Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 28 de abril de 2022

‘Proibir’ – nunca mais ou nunca menos?

 


Por estes dias ouvi um desses ‘iluminados’ na comunicação social de serviço ao regime de quem está no poder (ontem como hoje), convertidos da linguagem marxista, a querer advogar que ‘uma certa direita quer ilegalizar o partido’ (comunista) de onde veio…e que, posteriormente, contestou noutras agremiações. Onde andará esse intelectual de entre os seus (muitos e desalinhados) alfarrábios de antanho? Guinado de onde veio não terá ainda esquecido a dialética (‘diamat’) de discussão, em vista de outra antítese? A quem interessará conjeturar sobre a ‘ilegalização’ de uma formação partidária em erosão crescente? Não será mais avisado deixá-los ir a votos até à sua (possível) extinção?

 1. 48 anos depois da dita ‘revolução do 25 de abril’ ainda pululam em muitas mentes (e noutros mais comportamentos) fetiches saudosistas de serem perseguidos e nisso conquistarem identidade. Mesmo que tendo alguma aceitação votante – diga-se em volátil expressão – não conseguiram estar à luz do dia nem adquiriram identificação não-subversiva. Aquilo pelo qual lutaram, que diziam ser a liberdade, ainda está enquistado na forma, na expressão e mesmo no conteúdo…da resistência ao ‘fascismo’!

 2. Cada vez mais se pode perceber que a bolha em que certos ‘políticos’ falam, vivem ou se movem não está articulada com a realidade. Bastará ver o breve hiato – meses ou dias – em que se posicionam entre o tempo de eleição e o espaço de decisão (governança, orientação ou até atitude), tanto ao nível local como no geral. Nalgumas situações quase se torna ridículo ver pessoas encavalitadas – literalmente sobre cavalos, quando os casos envolvem tais equídeos – e se prestam para ‘festas ou romarias’… Como dizia uma figura do anedótico televisivo: não havia necessidade!

 3. Num país quase sempre dependente dos meios de subsistência do exterior como que se torna ousadamente lúcido desejar que tenhamos capacidade de sermos autónomos nas coisas mais básicas e essenciais. Depois de termos aderido à CEE, em 1985, fomos perdendo, de forma crescente, os ‘meios de produção’ na agricultura e nas pescas, comprando a outros o que podíamos ser nós a produzir… Somos mais do que sol e restauração…barata!

 4. Com quase uma década transcorrida chegou por cá o refrão: ‘proibido proibir’ – do ‘maio de 68’ francês. Lá como cá deu-se azo à liberdade em conjugação de libertinagem, fazendo e fazendo fazer quanto pudesse sair da normalidade mais simples e razoável.

Foi com razoável velocidade que a trilogia de antes do ’25 abril’ – Deus. Pátria e família – foi revertida em afastamento desses princípios e a cacofonia dos ‘três efes’ – futebol, Fátima e fado – se converteu numa abjuração na área do proibido mesmo sem proibir.

5. É sintomático que certas forças ideológicas se sintam ostracizadas quando o seu pensamento destoa – no caso da guerra na Ucrânia – da condenação geral. Vieram a terreno – pena é que sejam ouvidos e difundidos de forma quase-acrítica – considerar que estavam a ser vítimas de uma espécie de delito de opinião. Eles que sempre se reclamam das ‘amplas liberdades’ estão a provar daquilo que fizeram nesta longa ditadura (dita) democrática, onde quem não pensa como eles é antidemocrata. Por isso, será bom que reflitam sobre essa rampa deslizante até ao (possível) desaparecimento… como noutros países da Europa civilizada.

6. Só quem tem medo das ideias dos outros, duvidando da veracidade das suas, é que os quer reduzir ao silêncio. Mais do que combates anacrónicos do século vinte, precisamos de ter ideais, que, normalmente, não morrem com investidas de maiorias nem são vencidos quando há convicção, serenidade e capacidade de mobilização. Com certos intérpretes da nossa praça há que ter cuidado, pois nem sempre sabem quem são e com facilidade desvirtuam o que os outros dizem… ‘Proibir’ continua a ser a arma mais subtil dos ditadores e/ou dos ignorantes… e são tantos/as!  

 

António Sílvio Couto

domingo, 24 de abril de 2022

‘25’…de abril ou de novembro…ou ambos?

 

O dia ‘25’ tem sido alvo de disputa nalguns meios: uns querem que seja realçado em exclusivo o ’25 de abril’ de 1974, enquanto outros preferem que seja celebrado o ’25 de novembro’ de 1975. Nesta exclusão estão subjacentes ideários politico-ideológicos nem sempre conciliáveis. No entanto, uma outra fação não-tão-pequena-assim considera que as duas datas podem e devem ser articuladas, pois se complementam…
Tinha quinze anos e três meses, quando aconteceu o ’25 de abril’ e dezasseis anos e onze meses, por ocasião do ’25 de novembro’… recordo-me, por isso, mesmo que em circunstâncias específicas, de tais momentos da nossa vida social, política e cultural.

1. Os exclusivistas do ’25 de abril’ acham-se – então como agora – donos e senhores da liberdade, enfeitada com cravos vermelhos e sob invetivas contra quem não seja dos seus. O mais grave da questão é que uns/umas lutadores/as daquela exclusividade ainda não tinham nascido à época e querem impor ao resto – qual ditadura de coloração dos cravos – das pessoas a sua forma de pensar, de ser e mesmo de estar. Para quando uma boa dose de bom senso e de democracia, que tanto apregoam, mas, de facto, não praticam? Faltam ainda dois anos para a data redonda de meio século da efeméride e os dentes afiam-se para mais uma conquista enviesada…

2. Soube-se, por estes dias, que o atual presidente da República – jovem-adulto ao tempo da revolução – pretende condecorar daqui a dois anos – na maior parte a título póstumo – todos os membros do dito ‘conselho da revolução’. Uns ortodoxos mais azedos saíram a terreno contestando alguns dos elementos daquele fatídico órgão de gestão nos primeiros tempos da incipiente democracia… pois teriam divergido para outras áreas que não a esfera revolucionária cultivada e – hoje – saudosa. Esses mesmos se esquecem do radicalismo marxista de outros do mesmo ‘conselho’, mas, porque são mais da sua afinidade, passam uma esponja colorida. Mais uma vez se nota que a revolução do ‘25A’ serve para o que serve e usa-se quando convém…

3. Por que há medo de trazer à luz do dia a importância – histórica, política, social e cultural – do ’25 de novembro’? Foi porque foi corrigido aquilo que a deriva marxista do ‘processo revolucionário em curso’ semeou de norte a sul do país e nas ‘províncias ultramarinas’, em cerca de um ano e meio? Por que há uma espécie de esconjuro sobre figuras que não fugiram nem desertaram antes, durante e depois da revolução de abril de 74? Por que há tanto pejo em ver com rigor os crimes, os atentados e as atrocidades revolucionárias anteriores ao ’25 de novembro’? Não foi um dos principais fautores do ’25 de novembro’, o primeiro presidente da república eleito – em 1976, com dois terços dos votos – em democracia?

4. Continuamos a viver, no nosso país, sob a penumbra de certos complexos, alguns deles já exorcizados no resto da Europa e do mundo ocidental, mas aqui continuam resistentes. Será isso, como agora se diz, resiliência ou teimosia na ignorância? Seremos tão obstinados e relutantes à mudança que já nem nos apercebemos do ridículo onde ainda estamos? Por que andamos quase sempre atrasados e com facilidade nos podemos tornar o símbolo superlativo da ridicularização de nunca acertarmos com relógio da história? Quem não conhece a observação algo contumaz: um relógio parado está certo, ao menos, duas vezes por dia…

5. Vindo de quem vem, merece que escutemos a observação.
As plataformas online descobriram que o ‘conteúdo inflamatório e polarizador’ atrai audiências online com dinheiro a ser ganho às custas da democracia, considerou Barack Obama. Nessa linha de prevenção salientou o antigo presidente dos EUA que ‘na competição entre verdade e falsidade, cooperação e conflito, o próprio design dessas plataformas parece estar a inclinar-se na direção errada’. Atendendo aos fenómenos de popularidade de certas redes sociais e aos heróis das mesmas, seria de perguntar se a revolução de ‘25 de abril’, em 1974, teria tido sucesso ou se a reconfiguração do ‘25 de novembro’, de 1975, teria surtido efeito?

António Sílvio Couto

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Estrelas e planetas – satélites e cometas

 


Não é nenhuma lição de astro-fisica nem tão pouco de questões do sistema solar com aquela hierarquia de ‘corpos celestes’, mas tão pouco um encadeado de posicionamentos de ‘figuras, figurões ou figurinhas’ do firmamento do nosso panorama politico-socio-cultural.

 1. Tentemos breves ‘definições’ (algo simplistas) de cada um dos termos.

‘Estrela’ – astro (objeto astronómico) de plasma que possui luz própria. ‘Planeta’ – corpo celeste em que orbita uma estrela. ‘Satélite’ – astro que circula em torno de um planeta... Há satélites naturais e artificiais. ‘Cometa’ – são formados por gases solidificados pelas baixas temperaturas do espaço, no caso do sistema solar, quando se aproximam do sol, passam a exibir uma longa e brilhante cauda, que surge em razão da evaporação da sua superfície exposta aos ventos solares.

Em resumo e seguindo o sistema solar: estrela – sol; planeta – terra (e outros); satélite (lua e artificiais), cometa – periódicos e não-periódicos...

 2. Deixemos as coisas inebriáveis da ciência e aterremos nas coisas, factos e situações mais práticas...do nosso quotidiano. Por vezes encontramos ‘estrelas’que só brilham quando estão no poder e se ofuscam se dele são afastadas, por votação ou por caducidade... Foi assim no passado, assim será no futuro próximo. Certos ‘planetas’ funcionam mais como marionetas de quem os manipula, saindo de cena quando já não prestam nem enfeitam quem os promoveu. Alguns ‘satélites’ enfernam de tal insuficência de circunstância que mais parecem ‘robertos’ de feira em maré de afluência reduzida. Que dizer ainda desses outros ‘cometas’ que passam tão rapidamente que mais parecem ‘estrelas cadentes’ por ocasião de nuvens fosforecentes em desalinho...

 3. A nossa conturbada vida sócio-política-cultural está cheia de imprescindíveis e mal-amados. Muitos deles emergiram e diluíram-se com tal velocidade que mais pareciam mensagem do ‘007’ implodida após a comunicação. Falta-nos, claramente, cultura de aceitação da diferença e muitos dizendo-se ‘democratas’ encobrem os piores ditadores, impostores e disfarçados.

Se, noutras ocasiões era habitual medir a qualidade das pessoas pelas reações à derrota, cada vez mais parece ser inquestionável, que o valor das pessoas se aquilata na maré da vitória e na forma de a gerir, pois com facilidade se imitam os tiques de quem era considerado mero ‘cometa’ e agora se tornou ‘estrela’...

 4. Por estes dias uma instituição do ensino superior foi apelidada de ‘satélite’ de um partido político, que por sinal ocupa o poder no governo central. Haverá alguma credibilidade na classificação acusatória? Só agora foi descoberto ou a situação tornou-se tão ostensiva que já não havia forma de a encobrir? Não haverá outras situações, mesmo que disssimuladas sob a forma de promoção de pessoas e ao catapultar ideologias? Que dizer da atribuição – sistemática, reiterada e inconfundível – de vermos em certos ministérios governativos figuras que denotam proximidade e/ou filiação em associações com teor acristão senão mesmo anticatólico? O empenho pela luta contra aqueles que se afirmam estatizantes não será disso revelador? Talvez fosse mais ilustrado não confundir educação com ensino e direito com obrigação...

 5. As raias do inverosímil chegou com as posições dos comunistas portugueses na avaliação da guerra Rússia-Ucrânia. Mais uma vez me vem à lembrança aquela observação da mulher que telefona ao marido a preveni-lo de que as notícias davam conta de que havia um condutor a transitar na autoestrada em contramão, aconselhando-o a que tivesse cuidado... ao que o visado ripostou: e são tantos!

Os ‘cometas’ vermelhos estão a estatelar-se e não conseguem ver que estão fora da pista. Os ‘satélites’ de moscovo já capitularam e, por cá, continuam fiéis sabe-se lá a quê ou a quem. Assim, não dá!

 

António Silvio Couto

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Duas tigelas…cheias ou esvaziadas?

 Por estes dias recordei-me de uma pequena estória-anedótica.


No recreio da escola, um grupo de crianças desfilava o que tinha cada um comido, no ‘jantar’ – coisa que nem sempre significa para todos o que queremos que possa significar – da noite anterior. Situemos ainda o ‘episódio’, em exemplificação, neste contexto de tempo da páscoa. Ora, uns filhos de gente mais abonada de meios iam referindo que tinham comido marisco, lagosta e tantas outras coisas de mesa rica e com ingredientes nem sempre visto em todas as casas. Por seu turno, um pequenito, mais reguila, simplório e desavergonhado, não se querendo ficar para trás na apresentação das comidas pascais, ripostou: eu comi duas tigelas…não sabendo que aquilo que os outros disseram ter comido não se media daquela forma, mas deixando a saber que tinha só usufruído de duas tigelas de sopa, coisa nobre e boa e, por aqueles dias, mais abundante…lá na mesa da família!

 1. Que terá de anormal (ou não) este episódio anedótico? Notar-se-á alguma clivagem social e cultural subjacente? Até onde irá a compreensão do tema, se não lhe virmos o pano-de-fundo mais essencial? Viveremos ainda numa catalogação social daquilo que comemos e quanto ao que os outros não comem? O dito ‘comer’ não será mais do que o mero deglutir de comida, mas pode ainda ser entendido naquilo que nos é dado como proposta para questões mais ou menos necessitadas de resolver? Não haverá, na nossa praça político-social, algo que nos querem impingir como solução de fachada, quando depois esbarramos com questões burocráticas que inviabilizam as propostas enunciadas? Perguntas à guisa de enunciado.  

 2. Num tempo onde parece que as relações humanas se regem, suficientemente, pelos repastos que auferem, este tema aqui trazido pode ter tanto de inofensivo, quanto de provocatório, tudo dependendo da perspetiva em que nos colocarmos para ver, analisar ou projetar a questão.

Numa época onde a aparência quase consegue mais protagonismo do que a verdade, deveremos questionar a forma como são educados os mais novos – desde a mais tenra idade, diria logo no berço, e sobretudo nessa idade complexa da adolescência. Com efeito, dá a impressão que muitos pais – se fossem verdadeiramente educadores – evitam que os filhos/as sintam as agruras da contingência dos problemas da vida. Já vi – embora sem compreender totalmente – tantos pais/mães a fazerem sacrifícios mirabolantes para que os seus ‘meninos/as’ não sejam menos benquistos no espaço dos seus amigos e nos grupos…

 3. No desenvolvimento de algumas questões sociopolíticas – dos deslocados da invasão da Ucrânia, nas questões de pandemia ou mesmo na resolução de temas laborais daí decorrentes – temos visto que nem sempre aquilo que se diz – com parangonas de comunicação ou sob influência de alguma reunião – tem repercussão prática, pois, a pretensa boa vontade inexoravelmente colide com teias burocráticas enfadonhas e de não-solução, levando a desacreditar naquilo que se diz e, sobretudo, desconfiando das pretensas boas-intenções… Quem está no terreno não precisa que lhe efabulem os problemas com os quais se tem de confrontar, mas que todos façam parte da solução das questões mais básicas e sensíveis que são as pessoas que procuram que lhes consigamos dar resposta concreta e, por vezes, atribulada…

 4. Sem querermos reduzir o que estivemos a querer dizer a minudências moralizantes como que deixo essa estória da criança que começou a preparar a tigela para os pais, quando viu estes a colocar fora da mesa da refeição o ‘velho’ que sujava a toalha, dado que não era capaz de levar à boca a comida de forma ‘educada e limpa’. Com efeito, há por aí muitas tigelas vazias de conteúdo e de substância, mas prenhes de adjetivos escusados e sem nexo. Mais do que proponentes de soluções para outros fazerem, precisamos de quem se comprometa na resolução objetiva sem ser anónima, clara sem ser pegajosa, simples sem se tornar simplista e, particularmente, tendo em conta as pessoas como o melhor património do mundo…

Aproximamo-nos da efeméride de 13 de maio. Recordemos essa frase-chavão dita pelo Papa Paulo VI, em Fátima, em 1967: ‘homens, sede homens’! Já o seremos no verdadeiro e autêntico sentido das palavras?     

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Mulheres – primeiras testemunhas da Ressurreição…

 


Depois do sepultamento de Jesus, pelos seus amigos Nicodemos e José de Arimateia, vemos a referência a várias mulheres no contexto dos cuidados ao corpo Senhor. A surpresa acontece!

 «1 No primeiro dia da semana, ao romper da alva, as mulheres foram ao sepulcro, levando os perfumes que haviam preparado. 2 Encontraram removida a pedra da porta do sepulcro 3 e, entrando, não acharam o corpo do Senhor Jesus. 4 Estando elas perplexas com o caso, apareceram-lhes dois homens em trajes resplandecentes. 5 Como estivessem amedrontadas e voltassem o rosto para o chão, eles disseram-lhes: «Porque buscais o Vivente entre os mortos? 6 Não está aqui; ressuscitou! Lembrai-vos de como vos falou, quando ainda estava na Galileia, 7 dizendo que o Filho do Homem havia de ser entregue às mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia».

8 Recordaram-se, então, das suas palavras. 9 Voltando do sepulcro, foram contar tudo isto aos Onze e a todos os restantes. 10 Eram elas Maria de Magdala, Joana e Maria, mãe de Tiago. Também as outras mulheres que estavam com elas diziam isto aos Apóstolos; 11 mas as suas palavras pareceram-lhes um desvario, e eles não acreditaram nelas. 12 Pedro, no entanto, pôs-se a caminho e correu ao sepulcro. Debruçando-se, apenas viu as ligaduras e voltou para casa, admirado com o sucedido» (Lc 24, 1-12 // Mt 28,1-10; Mc 16,1-8; Jo 20,1-18).

A presença e o destaque dado às mulheres nas manifestações d’ O Ressuscitado é uma linha permanente nas narrativas dos quatro evangelhos canónicos. É digno de realce que dos quatro evangelhos canónicos, não há dois nos quais os nomes das mulheres sejam idênticos. Os três sinóticos concordam com Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e de João. O evangelho de São João só refere Maria Madalena. Marcos menciona Salomé, enquanto São Lucas cita a presença de Joana. Dando ainda uma perspetiva de conjunto sobre os relatos das mulheres sobre a ida ao sepulcro e o seu testemunho, podemos perceber que as mulheres entraram no sepulcro por sua iniciativa e que descobriram que estava vazio: em São Mateus e em São Marcos, as mulheres são convidadas a ver o sepulcro vazio; em São Lucas, depois de descobrirem que o sepulcro está vazio, aparecem-lhes dois anjos, que lhes anunciam que Jesus tinha ressuscitado. No evangelho de São João a testemunha única é Maria Madalena, em diversas etapas.  

Eis como o Catecismo da Igreja Católica se refere às mulheres, que designa de ‘primeiras mensageiras da ressurreição’: «Maria Madalena e as santas mulheres, que vinham para acabar de embalsamar o corpo de Jesus, sepultado à pressa por causa do início do «Sábado», no fim da tarde de Sexta-feira Santa, foram as primeiras pessoas a encontra-se com o Ressuscitado. Assim, as mulheres foram as primeiras mensageiras da ressurreição de Cristo para os próprios Apóstolos. Em seguida, foi a eles que Jesus apareceu: primeiro a Pedro, depois aos Doze. Pedro, incumbido de consolidar a fé dos seus irmãos, vê, portanto, o Ressuscitado antes deles e é com base no seu testemunho que a comunidade exclama: «Realmente, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão» (Lc 24, 34.36)» (Catecismo da Igreja Católica, 641).

 

Deixo, em jeito quase de provocação, algumas questões – muitas delas tenho desde longa data e ainda não consegui resolver nem ver, na Igreja, vislumbre de solução – de ontem como de hoje.

 

* Inserindo-se o cristianismo numa cultura onde o homem era a figura principal do culto e da vida social, por que se dá tanto destaque às mulheres como testemunhas da ressurreição de Jesus? Como se poderá compreender que, no judaísmo, quem era digno de crédito para jurar era o homem, surjam as mulheres como aquela que afirmam e testemunham a ressurreição de Jesus? Qual a ligação entre a Cruz e a Ressurreição: as mulheres são os fatores de presença, enquanto os homens (discípulos) fugiram por medo?

Como sugestão de resposta a estas questões citamos o Papa Bento XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até à ressurreição, p. 214: «Diversamente, as narrações não se sentem presas a tal estrutura jurídica [só os homens eram aceites como testemunhas, juridicamente], mas comunicam a experiência da ressurreição em toda a sua amplitude. Tal como junto da cruz – se excetuarmos João – já só tinham estado mulheres, assim se destina a elas o primeiro encontro com o Ressuscitado. Na estrutura jurídica, a Igreja está fundada sobre Pedro e os Onze, mas na forma concreta de vida eclesial, são sempre as mulheres que abrem a porta ao Senhor, O acompanham até à cruz e assim podem encontrá-lo também como Ressuscitado». Dito por quem foi e referido o que está subjacente, poderemos encontrar resposta para alguns desfasamentos entre o pensamento e vida, ainda hoje, na Igreja católica!  

 

* À luz das manifestações nos evangelhos às mulheres do Ressuscitado poderemos questionar o papel, o lugar e o ministério das mulheres, hoje? Dado que no mundo, cada vez mais as mulheres assumem funções de relevo e de decisão – ao tempo a União Europeia é dirigida por três mulheres, de países diferentes – como deverá ser isso mesmo na Igreja católica? Até que ponto haverá visão, sensibilidade e dinâmica própria das mulheres e não do mero feminino? Será que podemos refletir sobre o ministério da mulher muito para além da mulher no exercício do ministério, particularmente sacerdotal?

Talvez estas questões possam ser um tanto de fronteira, isto é, numa transferência daquilo que se vive na condição do mundo para ler, interpretar ou discernir assuntos da Igreja, sobretudo na sua expressão católica. Com efeito, não se pode confundir a função da mulher na Igreja com funções femininas nas igrejas…

 

* Sabendo que o assunto é árduo na reflexão e tortuoso nas consequências, deixamos alguns respigos da exortação apostólica ‘Evangelii gaudium’ do Papa Francisco sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual...mais como flashes do que como soluções (n. os 103-104).
«A Igreja reconhece a indispensável contribuição da mulher na sociedade, com uma sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares, que habitualmente são mais próprias das mulheres que dos homens. Por exemplo, a especial solicitude feminina pelos outros, que se exprime de modo particular, mas não exclusivamente, na maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque «o génio feminino é necessário em todas as expressões da vida social; por isso deve ser garantida a presença das mulheres também no âmbito do trabalho» e nos vários lugares onde se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente. O sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão, mas pode tornar-se particularmente controversa se se identifica demasiado a potestade sacramental com o poder. Não se esqueça que, quando falamos da potestade sacerdotal, «estamos na esfera da função e não na da dignidade e da santidade». O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço do seu povo, mas a grande dignidade vem do Batismo, que é acessível a todos. A configuração do sacerdote com Cristo Cabeça – isto é, como fonte principal da graça – não comporta uma exaltação que o coloque por cima dos demais. Na Igreja, as funções «não dão justificação à superioridade de uns sobre os outros». Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante do que os Bispos. Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada «hierárquica», há que ter bem presente que «se ordena integralmente à santidade dos membros do corpo místico de Cristo». A sua pedra de fecho e o seu fulcro não são o poder entendido como domínio, mas a potestade de administrar o sacramento da Eucaristia; daqui deriva a sua autoridade, que é sempre um serviço ao povo. Aqui está um grande desafio para os Pastores e para os teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja».
O caminho faz-se caminhando. Caminhemos de olhos postos naquilo que o Espírito Santo diz à Igreja…

 

António Sílvio Couto

 

 

sábado, 16 de abril de 2022

Nicodemos - José de Arimateia: servos assumidos

 


São dois discípulos saídos do seio dos responsáveis da religião judaica, que agora nos aparecem a cuidar do ‘corpo morto de Jesus’, dando-Lhe sepultura, mas que não será túmulo...para sempre. Nicodemos e José de Arimateia funcionam como que elementos de transição entre a religião judaica e o cristianismo…

«38 Depois disto, José de Arimateia, que era discípulo de Jesus, mas secretamente por medo das autoridades judaicas, pediu a Pilatos que lhe deixasse levar o corpo de Jesus. E Pilatos permitiu-lho. Veio, pois, e retirou o corpo. 39 Nicodemos, aquele que antes tinha ido ter com Jesus de noite, apareceu também trazendo uma mistura de perto de cem libras de mirra e aloés. 40 Tomaram então o corpo de Jesus e envolveram-no em panos de linho com os perfumes, segundo o costume dos judeus. 41 No sítio em que Ele tinha sido crucificado havia um horto e, no horto, um túmulo novo, onde ainda ninguém tinha sido sepultado. 42 Como para os judeus era o dia da Preparação da Páscoa e o túmulo estava perto, foi ali que puseram Jesus» (Jo 19, 38-42 // Mt 27, 57-61; Mc 15, 42-47; Lc 23, 50-56).  
Como podemos conferir os quatro evangelhos canónicos todos se referem a este gesto de sepultamento de Jesus, protagonizado por estes dois discípulos de Jesus, mesmo que às escondidas. Eles são figuras marcantes e, ao mesmo tempo, proféticas pelos sinais que realizam para com Jesus.

* Quem era Nicodemos?
Nicodemos - cujo nome significa: aquele que vence com o povo - foi um fariseu, membro do Sinédrio, mestre da Lei, que, segundo o Evangelho de São João, mostrou-se favorável a Jesus, diríamos, mais pela inquietação intelectual do que pela sensibilidade religiosa, pois nunca se assumiu - nos textos a que temos acesso - declaradamente discípulo de Jesus. Aparecem-lhe três referências neste mesmo evangelho: na primeira, visita Jesus uma noite para ouvir seus ensinamentos (cf. Jo 3, 1-21); na segunda, afirma a lei relativa à não-detenção de Jesus durante a Festa dos Tabernáculos (cf. Jo 7, 45-51); e na terceira, após a crucificação, em que ajuda José de Arimateia na preparação do cadáver de Jesus para o sepultamento (cf. Jo 19, 39-42).

* Quem era José de Arimateia?
José de Arimateia - assim referido por ser de ‘Arimateia’, cidade da Judeia  - foi, segundo os Evangelhos canónicos, um homem rico e membro do Sinédrio, que era discípulo de Jesus, mesmo que secretamente (cf. Mt 27, 57) e que não tinha concordado com os planos do conselho em condenarem Jesus (cf. Jo 19,38), mas que não se pronunciou por medo dos judeus. José tinha já mandado escavar um sepulcro novo na rocha, possivelmente para si e para a sua família, mas onde sepultará Jesus (cf. Mt 27,60; Mc 15, 46). Sabemos ainda que José de Arimateia tinha alguma influência sócio-política, junto de Pilatos, pois foi ele quem reclamou o corpo morto de Jesus para lhe dar sepultura condigna.

Nota-se que, por ocasião da morte de Jesus, surgem estes dois personagens de entre o povo simples - desde os intervenientes nos evangelhos da infância, passando pelos discípulos de Jesus na sua vida pública - e de um certo nível cultural e mesmo de entre o espaço religioso mais bem cotado (1). Ora, assim ase compreende que Nicodemos e José da Arimateia procurem de algum modo ultrapassar uma prática dos romanos de deixarem os corpos dos supliciados por crucifixão sem sepultura (2), cumprindo, pelo contrário, os costumes dos judeus de dar sepultura aos mortos (3). De salientar ainda que os textos bíblicos sobre o sepultamento dão-nos informações interessantes sobre o modo de o fazer e como aconteceu concretamente com Jesus.
Vejamos alguns aspetos do sepultamento de Jesus: foi sepultado num túmulo novo, no qual ainda ninguém tinha sido sepultado (cf. Mt 27, 60; Lc 23, 53; Jo 19,41), na véspera da celebração da Páscoa judaica. Tal como o jumento, que Jesus montou na entrada em Jerusalém, não tinha sido montado por ninguém (cf. Mc 11,2), assim a exclusividade do sepultamento. Jesus foi envolvido num lençol (cf. Mt 27,59; Mc 15, 46) ou em ‘panos’ (cf. Jo 19, 40)...com unguentos e perfumes. No entanto, fica-nos no ar uma expetativa deixada pela presença de algumas mulheres (cf. Mt 27, 61; Mc 15, 47), que terão na manhã do primeiro dia da semana e terão a grande surpresa…
«Pela graça de Deus, ele experimentou a morte, para proveito de todos» (Heb 2, 9). No seu plano de salvação, Deus dispôs que o seu Filho, não só «morresse pelos nossos pecados» (1 Cor 15, 3), mas também «saboreasse a morte», isto é, conhecesse o estado de morte, o estado de separação entre a sua alma e o seu corpo, durante o tempo compreendido entre o momento em que expirou na cruz e o momento em que ressuscitou. Este estado de Cristo morto é o mistério do sepulcro e da descida à mansão dos mortos. É o mistério do Sábado Santo, em que Cristo, depositado no túmulo, manifesta o repouso sabático de Deus depois da realização da salvação dos homens, que pacifica todo o universo» (4).

1. «Entre as autoridades religiosas de Jerusalém, não somente se encontravam o fariseu Nicodemos e o notável José de Arimateia, discípulos ocultos de Jesus, mas também, durante muito tempo, houve dissensões a respeito d’Ele ao ponto de, na própria véspera da paixão. João poder dizer deles que «um bom número acreditou n’ Ele», embora de modo assaz imperfeito (Jo 12, 42); o que não é nada de admirar, tendo-se presente que, no dia seguinte ao de Pentecostes, «um grande número de sacerdotes se submetia à fé» (At 6, 7) e «alguns homens do partido dos fariseus tinham abraçado a fé» (Act 15, 5), de tal modo que São Tiago podia dizer a São Paulo que «muitos milhares entre os judeus abraçaram a fé e todos têm zelo pela Lei» (At 21, 20)» - Catecismo da Igreja Católica, 595.
2. Os romanos não se preocupavam com a sepultura dos cadáveres dos supliciados; entre os judeus, era uma das obras de misericórdia. A lei ordenava que os condenados fossem enterrados antes do pôr do Sol (Dt 21,22-23). Vide nota a Mc 15,43-45. na Bíblia Sagrada dos capuchinhos.
3. Cf. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até à Ressurreição, pp. 186-187.
4. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 624.


António Sílvio Couto

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Comer a Páscoa

 


«Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?» (Mt 26,17).

Eis como os discípulos inquiriram junto de Jesus, nas vésperas daquela celebração, o modo e o lugar de a viverem. Ora, teremos de compreender o alcance daquela expressão – ‘comer a páscoa’ – para que não pareça que se lhe dá uma significação meramente material, hedonista e consumista…tão ao gosto do nosso tempo. Efetivamente muitos ‘comem’ a páscoa – isto é, cordeiro, cabrito, borrego, anho…conforme as regiões – no sentido literal do termo ‘comer’ e na figuração da iguaria…

 1. Aquela ‘páscoa’ de que se fala é uma coisa ou um animal, na medida em que se refere que vai ser comida? A dita páscoa será simbólica, tanto quanto ao passado, relativamente ao futuro e na interpretação do presente? Não andaremos a fulanizar – como agora se diz – quando o assunto é de teor particular, mas pode ser envolvido numa dimensão mais ampla? Será digno e correto comer algo que não tenha o sentido mínimo e com o proveito máximo? Numa palavra provocatória: quem comer aquela iguaria pascal sem celebrar, verdadeira e simplesmente, a páscoa no sentido mais genuíno daquilo que é, não será além de hipócrita, oportunista e abusador? Certas simbologias – doces de comer, como ovos e coelhos ou outras – não serão uma verdadeira paganização dos sinais da vida, ao serviço do consumismo algo desenfreado dos nossos dias?

 2. Façamos um percurso histórico-religioso do sentido do ‘cordeiro pascal’, desde a experiência do povo de Israel até ao tempo de Jesus… Foi isso, afinal, que levou os discípulos a fazerem a tal pergunta: onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa’.

A palavra hebraica ‘pesach’ significa 'passar adiante', 'sair', decorrendo da narrativa da décima praga do Egito, segundo a qual Deus ordenou aos hebreus que assinalassem, com o sangue do cordeiro, as portas das suas casas, permitindo, ao anjo exterminador, que passasse adiante, atingindo somente as casas dos egípcios e, de modo particular, os primogénitos dos egípcios, inclusive o filho do faraó (cf. Ex 12, 21-34). A ‘pesach’ indica, portanto, a libertação do povo de Israel do domínio egípcio e o início do seu percurso em direção à terra prometida... Ora essa saída memorável, celebrada em cada páscoa, recordava para além do sinal libertador de Deus, o momento em que os judeus comeram a toda pressa o cordeiro pascal, com cujo sangue tinham tingido as portas das casas onde eles viviam e o anjo exterminador não entrou.
Cada ano esta celebração da Páscoa era, para o povo judeu, um momento de memória familiar e comunitário.
As raízes mais profundas dos sinais, das palavras e dos gestos de Jesus, na Última Ceia, ao celebrar a páscoa judaica e ao introduzir a novidade que a celebração da sua ressurreição significa: Jesus é verdadeiramente o cordeiro pascal, imolado por nós e para nossa salvação.

 3. Tentemos, agora, desmontar essa façanha crescentemente consumista que se atrelou à Páscoa, quase obnubilando as questões essenciais com resquícios de fatores humanos e mundanos, servidos à mesa sem o significado cristão e numa espécie de banquete onde o festejado não passa de um horizontalismo sem crença nem fé. Como é triste ver reduzida a Páscoa à comezaina e ao empanturramento das coisas que podem satisfazer o corpo mas não preenchem o essencial, a alma e o espírito. Com que leveza de critérios e de palavras se introduzem costumes e iguarias sem percebermos o alcance mais profundo do ter e do partilhar.

A Páscoa é muito mais do que jantaradas e festanças onde O festejado foi varrido para debaixo do tapete da conveniência, desde que não incomode os nossos desvarios mais ou menos tolerados. À semelhança do Natal, estamos a usufruir das regalias, mas não assumimos as vertentes mais simples, fraternas e de vida centrada em Deus. Será que alguém se lembra de interpretar os doces – amêndoas, folar, chocolates ou outros – como uma prefiguração da ‘terra prometida, onde mana o leite e mel’, como dizem as Escrituras? A troca de presentes – sobretudo entre afilhados e padrinhos e vice-versa – será algo mais do que um negócio a roçar o interesse materialista? E os ovos de Páscoa terão mesmo a significação da vida que se renova em cada Páscoa? Deixemos de fazer-de-conta com coisas simples e tão sérias…

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 12 de abril de 2022

Mudanças políticas na Europa...E por cá?


 Quem tenha visto os resultados da primeira volta das eleições presidenciais, em França, no passado dia 10, poderá (ou deverá) questionar-se seriamente. Os números da candidata socialista revelam algo de muito significativo e preocupante: ela teve 1,8% dos votos expressos, numa conjugação de dados que têm tanto de objetivo, quanto de necessitado de interpretação...lá como por cá.

 1. Ainda há dez anos atrás o candidato vencedor, nas Gálias e arredores, foi François Hollande (presidente de 2012 a 2017), socialista. Agora a candidata do mesmo partido obteve somente aquela percentagem citada. Se virmos a erosão das ideologias na França compreenderemos como mudou, por lá tanta coisa, destacando-se o desaparecimento de forças que foram representativas das tendências do eleitorado, tais como as ditas de ‘esquerda’ e arreigadas no marxismo... Tal mudança não conterá lições que devemos captar e aprender?

 2. Algumas questões, mais de âmbito de proximidade, que ouso colocar, em jeito de preocupação, que não de mera provocação. Que tem isso (ou aquilo) a ver connosco – país onde reina o socialismo com maioria absoluta? Que inquietações podem ser transferidas para o nosso contexto? Não andaremos, de facto, vinte anos atrasados? Como entender que, quando os resultados no partido comunista por cá ainda eram viçosos, por lá já tinha quase-desaparecido do mapa eleitoral? Que sinais nos fazem destacar pela resistência? Com os dados mais recentes adivinha-se, nas nossas hostes, um acerto, a médio prazo, ao ritmo de outros países e nações? Se sim, para quando uma leitura cá dos resultados de lá?

 3. Efetivamente, cada um – pessoal, familiar, social ou politicamente – tem o que merece. Não haja a menor dúvida. Por isso, se compreende que tenhamos um país onde os governados são o retrato dos governantes e vice-versa. Com efeito, vivemos em excesso dependurados no ‘estado-patrão’, o mesmo que poderá significar: papão, controlador, condicionador, investidor, manipulador, distribuidor...numa palavra – dono do dinheiro, das mentalidades e, por que não, dos valores... cívicos, éticos/morais, económicos, etc.

Setores vitais como a saúde, a educação, a segurança ou mesmo a economia (agricultura, comércio, turismo) ou os transportes estão nas mãos do Estado ou em regimes subsequentes da sua funcionalidade, ficando a sensação de que algo subterrâmeo emerge de vez em quando, para que nos apercebamos do vulcão sobre o qual nos movemos e existimos...

Dados recentes diziam que haverá, em Portugal, quatro milhões de pessoas com seguros de saúde (individual ou de grupo), acumulando com o (dito) ‘serviço nacional de saúde’... Que dizer também das escolas, nos vários níveis de ensino: a designação ‘público’ ou ‘privado’ tem a ver com qualidade de ensino-aprendizagem ou com gastos-resultados? A acentuação desta dicotomia a quem serve: às pessoas ou à ideologia? Alguma vez se viu, verdadeiramente, uma empresa estatal a dar lucro: será por má gestão ou por incapacidade de torná-la competitiva sem a desmotivação do suporte do patrão-estado? Não são os privados que pagam os impostos e que suportam as desgraças da estatização? Qual a razão para que os transportes, quando estão estatizados, são de inferior qualidade e com prejuízos acumulados? Será por que o patrão está longe e o controle não é tão efetivo?

 4. Desgraçadamente vemos tanta gente a reger-se ainda pelos conceitos, nomenclaturas e diretrizes de ‘O capital’ do pensador K. Marx. Alguns, por razão de maturidade dos anos, foram-se adaptando às leis do mercado, mas ainda estão presos à cartilha por onde estudaram e no qual gastaram tanto do seu tempo de juventude. Que dizer, por exemplo, das propostas de taxar os lucros de empresas que têm sucesso? Será um rebate de marxismo, querer nivelar tudo e todos pelo igualitarismo orwelliano? O pior de tudo isto é usarem meios e truques deslocados das razões primeiras, isto é, querem repartir aquilo que não produziram e fazer participar naquilo para o qual não deram nem dão nenhum contributo. Um dia se descobrirá as façanhas!

  

António Silvio Couto

domingo, 10 de abril de 2022

Centurião: reconhecer, adorando

 


Este oficial romano reconhece Jesus como Filho de Deus. Mais do que uma formalidade temos uma confissão de que Jesus continua a interpelar todos, mesmo as autoridades...

«Ao ver o que se passava, o centurião deu glória a Deus, dizendo: «Verdadeiramente, este homem era justo!» (Lc 23, 47); «O centurião e os que com ele guardavam Jesus, vendo o tremor de terra e o que estava a acontecer, ficaram apavorados e disseram: «Este era verdadeiramente o Filho de Deus!» (Mt 27,54); «O centurião que estava em frente dele, ao vê-lo expirar daquela maneira, disse: «Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!» (Mc 15,39).

Esta confissão do centurião romano só nos aparece nos evangelhos sinóticos.

Os evangelhos sinóticos caraterizam a morte de Jesus na cruz como um acontecimento cósmico e litúrgico: o sol escurece (1), o véu do templo rasgou-se (2), a terra estremece e os mortos ressuscitam (3)
Mas, mais importante do que o sinal cósmico é um processo de fé, que se desenvolve diante e em consonância com tudo isso: o centurião – comandante do pelotão romano da execução da morte de Jesus – abalado com tudo isso reconhece que Jesus é o Filho de Deus (4). Junto da cruz de Jesus, a partir daquela morte tão especial e interpelativa, tem início a Igreja dos pagãos, isto é, espargindo da cruz de Jesus, o Senhor reúne os homens para a nova comunidade da Igreja universal (5)…O centurião romano convertido torna-se presença e sinal de tantos outros ‘pagãos’ e ‘gentios’, que abrirão o cristianismo à universalidade de todos os tempos e lugares.
Que lições de vida – simples e concreta, humana e cultural, aberta e fecunda – podemos colher desta revelação ao centurião e deste ao mundo de hoje? Depois das provações da pandemia, qual é o Deus que vemos e que reconhecemos? De verdade, não vai ficar tudo igual.

Eis um excerto de uma audiência do Papa Francisco, quando ainda estávamos a tatear sobre o entendimento da recente pandemia.
«O povo, depois de ter acolhido Jesus triunfantemente em Jerusalém, perguntou-se se ele finalmente o libertaria dos seus inimigos (cf. Lc 24, 21). Esperavam um Messias poderoso, triunfante, com uma espada. Em vez disso, chega um manso e humilde de coração, convidando à conversão e à misericórdia. E foi a precisamente multidão que o tinha aclamado quem bradou: «Seja crucificado!» (Mt 27, 23). Aqueles que o seguiam, confusos e assustados, abandonaram-no. Eles pensaram: se este é o destino de Jesus, não é Ele o Messias, porque Deus é forte, Deus é invencível.
(...) Quando Jesus morre, o centurião romano que não era crente, não era judeu, mas pagão, que o tinha visto sofrer na cruz, o tinha ouvido perdoar a todos, que tinha constatado o seu amor sem medida, confessa: «Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus» (Mc 15, 39). Ele diz exatamente o oposto dos outros. Ele diz que Deus está ali, que é verdadeiramente Deus.
Hoje podemos perguntar-nos: qual é a verdadeira face de Deus? Normalmente projetamos n’ Ele aquilo que somos, até ao limite do nosso poder: o nosso sucesso, o nosso sentido de justiça e até a nossa indignação. Mas o Evangelho diz-nos que Deus não é assim. Ele é diferente e nós não O podíamos conhecer com as nossas próprias forças. Foi por isso que ele se aproximou de nós, veio ao nosso encontro e precisamente na Páscoa se revelou completamente. E onde é que ele se revelou completamente? Na cruz. Nela aprendemos os traços do rosto de Deus. Não esqueçamos, irmãos e irmãs, que a cruz é a cátedra de Deus» (6).

1. Sol eclipsado, expressão da linguagem apocalíptica (Is 13,10). Outro sinal da importância da morte de Jesus na História da Salvação foi o rasgar do véu do templo, que separava o Santo dos Santos do resto do santuário (Ex 26,33.36-37); era presságio do fim do templo e anúncio da entrada dos pagãos na salvação (1,95). Vide nota a Lc 23,41, na Bíblia Sagrada dos capuchinhos.
2. O véu do templo rasgou-se. O Santo dos Santos era a parte mais recôndita do templo e morada de Deus. O rasgar da cortina que resguardava este lugar significa que a Aliança antiga cede lugar à nova, de livre e fácil acesso à divindade, mediante Jesus Cristo que é, ao mesmo tempo, o rosto humano de Deus e o companheiro amigo das pessoas (Mt 27,51-53; Lc 23,45). Vide nota a Mc 15,38 na Bíblia Sagrada dos capuchinhos.
3. Se por véu do templo se entende a cortina que separava o pátio do templo propriamente dito, quer dizer que a morte de Jesus permite o acesso dos pagãos à presença de Deus; se se entende a cortina que separava o lugar sagrado do Santo dos Santos, então a morte de Jesus significa o fim do sacerdócio da Antiga Aliança (Ex 26,31-375. Jr 31,31-37; Ez 16,59-60. Os elementos descritivos dos v.51-53 faziam parte das profecias tradicionais que anunciavam o dia do julgamento final (9,37; 24,28). Vide Nota a Mt 27, 51-53, na Bíblia Sagrada dos capuchinhos.
4. O título de Filho de Deus, atribuído a Jesus no começo do Evangelho (1,1), é significativamente proclamado pelo centurião no momento supremo da morte; esta aparece como selo de garantia, prova certa de que Jesus de Nazaré é verdadeiramente o Messias anunciado. Nesta declaração do militar romano, se não é claro que ele afirme a filiação divina, é, pelo menos, inegável que reconhece o carácter sobre-humano de Jesus. Com o centurião, representante dos não judeus, cumpre-se a palavra de Jesus: o Reino de Deus será dado aos gentios, a um novo povo (12,9; Mt 21,43). Vide nota a Mc 15,9, na Bíblia Sagrada dos capuchinhos.
5. Cf. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até à Ressurreição, p. 183.
6 Cf. Papa Francisco, ‘Audiência geral’, Palácio apostólico, 8 de abril de 2020.



António Sílvio Couto

sábado, 9 de abril de 2022

Ladrões (‘bom’ e ‘mau’) crucificados: arrependimento ou revolta?

 


Um diálogo difícil e tenso entre dois condenados à mesma crucifixão…com Jesus. Em qual dos condenados me revejo mais: no revoltado ou no que se arrependeu?

«39 Ora, um dos malfeitores que tinham sido crucificados insultava-o, dizendo: «Não és Tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós também.» 40 Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o: «Nem sequer temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? 41 Quanto a nós, fez-se justiça, pois recebemos o castigo que as nossas ações mereciam; mas Ele nada praticou de condenável.» 42 E acrescentou: «Jesus, lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino.» 43 Ele respondeu-lhe: «Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso» (Lc 23, 39-43).

Neste diálogo aparece mais uma das ‘sete palavras de Jesus na Cruz’, sendo um texto específico do evangelho de São Lucas. Contemplando este quadro da paixão de Jesus podemos entrar mais humilde e verdadeiramente no nosso processo de conversão, que nunca estará acabado, como podemos ver pelo percurso deste ‘ladrão arrependido’, que consegue ser o primeiro santo a ser canonizado, pelo próprio Jesus, no mesmo dia em que morreu (1).
Reparemos, por momentos, para as atitudes dos ‘dois supliciados’, que enquadram Jesus na crucifixão: um revolta-se, reivindica, insulta: «Não és Tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós também» (v. 39). Como que pretende que Jesus subverta a sua missão, salvando a si mesmo e não sendo o salvador dos outros, como diz o seu nome – Jesus: ‘Deus salva’. Estamos num contexto idêntico aos da tentações no deserto, onde Jesus foi provocado a fazer algo em seu favor e não a atender ao bem dos outros…
O outro supliciado toma a atitude contrária: para além de reconhecer o mal que fez, pedindo perdão, coloca Jesus no seu patamar humano, sem pretender igualar-se a Ele, pelo contrário, reconhece que Ele é de uma instância superior, suplicando-lhe que o aceite no seu reino. A este comummente chamamos de ‘ladrão arrependido’
«A segunda palavra de Jesus na Cruz, citada por são Lucas, é de esperança, é a resposta ao pedido de um dos dois homens crucificados com Ele. Diante de Jesus, o bom ladrão toma consciência de si mesmo e arrepende-se, compreende que está diante do Filho de Deus, que torna visível a Face do próprio Deus, e pede-lhe: «Jesus, lembra-te de mim quando estiveres no teu reino» (v. 42). A resposta do Senhor a este pedido vai muito além da súplica; com efeito, Ele diz: «Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso» (v. 43). Jesus está consciente de entrar diretamente em comunhão com o Pai e de reabrir ao homem o caminho para o Paraíso de Deus. Assim mediante esta resposta dá a esperança firme de que a bondade de Deus pode tocar-nos até no último instante da vida, e a prece sincera, mesmo após uma vida errada, encontra os braços abertos do Pai bom, que espera a vinda do filho» (2).

1. O episódio, próprio de Lc, mostra o interesse do Evangelista pelas cenas de conversão (7,36-50; 19,1-10; At 9,1-25; 10; 16,14-15.29-34). Dignidade real com que Jesus aparecerá revestido, como fruto do seu mistério pascal (24,26). Lc põe na boca do malfeitor arrependido uma oração de verdadeiro discípulo. Para os judeus, o ‘paraíso’ tratava-se do lugar onde os justos aguardavam a ressurreição (16,22-31.22). Nota a Lc 23, 40-43, na Bíblia Sagrada dos capuchinhos.
2. Cf. Bento XVI, ‘Audiência geral’, 15 de fevereiro de 2012.


António Sílvio Couto

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Tumulação ou sepultamento…nunca enterro


 Há expressões recorrentes, nalguma linguagem religiosa, mesmo em contexto católico de semana santa, que não estão adequadas à realidade teológica e espiritual. Uma dessas expressões é: ‘enterro do Senhor’, que poderá caraterizar uma certa devoção, na sexta-feira santa, ao fazer uma procissão como se fosse o enterrar de Jesus, numa alegoria à sua sepultura.

Pessoalmente deixa-me um amargo psicológico ver pessoas que vão ao ‘enterro do senhor’, mas ignoraram todas as outras celebrações anteriores, como a ‘adoração da cruz’ ou mesmo iniciativas de índole pessoal ou comunitária, como a via-sacra ou momentos litúrgicos relevantes da paixão-morte do Senhor.

Pior ainda quando vejo participantes em conversa pegada ao longo da dita ‘procissão do enterro’, isto para não repudiar os tocantes da banda, que quando não executam as ‘peças’ musicais se entretém perturbando com barulho menos adequado…

1. Em passagem alguma dos textos bíblicos se diz que Jesus foi enterrado – colocado na terra – mas antes colocado num túmulo – daí tumulação – ou sepultado – decorrendo sepultamento – de Jesus após a sua trágica morte de crucificado. Pior ainda: os enterros a que vamos são irreversíveis, isto é, o morto não sairá de lá, muito menos com vida. Ora Jesus foi colocado no túmulo (cf. Lc 23,53) na esperança da ressurreição, confirmada pelo túmulo vazio e as manifestações d’O ressuscitado. Continuar a usar uma linguagem incorreta pode induzir em erro e, sobretudo, num faz-de-conta que não se passou com Jesus…

 2. Embora possa ser (infelizmente) atrativo de algum ‘folclore’ religioso, seria de razoável proporção – além de explicar que a expressão está fora do espírito católico de fé celebrada e vivida – ir banindo das ‘cerimónias’ populares algo que contradiz a nossa fé mais básica e essencial. Precisamos de encontrar – usando os meios atuais de comunicação – novas formas de ocupar esse espaço de expetativa entre a adoração da cruz e a celebração da vigília pascal, com as suas quatro liturgias – da luz, da palavra, batismal e eucarística. Por que não ler e meditar, refletir e interiorizar os textos do sepultamento em condições que nos permitam rezar, mais do que desfilar pelas ruas em caminhada de entretenimento… como vi nalguns momentos da (dita) procissão do ‘enterro do senhor’? Por que não darmos mais espaço à interioridade do que às coisas tradicionais mais ou menos anódinas, repetitivas e insossas de fé e de compromisso?

 3. Para quem ainda promove as ‘cerimónias da semana santa’ – seja lá onde for e com que objetivos – talvez seja chegada a hora de questionar quem a elas vai ou mesmo quem nelas participa. Onde estão os jovens? Não foram para as ‘viagens de finalistas’, deixando a descoberto o lugar nas assembleias de domingo a que ainda vão, às vezes? Por que sairão tantos portugueses para as tais ‘férias de páscoa’, trocando os locais celebrativos por espaços de veraneio? Não andaremos a engordar a religião, depreciando os sinais centrais do cristianismo? Agora que a pandemia parece dar indícios de menor incidência, como poderemos criar condições para fazer melhor e mais conscientemente o que devíamos já ter feito?

 4. Sacudidos pela indiferença fortemente promovida, alimentada ou quase-incentivada pela pandemia precisamos de encontrar novas formas de celebrar os mistérios pascais, limpando teias de comodidade ou mesmo rituais sociais gastronómicos, pois que significará ‘comer o cabrito (ou o cordeiro)’, se ele não representa mais do que uma iguaria desta época? Qual o alcance da doçaria – profusa e simbólica – se ela não significar a terra prometida dada a um povo que passou das trevas para a luz? Haja verdade e não aproveitamento consumista!

 5. Afinal, a Páscoa não se reduz à visão castrante de ‘ovos-e-coelhos’ de chocolate (ou em papel pintado), mas antes vida nova em Deus, celebrada na comunhão da Igreja! A Páscoa é, acima de tudo, a festa da vida, não da rastejante e sem saída, mas da verdadeira porque fundada sobre a vitória de Jesus sobre a morte e o pecado…para sempre!     

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Das imagens de guerra à guerra das imagens

 Desgraçadamente somos a toda-a-hora-e-momento metralhados com imagens de guerra, tanto da invasão russa à Ucrânia como de outros conflitos exibidos nas televisões e noutros meios de difusão noticiosa…nessa espécie de guerra de audiências, com a cativação de espetadores e, sobretudo, numa manipulação dos públicos. Deste modo a imagens de guerra tem-se tornado também guerra de imagens, onde nem sempre se saberá o que é verdadeiro ou aquilo que nos querem impingir por estratégia de comunicação…

 1. Decorridos quase quarenta dias do conflito ucraniano-russo começamos a ver imagens inconcebíveis: mortos às centenas, destruição irremediável, prejuízos irreparáveis…pessoas em fuga, combatentes em estado de confronto, situações ignóbeis a toda a classificação. De facto, o homem é lobo do homem, deixando emergir, em força e sem controlo, o que há de mais animalesco, primário ou selvático. Aquelas imagens de guerra são a pior amostra do ‘caim’ que há em cada ser humano… As vidas ceifadas clamam por justiça diante de Deus!

 2. Os órgãos de comunicação como que se deleitam com o espetáculo com que se entretém a difundir. Dizem que as imagens são violentas, suscetíveis de melindrar os mais vulneráveis, mas mesmo assim gastam horas e horas em emissão. Se dúvidas houvesse de que a comunicação social é servidora do mal, os tempos mais
recentes se encarregam de confirmar o estado doentio da nossa sociedade. Com tantos abutres a farejar a morte podemos perceber que este tabu foi destronado, mas não foi ultrapassado…Não se justifica que as televisões portuguesas tenham enviado repórteres especiais à Ucrânia. Não se justifica que se gastem tantos meios e recursos para dar cobertura a coisas tão nefastas e sem nexo…para pessoas equilibradas, sensatas e humanamente respeitadoras da dor alheia.

 3. Foi um corrupio aquele que vimos desenvolver-se para acudir – nos primeiros dias – aos milhões de deslocados/refugiados procedentes da Ucrânia. Meios e campanhas de socorro apareceram em vários pontos do país, num vai-e-vem de levar coisas e de trazer pessoas. Se aquelas foram sendo distribuídas, estas (as pessoas, sobretudo, mulheres e crianças) chegaram aos milhares – dizem que mais de quinze mil. Muitos foram para casas de familiares, já por cá residentes e uns tantos vieram mais à deriva.

Passado um primeiro impacto de simpatia, torna-se essencial dar passos de boa organização, criando as condições suficientes para que se cuide de quem nos procura, muito para além das prestações materiais, sem nunca esquecer que estas pessoas deslocadas merecem respeito na sua integridade psicológica e espiritual. Podem não saber a (nossa) língua, mas entendem a linguagem, essa universal da boa-fé, da sinceridade e mesmo da simpatia bem manifestada.

Certas iniciativas de algumas entidades ‘oficiais’ – de autarquias e do governo central/centralista – mais parecem tendências para aparecer nalguma foto de propaganda do que para serem projetos em ordem a dinamizar, seja quem for, os de lá ou de cá!...

4. Neste como noutros momentos de acutilância humana e de fragilização das pessoas aparece pouco, de forma clara, a referência a Deus. Veja-se a forma algo sobranceira como foi tratado o momento de consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, que ocorreu no passado dia 25 de março. Para alguns parecer situar-se o assunto na esfera de menos interessante, senão mesmo lateral. Como se a paz não fosse um dom divino! Até um largo setor católico primou pela ausência e pela indiferença pessoal e comunitária. Não tivesse o Presidente da República trazido o assunto para a luz da memória, pela sua presença no ato decorrido no santuário de Fátima, e nem numa nota de rodapé mereceria…

 5. Se o Presidente-comediante, Zelensky se tem comportado como um herói, os cidadãos do Ocidente mais parecem palhaços de feira em maré de saldos, tal a inoperância e a falta de bom senso ético e cultural! Se os ucranianos merecem respeito e admiração, muitos outros povos deixaram a nu a falta de sentido de nação!        

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 5 de abril de 2022

Critérios de discernimento, ontem como hoje


 «E, agora, digo-vos: não vos metais com esses homens, deixai-os. Se o seu empreendimento é dos homens, esta obra acabará por si própria; mas, se vem de Deus, não conseguireis destruí-los, sem correrdes o risco de entrardes em guerra contra Deus» (At 5, 38-39). Esta citação coloca-nos perante uma observação do fariseu, doutor da Lei, Gamaliel, a propósito da ‘nova religião’, que estava a emergir entre o povo judeu e que viria a ser designado de ‘cristianismo’. Este eminente membro do sinédrio dava aos seus pares um conselho, que, ainda hoje, está atual como critério de conduta, tanto ao nível comunitário como pessoal.

1. Quem é Gamaliel?
O nome ‘Gamaliel’ significa ‘Deus me fez bem’, é um fariseu, doutor da Lei e apresentado como mestre de Paulo (cf, At 22,3), que o terá educado e instruído, sendo ainda apresentado como um seguidor de uma linha menos rigorista da Lei...

2. Linhas da sua intervenção:
* Advertências sobre situações do passado sobre dois revolucionários, anteriores a Jesus:  Teudas chegou a ter cerca de quatrocentos seguidores, prometendo, como Josué, fazer passar o Jordão a pé enxuto; foi liquidado e todos os seus partidários foram destroçados e reduzidos a nada; Judas, o galileu, nos dias do recenseamento (esse que levou Jesus a nascer em Belém, Lc 2,1-2), arrastou o povo atrás dele, morreu, igualmente, e todos os seus adeptos foram dispersos.
* Proposta preventiva: «não vos metais com esses homens, deixai-os. Se o seu empreendimento é dos homens, esta obra acabará por si própria; mas, se vem de Deus, não conseguireis destruí-los, sem correrdes o risco de entrardes em guerra contra Deus» (vv. 38-39).
* Consequências: foi atenuado o castigo aos discípulos, que, embora açoitados por causa do Nome de Jesus, isso lhes provocou motivo de grande alegria por serem dignos de sofrerem por Ele.

3. Qual o alcance daquela proposta de Gamaliel? Que lições podemos colher para nós, como Igreja e pessoalmente? Teremos vivido suficientemente à luz desta sugestão - diga-se inspirada - nas nossas coisas do dia-a-dia e com maior significado na nossa vida?
Gamaliel deixou-nos um sublime critério de avaliação daquilo em que nos metemos: se é de Deus ou não. Não percamos ainda de vista que os apóstolos, depois de terem sido mais uma vez aprisionados, tinham dito ao Sinédrio: «importa mais obedecer a Deus do que aos homens» (At 5, 29). Por isso, Gamaliel faz-se eco dessa leitura mais profunda das coisas humanas: quem conduz - Deus ou os interesses mundanos?
Este critério de Gamaliel pode ser chave de leitura de tantas questões ao longo da História da Igreja. Com efeito, pensemos em tantos projetos políticos, em grandes impérios, nas ditaduras do século vinte (nazismo, comunismos, socialismos ou maoísmo), que pensaram que iriam dominar o mundo e caíram. Pensemos nos impérios de hoje, também eles cairão, se Deus não estiver presente, porque a força humana não é duradoura...
«Pensemos na história dos cristãos, também na história da Igreja, com tantos pecados, com tantos escândalos, tantas coisas ruins nesses dois milénios. E por que não caiu? Porque Deus está nela. Somos pecadores e também tantas vezes causamos escândalos. Mas Deus está connosco. E Deus nos salva primeiro, e depois a eles; mas o Senhor sempre salva. A força é “Deus connosco”. Gamaliel demonstra, citando alguns personagens que haviam se apresentado como Messias, que todo projeto humano pode primeiro ter êxito e depois naufragar. Portanto, Gamaliel conclui que, se os discípulos de Jesus de Nazaré acreditavam em um impostor, eles estavam destinados a desaparecer no nada, mas eles seguiam alguém que vem de Deus, é melhor desistir de combatê-los e adverte: “para que não aconteça de serdes também achados combatendo contra Deus ” (At 5,39). Ele nos ensina a fazer esse discernimento» (Papa Francisco, ‘Audiência geral’, Praça de S. Pedro, 18 de setembro de 2019).

Não deixemos que a sedução do efémero nos fascine, pois seremos vencidos como tantos outros...

 

António Silvio Couto

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Soldados romanos: rudeza desculpável?


Os soldados um tanto insensíveis a Jesus como que se divertem com as provocações que lhe fazem... Quantas vezes Jesus é menosprezado por ignorantes sobre a sua identidade e a sua divindade.

«36 Os soldados também troçavam dele. Aproximando-se para lhe oferecerem vinagre, 37 diziam: «Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!» 38 E por cima dele havia uma inscrição: «Este é o rei dos judeus» (Lc 23, 36-38).

Depois da sensibilidade humana, espiritual e cultural das mulheres como que somos confrontados com outras atitudes bem mais agrestes e quase-insensíveis, por parte dos soldados e não só.
Aqui entra um aspeto nem sempre incluído de forma clara no processo da paixão de Jesus: os momentos de troça, em que Jesus é escarnecido ou mesmo agredido (física, psicológica e espiritualmente)…em diversas circunstâncias, por vários intervenientes e com diferentes significados. Jesus é troçado ou escarnecido pelos trocistas que passavam, quando foi crucificado e O provocavam a descer da cruz – cf. Mc 15, 29-30; pelos membros do sinédrio, ‘salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo’ – cf. Mt 27, 42-43; por um dos salteadores, crucificado com Ele – cf. Lc 23, 39 (1).
Fixemos a nossa atenção nos soldados romanos e, para além da troça com que maltrataram Jesus, os textos dos evangelhos incluem um elemento que pode acrescentar ainda mais à rudeza para com Jesus. Como recordo neste ponto uma observação de um professor de cristologia, há mais de quatro décadas, quando falávamos da sensibilidade ultra-fina de Jesus, dada a sua divindade, que nos referia que qualquer pequena ofensa ou indelicadeza teria em Jesus um agravo ainda maior, tal era a sua delicadeza humana, tanto psicológica como espiritual!
Dizem os textos que, para atenuar as agruras do sofrimento, lhe ofereceram: ‘vinagre’ (Lc 23, 36b); ‘vinho misturado com fel’ (Mt 27, 34); ‘vinho misturado com mirra’ (Mc 15, 23); ‘ensopando o vinagre na esponja fixada num ramo de hissopo, levaram-lha à boca’ (Jo 19, 29) (2). Ora, a complementar este gesto de alguma ‘compaixão’ para com aquele condenado, aparece esse outro de razoável rudeza que é o despojamento e as sortes deitadas sobre as suas vestes. A divisão das roupas por parte dos soldados parecia ser algo corrente quase como um direito dos carrascos (cf. Jo 19, 23-24), mas a túnica foi sorteada e não dividida…
Neste contexto onde estão inseridos os soldados romanos encontramos várias das palavras de Jesus na Cruz: ‘Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem’ (Lc 23,34);
‘Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?’ (Mt 27, 46; Mc 15, 34);
‘Tenho sede’ (Jo 19, 28);
‘Tudo está consumado’ (Jo 19, 30)…
«Quando chegou a Hora em que cumpriu o desígnio de amor do Pai, Jesus deixa entrever a profundidade insondável da sua oração filial, não só antes de livremente Se entregar («Abbá... não se faça a minha vontade, mas a tua»: Lc 23, 42), mas até nas suas últimas palavras já na cruz, onde orar e dar-Se coincidem: «Perdoa-lhes, ó Pai, pois não sabem o que fazem» (Lc 23, 34); «em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso» (Lc 23, 43); «Mulher, eis aí o teu filho» [...] «eis aí a tua mãe» (Jo 19, 26-27); «tenho sede!» (Jo 19, 28); «meu Deus, por que Me abandonaste?» (Mc 15, 34) (56); «tudo está consumado» (Jo 19, 30); «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23, 46), até ao «grande brado» com que expira, entregando o espírito» (3).

1. Cf. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até à Ressurreição, pp. 172-174.
2. Ao ser apresentada aos condenados uma bebida inebriante, a junção de fel tornava-a intragável. Mt põe em evidência a consciência e liberdade de Jesus (Sl 69,22) - Nota a Mt 27,34 na Bíblia Sagrada (dos capuchinhos). Vide Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até à Ressurreição, pp. 178-179.
3. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 2605.


António Sílvio Couto

sábado, 2 de abril de 2022

Mulheres no caminho do Calvário: compaixão para a conversão

 


A compaixão move a estarmos em comunhão com o sofrimento dos outros... ao perto ou ao longe. Verónica e Maria, mãe de Jesus, estariam, certamente, entre estas mulheres no caminho do Calvário. Neste novo quadro da via-sacra somos confrontados com a sensibilidade feminina. Ainda a sentiremos, hoje? Não estará em crise ou em decréscimo, para não dizer, em descrédito?  


«27 Seguiam Jesus uma grande multidão de povo e umas mulheres que batiam no peito e se lamentavam por Ele. 28 Jesus voltou-se para elas e disse-lhes: «Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos; 29 pois virão dias em que se dirá: ‘Felizes as estéreis, os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram.’ 30 Hão de, então, dizer aos montes: ‘Caí sobre nós!’ E às colinas: ‘Cobri-nos!’ 31 Porque, se tratam assim a árvore verde, o que não acontecerá à seca?» 32 E levavam também dois malfeitores, para serem executados com Ele» (Lc 23, 27-32).

Este é um texto próprio e específico do evangelho de São Lucas, evocando Zc 12,10-14: «Mas derramarei sobre a casa de David e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de benevolência e de súplica. Eles contemplarão aquele a quem transpassaram; chorarão por ele como se chora um filho único e lamentá-lo-ão como se lamenta um primogénito».
Como é possível que alguém, em extremo sofrimento – como esse que Jesus estava a viver há mais quinze horas ininterruptas e quase física e psicologicamente exausto – ainda consegue citar textos da palavra das Escrituras? Algo de muito forte O percorria e Lhe dava tal força e capacidade de leitura de tudo em ver em Deus!
Nas palavras que dirige às mulheres de Jerusalém, que O lamentam e por Ele se compadecem, Jesus cita Os 10, 8: «3Hão de, então, dizer aos montes: ‘Caí sobre nós!’ E às colinas: ‘Cobri-nos!’», dando o evangelista uma interpretação daquele momento trágico que era vivido.
Segundo a tradição há – no desenrolar da via-sacra – a intervenção específica de duas mulheres – para além ou inseridas neste conjunto de ‘mulheres piedosas de Jerusalém’ – Maria, mãe de Jesus e Verónica: quer uma quer outra exemplificam, o mais corretamente possível, as atitudes de compaixão registadas pelas mulheres de Jerusalém. Se bem que o evangelista São João (1) coloque Maria e outras mulheres junto da cruz de Jesus (cf. Jo 19, 25-29), não vemos referência alguma à sua presença, claramente, no caminho do Calvário. Será esquecimento ou temos de encontrar algo mais profundo no modo com que João nos querer falar? Seria possível incluir Maria na via dolorosa sem nos desviarmos do essencial? Atendendo a que dos discípulos não temos referência alguma – todos fugiram, à exceção de João – não deixa de importante que vejamos a presença de algumas mulheres no caminho do Calvário.

Antes de mais: Maria, a mãe de Jesus, terá estado presente naquele momento trágico do caminho do Calvário (4.ª estação). De que forma, não saberemos, mas podemos supor na medida em que conheceremos o coração de uma mãe.
Deixamos, numa espécie de interpretação maternal, aquilo que o Papa emérito Bento XVI nos deixou através de orações alusivas ao caminho da cruz:
«Na Via-Sacra de Jesus, aparece também Maria, sua Mãe. Durante a sua vida pública, teve de ficar de lado para dar lugar ao nascimento da nova família de Jesus, a família dos seus discípulos. Teve também de ouvir estas palavras: «Quem é a minha Mãe e quem são os meus irmãos? (…) Todo aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe» (Mt 12, 48.50). Pode-se agora constatar que Ela é a Mãe de Jesus não só no corpo, mas também no coração. Ainda antes de O ter concebido no corpo, pela sua obediência concebera-O no coração. Fora-Lhe dito: «Hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho (…) Será grande (…) O Senhor Deus dar-Lhe-á o trono de seu pai David» (Lc 1, 31-32). Mas algum tempo depois ouvira da boca do velho Simeão uma palavra diferente: «Uma espada Te há de trespassar a alma» (Lc 2, 35). Deste modo ter-Se-á lembrado de certas palavras pronunciadas pelos profetas, tais como: «Foi maltratado e resignou-se, não abriu a boca, como cordeiro levado ao matadouro» (Is 53, 7). Agora tudo isto se torna realidade. No coração, tinha sempre conservado as palavras que o anjo Lhe dissera quando tudo começou: «Não tenhas receio, Maria» (Lc 1, 30). Os discípulos fugiram; Ela não foge. Ela está ali, com a coragem de mãe, com a fidelidade de mãe, com a bondade de mãe, e com a sua fé, que resiste na escuridão: «Feliz daquela que acreditou» (Lc 1, 45). «Mas, quando o Filho do Homem voltar, encontrará fé sobre a terra?» (Lc 18, 8). Sim, agora Ele sabe-o: encontrará fé. E esta é, naquela hora, a sua grande consolação.
- Santa Maria, Mãe do Senhor, permanecestes fiel quando os discípulos fugiram. Tal como acreditastes quando o anjo Vos anunciou o que era incrível – que haverias de ser Mãe do Altíssimo – assim também acreditastes na hora da sua maior humilhação. E foi assim que, na hora da cruz, na hora da noite mais escura do mundo, Vos tornastes Mãe dos crentes, Mãe da Igreja. Nós Vos pedimos: ensinai-nos a acreditar e ajudai-nos para que a fé se torne coragem de servir e gesto de um amor que socorre e sabe partilhar o sofrimento» (2).

Outra figura, digamos da piedade popular, é Verónica – ‘vera icone’, isto é, verdadeiro rosto – surge na longa tradição do cristianismo como aquela que rompeu por entre a multidão e os soldados para ir limpar o rosto ensanguentado e a cabeça coroada de espinhos de Jesus. Em reconhecimento desta ousadia – diz a tradição – ficou impresso no lenço o verdadeiro rosto de Jesus. Em contraste – alguma brutalidade – com aquilo que veremos dos soldados, podemos observar a delicadeza (feminina, humana e espiritual) dessa mulher que ficou registada para sempre na memória do cristianismo.
Deixamos uma interpretação do Papa João Paulo II sobre esta figura da Verónica (5.ª estação), tanto sobre o passado, como para o presente e na dinâmica do futuro.
«A tradição fala-nos da Verónica. Talvez aquela complete a história do Cireneu. Na verdade, embora - mulher que era - não tenha levado fisicamente a Cruz nem a isso tenha sido forçada, o certo é que esta Cruz com Jesus, ela a levou: levou-a como podia, como lhe era possível fazer naquele momento e como lho ditava o coração, isto é, enxugando o seu Rosto.
A explicação deste facto, referido pela tradição, parece fácil também: no lenço com que ela Lhe enxugou o Rosto, ficaram gravadas as feições de Cristo. Precisamente porque estava todo ensanguentado e soado, podia deixar traços e lineamentos.
Mas, o sentido deste acontecimento pode ser interpretado também doutra maneira, se o analisarmos à luz do discurso escatológico de Cristo. Serão muitos, sem dúvida, aqueles que vão perguntar: “Senhor, quando é que fizemos isto?”. E Jesus responderá: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes” (cf. Mt 25, 37-40). De facto, o Salvador imprime a sua imagem em cada ato de caridade, como o fez no lenço de Verónica» (3). Valerá a pena recordar essa voz lancinante das procissões de Passos, que colocava nos lamentos de Verónica esse desafio: ó vós todos que passais, olhai e vede, se há dor semelhante à minha dor…
Não podemos esquecer as palavras com que Jesus adverte as mulheres de Jerusalém: «não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos» (v. 28). Com efeito, para além de um mero sentimentalismo, é preciso conversão, na vida e com sinais de aferição a Jesus, à sua palavra/mensagem de acolhimento de Deus e uns dos outros…

1. Cf. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até à Ressurreição, pp. 180-182.
2. Cf. Bento XVI/Cardeal Ratzinger, ‘Via-sacra - meditações e orações’, 9 de março de 2019 (4.ª estação).
3. Cf. João Paulo II, ‘Via-sacra no Coliseu’. Sexta-feira santa do ano de 2003 (6.ª estação).


António Sílvio Couto