca, vão nas pisadas daqueles que os seguem, quase de forma acrítica e ideológica. Os ‘sistemas’ de ajuda aos (apelidados) mais pobres como que fazem destes galinhas amestradas e seguidistas, dado que os subsídios prolongam a dependência no tempo e no espaço... Até quando estaremos calados? Por que nos querem comprar com benesses de baixo valor?

3. Por vezes estamos tão envolvidos nos factos e apanhados pelas circunstâncias que quase se torna difícil discernir aquilo que nos pode afetar, dizemo-lo mais da parte dos governados, pois os governantes têm os seus artefactos mais elaborados para nos conquistarem. Há quem se queixe de que os ‘políticos’ só nos vendem as suas patranhas, em forma de promessas, quando surgem as eleições. Depois como que esquecem tais façanhas e retomam a rotina de tentarem enganar o mais tempo possível e adiarem ser descobertos. Deste modo o eixo causa-efeito fica à espera das consequências. Com o escrutínio das redes sociais o assunto tem vindo a encurtar a avaliação…

4. À luz das artimanhas da ‘estória’ supra-citada, urge detetar os grãos de trigo lançados na sedução dos nossos dias, pois muitos deles aparecem-nos sob a forma de subsídio, de complemento de reforma ou até na redução do ‘IVA à taxa zero’. Cada vez mais é preciso estar atento às manigâncias do poder, seja ele quem for e atinja às áreas mais diversificadas.

5. O trabalho é um direito, mas fazê-lo com honra e dignidade é um dever. Não será que falta uma visão correta do trabalho, sem o reduzir à força do seu exercício? Pensar também é trabalho e do bom…



António Sílvio Couto