Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sábado, 27 de fevereiro de 2021

Palonços a mangar…

 


As palavras contidas neste título precisam, minimamente, de serem explicadas, até para que se possam compreender os objetivos deste texto e, sobretudo, os sujeitos/destinatários/intervenientes.

Comecemos pela palavra ‘palonço’, trazendo para aqui, antes de mais, a estória dos ‘amigos da onça’:

Dois caçadores conversam num acampamento:
- O que farias se estivesses agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente? Dava-lhe um tiro.
- E se não tivesses nenhuma arma de fogo? Matava-a com uma faca.
- E se não tivesses uma faca? Apanhava um pau para me defender.
- E se não tivesses nenhum pau? Subiria à árvore mais próxima!
- E se não houvesse nenhuma árvore? Fugia a correr.
- E se ficasses paralisado pelo medo?
Então, o outro, já irritado, replicou: mas, afinal, tu és meu amigo ou amigo da onça?

Se tivermos na composição da palavra ‘palonço’ esse termo ‘onça’, então, poderíamos desmontar a compreensão de que um ‘palonço’ possa, sem se dar conta, ser amigo da onça mais reflexivo do que ativo ou passivo.
Onde se poderá radicar ainda a primeira parte da palavra - ‘pal’? Será uma abreviação de ‘palerma’? Será, por outro lado, uma mutação de ‘papalvo’, no significado de imbecil, parvo...
Eis em resumo significados de ‘palonço’: pessoa que se deixa facilmente enganar e prejudicar; pessoa que revela ingenuidade e falta de bom senso; pessoa que é pouco inteligente...
Por outro lado, explicando o outro termo usado no título. Que quer dizer: ‘mangar’? Na gíria popular pode significar: ‘fazer troça’, ‘escarnecer’, ‘zombar com a cara de alguém’...  podendo ainda envolver ‘fingir’, ‘mentir por brincadeira’.

Numa palavra: ‘palonços a mangar’ podem ser uns tantos a fazer chacota com os outros ou ainda que uns brincam jocosamente com os outros, rotulando-os de bacocos – outro termo da gíria – para envolver quem ‘não é muito esperto’ ou passa por ser ‘ingénuo’... 

= Vejamos, por isso, situações ou episódios, figuras e personagens, acontecimentos ou façanhas de palonços que andam por aí a mangar uns com os outros e com todos nós:

* Muitas das notícias –  verdadeiras ou falsas – têm subjacente mais um criar de intoxicação do que um autêntico sentido de informação. Tantas agências e empresas de comunicação fazem de nós palonços e estão a mangar connosco, seus súbitos, na maior parte das vezes, acríticos, anódinos e amorais... julgam eles!
A maior parte dos comentadeiros/as arregimentados por essas agências – na escrita, na rádio, na televisão ou nas redes sociais...em conjunto ou separadamente – são mais vendedores da mesma produção da empresa, que os contratou e eles paga, do que fazedores de opinião...que poucos acabarão por não apreciar, se descubrirem o logro em que estamos metidos.

Porque nos tentam impingir programas como ‘a hora da verdade’ ou o ‘polígrafo’? Acham que somos tão palonços e ainda não percebemos que, se é preciso escarafunchar mentiras, não será por sentirmos que estão a mangar com um tal foguetório de isenção?

* As longas e quase intermináveis discussões do futebolês gastam mais tempo do que os jogos. Se uns tantos têm o exclusivo pago para a visualização dos jogos – tem faltado coragem governamental para liberalizar em canal aberto as transmissões em tempo de pandemia – outros entretêm-se a limpar o osso dos casos, das intrigas clubísticas, das arbitragens, dos investimentos sem retorno desportivo... Há emblemas que vendem mais do que os outros, isto é, vemos mais palonços entretidos com a mangação fora das-quatro-linhas e o ambiente vai fervilhando...

* Que dizer da gestão política – governo, oposição, presidente e da população em geral – desta pandemia do covid-19? O tal ‘programa de recuperação e resiliência’ não parece ser um hino ao paloncismo nacional, mangando com zé-povo? Menos de um ano de covid matou mais do que 13 anos de guerra colonial... Ainda temos dúvida: somos palonços e estão a mangar connosco!

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

‘Big brother’: ainda faz sentido, hoje?

 


Decorridos mais de vinte anos sobre a primeira edição – 3 de setembro a 31 de dezembro de 2000 – podem e devem colocar-se várias questões: o ‘big brother’ (‘grande irmão’) faz sentido, ainda hoje? O público-alvo é o mesmo dessa época ou os alvos-públicos não mudaram? As condições sociais e tecnologias não se modificarão, de então para a cá? Mesmo com as diversas cambiantes (casa dos segredos ou quinta das celebridades), terá alguma utilidade pública um programa deste formato? Que influência ‘cultural’ trouxe à sociedade portuguesa tal programação televisiva e seus adereços, diversificações ou remarques? Até onde irá a panaceia de aturar tais entretenimentos? Com as indiscrições das redes-sociais, ainda terá algum interesse um programa de intrusão/exposição da vida privada ao espiolhar de todos?

Sendo um programa de formato televisivo, o ‘big brother’ tem tido múltiplas edições em vários países, desde o ‘original’ de reality show, proposta de uma empresa holandesa, em 1999, selecionando vários concorrentes que viveriam numa mesma casa, vigiada por câmaras e som vinte e quatro horas por dia…sendo feita uma votação para excluir os participantes, segundo critérios exteriores à casa ou intrínsecos aos conviventes.

O nome ‘big brother’ foi colhido do livro ‘1984’ de George Orwell, editado em 1949, que retratava um regime totalitário, inventado pelo autor, ao qual todos obedeciam, o ‘grande irmão’, num culto da personalidade, tolerada, embora detestada e combatida…até à sua queda final!

O ‘big brother’, em Portugal, teve seis edições com anónimos e mais três com os (apelidados) famosos. No sucedâneo ‘casa dos segredos’, estreado em 2010 e até 2018, houve treze edições (seis normais e sete especiais), até à reformulação em 2019, dando início a uma quinta temporada…mesmo em tempo de pandemia.

 = Feita esta deambulação histórico-literária-artística, talvez valha a pena centrar-nos nas razões desse tal programa de entretenimento, mas que se tornou algo mais do que aquilo que captamos ou que nos mostram.

Sair do anonimato – quem conhecia algum dos concorrentes, no dealbar da sua apresentação? Vindos das profundezas do país e das circunstâncias mais díspares, emergiram ‘figuras’ entre o tonto e o desequilibrado, à mistura com mentores de causas… num total devem ter passado pelos programas do ‘big brother’ e afins dezenas de figuras, figurinhas e de figurões, catapultando para a ribalta candidatos, concorrentes e até de alguns ‘artistas’ em maré de pouca visibilidade ou no ocaso da carreira. Desde a primeira hora foi tentador o prémio final, atingindo vinte mil contos (equivalente a cem mil euros)… Aquilo que foi novidade antanho já parece toda espremida, pois os concorrentes são material recesso de uma sociedade vazia, acomodada e derrotada.

– Expor a vida – uma das caraterísticas deste tipo de concurso televisivo ou reality show tem a componente de as pessoas permitirem ser expostas até nas facetas mais íntimas, dado que são vistas e ouvidas vinte e quatro horas por dia…para além daquilo que dizem, mostra-se o que fazem. Se a conquista do dinheiro/prémio poderia seduzir, esta exposição de tudo e a todos será um tanto questionável e particularmente deplorável. Há vinte anos atrás isso era ousadia, hoje pode parecer mais uma faceta desse colocar a vida-ao-sol que as redes sociais têm facultado, permitido ou incentivado… Em certos momentos ver intrigas e jogos nos entretenimentos da dita ‘casa’ já só na mente dos comentadores – alguns que já por lá passaram – e, sobretudo nos tempos mais recentes, de representantes de fações socioculturais mais ou menos amorais ou tendencialmente homifílicas…em maré de promoção.  

– Nivelar pelos pés – dá a sensação de ir decrescendo a qualidade dos intervenientes, mesmo que possam ser repetentes ou repescados. Tendo começado com teenagers – mais simples e sem filtros – tem aumentado a idade dos participantes, embora diminuindo a teor cultural e a consciência social das suas lucubrações desconexas. O ‘grande irmão’ – sem rosto nem tez – continua a deixar mistério e, quando há desvios do programa, ei-lo como inquisidor implacável…

Era bom que este tipo de chafurdice começasse a ser limpo do plano do audiovisual português. Basta de subdesenvolvimento e de exploração da classe trabalhadora, pois o que temos visto é a consagração da preguiça e da inutilidade, servindo ainda mais para criar a sensação de que tudo é fácil, barato e se consegue sem esforço… Cada concorrente ganha entre 200 e 850 euros por semana. Aquilo não é trabalho!

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Saúde ou economia?

 


Tem sido o maior dilema destes tempos mais recentes, designados de pandemia: como equilibrar as componentes saúde com economia e esta com aquela. Os dois confinamentos e os mais de dez ‘estados de emergência’ não conseguiram ainda esclarecer-nos sobre qual das vertentes se pode sobrepor uma à outra ou, pior ainda, se uma pode sobreviver sem a outra.

Claramente saúde e economia não se excluem, antes se complementam ou se devem conjugar e, sobretudo, precisamos de uma economia saudável. Ora, parece que é aqui que as coisas se complicam, no caso português, mais dependente das ajudas do estrangeiro e pouco com produção autónoma, seja na forma como no conteúdo, isto é, depois de nos terem ‘pago’ para não produzir, habituamo-nos a ter de tudo nos supermercados – como se fossemos ricos – deixando os nossos meios e bens de produção ao desmazelo ou à improdutividade… Decorridas três décadas de acomodação àquilo que a Europa – dita trabalhadora, produtiva e concorrencial – nos quis impingir, julgávamos que o ‘sol da nossa simpatia’ bastaria para gozarmos com os recursos dos visitantes… Fechada a torneira do afluxo turístico, entramos num descalabro ainda imprevisível… sem sabermos trabalhar a terra, incapazes de ter algo de próprio e à mercê do que nos quiserem dar em esmola!

 – Bastou um pequeno sopro de sobrecarga sobre o nosso sistema de saúde e logo entrou em rutura ou em pré-colapso. Os milhões despejados nos hospitais e outros adereços complementares ou subsequentes estatais não têm surtido o efeito – de propaganda e de ideologização – pretendido pelos seus exclusivos cultivadores. Muitos dos seus defensores, quando atrapalhados na saúde, não os vemos nas filas de espera das urgências nem nas listas intermináveis para ocorrências previstas. Soa-me a hipocrisia pura tanta exaltação do ‘sistema (ou será serviço?) nacional de saúde’…

Não está, minimamente, em causa a dedicação quase-sobre-humana dos profissionais de saúde, que, nesta fase de pandemia, deram o que tinham e algo bem mais profundo do que seriam capazes. Contesto, sim, a propaganda de certas forças estatizantes, que querem impor a tudo e a todos algo nefasto e contraproducente: só o que tem o rótulo de estatal é que é bom e/ou merece confiança.

Segundo dados mais ou menos fiáveis – foram recolhidos em consulta em organismos oficiais – há, em Portugal, duzentos e vinte e cinco hospitais, sendo destes cento e catorze privados. Perante tais verificações torna-se essencial questionar a ‘perseguição’ que certas forças marxistas-trotskistas têm em curso, a quem não se reduz a ser o que eles/elas desejam que todos sejam, pois não os conseguirão manipular como anseiam… ferozmente.

Em vez de ser criado um ‘sistema’ de conjugação entre os vários intervenientes, prefere-se um ‘serviço’ de exclusão pretensamente barato ou gratuito, simplista e até mal pago. Esse costuma ser o método usado pelos totalitários onde só eles têm razão e fora deles não se vislumbra solução. Ainda não aprenderam a respeitar a iniciativa privada e a capacidade de escolha dos cidadãos e a não sermos obrigados a viver no militarismo (ou será militantismo?) de pensamento-único.  

 – Na economia, que etimologicamente significa ‘governo da casa’, continuamos a ser intoxicados pela obsessão do estatal – o pretenso ‘plano de recuperação e resiliência’, cujas iniciais também podem ter a conotação de ‘para roubar e raspar-se’ – deixa quase exclusivamente de fora a iniciativa privada, conjugando e atribuindo mais força ao que consegue fazer das coisas públicas a preferência questionável. Pelo que se sabe de outros festivais e cantilenas, teme-se que, mais uma vez, os milhões vindos de Bruxelas desaguem nos mesmos lugares e beneficiem os portadores do cartão partidário e sob a simpatia de quem distribui… Pela recetividade de setores antagónicos – por exemplo sindicais e patronato – percebe-se que o dito ‘plano’ não agrada. Começa também a ficar a sensação de que, enquanto país membro da União Europeia, começamos a ficar viciados em fundos europeus, que se revezam uns atrás dos outros até ao esgotamento da subsidiodependência coletiva. Surge uma caterva de excluídos – como as autarquias e setores intermédios do Estado – que cobrarão, muito em breve, o silenciamento e o ficarem sem dinheiro. Haja saúde e trabalho!

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Fala-se mais daquilo que não há?

 


Por estes dias ouvi esta observação: perguntaram a um esquimó porque é que os poemas daquele povo falavam mais de ‘peixe’ do que de outras coisas; ao que o interpelado terá dito: falámos mais daquilo que não temos… assim como os vossos textos poéticos falam tanto de ‘amor’…

Embora possa parece algo de jocoso, nem por isso deveria deixar de interpelar-nos, sobretudo, no contraste colocado pelo dito esquimó para connosco, quanto ao que se refere à abundante alusão poética tendo em conta o tema aduzido: o ‘amor’, seja qual for o alcance que lhe quisermos dar…ou a necessidade a atribuir-lhe.

Na riqueza da nossa sabedoria popular encontramos frases-pensamento que resumem bem, por outras palavras, o que está contido nisto de que quisemos servir-nos e ocupar-nos neste texto.

Vejamos um desses adágios bastante citado, sobretudo quando as coisas ou situações correm menos bem: ‘casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão’.

– Desde logo temos de interpretar o âmbito de ‘casa’, que pode ir desde a simples residência ou morada (pessoal ou familiar) até ao espaço de um país, de uma empresa, de uma associação ou instituição privada ou pública, sem esquecer ainda as situações de alcance mais transversal, como os lugares de intervenção política, cultural ou intelectual/moral/ética… Não parece ser verdade que à força de tanto se insistir em certos temas e assuntos – alguns com ritmo cíclico, como democracia ou liberdade, responsabilidade ou participação, trabalho ou emprego, direitos ou deveres, etc. – como que denunciam (ou somos denunciados) a necessidade de serem muito mais aprofundados? De facto, falar de tais assuntos deixa a manifesto que estamos muito longe de já os termos compreendidos e de vivenciarmos segundo os critérios mais básicos… Com efeito, há terminologias que exigem que seja explicado o que entendemos por esses conceitos, dado que podemos estar a usar as mesmas palavras, mas, cada um, dá-lhe o significado que lhe convém ou lhe interessa. Por vezes assistimos a discussões de ‘lana-caprina’ (isto é, se a cabra tem lã ou se o pelo desta tem algum valor), que se tornam tão inflamadas pela simples razão de que não se usou o nível mais básico de uma conversa como é esse de cada qual explicar o que entende com aquilo que está a dizer ou a pretender comunicar… Se houvesse mais humildade e verdade, poderíamos construir em vez de derrubar!

– Ousemos explicitar o que significa ‘onde não há pão’, pois, em muitos casos, se reduz este elemento essencial da alimentação humana – o pão – a coisas meramente materiais, tornando os problemas afunilados em dialéticas marxizantes. Efetivamente nem tudo se poderá tornar esse alvo que faz correr tanta gente: as necessidades básicas, que mais do que suprimidas deverão ser satisfeitas. As primeiras vítimas em tempo de crise ou de colapso são os mais frágeis, muitas vezes rotulados de pobres e que alimentam tantos outros nas ações que tentam promover. Com efeito, se tirarem os ‘pobres’ aos políticos, aos sindicalistas, aos voluntários (mesmo em questões de Igreja), aos vendedores de feira ou aos promotores dos descontos nas grandes superfícies, que lhes restará? Os explorados em razão do pão – particularmente da falta dele – parece que sobrevivem enquanto os ‘pobres’ se reproduzem. Quanta gente está presa pela boca, qual anzol psicológico, para manter a flutuar tantos outros nem sempre sinceros para com aqueles que dizem servir!

– ‘Todos ralham’ – este ambiente de conflitualidade em que parecemos viver à flor-da-pele convém a muita comunicação social, que vai esticando as mazelas alheias para tirar proveito em maré de poucos assuntos. A crispação tem-se vindo a tornar um recurso alienatório, pois, enquanto, se discutem questões menores, outros – como os governos ditos populares, mas com alma de populistas – vão impondo as suas regras, por vezes, ditas democráticas, só pela simples razão de que foram, um dia, votadas.

– ‘Ninguém tem razão’, verdadeiramente, os problemas hodiernos são mais emocionais do que razoáveis. Querer impor a sua ‘razão’, disfarçada de opinião, parece ser hoje mais comum do que noutras épocas. Pior: pretende-se impor aos outros aquilo que não consentimos que não tenham para connosco. Precisamos, com urgência, de aprendermos a respeitar os outros, colaborando com eles para a construção de um mundo mais fraterno e solidário, mais humano e mais verdadeiro.

Afinal, quando se fala de ‘amor’ não significará que, acima de tudo, necessitamos de amar e de ser amados, de compreender e de sermos compreendidos, de cuidar e de sermos cuidados?     

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

O ‘Cristo’ no caixote do lixo

 


O caso conta-se em breves palavras: em dia de Carnaval alguém foi confrontado com uma imagem de Cristo – um crucifixo, ainda sem ser possível detetar de onde era proveniente – no caixote do lixo… vulgar, quotidiano e doméstico. Aconteceu numa região onde a religião – ao menos socialmente – ainda tem bastante expressão, embora se notem laivos de descrença à mistura com certos tiques de religiosidade…paganizada.

Perante a surpresa, o achador questionou-se: poder-se-á considerar uma brincadeira carnavalesca ou reveste-se de assunto mais sério, como a abjuração do catolicismo, o desfazer-se de objetos religiosos ou ainda o manifestar a opção por outra forma de crença?

Em tempos não muito recuados – duas ou três décadas atrás – verificou-se uma onda que varreu muitas imagens religiosas da casa de alguns cidadãos. Impregnados por uma mentalidade iconoclasta assanha por ‘movimentos fundamentalistas’, uns tantos católicos deitaram foram imagens (estátuas) e até peças de grande valor artístico e sentimental. Isso foi influenciado por setores mais exagerados, embora de suspeita consistência e alvos fáceis de ignorantes na fé e na Igreja. Passados uns certos eflúvios inconsistentes e ludibriados pela sanha das verbas pedinchadas dos obreiros, muitos dos medianos católicos saíram mais desiludidos e magoados consigo mesmos, retornando à comunidade da fé com outras disposições e necessidades…

Agora isto que aconteceu no caso relatado pode envolver outros aspetos e alguma complexidade. Com efeito, o achador do Cristo no lixo, recolheu-O e deu-lhe um lugar de não-rejeição, embora questionando-se e, porque me falou do caso, tentando procurar resposta para o sucedido… É isso que vou tentar.

– Ao escutar aquela história veio-me à lembrança o livro de um autor jesuíta espanhol, Ramón Cué, O meu Cristo partido, com a primeira edição em 1977…posteriormente passado a filme e continuado numa outra publicação – ‘O meu Cristo partido de casa em casa’. Naquele simbólico escrito – presença de meditação de tantos formandos no último quartel do século vinte – se dá conta de uma história de vida e de uma vida com estórias. "O meu Cristo partido» é a história de um padre – o autor – que compra uma imagem de Cristo muito mutilada [na feira de velharias ou do Rastro, em Madrid]: sem rosto, sem um braço, sem uma perna, sem … cruz. Pretendendo mandá-la restaurar, Cristo opõe-se-lhe radicalmente, pois é assim partido, mutilado, que Ele se identifica com os que sofrem: “Quero que, vendo-me partido, te lembres de tantos irmãos que convivem contigo e que estão, como Eu, partidos, esmagados, oprimidos, doentes, mutilados… Sem braços, porque estão desempregados ou ainda não conseguiram o primeiro emprego; sem pés, porque lhes bloquearam os caminhos da vida; sem cara, porque lhes roubaram a fama, o mérito, o prestígio…”.

– Agora ponho-me daquele Cristo achado no caixote do lixo e questiono-me sobre o possível significado desta mensagem. O que é que isto me quer dizer? Para onde mandamos Cristo? Quisemos tirá-lo das nossas vidas, aligeirando a mensagem que nos traz cada dia? Não andaremos a envergonhar-nos de Cristo, evitando dizermos que somos dos ‘seus’, se é que somos? A limpeza das imagens do Crucificado – sobretudo nos espaços públicos – não revela algo mais do que a perseguição orquestrada da mentalidade agnóstica, de laicidade e ateia? O nosso silêncio – muitas vezes cúmplice e cobarde – não revela que já perdemos o sal e já não somos fermento? Ainda teremos tempo para nos interrogarmos?

Agora que estamos em confinamento, precisamos de ter espaços e de dar tempo a Cristo na nossa casa, na nossa família e na nossa vida. Estando a viver a Quaresma e temos um tempo favorável para que isto possa ter maior expressão e conjugação, isto é, de vivermos mais esta dinâmica e de favorecermos a expressão de Cristo inclusivo, próximo e comprometido. 

Seria um desperdício de oportunidade que não tentássemos ter mais vivências de formação, usando os meios técnicos e tecnológicos atuais, para aprofundarmos a fé, para crescermos na esperança e para alimentarmos, verdadeiramente, a caridade fraterna e solidária.

O Cristo no caixote do lixo olhamos na expetativa de O recebermos… Deixemo-nos cuidar por Ele!

 
Nota: a imagem de Cristo aqui apresentada tem uma história bem diferente da do texto aqui deixado. Deve ter mais de dois séculos. Foi-me dada como reserva e bom cuidado!     

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Questões de minoria impostas ao resto?


 Nos tempos que agora decorrerem vemos com razoável ritmo e quase ‘inexplicável’ desproporção surgirem questões (ou questiúnculas) de minorias a sobreporem-se à apresentação, na discussão, e, numa pretensa, conjugação de esforços, à normalização por parte do resto, isto é, da ainda maioria. Temas (ditos) fraturantes emergem para a comunicação social e a vida política como se fossem os mais importantes do momento. Querelas de grupo tornam-se assuntos de interesse duvidoso. Problemas de uns tantos à margem assumem temática inenarrável…para todos.

À mistura com estes indícios vemos que a (possível) maioria não-interessada tem de aturar dias, semanas e meses com discussões que entretêm um certo público mais ou menos manipulado por quem manobra os assuntos e o seu agendamento.

Aquilo que ontem – num tempo assaz alargado – era tema de alcova, agora está escarrapacho nas (ditas) redes-sociais, como se fosse questão de todos, quando não passa de meta ainda minoritária. Aquilo que estava no armário – a expressão tornou-se corrente, embora conotada com alguns setores e vetores – saiu de forma barulhenta, numa pretensão de, fazendo alarido, não se notar tanto a exceção. Neste país, desgraçadamente, parece que, quem não for homifílico, logo é rotulado de homofóbico; quem não se assumir protetor de certas etnias torna-se inapelavelmente xenófobo; quem não se disser liberal ou tolerante com a vulgarização da morte (assistida, provocada ou abortada) vira populista e de ultradireita; quem não usar o discurso do racismo de branco contra negros, corre o risco de sofre na pele a rejeição ideológica de ser racista, mesmo que fazendo o bem e tolerando exigências preconceituosas… Como se algumas problemáticas mais delicadas e sensíveis possam estar submetidas à rotulagem de quem não pensa, não defende ou não age como tais minorias.

 = Tenho a sensação de que o respeito que algumas minorias exigem aos outros não é cultivado por tais sensibilidades. O combate pela aceitação da diferença dá a impressão que é, essencialmente, unívoco. O desejado diálogo, que tais minorias apregoam, só funciona se as ouvirmos e não tem idêntico valor quando devem escutar.

Com razoável habilidade se usa o designado ‘conceito marxista de história’, isto é, tenta-se ler hoje, de forma materialista, as questões do passado com os conceitos atuais e não enquadrando as questões no seu tempo e, mesmo com um olhar crítico atual, sabendo distinguir entre as causas e as consequências ou fazendo luz sobre os problemas sem os desenquadrar do tempo acontecido. Muitos dos argumentadores de serviço – nas associações ou nas televisões, nas discussões ou no plano da educação – abusam deste conceito dialético-marxista de história e, com alguma gritaria à mistura, ousam considerar linearmente ignorantes quem não concordar com a sua visão…ideológica, retrógrada e não-histórica. De perseguidos viraram perseguidores!

 = Não é por acaso que muitos/as dos intervenientes nestes grupos minoritários não escondem – e quando o tentam fazer logo se descobre – as suas raízes, tanto marxistas como trotskistas e mesmo maoístas, sempre dentro de uma lógica de tentar fazer crer que trazem a ‘salvação’, desde que seja segundo os seus modelos, os seus critérios e os seus métodos. Repare-se com que velocidade se incendiam turbulências a quilómetros de distância e segundo idênticas formas de atuação.

Como é atroz, por outro lado, o silêncio cúmplice de que pensa de forma diferente das minorias por agora mais visíveis, reivindicativas e barulhentas. Mesmo que discordando deveríamos pronunciar-nos, pois estar calado é a melhor arma para que minorias se sobreponham e nos imponham valores que não são os de quem defende, antes de tudo, a pessoa humana na integridade da sua vida e segundo conceitos de índole espiritual judeo-cristã.

Não é por acaso que nos conceitos, na doutrina e na práxis da Igreja católica se acentuam termos como diversidade de línguas, nações, povos e culturas…numa defesa, aceitação e promoção de todos…sem esquecer a pessoa na sua personalidade, consciência e autodeterminação. «Algumas regras aplicam-se a todos os casos: nunca é permitido fazer mal para que daí resulte um bem; a «regra de ouro» é: «Tudo quanto quiserdes que os homens vos façam, fazei-lho, de igual modo, vós também» (Mt 7, 12) (56); a caridade passa sempre pelo respeito do próximo e da sua consciência: «Ao pecardes assim contra os irmãos, ao ferir-lhes a consciência é contra Cristo que pecais» (1 Cor 8, 12). «O que é bom é não […] [fazer] nada em que o teu irmão possa tropeçar, cair ou fraquejar» (Rm 14, 21)» – Catecismo da Igrja Católica, n.º 1789.    

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Reaprendizagens e/ou acomodações?


 Nos tempos mais recentes, dá a impressão, que temos andado entalados entre a reaprendizagem e a acomodação, isto é, desejando compreender a situação geral e adaptando-nos no particular àquilo que nos é dado viver…pelo pensar, pelo agir e mesmo pelo sobreviver.

Resultado da recente pandemia que se abateu sobre a Humanidade (geral), temos tentado perceber o que isso influenciou a nossa vida (particular), desde as coisas mais visíveis, evidentes e palpáveis até aos aspetos mais simples, recônditos ou menos claros. Tudo mudou e, se tal não aconteceu ainda, então estaremos todos em perigo.

– Parece que muito daquilo em que estava fundada a nossa convivência humana e social foi posto em causa: tivemos de reaprender as saudações entre as pessoas – se bem que se estavam a banalizar tanto as formas como os conteúdos – tal como o modo de nos fazermos próximos – também aqui estava a verificar-se um excesso nos gestos e mesmo nas fórmulas – sendo preciso moderar tal efusividade!

– As exigências de higienização vieram introduzir novas formas de estarmos, pois o medo da transmissão do vírus tornou-nos mais cuidadosos. Será que isto não veio denunciar alguma falta de higiene das pessoas, dos lugares e das condições de habitabilidade de espaços, públicos ou privados? As quantidades de gel-desinfetante que foram vendidas não denunciam que nem sempre temos cuidado no trato de uns para com os outros? Certos rituais de salubridade não vieram pôr a manifesto situações de falta de civilidade mesmo na via pública?

– Foi só à custa de serem anunciadas multas e sob a ameaça de penalizações que boa parte da população passou a usar regularmente máscara na rua. As várias e diversas etapas de confinamento continuaram a ser ignoradas por alguns habilidosos, dando a impressão de que somos, como povo, especialistas em tornear as regras, mesmo que estejamos a colocar tudo e todos e perigo... É lamentável, senão mesmo repugnante, que o civismo de muitas pessoas – algumas delas com responsabilidade social e política – se guie mais pela coacção do que pela convicção, se faça valer mais das exceções do que das regras e que se procure usufruir mais do que separa do que daquilo que une... Ainda não sentimos que a pandemia nos irmanou mais na desgraça do que no (pretenso) sucesso, que nos queriam impingir despudoradamente. 

– Nada será igual depois destes meses – dizem uns tantos que serão anos, talvez uma década – de provação, de sacrifícios, de condicionamentos e, sobretudo, de empobrecimento económico-financeiro. Terminologias usadas para caraterizar lutas partidárias esfumaram-se na contingência de estar em risco o emprego, dado que falta trabalho e nem as manigâncias governativas de pagar a quem está em casa, poderá salvar o afundamento do tecido económico e da componente de futuro sem dificuldades. Certos arautos da (pretensa) igualdade estão equivocados com as mentiras que continuam a reproduzir, querem sustentar artificialmente e, em especial, a tentarem não-dizer a verdade, por muito dura e atroz que possa ser...

– É preciso de uma vez por todas que sejam creditados conceitos e não se usem por uns tantos se julgarem superiores ao resto da populaça. Fala-se, recorrentemente, de ‘cultura’ para reclamar da falta de ajudas para um setor que se considera dono-e-senhor disso a que denominam de ‘cultura’, como se outras coisas que não as suas produções e exibições não sejam cultura. Dever-se-ia designar muito dessa pretensa ‘cultura’ antes de: artes, ofícios, tecnologias, cançonetismo/musicalidades, espetáculos ao espelho e para os seus, escritorice enrolada em autosatisfação... e nem as doutas opiniões dos comentadores televisivos ou nas redes-sociais – que vivem do mesmo, embora subsidiados a gosto – os salvam de não serem os únicos a produzir ‘cultura’... Esta faz-se na vida e não precisa de viver de encomendas nem de se fazer comendar. A verdadeira cultura tem raiz no povo, bem mais inteligente, sábio e culto do que tantos/as opinadores à ração, mas sem razão. Tirem o alvo da tal ‘cultura’ das franjas da capital e ver-se-ão mais factos culturais, que não vivem nem precisam de palcos esfumados nem de estarem sob a cortina dos fumos ideológicos... É verdade, a pandemia veio peneirar o farelo oportunista e falso com que anos-a-fio nos têm manipulado.

– O setor do futebol – que não é mais um desporto, mas antes uma indústria ou talvez comércio – continua vivo e, retirando o público, das bancadas, igual a si mesmo: quezilento, preconceituoso, manipulado, arrogante e – numa palavra – como o mais fidedigno retrato do país que somos: a viver no faz-de-conta que é rico, mas empobrecido até ao tutano... Veja-se como se compram-e-vendem jogadores como se não houvesse amanhã e os resultados não aparecem. Repare-se como se discute quase até à exaustão uma ‘crise’ num clube, enquanto outros vão surfando sob as ondas iguais, desde que não se descubra. Atente-se às declarações ditas de paz, mas que mais não são do que um insuflar de combustível para a fogueira, onde todos se irão queimar... irremediavelmente.  

Já teremos reaprendido com tantos sinais ou ainda estaremos a tatear na acomodação? Quando começaremos a viver na verdade, sem disfarces nem atropelos?  

 

António Sílvio Couto

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Quaresma em novo confinamento

 


O ano passado fomos apanhados a meio da Quaresma naquilo que é designado como o primeiro confinamento, que durou de 15 de março (3.º domingo da quaresma) até 31 de maio (domingo do Pentecostes)…

Há quase um ano atrás a surpresa causou medo…o medo gerou suspeita… a suspeita provocou dúvida…a dúvida fez mudar os comportamentos…essa mudança trouxe novas formas de estar em sociedade… essas formas, maioritariamente, foram fechando as pessoas, que se vem tornando mais egoístas, desconfiadas e mesmo interesseiras… umas para com as outras e até para com Deus.

Para encontrarmos pistas de reflexão sobre tudo isto, que nos tem estado a acontecer desde os finais de março do ano passado, vamos cingir-nos a aspetos, desta vez, mais de ordem da dimensão espiritual, não esquecendo as suas manifestações no âmbito cristão/católico… onde se podem incluir algumas iniciativas programadas para este longo tempo de suspensão das celebrações religiosas reformuladas, bem como as necessárias implicações deste longo ‘deserto’ a que fomos confinados por obrigação sanitária e sentido cívico.

 a) Linguagem, postura e comunicação

Não podemos usar uma linguagem demasiado do liturguês, porque os não-iniciados não compreendem nem tão básica sem isso possa parecer que os mistérios se reduzem a expressões banais; a postura se é de ver o rosto e as suas expressões, o uso da máscara, para além de ser desnecessário, tal a distância das pessoas umas em relação às outras, inviabiliza qualquer expressividade por muito simples que esta se possa verificar; comunicação é bem diferente de falar para ouvintes e para telespectadores ou internet-ouvintes, estes estão perto embora longe, mas querem ter uma mensagem que possa ser pessoal, próxima e adequada às suas circunstâncias… ou, então, desligam ou procuram quem lhe fale de forma mais do que vazia!

Pôr no ar missas como se estivesse presente uma assembleia presencial não é o mesmo que estar a celebrar para uns poucos – mesmo que representativos – de serviço. Aquelas missas não são ‘teatro’, mas também não podem ser feitas sem cuidado nem menos boa imagem. Mostrar o que se faz é, claramente, diferente de fazer o que se quer mostrar. Há códigos de comunicação e de duração para cada um dos momentos, não se pode, por isso, fazer-de-conta que tudo é igual e com a idêntica valorização. Vamos aprendendo com os erros?

 b) Depois do ‘on-line’ que prática presencial?

Há quem considere que o ‘abuso’ de missas na internet, na televisão e nas redes sociais veio enfraquecer a participação presencial – tendo em conta os meses que decorreram desde junho até janeiro – e pode ter criado acomodação a bastantes dos praticantes, agora ‘fidelizados’ à estação televisiva, de rádio ou de linha internet e menos atentos ao incómodo de sair de casa para participar com outros na celebração da fé… Poderemos considerar que certos hábitos de acomodação – já para não falar de negligência ou de omissão – podem trazer consequências graves a curto e a médio prazo: as crianças, os adolescentes e mais velhos deixaram de estar nas nossas assembleias, quando as há; o tempo de ‘catequese’ (nem sequer via internet) não conseguiu criar condições estáveis de fé; alguns ‘ritos’ deixaram a manifesto que eram mais sociais do que cristãos…

Mesmo assim deveríamos mergulhar mais nas causas do que nas possíveis consequências, pois aquelas podem trazer à luz do dia uma nítida falta de evangelização, mesmo que se possa verificar alguma sacramentalização…algo superficial senão mesmo anódina, descomprometida e vazia.   

 c) Que esperar da quaresma deste ano?

«Neste tempo de Quaresma, acolher e viver a Verdade manifestada em Cristo significa, antes de mais, deixar-nos alcançar pela Palavra de Deus, que nos é transmitida de geração em geração pela Igreja. Esta Verdade não é uma construção do intelecto, reservada a poucas mentes seletas, superiores ou ilustres, mas é uma mensagem que recebemos e podemos compreender graças à inteligência do coração, aberto à grandeza de Deus, que nos ama ainda antes de nós próprios tomarmos consciência disso. Esta Verdade é o próprio Cristo, que, assumindo completamente a nossa humanidade, Se fez Caminho – exigente, mas aberto a todos – que conduz à plenitude da Vida» – mensagem do Papa para Quaresma deste ano.

Cuidemos, por isso, de ter tempo de oração pessoal, familiar e, quanto possível, comunitário. Escutemos a Palavra de Deus diariamente. Usemos os meios que a Igreja nos propõe – jejum, caridade (renúncia quaresmal) e reconciliação. Estamos confinados fisicamente, mas não nos deixemos condicionar espiritualmente, estando atentos às sugestões da nossa diocese e às possíveis propostas da nossa paróquia. Como nos refere o Papa Francisco: «cada etapa da vida é um tempo para crer, esperar e amar. Que este apelo a viver a Quaresma como percurso de conversão, oração e partilha dos nossos bens, nos ajude a repassar, na nossa memória comunitária e pessoal, a fé que vem de Cristo vivo, a esperança animada pelo sopro do Espírito e o amor cuja fonte inexaurível é o coração misericordioso do Pai».

Deus cuida sempre de nós. Cuidemos, agora, uns dos outros, em Igreja e como Igreja católica.

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Tiques e truques percebidos ou encapotados


 Estas coisas da pandemia como que têm servido de oportunidade para que algumas forças – políticas, sociais, económicas e mesmo culturais – tenham deambulando por entre o que são e muito daquilo que fazem ou desejam realizar…não deixando ainda escapar brechas de incongruência entre aquilo que dizem e tanto do que fazem mal, sem deixar de quantificar tantas das omissões.

= Como não podia deixar de ser, as leituras dos resultados das eleições presidenciais, no final do mês transato, serviu para branquear, iludir ou suscitar as mais díspares interpretações:

* A autoapelidada – explicitaremos melhor este adjetivo – ‘esquerda’ recolheu cerca de vinte por cento dos votos – com dois candidatos vindos por parlamento europeu, para onde voltaram ao seu el dourado político…

* Uma tal ultradireita auferiu quase meio milhão de votos… ficando em segundo lugar em mais de metade dos distritos… e destronando os eternos conquistadores do Alentejo.

* Para além da reeleição o presidente conseguiu algo inédito: ganhou em todos os concelhos do país…

= Decorrido que foi o ato eleitoral, onde a pandemia não trouxe mais engulhos à participação votante do que noutras circunstâncias, continuamos a ver sangrar o povo com milhares de mortos – houve dias com mais de três centenas – acrescentando milhares de milhares de infetados e uma nação apreensiva quanto ao futuro mesmo que um tanto negligente no presente:

* Uma certa ‘esquerda’ matreira vai criando ou sobrevoando em factos políticos com lacunas de autoridade. Defensora da estatização da saúde ficou em silêncio quando uma equipa de médicos e enfermeiros alemães com vínculo militar se alojou num hospital do setor privado. Não deveriam ter lutado pela sua inserção nos espaços do serviço nacional de saúde estatal? Porque ficaram calados e sem palavras? Até onde irá o aproveitamento das circunstâncias para enganar as condições? 

* Essa tal esquerda – diz-se deste modo, mas usa os meios mais básicos do capitalismo, colocando-se nas arenas do poder para ganhar proveito na hora de recolher os frutos – matreira tem conseguido lançar para a discussão questões fraturantes, mesmo que possam estar desadequadas ao tempo… o exemplo mais nítido foi a aprovação definitiva – embora à espera de promulgação – da eutanásia: não é justo nem correto dar licença para matar, quando os agentes da saúde se esfalfam para manter na vida as vítimas de covid-19…

= O setor do trabalho é um campo predileto para certas forças se dizerem defensoras dos trabalhadores. Em muitos casos nota-se que isso é meramente retórico, pois acirram os que estão em inferioridade e depois deixam-nos à deriva e à míngua de tudo. É confrangedor passar, hoje, por certas localidades da (dita) ‘margem sul’ e ver imensos pavilhões, muitos espaços e tantos lugares a caírem apodrecidos, quando há três ou quatro décadas eram focos de emprego, movimentados e produtivos… Que dizer da tal transportadora aérea nacional? Esquartejada por sindicatos e dividida por partidos não passa de um sorvedouro de dinheiro público e onde os titulares da área mais não parecem do que gestores de final-de-feira, hipotecando inclusive as suas aspirações futuras…

= Agora que o país voltou a confinar e se paga – sabe lá com que consequências a curto e a médio prazo – para nada fazer, mantém-se ativo o futebol, sobretudo o dito ‘indústria’ e já pouco desporto. Cada jogo, mesmo sem público nas bancadas, torna-se um fenómeno de estudo; antes, durante e depois. No ‘antes’ conjetura-se sobre quem poderá jogar, como e porquê; ‘durante’ esquadrinha-se cada intervenção desde os jogadores (de tão armadilhados nem parecem atletas) até aos treinadores e afins, mas particularmente os designados árbitros; no ‘depois’ temos e vemos horas e horas a lamber o osso que não se comeu, mas que serve de entretenimento em vários canais televisivos.

Algumas intervenções fazem-nos questionar o equilíbrio dos comentadores. Aliado ao fervor clubístico emergem figuras dignas de dó (ou será de nojo?), desde o possível teor de palavra até ao negligente acesso à imagem, sem esquecer a desconformidade entre uma e outra. Perante a contestação dos árbitros, deixo uma proposta: joguem sem eles, pois assim acabaria um foco de tensão e de má interpretação das regras do jogo. Se um jogador parte um pé a outro, isso não é digno de ser castigado? Por mim dava-lhe, linearmente, de suspensão o mesmo tempo daquele que lesionou…até voltar a jogar.

Sim, é preciso dizer: ‘basta’ à impunidade de tantos que vivem dependurados nas coisas do futebolês!       

António Sílvio Couto

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Quaresma 2021- significado e vivência


 «A tentação de Jesus manifesta a maneira própria de o Filho de Deus ser Messias, ao contrário da que Lhe propõe Satanás e que os homens desejam atribuir-Lhe. Foi por isso que Cristo venceu o Tentador, por nós: «Nós não temos um sumo-sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas; temos um, que possui a experiência de todas as provações, tal como nós, com exceção do pecado» (Hb 4, 15). Todos os anos, pelos quarenta dias da Grande Quaresma, a Igreja une-se ao mistério de Jesus no deserto» - Catecismo da Igreja Católica, n.º 540.

‘Quaresma’ vem da 40, isto é, faz-nos recordar e memorizar os 40 anos de peregrinação do povo de Israel pelo deserto, os 40 dias que Moisés e Elias passaram em oração antes de iniciarem, respetivamente, o seu ministério e também os 40 dias que Jesus jejuou no deserto, após o batismo.

40 dias é a contagem de tempo que une a 4.ª feira de Cinzas com o domingo de Ramos.
Eis uma pequena ressonância dos domingos da Quaresma deste ‘Ano B’:
1.º – Todos os vossos caminhos, Senhor, são amor e verdade;
2.º – Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos;
3.º – Senhor, Vós tendes palavras de vida eterna;
4.º – Se eu não me lembrar de ti, Jerusalém, fique presa a minha língua;
5.º – Dai-me, Senhor, um coração puro.

Sinais da caminhada
Os tempos e os dias de penitência ao longo do ano litúrgico (o tempo da quaresma, cada sexta-feira em memória da morte do Senhor) são momentos fortes da prática penitencial da Igreja. Esses tempos são particularmente apropriados aos exercícios espirituais, às liturgias penitenciais, às peregrinações em sinal de penitência, às privações voluntárias como o jejum e a esmola, à partilha fraterna (obras de caridade e missionárias) - Catecismo da Igreja Católica, n.º 1438.
A caminhada da Quaresma tem diversos sinais, uns mais tradicionais e outros que podem ser um tanto inovadores; uns de âmbito interior e outros de expressão mais exterior; alguns de natureza pessoal e outros mais de expressão comunitária.
- Aspetos mais pessoais: conversão/oração, penitência, jejum - apresentados logo na liturgia da 4.ª feira de Cinzas - Mt 6, 1-6.16-18; o recurso ao sacramento da penitência (confissão) e, claramente, a vivência da eucaristia de domingo e, se possível, à semana...
- Momentos (celebrações) comunitários: desde logo de formação na fé e no compromisso (como retiros, recoleções e tempos de silêncio), celebrações penitenciais (preparatórias da celebração do sacramento da penitência), via-sacra (sobretudo à 6.ª feira, em consonância com a Paixão de Jesus), procissões penitenciais (ou alusivas ao Senhor dos Passos), renúncia quaresmal (na linha das propostas da diocese), partilha com os outros (dando novo significado ao jejum)...
Precisamos de ser inventivos no amor a Jesus. Cada um poderá e deverá encontrar a sua forma e tempo de oração, arranjar algum espaço apropriado e com sinais alusivos à dinâmica quaresmal com uma cruz, a Bíblia, uma vela e algo que possa ajudar a vivenciar o tempo diário de oração.

 

Nota

Atendendo ao estado de confinamento em que nos encontramos e deve prosseguir durante o tempo da Quaresma deste ano, poderemos ter de vivenciar muitas destas propostas em condição mais pessoal/familiar do que em tempo comunitário… Assim não deixemos de viver este tempo de graça.

 

António Sílvio Couto

 

 

 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Relação de confiança para o cuidado dos doentes


 No dia 11 deste mês celebra-se, pela vigésima nona vez, o ‘dia mundial do doente’, com o tema: «Um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos» (Mt 23, 8). A relação de confiança, na base do cuidado dos doentes

Na sua mensagem o Papa Francisco centra a sua atenção ‘nas pessoas que sofrem em todo o mundo os efeitos da pandemia do coronavírus’, tanto as pessoas doentes como as que as assistem nos centros sanitários como no seio das famílias e das comunidades.
Respigamos da mensagem papal alguns dos aspetos tratados: 

1. «O tema deste Dia inspira-se no trecho evangélico em que Jesus critica a hipocrisia de quantos dizem mas não fazem (cf. Mt 23, 1-12). Quando a fé fica reduzida a exercícios verbais estéreis, sem se envolver na história e nas necessidades do outro, então falha a coerência entre o credo professado e a vida real».

De facto, não andará por aí muita gente a gabar-se de fazer algo e de nada mexer de significativo? Quem tem medo daquilo que a Igreja realiza e não publicita? Não será hipocrisia querer ser simpático sem conteúdo nem conexão? Sob a máscara ostentada não andará muita hipocrisia indisfarçável?

2. «A experiência da doença faz-nos sentir a nossa vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, a necessidade natural do outro (...) A doença obriga a questionar-se sobre o sentido da vida; uma pergunta que, na fé, se dirige a Deus».
Job é apresentado pelo Papa como a ‘figura emblemática’ deste diálogo e questionamento de si mesmo, pelos outros e para com Deus. Será que, nas nossas fragilidades, descobrimos as causas das nossas fragilizações? Da nossa experiência de doença temos descoberto a solicitude de Deus para connosco? Ajudamos os outros a encontrarem Deus, por ocasião das suas experiências mais questionantes da vida?

3. «A doença tem sempre um rosto, e até mais do que um: o rosto de todas as pessoas doentes, mesmo daquelas que se sentem ignoradas, excluídas, vítimas de injustiças sociais que lhes negam direitos essenciais (...) A atual pandemia colocou em evidência tantas insuficiências dos sistemas sanitários e carências na assistência às pessoas doentes (...) Ao mesmo tempo, a pandemia destacou também a dedicação e generosidade de profissionais de saúde, voluntários, trabalhadores e trabalhadoras, sacerdotes, religiosos e religiosas».
Em todo este processo se destacou o ‘profissionalismo, abnegação, sentido de responsabilidade e amor ao próximo’ em que ajudaram, trataram, confortaram e serviram tantos doentes e os seus familiares. Como não deviam merecer estes ‘heróis’ mais respeito por parte da população. As palmas de aplauso não foram revertidas em ofensas aos que procuraram fazer o seu melhor? Não faltarão sinais de cura pela atenção e não pela simples medicação?

4. «Para haver uma boa terapia é decisivo o aspeto relacional, através do qual se pode conseguir uma abordagem holística da pessoa doente. A valorização deste aspeto ajuda também os médicos, enfermeiros, profissionais e voluntários a ocuparem-se daqueles que sofrem para os acompanhar ao longo do itinerário de cura, graças a uma relação interpessoal de confiança».

Se em tantos setores da vida, a confiança é essencial, muito mais é necessária nas questões de saúde e de cuidado das pessoas carenciadas de proteção. Ainda podemos acreditar em certas ‘boas intenções’ de ideólogos anti-vida?

 5. «Uma sociedade é tanto mais humana quanto melhor souber cuidar dos seus membros frágeis e atribulados e o fizer com uma eficiência animada por amor fraterno. Tendamos para esta meta, procurando que ninguém fique sozinho, nem se sinta excluído e abandonado».

Se atendermos ao caso português que dizer duma sociedade que deixa aprovar no Parlamento a eutanásia, quando tantos profissionais de saúde gastam o seu tempo e esforços a darem a vida? Não seremos um povo, no mínimo esquizofrénico, nas ideias e na ética…dita republicana?

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

‘Deus é amor’…nem todo o ‘amor’ é de Deus

 


Afirmar, reconhecer e viver segundo o princípio: ‘Deus é amor’ (1 Jo 4,16), é algo de básico, inovador e de descoberta. De facto, aceitar que Deus é amor e que o manifesta para comigo é algo de grande graça e de dom divino… sobretudo neste tempo de incertezas, numa época de dúvidas e nesta sociedade demasiado horizontal e pouco a olhar para o Alto…

Por entre várias contagens poderemos considerar que a palavra ‘amor’ aparece muitas vezes – sugerimos a contagem nas vertentes que abordamos de seguida – na Bíblia, tendo essa palavra diversos significados, enquadramentos e sentidos, tanto no Antigo como no Novo Testamento.

* No Antigo Testamento, a palavra mais comum que traduz amor é a expressão hebraica ‘ahab’ ou na variação ‘aheb’. Elas aparecem cerca de 250 vezes tanto na forma nominal como no modo verbal. O termo denota um sentido de amor amplo, incluindo o amor romântico e legítimo entre pessoas, o amor fraternal e o amor divino. A segunda expressão mais importante para falar de ‘amor’ no Antigo Testamento é ‘hesed’ e manifesta uma escolha deliberada de afeição e bondade, com um forte sentido de lealdade. Nas traduções habituais da  Bíblia, ‘hesed’ normalmente é referido como “bondade”, “graça” e “misericórdia”. O termo ocorre mais frequentemente em Génesis para exprimir o amor humano. No livro do Deuteronómio é comum o sentido de amor a Deus. Também ocorre com alguma frequência nos Salmos e nos Provérbios. Outra palavra usada para exprimir o sentido de amor no Antigo Testamento é ‘haham’, sendo traduzida normalmente por “amor” e “compaixão”, ela ocorre cerca de 26 vezes no texto hebraico. O significado da raiz da palavra é “nascido do mesmo ventre” e representa a ideia e o sentimento do amor entre irmãos.
Para falar de amor, como relacionamento sexual, é usado o termo ‘yada’, que é traduzido como “conhecer” e também a expressão ‘sakab’, que quer dizer “deitar-se”. Essa duas palavras realmente descrevem o “tornar-se uma só carne” e onde está fundamentado o compromisso de fidelidade matrimonial.
* Na literatura grega clássica a expressão mais comum para caracterizar amor é ‘eros’, que é o amor sexual, sensual, impulsivo e, digamos, natural. Essa palavra tem sua origem na mitologia onde o deus do amor, Eros.
* No Novo Testamento não aparece a palavra grega que exprime o amor erótico, com características meramente sexuais. Encontramos duas expressões verbais gregas que se destacam para definir o sentido do verbo amar: ‘phileo’ e ‘agapao’ e as formas substantivas ‘philós’ e ‘agápe’. ‘Philós’ ocorre 30 vezes no Novo Testamento e exprime um relacionamento próximo, amizade, estima e afeto terno. O verbo ‘phileo’ aparece cerca de 25 vezes no Novo Testamento, com vários significados.
No entanto, a palavra mais comum no Novo Testamento para falar de amor é ‘agapao’. Na forma verbal aparece 137 vezes e na forma nominal (amor) é usada 116 vezes. O sentido da palavra é igual ao equivalente hebraico e é usado nos mais variados sentidos: o amor de Deus para com os seres humanos, destes para com Deus e nas relações entre os humanos.
Por influência da Vulgata (tradução latina do texto bíblico em latim), algumas versões mais antigas traduzem ‘agápe’ por “caridade” (do latim ‘caritas’, que significa “afeição”, “amor”, “estima”).

 = Feito este percurso pela cultura judeo-cristã e tentando compreender para além da versão platónica ou de uma mais erotizada, podemos considerar que isso a que se chama de ‘amor’ é (ou pode ser) egoista e interesseiro, pode manifestar algo mais do que maturidade psicológica e espiritual, pode revelar facetas nem sempre assumidas da própria pessoa e para com aqueles com quem se relaciona.

Poderemos considerar nesta abordagem ao tema do ‘amor’ três elementos que o compõem: compromisso (fidelidade), intimidade e dedicação (tempo). Isto poder-nos-á ajudar a avaliar muitos dos ‘amores’ em que nos intercruzamos: humanos (em casal, em família), psicológicos e espirituais.

Como pode alguém amar outra pessoa, se não se ama a si mesmo? Os biliões de sites de pornografia não revelam essa lacuna de amor a si próprio? As ‘ofertas’ de compensação sexual não manifestam lacunas de personalidade em crise? A vulgaridade e oscilação de relacionamentos – hetero ou homossexuais – não contradizem a necessidade de ser amado e de amar, gratuitamente?   

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Pandemia: arco-íris da tal ‘nova era’?

 


Dá a impressão que nunca como agora algo aconteceu com dimensão tão global e em simultâneo em toda a face da Terra. A pandemia do ‘coronavírus’ tornou-se um fenómeno que atingiu dimensões, para além de catastróficas a vários níveis, também algo transversal às culturas, aos povos, às línguas, aos sistemas políticos e ideológicos, nas diversas expressões religiosas… é um facto transnacional de largo, profundo e alto alcance.

Para além do manto do medo que se estendeu sobre tudo e todos, haverá algo que nos condiciona e que ainda não fomos capazes de descobrir. Estamos hoje mais desconfiados e medrosos do que ontem. O futuro pessoal, familiar, social, coletivo (de nações e regimes) está em suspenso. O ‘mito de Sísifo’ parece caraterizar o nosso comportamento, desde as coisas mais básicas até às mais complexas: chegados ao topo do monte, carregando o saco de pedras, rebolamos para o sopé e reiniciando a caminhada, mais em forma de castigo do que com perspetivas de saída…

– Nota-se uma quase-banalização da morte, tal a quantidade diária e absorvente de falecimentos. A curvatura pesada do efeito desta pandemia não nos deixa levantar os olhos para o Alto e como que ficamos esmagados pelo nosso destino. Há algo novo: Deus não conta ou parece ter-se ofuscado em todo este processo e nem os cultivadores da dimensão espiritual e religiosa da pessoa humana têm dado conta daquilo que se está a passar. Os responsáveis religiosos – de forma indistinta e um tanto acrítica – tornaram-se obedientes e submissos às forças sanitárias e estatais. Dá a impressão que perpassou por este núcleo de pensadores da fé uma nuvem de esquecimento e/ou de obscurantismo não assumido.

– Sente-se uma sensação de que ‘alguém’ – sem rosto nem nome, sem identidade nem configuração – manobra tudo isto. Atendendo à dimensão holística de todo este processo se pode conjeturar que ‘alguém’ gerou e está a gerir tudo isto com subtileza. Recorramos a conceitos e tentemos explicar incidências.

Antes de mais o que é a ‘new age’ (nova era) e como poderemos enquadrar isto que estamos a viver neste tempo de pandemia? A ‘nova era’ situa-se no enquadramento de um movimento assaz abrangente, que não poderá ser reduzido a uma expressão exotérico-religiosa, mas envolvendo também correntes filosóficas e ecologistas, económicas e desportivas, sem esquecer a dimensão político-social, em ordem a uma nova visão de sociedade e mesmo de cultura.

Partindo da divisão das grandes etapas da Humanidade, servindo-se dos signos do zodíaco – referem-se as ‘eras’ na divisão de dois mil anos e acentuam-se as três últimas como: a ‘era de touro’ (4001 a 2000 a.C.) – na cultura egípcia; a ‘era de carneiro’ (2001 a. C. a 0) – na religião judaica; a ‘era de peixes’ (ano 0 a 2012) – no tempo do cristianismo; a ‘era de aquário’ (desde 2012 e por mais dois mil anos) – como essa ‘nova era’, onde confluem múltiplos aspetos de índole pessoal – veja-se o tema da ‘autoestima’ – com referências à relação planetária e às incidências na natureza – as questões ecológicas – com outros aspetos de âmbito social – as questões fraturantes de exaltação da liberdade pessoal autónoma…

– Como podemos, então, enquadrar os tempos que estamos a viver neste conceito de ‘nova era’? Há sinais, nesta pandemia, de que a ‘nova era’ estende aqui os seus tentáculos? Até onde irá a capacidade dos cristãos – os principais visados na cultura da ‘nova era’ – aos desafios pandémicos?

Desde logo o acentuar a dimensão individualista da pessoa – cada um pode salvar-se a si mesmo, desde que se autoconvença e use certos meios de introspeção, de meditação, rejeitando quem lhe dê orientações – à exceção de algum guru ou guia – pois possui em si mesmo capacidade de autorregeneração. A supressão de ações litúrgicas comunitárias – específicas do cristianismo – não soa a rejeição e a manipulação? A exaltação da moral ‘à la carte’ – veja-se a panóplia de movimentos amorais e sincréticos em difusão – cresce e pulula numa repulsa às orientações cristãs. O aparecimento do ‘arco-íris’ no contexto de pandemia talvez não se possa considerar de todo inocente, pois é usado como símbolo de alguns movimentos de contestação sexual.

Outro aspeto não menos relevante é uma espécie de anonimato de quem conduz. Não se sabe quem é o guia essencial da ‘nova era’. Nesta pandemia quem pode arrogar-se de protagonista? Qual a sede ou os mentores, tanto da doença, quanto da (pretensa) cura? O surgimento das vacinas – tão rápido, barato e universal – não terá por detrás alguma ‘ordem mundial’ comandatária disto tudo?

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Esculpir sobre material rijo

 


Por estes dias tenho recordado essa pequena estória da visita de um grupo de alunos a um atelier de escultor, onde um dos visitantes questionou o artista pela forma como ele ia fazendo as peças que tinha ali expostas, ao que o mestre-escultor respondeu: eu só tiro da pedra aquilo que está a encobrir a estátua…

Vem isto a propósito da forma como, muitas vezes, vamos entendendo as pessoas, que se vão manifestando, isto é, revelando naquilo que há de mais encoberto ou não antes percebido, mas se põe a manifesto quando menos contamos.

Por estes dias acompanhei, telefonicamente – bem gostaria que tivesse sido mais de forma presencial, mas o confinamento não o tem permitido – um padre amigo, que, no espaço de quinze dias, perdeu a mãe e o pai, tendo, no intervalo, estado em quarentena devido ao ‘covid-19’. Tanto que me pediu para celebrar a missa do funeral. Foi interessante escutar aquilo que estes pais viveram, a forma como educaram os filhos e, sobretudo, os valores transmitidos.

Recolhendo da partilha ficou-me que, se a mãe tinha e estava em espírito cristão, o pai vivenciou, em tempos recuados de há quatro décadas, os fervores revolucionários dialético-marxistas, mesmo nas terras latino-americanas. Com o caminhar para o poente da vida, estes pais foram-se apegando mutuamente com um casamento de mais de meio século. A prova de afinidade está, claramente, manifesta na curta distância de falecimento entre ambos.

Se sobre a mãe o padre não tinha dúvidas da sua intrínseca fé, quanto ao pai, apesar de tudo, sempre o viu algo remitente nas questões religiosas. No entanto, a surpresa emergiu após o passamento da esposa. Os tempos últimos – cerca de quinze dias apenas – foram de apelo ao divino, tendo sido – como se dizia dos cristãos mais tradicionais em terras de cristandade – reconciliado e ‘confortado com os sacramentos da Santa Madre Igreja’…

A avaliação deste filho-padre, feito seminarista à revelia do pai há cerca de quarenta anos, foi simples: ele era duro, mas Deus tinha-o tocado lá no fundo e agora emergiu a semente lançada…

 

= Perante esta lição de vida considero que posso colocar algumas questões bem mais simples e exigentes do que considerações piedosas ou lamentos de circunstância:

* Do material rijo e duro se faz algo de significativo – de facto, não é de coisa mole, inerte ou fácil que se constrói seja o quer for, muito menos a personalidade de alguém. Efetivamente nos tempos que correm onde tudo parece mais melífero do que virtuoso (no sentido etimológico do termo: ‘vir, viris’, homem, força), torna-se essencial olhar para quem soube acrisolar-se na escola da vida, aprendendo com as dificuldades e ensinando mais com os gestos do que com palavras… e, estas se tiverem de ser usadas, que o sejam para explicar o que se vive…

 * Educar pelo testemunho – numa época em que se ouvem em excesso tantos ‘mestres’ de pedagogia – mesmo ao nível da fé – escasseiam aqueles que dão espaço e preferência ao seguimento pessoal. Parece que tornamos certos aspetos da vida – mesmo a fé e a sua prática – numa espécie de ideologia, que se usa ou manipula conforme convém, se é útil ou se compromete no mínimo.

 * Confiar nas pessoas – quando, de tantas e tão díspares formas, se manifesta a descrença nos outros, torna-se essencial acreditar que todos e cada um merece, ao menos, o benefício da dúvida, pois, se a semente – como se diz nas Sagradas Escrituras – é boa, só precisamos de cuidar do terreno, esse sim, nem sempre de boa qualidade.

* Saber investir mais do recolher resultados – neste tempo em que vivemos nessa ‘cultura’ da máquina de coca-cola (passe a publicidade), onde se coloca a moeda e sai o produto, torna-se fundamental saber que o melhor dos patrimónios não se confina às coisas materiais, mas naquilo em que se investe: as pessoas e essas continuam a ser dignas da todas as apostas e quanto pode cada ser capaz de capacitar os outros para serem sem meramente parecerem.

Esculpir sobre material rijo implica conhecer quem se quer educar, saber quem o vai fazer e quais os resultados que se deseja atingir. Estaremos conscientes deste percurso sem querermos queimar etapas?

 

António Sílvio Couto

Que luz brilhará ainda?

 


Ao fim deste dia de ‘Nossa Senhora das Candeias’, versão popular da festa litúrgica da Apresentação do Senhor, sinto como que uma certa tristeza por não poder celebrar comunitariamente este terminus das festividades natalícias. Com efeito, os números e a gravidade, o confinamento e as precauções, o cuidado e a atenção… do tempo de pandemia fazem de tudo isto algo envolto em mistério não de Deus, mas humano… demasiado obscuro, confuso e apreensivo.

Deixo um texto de luz, desde os tempos mais remotos do cristianismo, com algumas observações na direção daquilo que Deus nos está tão codificadamente a falar…nos tempos mais recentes.

 Luz esplendente da santa glória

Do Pai celeste, imortal,

Santo e glorioso Jesus Cristo!

Sois digno de ser cantado a toda a hora e momento

Por vozes inocentes,

Ó Filho de Deus que nos dais a vida.

Dissipais as trevas do universo

E iluminais o espírito do homem,

Vencendo a noite com a luz da fé.

Luz da Luz sem ocaso,

Imagem clara do esplendor divino:

O céu e a terra proclamam a vossa glória.

Chegada a hora do sol poente,

Contemplando a luz do entardecer,

Cantamos ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo.

 Na Liturgia das Horas encontramos um hino que consubstancia alguns dos aspetos mais relevantes da revelação de Jesus como luz do mundo. O hino do lucernário – rezado nas vésperas I de domingo no tempo comum – é atribuído à Igreja primitiva, sendo enriquecido com o contributo de S. Gregório de Nazianzo do século IV.

Este belo hino, enraizado, na longa e profunda Tradição da Igreja, tem mais forte expressão na oração de vésperas da Igreja. Com efeito, as Vésperas celebram-se à tarde, ao declinar do dia a fim de agradecermos tudo quanto neste dia nos foi dado e ainda o bem que nós próprios tenhamos feito. Com esta oração, que fazemos subir como incenso na presença do Senhor e em que o erguer das nossas mãos é como o sacrifício vespertino, recordamos também a obra da Redenção.

E, num sentido mais sagrado, pode ainda evocar aquele verdadeiro sacrifício vespertino que o nosso Salvador confiou aos Apóstolos na última Ceia, ao inaugurar os sacrossantos mistérios da Igreja, quer aquele sacrifício vespertino que, no dia seguinte, no fim dos tempos, Ele ofereceu ao Pai, erguendo as mãos para a salvação do mundo inteiro. Finalmente, no sentido de orientar a nossa esperança para a luz sem crepúsculo, oramos e pedimos que sobre nós brilhe de novo a luz, imploramos a vinda de Cristo, que nos virá trazer a graça da luz eterna. Nesta hora, unimos as nossas vozes às das Igrejas orientais, cantando: ‘Luz esplendente da santa glória do Pai celeste e imortal, santo e glorioso Jesus Cristo! Chegada a hora do sol poente, contemplando a estrela vespertina, cantamos ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo’... Quando a Igreja católica reza, celebra a fé acreditada… hoje como ontem e em união com todos quantos o viveram.

De facto, precisamos de acreditar que algo de novo e de diferente vai surgir após esta provação. Assim sejamos dignos de ler, de entender, de interpretar e de viver em consonância com os desafios apresentados.

 

António Sílvio Couto