Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 22 de abril de 2024

‘25 de abril’ foi corrigido no ‘25 de novembro’?

‘Faz inteiramente sentido’ que o 25 de Novembro de 1975 seja celebrado, tal como o 25 de Abril de 1974, pois quem quer separar as duas datas está ‘a cometer um erro histórico’.

Foi António Ramalho Eanes - estratega do ‘25 de novembro’ e o primeiro presidente eleito após a (dita) ‘revolução do cravos’ - por ocasião desta efeméride que estamos a viver. Segundo Eanes ‘há uma data fundadora da democracia, é o 25 de Abril, que assume perante o povo português o compromisso de honra de lhe devolver a soberania e a liberdade, de fazer com que os portugueses façam aquilo que entendem para viver o seu presente e desenhar o seu futuro... O 25 de Novembro reassumiu esse compromisso original’.

1. Dezanove meses separaram as duas datas, por sinal tendo ambas o numerário ‘25’, mas com um significado que ainda incomoda certas forças paladinas do ‘processo revolucionário em curso’ (PREC) e que criou até hoje feridas em milhões de portugueses, dentro e fora do território europeu. Advertindo da sua experiência de nonagenário, Eanes considera que seria um erro histórico separar as duas datas e, segundo ele, ‘os erros históricos nunca são convenientes, porque a história quando é apresentada na sua totalidade, permite-nos que a ela voltemos, para nela aprender e evitar cometer erros que foram cometidos no passado’.
Claro que a disfunção das duas datas nos coloca perante uma leitura ideológica de certos historiadores marxistas - de serviço na maioria das televisões e vendendo o seu produto nas cátedras - para quem a História se pode reescrever segundo os interesses em consonância... Mas eles passam e se perceberá o ridículo (científico) em que se colocaram...

2. Habilidosamente têm estado a ir ao baú das recordações para que não se esqueça o fervor de há cinquenta anos. A maioria dos deputados assentados no parlamento eram, pelo menos imberbes, à data da revolução de abril. Uns tantos - e no feminino também - são filhos dos que desenvolveram o PREC, entre assaltos e atentados, com brigadas revolucionárias e acusações de capitalismo... afundando empresas e atirando para o desemprego os seus apaniguados. Alguns contestam a adesão à União Europeia e a pertença ao euro, mas usufruem boas maquias quando são deputados no Parlamento Europeu.
Datas como o ‘11 de março’ ou o ‘28 de setembro’, sem esquecer os comícios inflamados em certas zonas da ‘margem sul’ do Tejo, a destruição da Rádio Renascença... com a resposta das manifestações em Braga, em frente à Sé catedral, a cadeia de limpeza de certas sedes partidárias, a avalanche de cidadãos (rotulados) de ‘retornados’, as emboscadas e rusgas arbitrárias em várias zonas do país, as perseguições e confrontos por ocasião da ordenação do primeiro bispo de Setúbal, em outubro de 1975... são alguns dos acontecimentos que perfizeram o hiato entre o ‘25 de abril de 74’ e o ‘25 de novembro de 75’. Varrer para debaixo do tapete da História esses factos - nalguns casos com forte repercussão em famílias e sociedades - seria esconder algo que traumatizou o país...irremediavelmente.

3. A quem interessa não enfrentar esses fantasmas? Não haverá muita gente que acusa os outros para que não lhe descubram as mazelas e as tropelias praticadas? Não é chegada a hora de que certas forças deixem de fazer tanto barulho e se reduzam ao que, afinal, valem: não chegam, no conjunto, a uma dúzia de deputados?
Não adianta quererem desviar a atenção para as falhas dos seus projetos políticos, que já faliram nos países onde foram impostos e mais cedo do que tarde também por cá deixarão de ter sentido e expressão...

4. Um dos símbolos mais significativos da ‘revolução abrilina’ é essa de vermos um cravo espetado no cano de uma espingarda - com o romantismo da criancinha a protagonizá-lo. Calaram e bem as armas, mas fizeram das palavras piores disparos do que as armas. Uma sugestão: coloquem os cravos na boca e assim se calarão muitos dos disparates que lhes saem pela boca fora... Não será essa a lição que ainda não colhemos do ‘25 de abril de 74’?



António Sílvio Couto

sexta-feira, 19 de abril de 2024

A Igreja e a política…nos últimos 50 anos

Considerada por alguns historiadores mais integristas como uma espécie de suporte do regime caído no ’25 de abril de 1974’, a Igreja – sobretudo na sua expressão católica – em Portugal viveu tempos conturbados na sua aferição aos tempos pós-revolucionários, não sendo uniforme a atitude de dentro para fora e de fora para com a instituição no todo do território nacional: nalgumas situações houve colaboração, noutros casos alguma conflitualidade e, na maior parte das vezes, uma espécie de mútua desconfiança no conteúdo e até na forma…

1. Situemo-nos: ao nível da Igreja católica universal estava-se o clima de renovação introduzido pelo Concílio Vaticano II, terminado em 1965 – menos de dez anos antes da revolução abrilina – e cujos eflúvios ainda não tinham assentados nas hostes eclesiásticas lusitanas, com muitos padres a saírem do exercício do ministério, os seminários em adaptação aos novos tempos eclesiais, com um laicado pouco motivado ou mesmo comprometido nas lides da Igreja. Eram bispos nas principais dioceses: D. António Ribeiro, em Lisboa – tinha sido nomeado patriarca em 1971; D. Francisco Maria da Silva, arcebispo em Braga; D. António Ferreira Gomes, bispo no Porto, regressado do ‘exilio’ em 1969; D. David de Sousa, arcebispo de Évora; bispo em Aveiro, D. Manuel de Almeida Trindade, que exerceu também a função de presidente da Conferência Episcopal… São estes alguns dos que assumiram, em momentos de alguma tensão – como por exemplo no designado ‘verão quente de 75’ – algum protagonismo tanto na defesa da Igreja como na afirmação desta perante o poder político, em certos casos com sabor neototalitário.

2. Por ocasião de momentos eleitorais, sobretudo a Conferência Episcopal, foi emitindo notas pastorais, chamando os cristãos à participação eleitoral e tentando corrigir certas opções fora dos valores católicos, como por ocasião dos referendos ao aborto… Ainda na década de setenta foram criadas três novas dioceses: Viana do Castelo, saída a arquidiocese de Braga, em 1977, cujo primeiro bispo foi D. Júlio Tavares Rebimbas, coincidindo com um novo arcebispo para Braga, D. Eurico Nogueira; saídas do patriarcado de Lisboa, foi criada a diocese de Santarém, em 1975, com o seu primeiro bispo D. António Francisco Marques e também a de Setúbal, cujo primeiro prelado foi, durante vinte e dois anos, D. Manuel Martins.

3. Interpretando as necessidades das populações ainda do tempo do ‘estado novo’ foram surgindo nas paróquias mais carenciadas e onde não havia já instalada alguma ‘santa casa da misericórdia’ alguns serviços de ajuda aos mais pobres, mesmo na linha dos princípios do Padre Américo, da casa do gaiato, em que cada paróquia devia cuidar dos pobres… como por exemplo as conferências vicentinas e até já alguns centros paroquiais sociais. Estes tornar-se-ão uma espécie de ‘moda’ para catapultar a capacidade de resposta aos pais/mães trabalhadores em certas regiões onde o desenvolvimento fabril se desencadeou. Isso foi fazendo algum caminho com riscos à mistura, na maior parte das vezes, com empobrecimento da ação pastoral da Igreja: os padres-párocos passaram a ser patrões – tarefa para a qual a maioria não estava preparada – e o Estado lavou daí as mãos no investimento da ação social que apregoava e lhe era devida… Para certos fazedores da política, a Igreja só é reconhecida pela ação social que faz, o que é, nitidamente, redutor.

4. Ao longo destes 50 anos houve vários momentos de mudança – alguns dão-lhe o rótulo de ‘crise’ – que obrigaram a Igreja a saber adaptar-se, fazendo o proposto ‘aggiornamento’ falado no Concílio: a quebra de vocações sacerdotais e religiosas, o boom do consumismo, uma nova moral eivada de individualismo (sexual ou outras), o desemprego e a migração, questões de teor sanitário (a covid 19 foi um expoente, mas houve outras situações), a confusão nas questões familiares (com o divórcio, o aborto, a eutanásia, a ideologia de género, a educação, a habitação, a demografia), a quebra na prática da missa dominical, certos escândalos sociais (dentro e fora da Igreja)… Surgiram novos movimentos religiosos (intra e extra eclesiais), tivemos cinco papas, quase todas as dioceses mudaram de bispo duas a três vezes… O Espírito continua a soprar!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Favores e desculpas não se pedem, evitam-se

 


Estes dois conceitos – favores e desculpas – podem (e em muitos casos) revelam uma espécie de cultura mais ou menos assimilada nos nossos meios e ambientes. Com relativa facilidade ouvimos falar do pedido de favores a alguém com mais poder ou com idêntica subalternidade encontramos referência a quem se quer pedir desculpa por algo que não foi tão conforme quanto o desejado... Embora possam ser gestos e atitudes de uma certa educação – dada, recebida e exercida – há, no entanto, nestes dois motivos razões para que antes que se peçam, se evitem...

1. Decorridas cinco décadas sobre o ’25 de abril’ parece que não conseguimos exorcizar a tendência de recurso aos favores. Hoje como nunca, é preciso uma grande ‘cunha’ para que um favor resolva aquilo que deveria ser um direito num consequente dever. Diziam que certos lugares eram atingidos por intercessão de favores. E agora, algo mudou e se fez mais democrático? Nitidamente o cartão do partido se sobrepõe ao simples ‘cartão do cidadão’, onde constam vários números (fiscal, de segurança social e mesmo de saúde...associado ao dito do cidadão), que se entrecruzam para fazer de cada um de nós um pacóvio sem préstimo, se não tiver conhecimentos que lhes respaldem os favores pretendidos... Não nos usem para continuarmos na ditadura dos favores a pedido... Não será neste campo dos favores que medram as condições para a corrupção? De que adianta denunciá-la, se depois prestamos culto ao favorecimento mais ou menos explícito? Parafraseando a expressão bíblica: quem não tiver pecado, atire a primeira pedra!

2. Se há sinal de que pouco ou nada mudou é esse da censura que é lançada como labéu sobre quem discorda ou toma posição: não dizer amén a quem manda torna-se uma espécie de ofensa de difícil perdão. Vemos nos diversos campos de atividade humana gestos, atitudes, posicionamentos, insinuações, perguntas e respostas... que estragam o relacionamento entre as pessoas, os grupos, as associações (grandes ou pequenas, de bairro ou nacionais, dentro e fora da Igreja). Nota-se, mesmo à vista desarmada, um razoável clima de crispação, onde à mais pequena palavra menos bem dita, emergem acusações, dislates e provocações. Poderíamos usar uma imagem para simbolizar esta hiper-sensibilidade: seria como balões que se vão enchendo em crescendo, até que, numa qualquer ocasião de tão cheios que estão, chispam uns nos outros e com facilidade explodem, tal a incontinência verbal e de recurso em que andamos... e não só os outros, é cada um de nós! Os egos são tão opulentos que se obstruem mutuamente e ensombram o desempenho alheio...

3. Ainda dentro do primeiro ano do seu pontificado (foi em outubro de 2013), o Papa Francisco trouxe para a vida pública a inserção na linguagem e, sobretudo, no comportamento, de três palavras, que ele reputa de essenciais para o trato humano: com licença, desculpa, obrigado. Referiu mesmo a preferência no uso destes termos no contexto da família...

Nestas três palavras – atitudes de vida se pode perceber que o centro não é o eu, mas os outros. Estes merecem ser a referência e não a minha circunstância por muito respeitadora que ela possa parecer. Vivemos, muito mais do que julgamos, na conjugação das frases: primeiro eu, depois eu e sempre eu; ou ainda: o que é meu é meu, o que é dos outros é nosso (meu). Repare-se no clima de egolatria em que vivemos, talvez sem nos darmos conta. Já será registado como algum avanço na moderação se a minha ‘bolha’ contiver outros com quem não tenho afinidade de cor (clubística ou partidária), de opinião, de tertúlia ou mesmo de religião...

4. A melhor forma de combater esta sociedade dos favores, é colocar as pessoas – que ainda aceitem expor a sua vida – mais pelo mérito do que pela ideologia. Já começam a ser tão poucos os aproveitáveis, que será preciso despir a camisola colorida para que saibamos ainda dar futuro a este país, afundado por incompetentes oportunistas. Dizer a verdade nua e crua também é serviço aos outros, sem desculpas...



António Sílvio Couto

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Rebuscos ao ’25 de abril’

Com a aproximação ao cinquentenário da revolução do ’25 de abril’ emergiram sinais de análise que nos devem fazer refletir: o que é a liberdade? Há donos e senhores da liberdade? O que é a democracia? Quem pode ser considerado democrata? A cultura tem de ser só de esquerda? Quem não perfila os valores marxistas-leninistas-trotskistas tem direito a ter opinião? Onde começa e como acaba a definição de respeito pela vontade popular? O conceito de ditadura será unívoco ou tem abrangência plural? Deve-se cultivar a meritocracia ou temos de suportar quem é apresentado à votação? O que teve maior significado – social, cultural e económico – a ‘revolução de abril? (de 1974) ou a adesão à União Europeia (em 1986)?

1. Liberdade – entre a cantarolice e o exercício deste salutar direito e dever, respeitando e sendo respeitado – muitos clamam ‘liberdade’ mas só conhecem os trâmites da sua, por vezes, nem sempre respeitadora das diferenças (opiniões, posições e pontos de vista) dos outros. Certos tiques sobre a ‘liberdade’ não passam de arremedos de ditaduras. Repare-se nas lutas em favor da liberdade nalgumas latitudes, que se convertem em promoção da intolerância noutros espaços. Um facto incontornável é o prolongar do exercício autárquico, sobretudo ao sul do Tejo, nalgumas situações quase prefazendo os mesmos anos da ditadura derrubada no ’25 de abril’… Certas povoações viveram cerca de um século em regime ditatorial, antes no ‘estado novo’ (48 anos) e depois (outros tantos) sob a tutela de forças opostas àquele. Liberdade é algo mais alto e profundo do que slogans na ‘descida da avenida’ em Lisboa…

2. Da democracia conhecemos os resultados – em cinquenta anos tivemos seis governos provisórios e vinte e quatro governos constitucionais… com sete presidentes da república – que, por serem tão lestos no poder, quase confundem governar com o estar no poder ao serviço dos seus. Há quem duvide em que ‘república’ estamos, se na terceira ou na quarta, isto é, tendo em conta as tendências ideológicas mais ou menos reinantes e imperiosas. Efetivamente o conceito de ‘democrata’ flutua ao sabor das maiorias no parlamento ou na sociedade. A (dita) polaridade entre direita e esquerda serve como que a um jogo de luzes-e-de-sombras nem sempre claras e tão pouco clarificadas. Cinco décadas decorridas temos um longo caminho a percorrer, sabe-se lá com que resultado ou futuro…

3. De entre os diversos critérios e valores difundidos pela psicologia derivada do ’25 de abril’, a ‘cultura’ serve para o que a cada um interessa, deixando quase em manifesto que muitos são ignorantes com verniz cultural a gosto. Sem grande esforço se percebe que a ‘cultura’ tem de ter as marcas da ideologia de uma esquerda mais ou menos anti-cristã: vivem os criadores culturais sob o chapéu do estado, clamando por subsídios e às custas do que cai da mesa do poder, mesmo autárquico… Pouco ou nada que tenha marca dos valores cristãos tem acesso à classificação de ‘cultural’, embora muitas das produções possam ser de qualidade, mas fora da caixa da normalidade marxista reinante… O exemplo mais recente é a publicação do livro: ‘Identidade e família’, como o retrato bem claro de que nós, os cristãos, temos de respeitar as opiniões dos outros, mas o inverso não se coloca!

4. No conjunto destas cinco décadas de ‘democracia’ fomos chamados, ao nível nacional, a votar muitas e diversas vezes: em dezassete momentos nas legislativas; dez para as presidenciais; treze para as autárquicas; oito para as europeias e ainda três referendos (dois sobre o aborto e um sobre a regionalização), estes não vinculativos porque com participação inferior a cinquenta por cento do recenseados… Embora a abstenção tenha sido o ‘setor’ mais representativo, em muitos destes atos eleitorais criou-se a mentalidade de que votar ou não votar tinha o mesmo significado. Por vezes fomos assistindo a leituras enviesadas dos resultados, com partidos a ganharem sempre, embora derrotados e, noutros casos, a criar soluções pouco respeitadoras da vontade popular expressa.

5. Cinquenta anos cumpridos sobre o ‘25 de abril’, talvez este não fosse possível nas condições atuais!



António Sílvio Couto

quinta-feira, 11 de abril de 2024

’25 de abril’: mitos, recordações e desafios

 

Tinha quinze anos quando aconteceu a ‘revolução do 25 de abril’, que fez cair – de podre e sem estrondo – o regime do designado ‘estado novo’. Apesar de ser adolescente e de estar em regime de internato fomos informados pelos superiores, de forma sucinta, dos acontecimentos na capital... Da experiência de ter vivido mais de metade dos cinquenta anos da (dita) democracia na região da capital, deixarei algumas leituras e incidências, agora que vou deixar esse espaço de macrocefalia (a diversos níveis) do nosso país...


1. Qual o balanço dos três ‘des’ (democratizar, descolonizar e desenvolver) enunciados pelos mentores do ‘movimento das forças armadas’?

Dos três ‘D’ vejamos as propostas – fui consultar às informações ao tempo veiculadas – e questionemos as consequências... cinquenta anos decorridos:

- Democratizar: a ‘revolução dos cravos’ trouxe a democracia a Portugal, pondo fim a décadas de ditadura;

- Descolonizar: o processo de descolonização permitiu a independência de várias colónias portuguesas em África e na Ásia;

- Desenvolver: O desenvolvimento do país foi uma meta importante, visando melhorar a qualidade de vida, a educação, a saúde e a infraestrutura (habitação).

Reparemos que, algumas destas ideias, estiveram ainda em confronto nas eleições mais recentes: pouco mudou, muito desiludiu e, de tantas formas, olhamos para o que quase nada foi realizado…

2. O cançonetismo alfabetizou?

Uma das facetas mais significativas e quase lúdicas dos primeiros tempos após a ‘revolução de abril’ foi a proliferação de canções – para uns de mensagem, para outros de contestação e para boa parte de mentalização. Com efeito, muitas das letras e das músicas conseguiam deixar no ouvido algo que ainda hoje se pode recordar. Embora a mais celebrizada seja a da ‘Grândola, vila morena’, outras ressurgirão por estes dias nas idas ao baú das memórias… Alguns dos intérpretes já desapareceram, mas as ideias quase subjazem em bastantes dos episódios a relembrar. Pena é que uns certos se tentem apropriar de algumas das canções como se fossem património da sua ideologia ou pretendam reivindicar aquilo que faz parte quase da história destes cinquenta anos de ensaio para a democracia.

3. Os mais novos ainda creem nos ideais abril?

Dizem certas sondagens – divulgadas por ocasião das últimas eleições – que os mais novos se sentem algo alheados dos princípios do ’25 de abril’ e como que se sentem escusados de fazerem parte daquilo que não pediram ou que lhes foi dado sem para isso serem-tidos-nem-achados. Não estaremos a incorrer no mesmo erro quanto à difusão/exaltação da implantação da república em 1910? Uns tantos saudosistas cultivam essas razões e os outros deixam-nos fazer uma certa figura quase ridícula de exaltação de algo distante. Se repararmos a maioria dos dirigentes dos partidos – valha-nos a referência aos que têm assento parlamentar – nasceu depois da ‘revolução de abril’. Não fosse a ‘catequização’ ideológica e ruiria a celebração e as suas simbologias, como o do cravo ou a das velhas chaimites… Será que o país evoluiu ou fossilizou? Houve capacidade de envolver todos ou preferiram fechar-se nas suas bolhas ideológicas?

4. Portugal, que futuro?

Nas vésperas do desencadear histórico da mudança, em 1974, saiu um livro intitulado – ‘Portugal e o futuro’ de um estratega da cúpula da revolta. Hoje podemos e devemos colocar a pergunta de outra forma: Portugal terá futuro, se continuarmos a extremar posições e a preferir mais o que divida do que aquilo que nos une? A quem interessa a visão maniqueísta – nalgumas situações quase maquiavélica – entre uns que são bons porque pensam como eu e outros são maus porque não alinham nas minhas ideias? Temos de atalhar esta visão de portugueses de primeira e outros de categoria inferior ou, então, para que valeu o ’25 de abril’?



António Sílvio Couto

terça-feira, 9 de abril de 2024

Nada é irreversível e indiscutível

 


O livro ‘Identidade e família – entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade’, é uma obra coordenada pelos quatro fundadores do ‘Movimento acção ética’ – António Bagão Félix, Pedro Afonso, Paulo Otero e Victor Gil.

Este livro, editado pela «Oficina do Livro», reúne vinte e dois textos de vários autores, tais como (pela ordem alfabética que aparece na capa): Fernando Ventura, Gonçalo Portacarrero de Almada, Guilherme d’Oliveira Martins, Isabel Almeida e Brito, Isabel Galriça Neto, Jaime Nogueira Pinto, João César das Neves, João Duarte Bleck, José Carlos Seabra Pereira, José Ribeiro e Castro, Manuel Clemente, Manuel Monteiro, Manuela Ramalho Eanes, Margarida Gordo, Nuno Brás da Silva Martins, Paulo Otero, Pedro Afonso, Pedro Vaz Patto, Pureza Mello, Raquel Brízida Castro, Ruiz Diniz e Vasco Pinto de Magalhães.

Na sinopse de apresentação ao público diz-se que são destacados nesta obra:

- a importância da família, como um pilar central da vida em sociedade, considerando-a “natural, universal e intemporal”. Mesmo diante das mudanças constantes na sociedade, os valores associados à família permanecem relevantes;

- a cultura de morte, referindo-se a adversários da família que, de maneira subtil ou explícita, contribuem para sua destruição. Essa cultura inclui relativismo ético, indiferença, positivismo hedonista, egoísmo geracional e outros fatores que ameaçam a instituição familiar;

- a ideologia de género, considerando-a impositora de um novo modelo de pensamento único. Essa ideologia compromete o desenvolvimento humano fundado em valores, liberdade e autonomia.

= Reações (quase) histéricas de certos setores

Algo de preocupante percorreu a noite do passado oito de abril ao trazer para a discusão – nos vários canais televisivos – este livro: certas figuras e forças sairam a terreno contestando não só o livro, mas alguns dos posicionamentos apresentados. Para alguns/algumas mais fervorosos na ideologia foi como que um colocar em causa as suas certezas inamovíveis de que as suas ideias eram (são) tão dogmáticas e não podem ser discutidas. A sacralidade da evolução de certos conceitos faria corar de vergonha os inquisidores mais aferrados de tempos idos. A agressividade – que irá, naturalmente, crescer de tom e de provocação nos próximos dias – quase resvalava para a ofensa, mesmo que os opositores se mantivessem serenos e impávidos perante os adjetivos usados.

Este pequeno episódio deixou escapar uma nota que deveria nortear a nossa capacidade cristã de saber resistir e de aprender a esperar o tempo oportuno. Com efeito, a pretensa maioria sociológica que fez aprovar certas leis – sobre o aborto, a ideologia de género ou mesmo a eutanásia – pode mudar e poderão ser modificadas as ‘regras’ impostas e suportadas.

Nada é irreversível nem indiscutível, pois tal intransigência em questionar vários problemas poderá deixar a descoberto que a certeza daquilo que querem obrigar a seguir pode, com relativa facilidade, deixar de ser tão certo e seguro como desejavam fazer acreditar.

= Atenda-se a quem escreveu

De facto, no leque de co-autores do livro há personalidades do quadrante cristão-católico, desde o mundo eclesiástico (dois bispos e três padres) até ao espaço político, da área da saúde, passando pelo meio universitário, tanto de ontem como de hoje. Na linha da intervenção dos cristãos na política – ativa, social e solidária – temos de aprender a escutar as várias posições, discuti-las e colher a verdade de todos e de cada um. Só quem tem medo de sair derrotado é que se intrincheira nas suas ‘certezas’ e se esconde para que possam viver na penumbra do engano, da manipulação ou mesmo da ditadura do pensamento único.

Cinquenta anos depois da ‘revolução de abril’ ainda há que viva à sombra dos tiques que então acusavam, mas que hoje cultivam quase inconscientemente...

Desde quando é crime dizer o que se pensa e pensar o que se diz?



António Sílvio Couto

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Recuperação do logotipo

 

Segundo alguns ‘inteletuais’ – comentadeiros/as a questão da recuperação do logotipo do XXIV constitucional parece uma não-questão, tentando varrer para debaixo do tapete a presunção de inocência. De facto, incluir na simbologia do governo da república as cores nacionais (vermelho e verde) com a esfera armilar em destaque para tais mentores não passa de algo de somenos, sobretudo se tivermos em conta a dose estilizada da governação anterior onde as cores – vermelho, verde e amarelo – surgiam em paralelo e sem qualquer alusão à esfera armilar com as quinas em evidência.

1. Tudo isto seria uma espécie de chinesice de mau gusto se não estivéssemos na comemoração dos quinhentos anos da morte de Luís Vaz de Camões, esquecido – sabe-se lá com que intuitos – pelo anterior (dito) ministro da cultura. As garras ideológicas não se contiveram nas decisões dos governantes antecessores e isso poderá contrastar com quem os substitui. Também o esquecimento quanto a Camões deixa muito à mostra quem cuida dos nossos maiores na literatura, embora proteja e subsidie quem propaga as suas ideias, mesmo que de forma camuflada, subsidiada e acintosa…

2. Quem conhece a distribuição das cores da bandeira nacional portuguesa sabe que é composta, principalmente, pelas cores verde e vermelha. A cor vermelha, predominante na bandeira de Portugal, representa a conquista, o sangue e a coragem daqueles que morreram pela pátria. Já o verde representa a esperança e a força do povo português e também a natureza do país.

A partição do campo é assimétrica, ocupando o verde dois quintos do mesmo e o vermelho os restantes três quintos. Sobre o centro da linha divisória entre as duas cores, estão colocadas as armas nacionais, constituídas por uma esfera armilar amarela sobre a qual assenta o escudo de Portugal. A bandeira é retangular, com uma proporção de dois terços entre a medida da largura e do comprimento.

3. Num tempo que se espera de grande competição este pequeno pormenor faz-nos, desde já, adivinhar que há forças que ainda não perceberam a mudança e que nem todos se deixam guiar pelos interesses dos que continuam a laborar numa espécie de supremacia de alguma esquerda, incapaz de saber perder e de refletir sobre as causas do sua menor aceitação sócio-política. Formações partidárias reduzidas a menos de meia dúzia de deputados – cada uma e cerca de uma dezena no conjunto – ainda se julgam no fulgor da era revolucionária de antanho. Não haverá por aí uma dislexia cultural à custa dos direitos adquiridos sem mérito? Por que será que os mais novos se estão borrifando para as ‘conquistas de abril’, quando ainda não tinham nascido nem foram tidos nem achados, depois? A quem interessa recordar um certo saudosismo da ditadura de antes do ’25 A’, quando criaram em muitas autarquias a sua ditadura e poder estabelecido?

4. Diante de certos sinais da nossa sociedade – nalguns casos quase decrépita – é preciso não embarcar na leitura dos novos fazedores de opinião, pois, muitos deles e delas servem mais a promoção do ‘dejá vu’ do que a aferição aos acontecimentos de vida e com impacto no futuro. Vendedores de ilusões requentadas, não obrigado!



António Sílvio Couto

terça-feira, 2 de abril de 2024

Na Páscoa acende-se a esperança?

 


Sorvendo ainda o néctar da vivência pascal, como que somos desafiados a perguntar se a Páscoa – mais espiritual do que culturalmente – acende (ou pode acender) a esperança em cada pessoa e nas instituições humanas do nosso tempo? Com efeito, os dias foram e são mais turbulentos do que as perspetivas atmosféricas, as questões sobrepujam as respostas e as inquietações ultrapassam as certezas.

1. Por estes dias ficamos a conhecer as escolhas para o governo do nosso país: Os vários comentadeiros tentaram escarafunchar os meandros na suspeita, sobretudo porque o primeiro-ministro não fala desde que foram dados os resultados das eleições, a 10 de março. Fazendo jus à opinião contundente logo viram que foi preciso pescar no aquário para constituir o elenco governativo. Nem o curriculum inteletual e científico de muitos dos designados/as foi suficiente para calar as vozes do contra. Lançada a rede aos eurodeputados houve quem visse nesse gesto uma espécie de vendilhagem aos interesses europeus, como se fosse ainda no ‘terreiro do paço’ que as coisas se decidem ou ganham corpo económico... Querem fundos e regalias, mas esquecessem onde eles se negoceiam e conquistam...

2. Coisa grave a complexa é advertência de que estamos em pré-guerra, enquanto vamos cantando e rindo porque as coisas acontecem no norte da Europa. Eis que é lançada para a fogueira da discussão a proposta de dois responsáveis de áreas militares de que é preciso reintroduzir o serviço militar obrigatório... Agora que as defesas foram abaixadas, surge esta solução para defender a Europa no seu conjunto e em cada país/nação. Por momentos como que vimos ruir em catadupa o sucesso e a aparente pacatez desta paz podre, entretida com manifestações de setores ‘trans’. como se isso fosse a questão mais irreversível da humanidade.... De referir que dezasseis dos páises da União Europeia têm serviço militar obrigatório

3. Pasme-se: em dez anos cresceu, de forma aterradora, a criminalidade... em Portugal. Os dados dizem: no ano passado houve cerca de 400 mil crimes. Aponta-se para um índice de mil crimes por dia. Sobretudo na região de Lisboa, as notícias de crimes são quase assustadoras: tiros e facadas, assaltos e violência, emboscadas e apedrejamentos... são alguns dos itens desta faceta de perigo na nossa sociedade. Porque razão se têm de privilegiar notícias de tanta criminalidade nos vários canais televisivos? Que faz esmiuçar esta onda de risco no comportamento social dos nossos dias? Até onde irá este crescimento de mau ambiente entre as pessoas?

4. Um mundo está perigoso, mas quem faz este perigo são as pessoas e o seu comportamento. Talvez se tenha deixado de falar e – sobretudo – de educar para os valores, onde o respeito, a confiança e a atenção aos outros se sobreponham aos interesses individuais, egoístas e quase maquiavélicos, que sejam vencidos pela paz, a vida e a esperança. Nas palavras do Papa Francisco, estes dias, ao falar sobre a ressurreição de Jesus como “a vitória da vida sobre a morte” e “da esperança sobre o desânimo”.

5. De facto, num mundo que vive – como dizia o Papa Bento XVI – como se Deus não existe, corremos o risco de colapsar nesta civilização algo à deriva e sem critérios que não sejam os das tendências da sociedade de consumo, onde o material ganha sobre a dimensão espiritual mínima. Queira Deus que deixemos acender em nós mesmos a luz da esperança e a transmitamos aos outros com coragem e força de testemunho.



António Sílvio Couto

quarta-feira, 27 de março de 2024

Ao ritmo do silêncio de Jesus...na paixão

 

A ‘Semana Santa’ é o tempo da experiência, em Igreja, do grande silêncio de Deus em nós e através de nós: calam-se as palavras e ficam os gestos; deixa-se de falar e passamos a escutar; criam-se condições de entrarmos em contemplação; a natureza ajuda - o frio, a chuva e o vento - dão-nos espaço e oportunidade de sentirmos com Jesus, de acertarmos por Jesus e de deixarmo-nos ritmar pela cadência espiritual em Jesus.

O tempo da quaresma foi (ou é) de longas e demoradas leituras e pregações: passagens de entronização às verdades essenciais para renovarmos a graça do batismo - e onde se dá o caso com a celebração do batismo de adultos, na vigília pascal - no hoje da nossa caminhada.
De uma forma quase paradoxal vemos que Jesus perde a voz, quando entra no processo da sua paixão-morte: cala-se diante de Anás e Caifás, silencia-se perante Pilatos, deixa de falar quanto mais O acusam, não se queixa nem regateia qualquer direito. Isso gera para além de admiração algum constrangimento nos seus interlocutores.
Muitos dizem que o silêncio fala mais alto do que as palavras, mas, no caso de Jesus, contribuiu para que o seu processo fosse desencadeado até ao desfecho final, no alto da Cruz...onde o silêncio do Pai é altissonante e quase nos faz cair de rosto por terra, à semelhança de Moisés no monte da revelação

1. Por razões diversas sinto que, neste tempo de proximidade à Páscoa, devo calar-me, ficando apenas na riqueza dos gestos e nas incisivas palavras da liturgia. Para alguns poderá parecer uma desculpa, para outros uma defesa e outros tantos como tendo a possibilidade de ser algo que não deixe que aquilo que pudesse ser dito tenha menos boa (ou até má) interpretação.

2. Nesta feira da verborreia (dita, escrita, nas dtas redes sociais ou nas conversas) em que, de tantas formas andamos entretidos, Jesus ensina-nos a calar/silenciar, não por amuo ou como estratégia de medo, mas como atitude de vida, onde se pode e se deve saborear o que não passa, decantando o que marca com sinete de profundidade.

3. O Jesus do silêncio pode alimentar quem dele colher as lições mais básicas: nunca por nunca devemos usar as palavras para entreter o que devíamos dizer com o mínimo de verbalização, interiorizando aquilo que marca com força e que alimenta nas horas de provação.

4. Eis um excerto do catecismo da Igreja católica, citando um belíssimo texto de uma homilia de sábado santo, rezada na liturgia da horas:
«Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o rei dorme. A terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne e despertou os que dormiam há séculos [...]. Vai à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Quer visitar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte. Vai libertar Adão do cativeiro da morte. Ele que é ao mesmo tempo seu Deus e seu filho [...] "Eu sou o teu Deus, que por ti me fiz teu filho [...] Desperta tu que dormes, porque Eu não te criei para que permaneças cativo no reino dos mortos: levanta-te de entre os mortos; Eu sou a vida dos mortos"» (n.º 635).

5. Olhando a Cruz podemos e devemos, com Jesus e por Jesus, ficar em silêncio, esse que preenche a alma, alimenta o espírito e equilibra o corpo. Queira Deus dar-nos a graça do silêncio, ao sabor do seu Espírito, hoje como ontem. Das palavras vazias e ocas, livrai-nos, Senhor!



António Sílvio Couto

domingo, 24 de março de 2024

Em ritmo de Semana Santa, hoje


 Em ordem a esclarecermos alguns aspetos relativos a esta semana que antecede a Páscoa.

Vamos abordar a questão em forma de pergunta.
- O que é Semana Santa?
A Semana Santa visa recordar a Paixão de Cristo, desde sua entrada messiânica em Jerusalém. Pela manhã da Quinta-feira da Semana Santa, o Bispo, concelebrando a Missa com os seus presbíteros, benze os santos óleos e consagra o crisma.
- De que consta o tríduo pascal?
Como o Cristo realizou a obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus principalmente pelo seu mistério pascal, quando morrendo destruiu a nossa morte e ressuscitando renovou a vida, o sagrado Tríduo pascal da Paixão e Ressurreição do Senhor resplandece como o ápice de todo ano litúrgico. Portanto, a solenidade da Páscoa goza no ano litúrgico a mesma culminância do domingo em relação à semana.
O Tríduo pascal da Paixão e Ressurreição do Senhor começa com a Missa vespertina na Ceia do Senhor, possui o seu centro na Vigília Pascal e encerra-se com as Vésperas do domingo da Ressurreição.
Na Sexta-feira da Paixão do Senhor, observe-se por toda a parte o sagrado jejum pascal. E, onde for oportuno, também no Sábado Santo até à Vigília Pascal.
A Vigília pascal, na noite santa em que o Senhor ressuscitou, seja considerada a "mãe de todas as santas vigílias", na qual a Igreja espera, velando, a Ressurreição de Cristo, e a celebra nos sacramentos. Portanto, toda a celebração desta sagrada Vigília deve realizar-se à noite, de tal modo que comece depois do anoitecer ou termine antes da aurora do domingo.
- De que consta a ‘quinta-feira santa’?
Digamos que a ‘quinta-feira santa’ tem duas partes diferentes e complementares - na manhã dá-se a ‘missa crismal’ e, ao final do dia, temos a celebração comemorativa da instituição da eucaristia, onde o ritual do lava-pés é mais do que gesto, mas contém um desafio, hoje como ontem...
- Quais as principais marcas da ‘sexta-feira santa’?
A solene vivência da ‘adoração da Cruz’, antecedida da longa leitura da paixão segundo São João, fazendo-nos entrar no mistério da paixão de Jesus, ontem como hoje...
Embora em certos lugares ainda se faça, na tarde/noite da ‘6.ª feira santa’ a via-sacra, como por exemplo em Roma, deveríamos dar tempo à meditação de todo o processo de Jesus, ainda mais do que andarmos a fazer o (pretenso) ‘enterro do Senhor, num ritual onde muitos dos que participam nem conheciam o ‘o morto’...
- Que dinâmica vivemos no ‘sábado santo’?
Antes de mais é o tempo do grande silêncio, que será desperto na vigília pascal, celebrada ao cair da noite. Encontramos quatro ‘liturgias’ nesta celebração:
- liturgia da luz
-liturgia da Palavra
- liturgia batismal
- liturgia eucarística.
A tonalidade da Ressurreição perpassa todo o ambiente e não só se fica pelo usufruir da gastronomia tradicional desta época.



António Sílvio Couto

terça-feira, 19 de março de 2024

S. José – dia do pai: desapertar o coração

 


«Olhando para o mundo hodierno, verificamos que é já um lugar comum reconhecer o enfraquecimento das relações dentro e fora da família. Estamos submetidos ao império da tecnologia, da informática, da inteligência artificial. Perdemos o sentido de viver em comum e contentamo-nos com relações protocolares e vazias de significado. Tornamo-nos frios e distantes, mesmo que a viver lado a lado ou comendo à mesma mesa. Parecemos ilhas ou bolhas fechadas, no mundo de um egoísmo despótico e desprezador onde o “essencial é invisível aos olhos”. Faltam-nos presenças, palavras, carinho, ternura, compaixão, em suma, gestos que mostrem sem-vergonha nem complexos que nos queremos verdadeiramente bem pois nos amamos apaixonadamente e sem receio de o mostrar e manifestar».

Este excerto da mensagem para o ‘Dia do Pai’, da Comissão Episcopal do Laicado e Família, sob o título: despertar o coração.

1. Por ocasião da celebração litúrgica de São José – mesmo ou até em tempo da quaresma – somos chamados a parar sobre esta realidade humana e espiritual do ‘ser pai’. Embora se pretenda dizer, em certos meios e para algumas correntes, que o pai está em crise, ele continua a ser uma referência de todos e para todos, sobretudo dos que se dizem (e procuram ser) cristãos.

2. Perante uma certa orfandade mais ou menos psicológica, substituída por terminologias de duvidosa qualidade, como é a de ‘ideologia de género’, usando ‘progenitor a’ ou progenitor b’, faltará um razoável equilíbrio nos descendentes, se lhe for capturada a presença do pai ou agravada pelo menos boa função de algum em concreto. Certas disfunções – na linguagem mais clássica – de pai não podem ser apresentadas como modelo de nenhum projeto educativo, que tenha por base a inter-comunhão de gerações e o diálogo necessário de todos com todos.

3. Por muito qualificada que seja a educação dada só pela mãe, a ausência do pai trará consequências que emergirão em certas fases do desenvolvimento dos filhos. As famílias monoparentais são um remendo, nunca uma solução. Que dizer dos ‘órfãos de pai vivo’, mas que não prestam atenção aos filhos?

4. Não será inocente a propagação de certas notícias que aviltam a figura e a função de pai: a dita violência doméstica pode criar maior insegurança nos filhos e deixá-los à deriva, sobretudo em idades que precisam de referências e de presença. Como se diz na mensagem da comissão episcopal: ”Sendo “pai”, o agir com o coração pode exigir maior presença silenciosa e despretensiosa que estimula, sem impor relacionamentos. Tudo muito mais sereno e calmo, mais positivo e propositado, feito de sinais que nada pretendem nem esperam”.

5. Ninguém duvida que muitos pais precisam de desapertar o seu coração para amarem com ternura e simplicidade os seus filhos e filhas. Precisamos de pais que se emocionam e que choram com os filhos e pelos filhos, seja qual for a idade ou as circunstâncias. Se não chorarem com eles poderão vir a chorar por eles. Temos São José por modelo e ajuda...



António Sílvio Couto

sexta-feira, 15 de março de 2024

Adoramos pobrezinhos, é pena é o cheiro

 




Uma cantora bastante badalada na nossa praça resumiu a sua avaliação dos resultados das eleições do passado dia 10 de março e lançando um slogan para quem venha a governar: ‘adoramos pobrezinhos, é pena é o cheiro’!

Algo ainda mais encriptado foi a ligação que ela fez àqueles, da sua família, que se sacrificaram e fizeram a revolução de abril, deixando escapar a observação: ‘ receio que a coragem se tenha vindo a gastar com o tempo e tenhamos dado a liberdade como garantida’.

1. É notório que os resultados das últimas eleições tenham baralhado muitas mentes, sobretudo aquelas que estavam formatadas para ler e interpretar tudo em quadro de esquerda ou a roçar a grelha dialético-marxista mais primária. Para muitos sempre assim foi e para eles sempre assim seria. Boa parte da comunicação social tem vivido com esse esquema subjacente e tirá-lo da execução ‘literária’ confunde e quase aterroriza. São todos muitos democratas, mas seguindo a sua cartilha e devocionário de preferência… há anos!

2. Efetivamente fizeram de nós – como povo e, na sua linguagem, como indivíduos – uma espécie bem comportada, se guiada pelos clichés de ‘direita’ e de ‘esquerda’, como se isso resolvesse todos os problemas das pessoas. Estas, por vezes, funcionam como números e, ocasionalmente, têm rosto se se lhes pretendem impingir algum produto pré-fabricado na empresa do Estado.

3. De forma séria e sensata precisamos de voltar a questionar os interesses que motivam tantos dos agentes políticos – seja qual for a instância – na medida em que se notou, na noite eleitoral, que muitos viram esvair-se o seu lugar de emprego ou a perderem as benesses adquiridas em tempos de maior fulgor da sua ideologia. De facto, foi revelador do que estava em causa nas eleições de 10 de março, as imagens e as palavras e ordem dos dois maiores partidos em concurso: uns clamavam por ‘Portugal’ e outros suplicavam pelo seu ‘partido’… Os resultados mostraram as pretensões!

4. Estamos e estaremos por muitos meses, até que chegue o tempo de voltar a haver eleições, num impasse. Parece que ninguém tem razão e todos se acham senhores de se apropriarem desses que dão votos e fluam ao sabor dos acenos malfazejos: os tais ‘pobrezinhos’, mesmo que cheirem mal, sejam incómodos com as suas exigências e reais direitos ou não exibam o perfume que nos consola e inebria. Confesso que me cria admiração e ao mesmo tempo repulsa ver que muitos dos agentes políticos sejam tão hábeis disfarçados para se manterem no poder…

5. Mais uma vez me vêm à lembrança os números da pobreza, o valor do salário mínimo, a demonstração do vencimento médio e o (pretenso) nível de vida dos portugueses. Adicione-se a isso a vaga de migrações – os que chegam e os que partem – com a particularidade de já haver muitos portugueses que não fazem certos serviços, deixando-os para os que chegam e são mais mal pagos.

[Nota de arrepio]

Estava a escrever este texto quando tive de ir a Lisboa esperar uma pessoa que vinha de Coimbra. Segundo o telefonema, o senhor chegaria à ‘estação do Oriente’… Preveni o tempo suficiente de estar no local de chegada. Porque tinha espaço resolvi dar uma volta pelo ‘mundo’ em redor… Desci umas escadas que davam acesso ao metro e sob a estação do caminho-de-ferro. Surpresa: de repente dei comigo diante de mais de duzentos metros de pessoas, de um de outro lado, da longa galeria numa espécie de camas, onde se viam pessoas enroladas, era por volta do meio-dia, outros zicando o telemóvel e tantas ‘camas’ à espera de quem venha ocupá-las na hora do sono… Todos passavam impávidos e serenos como se aquelas pessoas – muitas delas migrantes – acolhendo-se à sombra do anonimato e longe dos holofotes dos interessados nos pobres.



António Sílvio Couto

terça-feira, 12 de março de 2024

CHEGA - Como Havemos de Entender Grande Aluvião?

 

O dia 10 de março vai passar a constar nas datas significativas da política portuguesa, pois, no ano de 2024, deu-se um forte aluvião sócio-político, quando um partido conseguiu mais de um milhão de votos de forma transversal por todo o país. O que explica que um partido, aceite pelo Tribunal Constitucional em 2019, ano em que elegeu um deputado com 1,29% (67.826 votos); nas legislativas de 2022 conseguiu 12 deputados, com 7,18% (399.510 votos); em 2024, 1.108.764 de votos (18,06%), conseguindo eleger 48 deputados, em todos os círculos eleitorais, à exceção de Bragança?

Este aluvião político chama-se ‘Chega’ e reclama-se de direita, enquanto outros o designam de extrema-direita radical. Embora possa ser visto como um partido unipessoal, pois só o chefe-presidente-fundador brilha e é atacado sem apelo nem desagravo pelos outros concorrentes partidários, a maioria da comunicação social e a quas totalidade dos comentadores, que o diabolizam, não se sabe por medo se por respeito ou, sei lá, por desdém mal digerido. De referir que André Ventura candidatou-se às eleições presidenciais de 2021, tendo conseguido 11,9% (496.773 de votos).

1. Estamos perante algo de alcance social, político e mesmo cultural que nos deve fazer refletir a todos, pois, em Portugal, não podemos reduzir tudo a chavões mais ou menos ideológicos eivados e promovidos por forças que só entendem a sua linguagem e acarinham, preferencialmente, os que são da sua simpatia.
Por uma questão de princípio declaro que não me revejo na leitura, nas propsoats e tão pouco nos métodos deste partido recém-elevado aos píncaros do sucesso...

2. Há temas e questões que foram trazidos à vida pública, por esta formação partidária, que merecem não ser neglienciados ou estaremos a considerar desrespeitosamente quem nele votou, seja como forma de protesto, como afirmação das suas posições ou até mesmo dando a entender que todos contam de forma igual e não há cidadãos mais importantes do que outros só porque pensam de forma diferente de certas maiorias de conveniência...

3. Estamos a iniciar uma nova etapa da nossa democracia, cinquenta anos depois: os eflúvios marxistas que pontificaram durante bastante tempo nota-se que umas tantas esmorecem e, nalguns casos, quase se extinguem. Apesar de serem forças barulhentas - na rua e na comunicação social - precisam de aprender a interpretar os momentos em que já não representam a maioria sociológica.

4. Como sempre é necessário respeitar os outros, mesmo que sejam derrotados. Com efeito, é na vitória que se conhece o estofo moral dos vencedores, mesmo no trato para com os vencidos. Cada vez mais os ciclos políticos são de curta duração e torna-se essencial aprender nas derrotas como fazer destas algo que possa propulsar para outras vitórias. Nitidamente a partir de 10 de março os métodos, os conceitos, as questões e as propostas de todos quantos se pretendam apresentar a serem escurtinados em eleições têm de ser revistos. Ninguém pode dar lições a ninguém, antes todos devem aprender com tantos erros e potenciar algumas das possibilidades atuais e futuras.

6. Mesmo que forma não pretensiosa citamos as Sagradas Escrituras: «Há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu: tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para plantar e tempo para colher; tempo para matar e tempo para curar; tempo para destruir e tempo para construir de novo; tempo para chorar e tempo para rir; tempo para ficar triste e tempo para dançar de alegria; tempo para espalhar pedras e tempo para ajuntar pedras; tempo para abraçar e tempo para deixar de abraçar; tempo para procurar e tempo para perder; tempo para guardar e tempo para jogar fora; tempo para rasgar e tempo para costurar; tempo para calar e tempo para falar; tempo para amar e tempo para odiar; tempo para lutar e tempo para viver em paz» (Ecl 3,1-8).



António Sílvio Couto

sábado, 9 de março de 2024

Eleições em tempo da Quaresma

 

A vivência da Quaresma deste ano está marcada pelo chamamento a votar nas eleições legislativas antecipadas. Desde o princípio de novembro - com a demissão do chefe de governo - que temos estado em ambiente de campanha eleitoral, mas nos últimos dias vivemo-lo com maior intensidade.

Que relação, de fundo, podemos estabelecer entre estas duas realidades, por agora coexistentes? Ambas nos chamam a refletir com maior atenção não quanto ao presente, mas sobretudo quanto ao futuro, Se a quaresma contém o apelo à conversão, as eleições comportam desafios e tomadas de decisão de todos e para cada um.
Olhemos, mesmo que de forma breve, algumas das incidências em vivermos a quaresma com atenção e as eleições com resolução, tendo por referência a Nota pastoral do conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesas, de 20 de fevereiro último, intitulada: ‘Eleições Legislativas 2024: Restituir a esperança aos cidadãos’.

a) Assuntos mais prementes
«Os últimos meses foram abundantes em crises que adensaram a desconfiança dos portugueses em relação às instituições, em particular na esfera política e judicial. Às difíceis condições de vida de tantos portugueses, em especial dos jovens, esta crise de confiança rouba a esperança a tantos que não conseguem encontrar trabalho e, quando o encontram, o seu rendimento é insuficiente para terem uma vida digna: ter habitação, acesso à educação ou dinheiro para pagar as despesas. Vivemos um momento difícil, mas desafiador. Diante das dificuldades, somos convocados pelo momento que o país vive a refletir sobre o que queremos e podemos fazer pelo nosso futuro» (n.º 2).
Tivemos tempo para refletir sobre estes assuntos ou andamos distraídos com ‘acusações’ pouco edificantes de uns contra os outros? Não teremos sido manipulados com certos temas, deixando de fora outros mais essenciais?

b) Responsabilidades
«A responsabilidade é de todos, dos políticos e de quem os elege, dos que definem projetos e de quem faz escolhas, daqueles que apresentam propostas e de quem se preocupa em delas ter conhecimento para votar conscientemente. Escolher quem nos representa no Parlamento é um dever de todos e ninguém deve excluir-se deste momento privilegiado para colaborar na construção do bem comum. A abstenção não pode ter a palavra maioritária nas [próximas] eleições» (n. 5).
Quando, há mais de cem anos, Nossa Senhora se manifestou, em Fátima, disse-nos: não ofendam Deus nosso Senhor que já está muito ofendido! Já tomámos consciência do acrescento de ofensa a Deus nos nossos dias?

c) Compromissos
«Enquanto cristãos, à luz do Evangelho e da Doutrina Social da Igreja, temos a responsabilidade acrescida de participar na vida política e na edificação da comunidade. Somos chamados também a trazer à nossa oração todos os homens e mulheres que servem a política. Votar, de forma esclarecida e em consciência, é uma responsabilidade que decorre da vivência concreta da nossa fé no meio do mundo» (n.º 7).
Ser cristão - católico ainda mais - exige atenção aos outros e, sobretudo, aos mais frágeis. Que esperamos de cultivo de mais valores humanos daqueles em quem vamos dar o voto?

Queira Deus que a esperança seja revigorada nas consequências destas eleições.



António Sílvio Couto

quarta-feira, 6 de março de 2024

Apesar de tudo, voto sempre no mesmo

 

Na razoável lista de eleições a que fui chamado a votar, votei sempre no mesmo, desde as legislativas (normais ou antecipadas) até às europeias, das autárquicas até às presidenciais, sem esquecer os referendos. Claro que não vou nem devo dizer em quem, mas a minha escolha é única, mesmo quando os candidatos a sufragar não fossem os melhores. Vivi vitórias e derrotas, senti alegrias e deceções, pude sentir esperança no futuro e, noutros casos, alguma desilusão mais ou menos prolongada.

Os dias de ‘campanha eleitoral’ não passam de etapas de um certo folclore eivado de mentiras (mais ou menos subtis) e de propostas (promessas) inexequíveis.

1. Vejamos algumas questões quase intemporais – as eleições não esgotam, antes agudizam que haja modos diferentes de fazer – sobre a temática eleitoral:
- Slogans - alguns com quase cinquenta anos - como estes: Voto a arma do povo; votar - um direito, um dever; não deixei que outros escolham por si, vote; as ‘urnas’ são as verdadeiras sondagens;
- Ideias/sugestões possíveis: incrementar o voto obrigatório; penalizar (nas regalias sociais e de segurança social) quem não vota;
- Desafios para salvaguardar e revigorar a (dita) democracia: mudar o sistema eleitoral, vinculando eleitos e eleitores; ter a coragem de fazer de forma diferente o compromisso político geral e particular, mesmo através da forma de votar, como ‘voto eletrónico’ e outras formas que favoreçam a participação dos cidadãos.

2. Votar exige esclarecimento e não se pode quedar pela mera manifestação de exercer este direito quando se é chamado a fazê-lo. A cultura cívica é algo que nunca está acabada, antes tem de se acertar com novos critérios de esclarecimento e de escolha. A oscilação de tantos votantes de um para outro ato eleitoral dever-nos-ia inquietar, pois querer uma coisa agora e outra amanhã, ou divergir – nalgumas situações de forma contraditória – hoje do que pensava ontem não será abonatório de quem assim procede... mesmo que tente apresentar as ‘suas’ razões.

3. Seja qual for o resultado das eleições de 10 de março, continuaremos a ser mal servidos pelos concorrentes em disputa. De facto, a qualidade humana e cultural tem vindo a decrescer e o país caminha a olhos vistos para ser conduzido ou governado por figuras de terceira linha no conspeto nacional. Faltam-nos personagens que se dediquem ao bem comum por vocação e não por mero interesse. Escasseiam pessoas que põe ao serviço dos outros as qualidades e dons com que foram abençoados por Deus. A religião dos medíocres medra com tal fulgor que, em breve, teremos dificuldade em escolher quem seja colocado à frente das instituições…

4. Muitos dos que ainda andam na vida pública (política) enfermam de uma doença infeto-contagiosa: falam usando uma linguagem que só eles percebem, com termos arrevesados e em conceitos não-entendidos por todos. A onda de comunicação como que se fixou em pequenos clichés que é preciso saber desmontar para que chegue à população. Acima de tudo falta credibilidade nas palavras e nos atos, hoje como ontem.

5. É fundamental para o nosso futuro coletivo que, recolhidas as garras de uns contra os outros, se criem pontes com capacidade de envolver todos os cidadãos na vida da Nação. Basta de enfatizar as diferenças, pelo contrário, precisamos de aproveitar as faculdades de todos para sermos um país com futuro na Europa e no resto do mundo. Há coisas que só a vida ensina. Deixemo-nos conduzir pelas causas mais simples e mobilizadoras… o resto só serve para distrair!



6. A razão vencerá, mesmo que pareça que perdeu! Um país sinfonia cresce e avança…



António Sílvio Couto

segunda-feira, 4 de março de 2024

Manipulação dos comentadores

 

Num tempo que se pretende de esclarecimento temos estado a assistir à prossecução sistemática da aposta dos canais televisivos em discussões sobre a prestação dos entrevistados/debates... estes tinham cerca de trinta minutos, as comentarices dispunham de horas a fio, nos mais diversos canais e sob multíplices leituras. Na maior parte dos casos os comentadores/as escarafunchavam ideias e conjeturas que não passavam pelas palavras dos entrevistados, mas que eles esmiuçavam nas entrelinhas...

1. Uma nova classe ‘política’ parece emergir destes comentadores, sobretudo televisivos, pois boa parte não se exime de mostrar as suas preferências e de acentuar quem mais lhe convém defender ou promover. Alguns com mais habilidades que outros tentam disfarçar que sangue ideológico lhes corre nas veias, outros bastará escutar com atenção os seus posicionamentos contra os que menos lhes agradam para facilmente compreendermos para onde corre o rio da sua simpatia.

2. Desgraçadamente a maior parte desses debates e subsequentes comentários ocorrem nos canais não-abertos, isto é, precisamos de pagar, para além da taxa geral exigida na conta da eletricidade, para sermos esclarecidos com algum cuidado. Em geral as longas horas gastas a dissecar as respostas dos entrevistados em debate ou na intervenção de campanha usam de iniciáticos truques de comunicação: as (pretensas) opiniões dos opinadores arranjam contrários para que pareça que há diferença de perspetiva, mas isso não passa de uma habilidade dos canais de comunicação com objetivos económicos subjacentes... Veja-se o razoável tempo de publicidade que acompanha tais espaços.

3. Mais uma vez se tem pretendido criar um ambiente de dramaticidade nestas eleições, servindo os ditos comentadores/as de aríetes dessa argumentação. Com efeito, haverá vida depois destas eleições, ganhe quem vencer, governe quem ganhar ou consiga criar condições para tal, que nada de novo acontecerá que já não tenha sido visto, nem sequer a repetição - direta ou simulada - da solução de 2015. Por isso, é escusado clamar aos quatro ventos que estas eleições são de fulcral importância. Têm o seu valor, mas nada será de vida ou de morte!

4. Nota-se que os temas em difusão, parecendo que estão em discussão - saúde, educação, habitação, impostos, ordenados e reformas - deixam muito a desejar, não só pela tacanhez de visão como pela afunilação de matérias. Pior ainda quando se continua a passar razoável parte do tempo em ataques dos candidatos, na maior parte das vezes colocando as coisas mais em matérias de caráter do que na discussão das temáticas. Temos andado mais a fixar-nos no acessório do que no essencial. Ora, isso deixará resultados pouco abonatórios de todos e para todos.

5. Como noutras ocasiões vê-se o estrebuchar de algumas forças que pretendem ganhar na rua, por entre protestos e arruaças, aquilo que não tem expressão na contagem final. De certos grupos fica-nos o registo, da convicção com que se exprimem, embora nem sempre na aceitação popular. Nos painéis de comentadores televisivos por lá deambulam uns tantos que vão ganhando os seus proventos por entre os dislates que deixam sair. Pena seja que não possam ser sufragados, embora possamos tirá-los da tela com o comando em riste.

6. Urge saber pensar pela própria cabeça, sem medo nem subterfúgios oportunistas... Afinal, cada um só tem um voto para escolher quem acha que pode concretizar as suas opções.




António Sílvio Couto

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

De mão estendida – até quando?

 


Há dias um responsável de uma ‘Caritas’ diocesana referia: «somos, orgulhosamente uma instituição de mãos estendidas. Estendidas para pedir ajuda em nome dos que mais precisam; estendidas para partilhar o que somos e temos com os mais desfavorecidos das nossas comunidades; estendidas para acolher e cuidar de todos os que depositam na nossa ajuda a esperança de dias mais risonhos; estendidas para prestar contas com transparência e construir caminhos em rede e comunidade».

1. De facto, esta entidade da Igreja católica, que é a ‘Caritas’, precisa da ajuda de todos, ainda mais quando as notícias nos avisam que o risco de pobreza é cinco vezes maior entre os desempregados. Segundo um estudo recentemente publicado o desemprego, a doença e o divórcio são fatores que contribuem para a entrada numa situação de pobreza ou que impedem que se saia dessa condição. Seguindo ainda os dados desse mesmo estudo foram identificados "quatro perfis de pobreza em Portugal": os reformados (27,5%), os precários (26,6%), os desempregados (13%) e os trabalhadores (32,9%)".

2. Quando vemos os vendedores de sonhos em campanha eleitoral sentimos que alguém não vive nem conhece o país real, antes vê e/ou lhes mostram o que pode deixar-nos a triste sensação de mentira contumaz de tantos/as dos políticos profissionais… Como se pode entender que muitos políticos encham a boca com referências aos pobres, quando não fazem nada por dignificá-los, antes os exploram de forma vergonhosa.

3. Já o referimos diversas vezes: os pobres alimentam muita gente em Portugal, pois, se retirarem os pobres da conversa dos politicos, dos sindicalistas e de outros lutadores afins pouco mais ficará do que discursos vazios e, na maior parte dos casos, sem nexo. Outros, fora do circuito do faz-de-conta em que se tornou a nossa vida coletiva, vivem também à custa dos pobres, seja qual for a instância ou a etapa de dependência. Quantas instituições – até no âmbito cristão – se dizem defensoras dos pobres, mas continuam a tê-los presos pela boca. Quantos arautos da igualdade de oportunidades, mas que não promovem convenientemente aqueles/as que lhes dão visibilidade nem mesmo meios de sobrevivência em profissão.

4. Como é possível que quase cinquenta anos depois da ‘revolução de abril’ ainda se fomente, se cultive ou se difunda uma visão acentuada entre ricos e pobres, numa diatribe quase-marxista de luta de classes à semelhança das questões de meados do século passado…dos blocos beligerantes na ‘guerra fria’. Como é triste e lamentável que haja ainda pessoas que continuam a considerar os outros como subalternos e quase objetos e não sendo aceites como pessoas com direitos e deveres iguais…

5. Atendendo a que estamos na designada ‘semana Caritas’ (entre 25 de fevereiro e 3 de março), retomamos as palavras citadas a abrir este texto sobre o significado das mãos estendidas:

- para pedir ajuda em nome dos que mais precisam – onde todos dão o seu contributo poderemos fazer mais e melhor;

- para partilhar o que somos e temos com os mais desfavorecidos das nossas comunidades – as mãos abertas geram partilha, enquanto os punhos cerrados podem fomentam conflitos, tensão e mal estar;

- para acolher e cuidar de todos os que depositam na nossa ajuda a esperança de dias mais risonhos – só quem tem as mãos para dar pode receber gratuita e gratificadamente;

- para prestar contas com transparência e construir caminhos em rede e comunidade – a circulação de quem dá deve chegar a quem se dirige, sem nunca se desviar em nada da intenção essencial.

6. Todos somos precisos, embora ninguém seja indispensável. Em matéria de caridade devemos rivalizar uns com os outros na consideração, no empenho e na simplicidade…sempre.



António Sílvio Couto

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Confundidos pelos rateres

Por estes dias surgiu na linguagem político-cultural a palavra ‘rateres’. O que é e como se verifica estes fenómeno da área da mecânica automóvel ou mesmo de combustão em motores... classificando os estampidos violentos de alguns tubos de escape. Esse barulho anormal poderá ser devido ao mau funcionamento de um motor de explosão...
Ora, numa apreciação algo anormal, uma agremiação política terá confundido esses rateres com o som de armas de fogo. gerando-se, assim, alguma apreensão, tendo em conta o local (final de uma feira semanal), as coincidências (passagem de uma caravana em propaganda) e uma espécie de conflitualidade das forças em apreço com certas posições um tanto exageradas, tanto na forma como no conteúdo.

1. Assim sendo o que leva alguém a lançar uma espécie de labéu sobre sobre um fenómeno que, para além de possível e normal, nos veículos de combustão e cuja explosão poderá denunciar o menos bom ou mesmo mau estado do motor do veículo? Não deveria haver mais ponderação nas sensações emotivas de figuras que podem cair no ridículo ao confundirem as coisas? Não revelará este tipo de reações um outro mal-estar pessoal e de grupo e que, com facilidade, criam e difundem fantasmas?

2. Agora que estamos no olho do furacão para as eleições legislativas parece que se acentuam efervescências que deixarão, no futuro próximo (depois de 11 de março – data simbólica), a maior parte dos intervenientes mal colocados, senão mesmo podendo servir de tema para rábulas humorísticas... à saciedade. De facto, muitos dos intérpretes das propostas partidárias denotam algum desequilíbrio emocional, na medida em que gastam mais tempo a contestar os outros do que a apresentarem as suas propostas. Por este andar iremos ser guiados a escolher os menos maus do que os mais competentes, a votar em quem não queremos que venham a governar do que a dar-lhes assentimento e credibilidade.

3. Citamos a nota do conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesa, do passado dia 19 de fevereiro, intitulada: ‘Eleições Legislativas 2024: Restituir a esperança aos cidadãos’
«No tempo de debate e reflexão pré-eleitoral em que nos encontramos, exige-se um diálogo honesto e esclarecedor entre os partidos políticos, com a apresentação de programas exequíveis e conteúdos programáticos que não se escondam por detrás de manobras mediáticas e defraudem a esperança dos cidadãos (n.º 3).
(...)
A responsabilidade é de todos, dos políticos e de quem os elege, dos que definem projetos e de quem faz escolhas, daqueles que apresentam propostas e de quem se preocupa em delas ter conhecimento para votar conscientemente. Escolher quem nos representa no Parlamento é um dever de todos e ninguém deve excluir-se deste momento privilegiado para colaborar na construção do bem comum. A abstenção não pode ter a palavra maioritária nas eleições do próximo dia 10 de março» (n.º 5).

4. Muito honestamente: dispensamos os estalidos de rateres que ouvimos, que vemos ou que lemos nas ruas e nos meios de comunicação. Não é preciso ficar pela aparência, temos de nos comprometer com todos e para todos. Votar: um direito, um dever.



António Sílvio Couto

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Custos da atualização do ‘salário mínimo’

 

De entre as propostas eleitoralistas dos diversos partidos políticos emerge uma que tem tanto de interessante quanto de demagógica e acentuadamente populista: ao aumento - alguns dizem atualização - do salário mínimo nacional, num crescimento que atingirá a capacidade de sobrevivência de boa parte das empresas nacionais, sobretudo daquelas que tratam com pessoas sem que estas possam ser entendidas e tratadas como mero produto económico. O setor da ‘economia social’ vive num sufoco para conseguir suportar os encargos decorrentes da (dita) atualização do salário mínimo e honrar os compromissos para com os fornecedores, os encargos para com o Estado e tentar aferrolhar algo para emergências constantes...

1. Designado como: remuneração mínima mensal garantida, o tal ‘salário mínimo’ teve a seguinte evolução desde 2015: 505 €; 2016: 530 €; 2017: 557 €; 2018: 580 €; 2019: 600 €; 2020: 635 €; 2021: 665 €; 2022: 705 €; 2023: 760 €; 2024: 820 €... Isto é, em dez anos cresceu 315 euros numa percentagem galopante.

2. Atendendo a certas propostas de aumento da dita RMMG veiculadas no fervor da campanha eleitoral poderemos considerar que muitos dos proponentes têm desta matéria uma visão ultra economicista, mesmo que se julguem defensores da justiça social. Desculpando a minha ignorância e pouca capacidade de perceção de gestão, mas parece-me que quem trata com pessoas - a tal economia social - com dificuldade fará verter na prestação de serviços os sucessivos aumentos da RMMG. Com efeito, será mais ou menos subtil repercutir a dita atualização em meios de produção primários e de serviços, mas com extrema complexidade se pedirá que, nos contratos celebrados, normalmente de modo anual, se acrescente algo que equilibre as despesas com os salários...

3. Vivemos num afã de lançar dinheiro para gastar e com isso se julga movimentar a economia. Perpassa por algumas propostas de algumas forças ideológicas uma certa mentalidade marxista de taxar as mais-valias, embora nem todas sejam resultado da exploração dos trabalhadores nem possam ser vistas como capitalização dos investidores. Por alguma razão campeiam por aí visões ultramontanas no que se refere à relação de empregador e de assalariado, fazendo o Estado ser aquele que tudo manda e nada nem ninguém ousa contrariá-lo... até porque tem em seu poder a chave de sobrevivência da maioria das instituições particulares de solidariedade social.

4. Desgraçadamente a Igreja católica, em Portugal, deixou-se ir na cantiga de criar, manter e administrar ‘centros sociais’, onde tem de seguir os mui estreitos ditâmes do Estado. Aquilo que, na década de cinquenta do século passado, fez surgirem casas de acolhimento e de caridade em localidades mais desfavorecidas social e economicamente, têm agora de enfrentar problemas quase insolúveis para cumprir as exigências estatais e governamentais, em muitos casos ao sabor do coloração reinante ao nível geral e autárquico. O pretenso PRR (plano de recuperação e resiliência) é o mais lídimo exemplo: pode-se ser contemplado num concurso com algum dinheiro, mas, entre a aprovação do projeto e a sua implementação, os custos podem quadruplicar... e o melhor é evitar hipotecar o presente e o futuro.

5. As perspetivas não são nada animadoras: é tempo de deixar ao Estado fazer o que lhe compete, pois, na maior parte dos casos, os funcionários dessas instituições não passam disso mesmo, de assalariados reivindicativos, de cristãos tem muito pouco, e de praticantes da fé estão longe de o realizarem.
É hora de acordar!



António Sílvio Couto

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Querem desvendar a justiça?

 

É simbolizada como sendo uma jovem de olhos vendados, com uma espada na mão direita e uma balança na mão esquerda... eis a ‘justiça’. Os olhos estão vedados, mas não é cega; as mãos estão ocupadas, com sinais de decisão e não capazes de receber nada, a postura é de teor feminino como se fosse capaz de ser justa com compaixão para com réus e vítimas...

Tem sido assunto controverso nos tempo mais recentes, sendo necessário explicitar alguns aspetos, que têm servido mais de armas de arremesso do que de proposta de solução entre os mais díspares intervenientes.
Repare-se que a ‘justiça’ tem os olhos vendados, mas não tem tapados os ouvidos, pois, deve ouvir concerteza e decidir sem olhar a quem...

1. Há perguntas a colocar: qual o significado numa sociedade (dita) democrática do poder judicial? Sendo, como dizem, que é o terceiro pilar da sociedade, que relação tem com os outros poderes, legislativo e executivo? Será tão independente, na prática, como pretendem fazer crer? As leis pelas quais se rege o poder judicial, quem as faz e como as pode condicionar? Será verdade que há gabinetes de advogados que intervêm na feitura de leis, posteriormente, aprovadas no parlamento? O (dito) legislador será mais preventivo ou dissuasor do já feito? Há, na prática, diversos áreas do exercício de justiça? Se não for bem cumprida - no tempo, na qualidade, nos custos ou na repercussão social - a justiça não corre o risco de se tornar injusta? O que pode haver de verdadeiro na observação: há uma justiça para ricos e outra justiça para pobres?

2. A implementação de uma lei passa por diversas fases: começa pela proposta, é depois discutida, aprovada, promulgada ou vetada, envolvendo a Assembleia da República, o Governo e mesmo o Presidente da República. Por isso, quando tantos andam a clamar pelo mau ou deficiente funcionamento da justiça terão de chamar à responsabilidade estas várias entidades e não só da atualidade...
A Constituição de República Portuguesa prevê tipologias legislativas diferentes entre leis, decretos-lei e decretos legislativos regionais. A construção das leis e dos decretos-lei seguem uma tramitação própria, prevista nos termos da Constituição, e com etapas distintas de debate, apreciação e aprovação. O seu valor em termos de hierarquia é, no entanto, equiparável. Com esferas e áreas de intervenção diferenciada, as leis provêm da Assembleia da República e os decretos-leis advém do Governo. A tramitação de uma Lei começa com um projeto de Lei – quando é apresentado por um grupo parlamentar ou de deputados -, ou com uma proposta de Lei – quando é avançada pelo Governo (ou ainda pelas assembleias legislativas das regiões autónomas ou mesmo por um grupo alargada de cidadãos).

3. Os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. A sua função é garantir a defesa dos direitos e dos interesses dos cidadãos, protegidos por lei, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

Em Portugal, existem várias ordens de tribunais. A Constituição Portuguesa prevê que, além do Tribunal Constitucional, que é o órgão superior da justiça constitucional e do Tribunal de Contas, que é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas, a Organização Judiciária Portuguesa integra a ordem dos Tribunais Judiciais e a ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Além disso, a Constituição Portuguesa consagra também a possibilidade de serem criados tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz.

4. Pelo que podemos entender e apreciar de forma correta e consequente, a mudança da justiça é algo que deve envolver toda a sociedade, onde os políticos têm maior responsabilidade, mas também os outros cidadãos, pelo que mais não seja pela forma como escolhe ou não - isto é, vota ou se ausenta da decisão - quem há de fazer acertada e devidamente as leis pelas quais se regerá o poder judicial.

É chegado o tempo de passar da mera crítica para a oportunidade de mudar segundo as regras de bem de todos e para todos.



António Sílvio Couto

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Cem dias depois - entrevista com o Cardeal

 


Decorridos mais de cem dias sobre a sua presença na Diocese de Setúbal, como bispo titular, D. Américo Aguiar prestou-se para dar uma ‘grande entrevista’ – é título da rubrica na televisão estatal – precisamente na ‘quarta-feira de cinzas’.

Passou por vários temas - vida política (que não meramente partidária), situação geral e genérica da diocese, questões sociais (pobreza, prisões, mobilidade, emprego) que já viu nas suas visitas, as razões da sua escolha pelo Papa para ser bispo de Setúbal, a avaliação das JMJ, pronunciamento sobre a temática dos abusos sexuais e as bênçãos a ‘todos, todos, todos’, acenando com algumas perspetivas futuras...tanto sociais como eclesiais.
Falou muito de fora (e para fora) e pouco de casa, isto é, da Igreja (instituição e espaço) e para casa. Até respondeu à situação de ter sido noticiada a sua consulta médica de exame à próstata, com sendo um incentivo a que outros homens enfrentem a questão sem medo, pois ele o fez como ‘prova superada’.
Atendendo a que não estamos habituados a ver um bispo – no caso até um cardeal – a falar com tanta franqueza sobre assuntos que alguns podem considerar tabus, ficou-me a sensação de que D. Américo quer imprimir um novo ritmo na intervenção da Igreja na vida política. Falou longamente sobre a necessidade de que os cristãos tenham intervenção na vida cívica, não só falando, mas sobretudo intervindo e, primeiramente, votando. Disso deu o seu exemplo com as reuniões que já teve com os dezassete cabeças de lista dos partidos políticos concorrem no círculo eleitoral de Setúbal. Chegou - creio que bem - a dizer que não votar é pecado!
Quando lhe foi perguntado sobre a sua participação partidária em tempo de jovem, explicou o enquadramento e alicerçou as razões na formação escutista, que o leva, ainda hoje, a fazer algo pelos outros...
Sobre as Jornadas Mundiais da juventude deixou escapar – pois as contas da auditoria ainda não estão fechadas – que o evento terá um lucro de mais de vinte milhões de euros, que serão aplicados em iniciativas ligadas aos jovens, como por exemplo residências universitárias.
Notou-se – mesmo pelas questões colocadas pelo entrevistador – que D. Américo estava ali para falar mais para fora do que para dentro, pois ele contactou (visitando e dando disso nota nas fotos que vai publicando regularmente) mais com as estruturas sociais do que que as paróquias e as realidades eclesiais. Vimos um bispo que fala e comunica com a sociedade civil e civilista mais do que em configuração eclesiástica. Não lhe foi perguntado sobre as modificações feitas nos serviços diocesanos ou em perspetiva, nem sequer se pronunciou sobre os cinquenta anos da Diocese, em 2025, e tão pouco sobre os seus antecessores, se bem que se pretenda herdeiro do primeiro bispo, seu conterrâneo.
Agora que se falou para fora não estará na hora de ir ao encontro dos de dentro? São poucos, é verdade, cerca de cinco por cento dos habitantes no território entre o Tejo e o Sado, mas precisam de ser cuidados com atenção. Que os próximos cem dias possam ter esta marca de procura das ovelhas ainda no redil!

Ousando parafrasear o lema episcopal de D. Américo Aguiar, diria a Deus e aos humanos: ‘nas tuas mãos’, agora e no futuro!



António Sílvio Couto

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Como viver deserto na cidade?

A Quaresma é um grande desafio à vida dos cristãos/católicos de hoje. Seguindo as palavras da mensagem do Papa Francisco para a Quaresma deste ano e tomando como incentivo o título do livro de Carlos Carretto (dos finais da década de 70 do século passado): ‘Deserto na cidade’, desejo apresentar uma singela proposta de vivência da Quaresma que não seja nem rotineira (repetindo tradições e devoções) nem tão pouco ronçosa (deixando correr o tempo) no conteúdo nem na forma.

1. O título da mensagem papal da Quaresma deste ano é: ‘Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade’.
- A Quaresma é o tempo de graça em que o deserto volta a ser o lugar do primeiro amor (cf. Os 2, 16-17). Deus educa o seu povo, para que saia das suas escravidões e experimente a passagem da morte à vida.
- Acolhamos a Quaresma como o tempo forte em que a sua Palavra nos é novamente dirigida (...). É tempo de conversão, tempo de liberdade. O próprio Jesus, como recordamos anualmente no primeiro domingo da Quaresma, foi impelido pelo Espírito para o deserto a fim de ser posto à prova na sua liberdade.
(...) O deserto é o espaço onde a nossa liberdade pode amadurecer numa decisão pessoal de não voltar a cair na escravidão. Na Quaresma, encontramos novos critérios de juízo e uma comunidade com a qual avançar por um caminho nunca percorrido.
- Mais temíveis que o faraó são os ídolos: poderíamos considerá-los como a voz do inimigo dentro de nós. Poder tudo, ser louvado por todos, levar a melhor sobre todos: todo o ser humano sente dentro de si a sedução desta mentira. É uma velha estrada. Assim podemos apegar-nos ao dinheiro, a certos projetos, ideias, objetivos, à nossa posição, a uma tradição, até mesmo a algumas pessoas.
- É tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido. O amor de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na presença de Deus, junto da carne do próximo.
- A forma sinodal da Igreja, que estamos a redescobrir e cultivar nestes anos, sugere que a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias, de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é visto ou é desprezado.

2. Recorremos à ‘oração coleta’ dos cinco domingos da Quaresma para perscrutar alguns dos lampejos de Deus nos desafios de cada uma destas orações comunitárias, em atenção à escuta da Palavra de Deus:
- 1.º domingo: Concedei-nos, Deus omnipotente, que, pela observância quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo e a nossa vida seja dele um digno testemunho.
- 2.º domingo: Deus de infinita bondade, que nos mandais ouvir o vosso amado Filho, fortalecei-nos com o alimento interior da vossa palavra, de modo que, purificado o nosso olhar espiritual, possamos alegrar-nos um dia na visão da vossa glória.
- 3.º domingo: Deus, Pai de misericórdia e fonte de toda a bondade, que nos fizestes encontrar no jejum,
na oração e no amor fraterno os remédios do pecado, olhai benigno para a confissão da nossa humildade, de modo que, abatidos pela consciência da culpa, sejamos confortados pela vossa misericórdia.
- 4.º domingo: Deus de misericórdia, que, pelo vosso Filho, realizais admiravelmente a reconciliação do género humano, concedei ao povo cristão fé viva e espírito generoso, a fim de caminhar alegremente para as próximas solenidades pascais.
- 5.º domingo: Senhor nosso Deus, concedei-nos a graça de viver com alegria o mesmo espírito de caridade que levou o vosso Filho a entregar-Se à morte pela salvação dos homens.

3. A Quaresma não nos pode deixar indiferentes, tem, antes, de incomodar-nos interiormente, pelo constante apelo à conversão a Deus e aos outros, na linha das palavras do Papa: «oração, esmola e jejum não são três exercícios independentes, mas um único movimento de abertura, de esvaziamento», de deserto na cidade.



António Sílvio Couto