Recordo, num misto de espanto e de interrogação, o que dizia um padre septuagenário numa reunião com outros padres: investi tanto em fazer tão bem os casamentos que tinha, e, afinal, dá a impressão que perdi o meu tempo… Ora, esse padre deveria ter, à época, mais de duas centenas de casamentos anuais… tal era procura da sua paróquia, nos diversos e aprazíveis lugares de culto.
Agora que tais eventos religioso-sociais vão rareando – e
não é só por causa da pandemia – deu comigo a refletir sobre qual a função da
homilia – esse momento de palavra, tanto humana como divina – na celebração do
matrimónio, seja qual for a instância de vivência, pois, hoje, muitos dos
matrimónios já são celebrados com o casamento (civil) feito ou ainda nalguns
casos, de forma ‘natural’, os filhos estão presentes, com maior ou menor idade…
1. O que diz o ritual do matrimónio sobre o assunto em
análise? Lemos nas rubricas: «Segue-se a
liturgia da Palavra, segundo o modo habitual, tomando os textos propostos…
escolha-se sempre pelo menos uma leitura que fale explicitamente do matrimónio.
Em seguida o ministro fará a homilia, na qual, inspirando-se no texto sagrado,
exporá o mistério do Matrimónio cristão, a dignidade do amor conjugal, a graça
do sacramento e os deveres dos cônjuges, tendo em conta, porém, as diversas
circunstâncias das pessoas» (Ritual Romano, ‘Celebração do matrimónio’, n. os
90-91). Uma ressalva: quando falamos da celebração do matrimónio refiro-me
àquele que é realizado ‘sem missa’… pois esta têm outros requisitos nem sempre
devidamente atendidos…pelo menos em certas regiões (ditas) tradicionais
religiosas.
2. Será, por isso, de questionar: a quem se deve dirigir a
homilia – aos noivos ou aos outros; a uns e a outros? Dada a subtileza de
tantas situações, mesmo diante de noivos bem formados e conscientes, dever-se-á
acentuar tanto a altíssima dignidade do matrimónio, se podem estar ali
‘traumatizados’ de experiências anteriores de casamento? Não será preferível
deixar as exortações – mais diretas e personalizadas – aos noivos para momentos
posteriores, cuidando das feridas de quantos – e por vezes são tantos/as e tão
diversificados/as – ali podem estar sob reserva quanto ao matrimónio, por experiências
de menos bons casamentos?
3. O ministro/oficiante do sacramento pode estar presente
em razão do múnus (no caso de ser pároco ou outra função pastoral equiparada),
por amizade aos noivos ou por convite circunstancial. Já estive nas várias
possibilidades… Ora, como deverá ser a postura do oficiante: de distância ou de
proximidade, mais ou menos hierático, criando solenidade ou mais à-vontade? Por
vezes, certas atitudes dos participantes podem condicionar a postura, mas sem
fazer do ato algo tão fútil que possa parece um mero acontecimento humano e não
um acontecimento com a marca e o selo do divino…
4. Ora, atendendo ao acentuado processo de desconhecimento (por
ignorância ou por nesciência) do mistério do matrimónio, refere-se ainda no
Ritual do matrimónio: «embora os pastores
sejam ministros do Evangelho de Cristo para todos, contudo devem ter em atenção
de modo particular aqueles que nunca ou raramente participam na celebração do
matrimónio e da eucaristia, quer sejam católicos ou não. Esta norma pastoral
vale antes de mais para os próprios esposos» (n.º 37). Quer isto dizer que
na celebração do matrimónio católico se pode verificar um caldo de misturas com
diversas vivências espirituais e religiosas, devendo ser respeitadas as
dinâmicas e mesmo as influências de todos, mesmo dos não-crentes…
5. Sendo uma comunicação verbal, a homilia na celebração do
matrimónio pode e deve ter em conta as caraterísticas culturais onde se insere…
tão diversificadas quão influenciadas por critérios mais mundanos do que
verdadeiramente cristãos. Por isso, a palavra dita e escutada nem sempre terão
consonância entre o emissor e o recetor. Saber dizê-la tem arte e engenho.
Saber escutá-la poderá ser um exercício de humildade, tentando apreender aquilo
que é dito e não estando à espera que se confirme o que mais possa convir.
6. Como me dizia um velho padre com muita experiência de
vida de contato com as pessoas: bastará reparar como se benzem (ou não) – logo
no princípio da celebração – para ficarmos a saber com quem estamos. Palavras
sábias e acrisoladas no tempo, ontem como hoje!
António Sílvio Couto