Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 30 de maio de 2022

Romanices em nítida neo-paganização

 


Anunciados como ‘espetáculos’ de grande atração popular, vemos emergirem propostas ‘culturais’ eivadas de neopaganismo, na medida em que o quadro histórico é pré-cristão e os ingredientes estão eivadas de sinais, formas e situações bem anteriores ao surgimento do cristianismo no nosso país…cortejo triunfal, batizado romano, circo, casamento…comidas, espetáculos acampamento militar… tudo cheirando a coisas com mais de dois mil anos e que o cristianismo venceu pela força da fé e com o derramamento de sangue de tantos mártires cristãos.

1. A que se pode dever tanto entusiasmo por certas manifestações à romana? Serão estas ocorrências a denúncia da falência do cristianismo com o recurso a sugestões ditas culturais de antanho? A reconstrução pretensamente histórica não ofenderá a ética (moral) cristã? Como poderemos avaliar a afluência a tais eventos, se comparados com celebrações religiosas (cristãs, católicas ou de outra expressão não-romana) decorrentes por esta época na região? Não andará por aí subjacente o lema romano – ‘pão e jogos’ – para tentar entreter educando e talvez educar entretendo?

2. Nesta abordagem à recriação do tempo romano tenho por base uma iniciativa que decorre na cidade de Braga desde 2003 e com o título – ‘Braga romana’.
Na wikipédia podemos ler como discrição desta iniciativa: «é um evento que decorre anualmente em Braga em maio ou junho desde 2003. Pretende mostrar como seria a vida na cidade na época em que integrava o Império Romano, evocando o seu quotidiano como cidade-capital da província da Galécia.
Nestas festividades, é recriado um mercado romano que é palco de artes circenses, representações dramáticas, simulações bélicas, personificações mitológicas, malabarismos, interpretações musicais e bailados da época de Bracara Augusta.
Esta viagem no tempo inclui ainda a organização de uma escola romana, uma área de animação infantil e a tradicional receção a Augusto (r. 27 a.C.-14 d.C.), em que se procede à leitura do édito fundador e à nomeação do administrador da cidade.
As festividades incluem também dois Cortejos Romanos pelas ruas do centro histórico da cidade, um diurno e um noturno».

3. Seria mesmo preciso que a designada ‘cidade dos arcebispos’ recua-se tanto na sua história para se afirmar no contexto cultural hodierno? Onde fica a memória das histórias de perseguição aos cristãos daquele tempo? Foram varridas essas vivências cristãs para debaixo do tapete dos interesses económicos de hoje? Se atendermos ao quadro de tempo quase sentimos vergonha por fazermos parte – mesmo que à distância – do clube de mudos e conformados com tudo quanto surge, desde que cheire a dinheiro… pelo menos assim parece!
Esta ‘Braga romana’ pode ser muito útil para fazer festa, mas será que alimenta alguma fé? Não será mais uma proposta bem urdida pelas forças menos-cristãs, anticristãs e a-religiosas numa conquista de protagonismo mesmo entre alguns ‘praticantes’ mais ou menos ignorantes?

4. Que é preciso divertir o povo não há a mínima dúvida, sobretudo depois do tempo de pandemia, mas que se tenha também respeito suficiente sobre quem – naquele território ou noutro – sofreu e sofre para poder afirmar a sua fé.
Braga e outras cidades – mesmo aquelas que se entretêm com ‘feiras medievais’ e não só – merecem melhor… histórica, social, política e culturalmente. O que diz, então, a Igreja católica sobre tudo isto? Aqui o silêncio não é de ouro, mas de possível cumplicidade ou (sei lá) de cobardia!

António Sílvio Couto

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Palavras proscritas… na AR

 


Considerada por muito como a ‘casa da democracia’, a Assembleia da República ou o Parlamento português tem vindo a tornar-se um espaço onde, uns tantos contra outros mais, vão fichando palavras que não devem ser proferidas naquele hemiciclo. Para já conhecem-se na lista: vergonha e hipócrita, mas outras surgindo, bastando que sejam proferidas por um determinado setor politico-ideológico.

Quase cinco décadas após a revolução que quis instalar a liberdade no país vemos que nem tudo foi nessa linha e que alguns se acham donos da democracia, senão de direito ao menos de facto.

 1. A quem interessa criar estas linhas de quase ditadura intelectual? Ainda não aprendemos que o combate não pode ser fulanizado, mas deve fazer-se no campo das ideias? Não soam a decadência ética e a vazio argumentativo certos tiques do nosso sistema partidário? Até onde irá a capacidade de sabermos que todos estão interessados em dignificar esse lugar onde se fazem as leis e em que o legislador se inclui no seu cumprimento? Não parece que uma tal ‘casta’ superior se pavoneia naquela que devia ser a casa da igualdade? Ideologicamente já percebemos que ‘democrata’ não é só o da minha coloração? Embora nos consideremos com alguma cultura na diferença, falta muita diferença na cultura democrática, a sério!

 2. Conta-se de certas figuras da ‘primeira república’ – onde discussões idênticas a estas proliferavam e se chegava a vias-de-facto com naturalidade – que, um desses eminentes tribunos se terá voltado para o seu contendor, dizendo: não sabemos o que o senhor pensa, pois, ora dá uma no cravo e outra na ferradura; ao que o outro ripostou: pois, o senhor não está quieto com o pé!

Desse tempo temos memória de que algo correu mal e foi preciso pôr ordem na casa, isto é, no país, com todas as consequências daí advindas. Talvez hoje não haja nem capacidade e tão pouco intérpretes para fazer o que devia ser feito!

 3. Vejamos, em detalhe, as palavras para já proscritas: vergonha e hipócrita.

* Vergonha (12 de dezembro de 2019)
O debate era sobre amianto nas escolas. O deputado único do Chega comentava um projeto de resolução socialista e utilizou a expressão "é uma vergonha" sobre o Governo e o PS. Ferro Rodrigues (presidente da AR) ripostou:  "O senhor deputado utiliza a palavra vergonha e vergonhoso com demasiada facilidade, o que ofende muitas vezes todo o parlamento e ofende-o a si também".
Depois de aquele deputado ter abandonado o parlamento, uma deputada do BE voltou ao tema e disse: "É uma vergonha que o Movimento [Escolas sem Amianto] tenha de se substituir ao governo na divulgação e na publicidade destas escolas e é uma irresponsabilidade porque é a falta de transparência sobre esta lista que cria o alarmismo nas comunidades escolares".  Aqui não houve repreensão do presidente da AR... dizem as crónicas da época.

* Hipócrita (25 de maio de 2022)
Estava-se na discussão na especialidade do OE/2022 e um deputado também do Chega personalizou as acusações, apontando o caso de um membro do governo em funções sobre a discrepância entre o que defende para a saúde pública e a prática desse mesmo governante em atos médicos, dizendo o tal deputado: “Os socialistas caviar são uns hipócritas. Querem hospitais de luxo para eles”... Apenso a esta tensão o grupo parlamentar socialista fez distribuir por todos os parlamentares uma folha com a definição de hipócrita no dicionário.
No dia seguinte (26 de maio) novo conflito: mais um deputado do Chega classificou de ‘hipócrita’ a deputada única do PAN naquilo que era uma discussão sobre a redução dos impostos quanto aos atos tauromáquicos...

 4. Feita esta descrição, tenho vergonha de tanta hipocrisia. Ou será que a hipocrisia já não envergonha?

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Criança a gargalhar ao colo do pai

 


Vi a cena de raspão: ia de carro e na esquina de uma rua, numa vila próxima, um pai, segurando ao colo uma criança com cerca de um ano – alvitro a idade, pois reação não seria suscetível com menos tempo de existência – ria-se às bandeiras-despregadas de algo que o pai lhe teria dito… e fazia-o com tal expressão e sonoridade que deu para perceber, mesmo que à distância.
Poderá alguém questionar: que há de novidade ou de destoante de tudo isto da mera vulgaridade? Aquela criança serviu-me de acicate para olhar as reações das crianças, tão mimadas e enfezadas e que tal ‘cena’ foi como que uma pedra no charco da nossa sociedade…entre o macambúzio e o anónimo, sem esquecer a desconfiança de todos para com os demais…

1. Depois de ultrapassada mentalidade da ‘criança como adulto-em-miniatura’, parece que chegamos à sensação da infantilização dos adultos, mesmo sem disso se darem conta. Porque em menor número do que no passado, as crianças foram assumindo um papel de centralidade nas nossas sociedades. Já nem questionamos se as crianças de hoje estão a receber os ‘cuidados’ que os pais e/ou avós não tiveram no seu tempo de infância: dão-lhes o que nem pediram e, portanto, não valorizam devidamente. Será que as crianças sabem brincar, sem serem manipuladas pelos mentores das brincadeiras?

2. Quem não se interroga sobre a tristeza – ou pelo menos pela ausência de sinceros sinais de alegria – de boa parte das nossas crianças? Não lhes vemos, normalmente, um sorriso aberto, franco e sincero. Dos tempos que decorrerem temos de aprender a lição de que as crianças comportam mais malícia do que seria desejável. Não estou a lançar qualquer labéu sobre todas as crianças, mas antes a exprimir que é preciso sermos prudentes no trato com elas (onde eles se incluem também), tenham a idade que tiverem. Aquela observação evangélica à ‘inocência e candura’ das crianças – peço perdão – mas não a vejo e custa-me compreendê-la…

3. Quantas vezes tenho visto uma certa falta de entusiasmo (ou mesmo ausência de algum contentamento), na hora do reencontro, das crianças com os pais, após um dia de creche ou de jardim-de-infância. Será que as crianças sentem mais gosto pela ‘escola’ do que pela família? O fardo dos filhos não compensará a dedicação ao futuro deles e dos pais? Há coisas que se torna difícil disfarçar e o trato com os filhos é uma das mais relevantes… onde o verniz estala com razoável normalidade.

4. Será que a qualidade de tempo dos pais – pai ou mãe, não é igual nem indiferente – para com os filhos é a mais adequada e profícua? Mesmo numa aposta simplista em ‘ter filhos’, estes são a prioridade da vida ou têm de rivalizar com o emprego e o (pretenso) sucesso profissional? Os descendentes não ocuparão o fim da lista de coisas inadiáveis ao longo do dia-a-dia? Mais do que gerar filhos não teremos andado a gerir os possíveis ou mesmo os indesejáveis? Quem tem tempo para brincar com os filhos? Não será mais fácil colocar-lhes a ‘mamadeira eletrónica’ – anteriormente era a televisão, agora é o telemóvel ou o tablete – a entretê-los do que a aturá-los nas suas rabugices, diabruras e (aparentes) inconveniências?

5. Por razões várias – algumas em razão da função de contato com pessoas (pároco) e outras por observação de responsabilidades (de uma instituição de ação social) socioeconómicas – tenho visto com mais recorrência esse estribilho que via noutras latitudes culturais de franja: meia-volta sou confrontado com essa frase – os meus, os teus e os nossos (nascidos ou a nascer)…Daqui se pode depreender que essas pessoas já tiveram outros ‘casamentos’ ou uniões, que reverteram em novas propostas ou desejadas soluções. Confesso que esta realidade, além de me questionar, faz-me inquirir sobre a noção de família, de educação, de sociedade e mesmo de Igreja… As crianças não têm culpa dos pais que tiveram, mas será que estes já se aperceberam do alcance psicológico e espiritual desses filhos (naturais ou assumidos) no presente e para o futuro?
Li, há dias, o título de um livro do Papa Francisco – as crianças são esperança. Serão mesmo ou já não temos pachorra capaz para as aturar?

António Sílvio Couto

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Escuta – condição para a comunicação

 


Depois de, no ano passado, ter dedicado a sua mensagem à necessidade de ‘ir e ver’, este ano, o Papa Francisco dedicou a sua mensagem para o dia mundial das comunicações sociais à atenção ao ‘escutar’, como algo decisivo na gramática da comunicação e como condição para um autêntico diálogo.

‘Escutar com o ouvido do coração’ – é o tema do 56.º dia mundial das comunicações sociais, que ocorre, cada ano, no domingo da Ascensão. Com três aspetos progressivos e complementares a mensagem papal aborda: escutar com o ouvido do coração, a escuta como condição da boa comunicação e escutar-se na Igreja.

Vejamos cada um destes aspetos…até pelo confronto com tanto barulho, por dentro e por fora.

1. Escutar com o ouvido do coração

 A escuta é pedra de toque da relação dialogal entre Deus e humanidade... A escuta corresponde ao estilo humilde de Deus... Deus que sempre Se revela comunicando-Se livremente, e, por outro, o homem, a quem é pedido para sintonizar-se, colocar-se à escuta...Jesus convida os seus discípulos a verificar a qualidade da sua escuta... Ouvidos, temo-los todos; mas muitas vezes mesmo quem possui um ouvido perfeito, não consegue escutar o outro. Pois existe uma surdez interior, pior do que a física. De facto, a escuta não tem a ver apenas com o sentido do ouvido, mas com a pessoa toda. A verdadeira sede da escuta é o coração...A primeira escuta a reaver quando se procura uma comunicação verdadeira é a escuta de si mesmo, das próprias exigências mais autênticas, inscritas no íntimo de cada pessoa.

Partindo destas palavras da mensagem do Papa Francisco podemos compreender que de um bom ouvido depende uma salutar comunicação. Efetivamente gritamos uns com os outros porque, mesmo estando perto, nem sempre estamos sintonizados pelo coração em escuta, pelo silêncio e no diálogo.

 2. Escuta como condição da boa comunicação

 Aquilo que torna boa e plenamente humana a comunicação é precisamente a escuta de quem está à nossa frente, face a face, a escuta do outro abeirando-nos dele com abertura leal, confiante e honesta... A boa comunicação não procura prender a atenção do público com a piada foleira visando ridicularizar o interlocutor, mas presta atenção às razões do outro e procura fazer compreender a complexidade da realidade... A escuta é o primeiro e indispensável ingrediente do diálogo e da boa comunicação... A capacidade de escutar a sociedade é ainda mais preciosa neste tempo ferido pela longa pandemia... É preciso inclinar o ouvido e escutar em profundidade, sobretudo o mal-estar social agravado pelo abrandamento ou cessação de muitas atividades económicas.

Destas palavras do Papa podemos perceber que ser capaz de deixar o outro falar é exigência para que se passe de um ‘duólogo – monólogo a duas vozes – para um verdadeiro diálogo, naquilo que se poderá apelidar de ‘martírio da paciência’, escutando antes de ser escutado. Urge termos tempo e critérios verdadeiramente cristãos para sabermos escutar as histórias de vida de tantos dos nossos contemporâneos, sem nos quedarmos por estórias laterais sem gosto nem nexo…

 3. Escutar-se na Igreja

 Também na Igreja há grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. É o dom mais precioso e profícuo que podemos oferecer uns aos outros... Quem não sabe escutar o irmão, bem depressa deixará de ser capaz de escutar o próprio Deus... Na ação pastoral, a obra mais importante é o «apostolado do ouvido». Devemos escutar, antes de falar...  Recentemente deu-se início a um processo sinodal... Como num coro, a unidade requer, não a uniformidade, a monotonia, mas a pluralidade e variedade das vozes, a polifonia.

Precisamos de aproveitar esta oportunidade de escuta recíproca, onde todos temos algo a aprender, num apurado processo de intercomunhão fraterna sinodal, que é muito mais do que solidária. Temos consciência de que somos uma ‘Igreja sinfónica’?   

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Neologismos inculturados

 


Creio que todos sabemos que a língua (falada ou escrita) revela o que somos e que as palavras manifestam o que pensamos, tentando adequar a nossa linguagem àquilo que queremos dizer de forma mais percetível ao nosso interlocutor. O surgir de ‘novas’ palavras poderá querer significar que desejamos exprimir algo que se tornou diferente e, por isso, aparecem expressões, vocábulos, termos ou modos de falar com ou sem sotaque.

 1. Em tempos não muito recuados, para entendermos algumas palavras, precisávamos de ter noções de filologia grega ou latina, pois muitas das nossas palavras – simples ou eruditas, habituais ou mais elaboradas, de linguagem popular ou literária – tinham a sua origem em termos dessas culturas clássicas e, para nos entendermos, necessitávamos de recorrer a essas fontes…Nos tempos mais recentes vemos aportuguesar inúmeras palavras estrangeiras, tanto pela transcrição da palavra, como pela adaptação à sonoridade… surgindo neologismos ou estrangeirismos introduzidos na linguagem, sobretudo, de âmbito popular, mas que bem depressa se tornam ‘normais’…

 2. Há setores onde a introdução na cultura de neologismos é mais frequente: em matérias de desporto – quantas modalidades foram adequando a sua designação pela sonoridade à portuguesa – nos campos da informática, na vida comercial e em tantas outras atividades, funções e mecanismos de transferência entre o que se fala e o que se vive. Os ‘puristas’ da língua resistem a tais mudanças, exorcizam a todo o custo o pretenso ‘acordo ortográfico’ e fazem questão de mostrar o desacordo quanto a tudo isso que tem influenciado a língua portuguesa e a sua evolução… assim parece.

 3. Numa espécie de metonímia popularizada vemos marcas de produtos assumirem quase-designação do mesmo produto. Por exemplo quem duvida que, quando dizemos ‘quispo’ (marca de um casaco dos finais da década de setenta do século passado) não estamos a designar um impermeável com capuz à maneira dos esquimós…que deveria dizer-se anoraque. Um produto fabricado em plástico, com variados tamanhos, formas e soluções, designámo-lo de ‘taparuere’… e estamos a designar um recipiente usado para acondicionar desde alimentos até produtos… Quando uma marca ainda substitui toda a produção ou modo de calçar ou de vestir – ‘ténis’ ou ‘jeans’ – para falarmos das várias formas de sapatilhas ou de calças de ganga.

 4. Por estes dias estava a ouvir um depoimento, de há cerca de uma década, de um escritor português que viveu na Holanda – agora designada de ‘países baixos’, que traduzem ‘neder-landen’ – e escreveu a sua história. Ele bem tentava encontrar uma palavra que caraterizasse aquele povo na sua resistência, capacidade de organização e mesmo de luta, percebendo-se que na frase calhava bem essa outra palavra recentemente introduzida no nosso vocabulário: ‘resiliência’. Com efeito, esta palavra exprime a capacidade, sobretudo psicológica, de enfrentar e de superar as adversidades, tentando conciliar, pela positiva, dois fatores: crise e superação… Se bem que este termo ‘resiliência’ ocupe farta referência às condições económicas, ele pode (e deve) abranger mais campos, situações e vivências… desde pessoais até familiares, sociais e políticas.

 5. Uma breve abordagem a um termo talvez agora mais facilmente entendível na sua compreensão, se o compararmos com a experiência mais atualizada. Na teologia católica – sobretudo na doutrina de São Paulo – aparece-nos por várias vezes a expressão de sermos configurados a Cristo (cf. Fl 2,5; Rm 1,1; Gl 3,27), na linha de sermos revestidos de Cristo, numa aceitação d’Ele na nossa vida e da nossa vida estar n’Ele. Embora não seja nem de perto nem de longe algo semelhante, quem trabalhe com questões tecnológicas saberá o que é ‘configurar’ um telefone ou um computador e talvez possa entrar com mais sentido naquilo que a doutrina católica nos refere ao configurar-se a Cristo… Deste modo a linguagem técnica serviria os intentos religiosos-espirituais… Não sendo um neologismo, ‘configuração’ ganharia novo significado a partir da experiência humana atualizada!    

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Humor: cair em graça e/ou ser engraçado?

 


Indiscutivelmente o humor é uma arte e exercê-la não é para quem quer, mas para quem sabe...dado que é muito mais do que jeito, habilidade ou aceitação popular. De vez em quando surgem razoáveis humoristas: uns com talento, outros bem promovidos e outros ainda com subtil catapultação (sabe lá de quem, mas com suficiente auréola que faz desconfiar)... O humor – tenha a expressão visível, cultural ou social que tiver – é preciso. No entanto, nem tudo o que faz rir é humor, antes poderá ser rumor de outras questões e intenções...

 1. Como podemos entender – hoje como no passado – o humor? Será que riso e humor se podem identificar ou como se distinguem? Podemos considerar que Deus tem humor? Qual o significado da frase: ‘a rir se corrigem os costumes’ (ridendo castigat mores)? Porque será que o ser humano é o único que ri e não será o único que faz rir? Como interpretar a expressão: rideo te, rideo tibi (rio-me de ti, rio-me para ti)? Como conciliar o cómico com o sério, sem este se tornar sisudo? Será um dom fazer rir, sem deixar descambar a questão para o vulgar, anedótico ou burlesco? Ainda tem sentido a frase – ‘um santo triste, é um triste santo’? Poderemos considerar que há algo de frívolo no humor e até no riso? Não serão estes, pelo contrário, uma arte que nem todos conhecem nem são capazes de entender?

Estas questões – e tantas outras – não resumem nem aglutinam questionamentos sobre o humor. Tentarei abordar algumas, deixando a quem ler, sugestões para procurar as suas respostas...

 2. O humor pode entender-se como a disposição de ânimo de uma pessoa em relação a alguma coisa ou a algum momento; estado de espírito, temperamento... veia cómica, ironia delicada e alegre, ditos e gestos engraçados e espirituosos...

A forma de exprimir o bom humor pode ser variada e variável, talvez mais em função de com quem se está do que de quem tenta manifestar esse (bom) humor. Quem não conhece a distinção entre o palhaço triste (por dentro) que tenta fazer rir (os outros), mesmo na sua íntima tristeza?

Na abertura do seu livro, de 1968, o teólogo Joseph Ratzinger, no excelente livro ‘Introdução ao cristianismo’, deixou uma estória digna de nos fazer refletir.

Certo dia houve um incêndio num circo ambulante. Quando o diretor se apercebeu de que algo estava a arder, chamou o palhaço – era o único que já se encontrava vestido e maquilhado a preceito – para que fosse à vila mais próxima, à procura de ajuda, avisando a população de que havia um incêndio no circo e que, se não viessem ajudar, todos corriam perigo.

Ao verem o palhaço neste estado os habitantes acharam que desta vez o circo se tinha esmerado em inventar uma forma de chamar gente para o seu espetáculo.

Mas quanto mais o palhaço apelava para que fossem acudir ao incêndio mais a população se ria, pois o palhaço chorava para que todos fossem ajudar e eles consideravam que aquilo fazia parte da propaganda.

Todos se riam, mas o palhaço sentia ainda mais vontade de chorar, procurando convencer todos de que o assunto era mesmo sério: havia, de facto, um incêndio.

Mas o seu desempenho ainda deixava a população mais a rir... Ora, o fogo atingiu a vila. Já era tarde... E o fogo consumiu o circo e a vila.

Não andaremos compungidos demais a querer apelar a uma conversão demasiado séria e que já poucos levam a sério? Como poderemos aliviar a mensagem sem a vulgarizar nem nos ridicularizarmos?

 3. Depois de termos visto um comediante a ascender ao governo da Ucrânia, como reagiríamos se tal acontecesse em Portugal? Quem seria o eleito a assumir tal função? Teria estofo e a mínima qualidade?

Cheira a quase-insuficência inteletual que, alguns setores da Igreja católica, recorram a comediantes em maré de sucesso para irem ‘pregar’ a encontros eclesiásticos. Será que eles retribuiriam tal simpatia nos seus quadros e iniciativas. Fareja-se algo de indisfarçável incompreensão que certas comediantes usem o espaço de atividade ‘católica’ para se promoverem e lançarem as suas atoardas desconexas e ridicularizantes... 

 

António Silvio Couto

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Peregrinos a pé…para Fátima (e não só)

 


É um fenómeno que tem vindo a crescer: vermos grupos e pessoas individuais a andarem a pé rumo ao santuário de Fátima, mas também para Santiago de Compostela ou outro espaço religioso mais ou menos significativo nalguma região.

O que leva centenas ou milhares de pessoas mais ou menos organizadas a empreenderem um processo de caminhada a pé? Quais as caraterísticas de ‘peregrinação’? Como entender ou enquadrar pessoas que fazem essa caminhada e/ou peregrinação a pé? Esta onda de ‘caminhadas a pé’, onde se pode incluir a peregrinação que nos diz (ou revela) do nosso tempo? A mensagem de Nossa Senhora, em Fátima, incluía esta vertente de caminhada a pé ou como peregrinos a pé? Como entender e enquadrar esta onda de ‘peregrinos a pé’ na abordagem ao santuário de Fátima?

 1. Neste, como noutros aspetos da vida, cada pessoa é um caso e tem/pode ter as suas razões para empreender a sua caminhada a pé ou como peregrino a pé. Pelo que podemos ouvir das pessoas há motivações muito díspares, com significados múltiplos e mesmo com interpretações diversas… razões religiosas, do foro do agradecimento ou nalguns casos como ‘pagamento’ de promessas, mas também pela experiência do caminhar juntos ou como atividade de índole espiritual ou meramente humana… De tudo isto não poderemos senão respeitar as motivações e, se for caso disso, esclarecer as consequências…

 2. O Catecismo da Igreja Católica fala-nos sobre o sentido e o conceito de ‘peregrinação’, sobre a conexão com a religiosidade popular, quanto ao significado e mesmo quanto aos tempos de peregrinação:

* Sentido da peregrinação: «A Igreja […] só na glória celeste alcançará a sua realização acabada» (185), aquando do regresso glorioso de Cristo. Até esse dia, «a Igreja avança na sua peregrinação por entre as perseguições do mundo e das consolações de Deus». Vivendo na terra, ela tem consciência de viver no exílio, longe do Senhor e suspira pelo advento do Reino em plenitude, pela hora em que «espera e deseja juntar-se ao seu Rei na glória». A consumação da Igreja – e através dela, do mundo – na glória, não se fará sem grandes provações. Só então é que «todos os justos, desde Adão, “desde o justo Abel até ao último eleito”, se encontrarão reunidos na Igreja universal junto do Pai» (n.º 769).
* Conexão com a religiosidade popular: «Fora da liturgia dos sacramentos e dos sacramentais, a catequese deve ter em consideração as formas de piedade dos fiéis e a religiosidade popular. O sentimento religioso do povo cristão desde sempre encontrou a sua expressão em variadas formas de piedade, que rodeiam a vida sacramental da Igreja, tais como a veneração das relíquias, as visitas aos santuários, as peregrinações, as procissões, a via-sacra, as danças religiosas, o rosário, as medalhas, etc.» (n.º 1674).
* Significado de peregrinação: «as peregrinações evocam a nossa marcha na terra para o céu. São tradicionalmente tempos fortes duma oração renovada. Os santuários são, para os peregrinos à procura das suas fontes vivas, lugares excecionais para viver «em Igreja» as formas da oração cristã» (n.º 2691).

 3. Vistas estas indicações de caráter católico podemos e devemos tentar avaliar este fenómeno das ‘peregrinações a pé’ com destino ao Santuário de Fátima. Parafraseando essa frase-chavão quanto à relação entre Fátima e com a hierarquia da Igreja em Portugal: não foi a Igreja que impôs Fátima, mas Fátima é que se impôs à Igreja.

Desde sempre houve pessoas que, dados os parcos recursos, fizeram do caminhar e o do andar a pé, uma forma de ir a Fátima. No entanto, tendo em conta as três vertentes da ‘mensagem de Fátima’ – oração, doentes e peregrinações – esta última foi-se aprimorando, desde a organização até à vivência e mesmo recorrendo a indicações de âmbito mais amplo, social e cultural. Os ‘caminhos de Fátima’, enquanto entidade ligada ao Centro nacional de cultura, tem identificado e desenvolvido vários itinerários – do Norte, da Nazaré, do Tejo, rota carmelita, do centenário, do mar, das beiras ou do sul…com indicações específicas e recomendações aos peregrinos… No entanto, tem havido e continuará a haver novas e esporádicas propostas de caminhos de peregrinos. Todos terão o espírito da mensagem de Nossa Senhora?

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 10 de maio de 2022

Lições interpelativas de uns passarinhos


Estava resguardado do calor intenso, na tarde do último domingo e no contexto de um funeral, quando, no espaço em que me encontrava, vi esvoaçar dois pequenos pássaros. Pelos movimentos se percebi que eles tentavam salvaguardar algo… de que me dei conta passados alguns minutos: tinham um ninho por perto, dando a entender que não queriam que se soubesse a sua localização, tentavam defender os filhotes, que, de relance, se via, precisarem de alimento…

Esta breve observação deixou-me a pensar não só quanto ao comportamento defensivo e atento das aves progenitoras, como fazendo uma analogia com as atitudes dos humanos, naqueles gestos avícolas…

1. Defender, velando: o corrupio constante era a tentativa de não deixar perceber onde estavam as aves mais pequenas. Mesmo que tendo algo a levar-lhes em alimento, como foi complicado perscrutar onde era o ninho, bem defendido e dissimulado atrás de um contraforte de uma janela.

Por contraste vi – na minha reflexão – a facilidade com que muitos pais humanos – que nada parecem ser educadores – deixam que a morada de seus filhos seja devassada e quase-exposta ao assalto de tudo e de todos. Falta, efetivamente, algum do zelo daqueles passaritos encarnado na vida de muitos humanos, que mais parecem desistir dos filhos do que fazerem a aposta preferencial no seu processo de educação.

2. Velar, cuidando: os pios aflitivos e os voos quase-lancinantes dos dois pássaros (pequeninos no tamanho, mas grandes nas atitudes) progenitores deixavam a entender que o perigo rondava os mais novos. Confesso que me cativou a argúcia daqueles passarinhos no modo como cuidavam os filhos, não só dando-lhes de comer como ainda conferindo-lhes segurança e cuidado atento, simples e sereno.

Por breves instantes desliguei daquele contexto e pus-me a pensar nalgum desleixo com que certos pais tratam os filhos, apesar de lhes fornecerem coisas e artefactos materiais, não lhes conferem algo de essencial: a dedicação, o cuidado e a atenção de quem dá carinho sem apego, ministra confiança sem protecionismo e, sobretudo, dá amor sem lamechice barata ou em saldos.

3. A vida que acolhemos – diante daqueles pequenos pássaros pude compreender um tanto melhor o tema da ‘semana da vida’, que decorre por estes dias (de 8 a 15 de maio), perscrutando as intenções de que a vida é algo mais do que um mero existir, mas exige-nos que a acolhamos com sentido de pertença e, sobretudo, com vontade de serviço ao dom da mesma vida. Esta ‘semana da vida’ foca-se em três temas: “o aborto, uma realidade oculta dos noticiários e que se estima represente cerca de 15.000 abortos por ano”; “a eutanásia, tema central face à atual realidade política nacional” e a “guerra na Europa, com todas as mortes e refugiados que provoca, este tema sim, em todos os noticiários diários”.

Parece-me que a cena supra reportada dos passarinhos choca com a leviandade com que tantos dos nossos contemporâneos até olha para estas três questões humanas, sociais, senão mesmo, culturais. Sobre o ‘aborto’ dá a impressão que matar se tornou algo vulgar e inofensivo…porque legalizado ou ao menos despenalizado. Quanto à ‘eutanásia’ é uma questão nitidamente ideológica de fait-divers, pois, quando as coisas começam a correr mal, está à mão um tema para unir as esquerdas… antes como depois. Sobre a ‘guerra’ ainda é assunto longínquo, embora se situe a cinco mil quilómetros de distância…alguns começam a ficar enfastiados com as notícias e varrem para debaixo do tapete o que incomoda.

4. Para uma visão de família – a lição mais simples que pude colher da cena dos passarinhos em proteção do ninho e em defesa dos seus gerados foi a da família, quantas vezes atacada – inexplicavelmente agora defendida pelos políticos, mesmo pelos que aprovaram o aborto e/ou defendem a eutanásia – com subtis medidas de desacreditação ou de menor boa reputação social e cultural.

Um destes dias dizia-me alguém que trata destes assuntos que envolvem pessoas da família: qual a diferença entre uns pais menos atentos aos filhos com aqueles que os colocam os seus em colégios de manhã à noite? Não será tudo negligência? As ‘comissões’ (ditas) de proteção não serão antes postos de emprego caro?



António Sílvio Couto

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Para entendermos o termo ‘fiéis’

 

Em virtude do Batismo recebido, cada membro do Povo de Deus tornou-se discípulo missionário. Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de evangelização. É preciso acautelar-se da mentalidade que separa sacerdotes e leigos, considerando protagonistas os primeiros e executores os segundos, e levar por diante a missão cristã, conjuntamente, leigos e pastores como único Povo de Deus. Toda a Igreja é comunidade evangelizadora.
Este pequeno excerto da mensagem do Papa Francisco para o 59.º dia mundial de oração pelas vocações - sob o título - ‘chamados para construir a família humana’ - trouxe-me à lembrança uma certa incongruência terminológica com que alguns dos clérigos se referem, sobretudo, aos leigos, designando-os de ‘fiéis’, numa espécie de exclusão de que eles mesmos não o serão por contraste com os que não foram ordenados em ministério.

1. De facto, decorridos quase quarenta anos sobre a promulgação do Código de Direito Canónico, em 1983, podemos e devemos aferir, exigentemente, a nossa linguagem àquilo que no mesmo Código se diz sobre a definição-descritiva de ‘fiéis’.
«Cân. 204 - § l. Fiéis são aqueles que, por terem sido incorporados em Cristo pelo batismo, foram constituídos em povo de Deus e por este motivo se tornaram a seu modo participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo e, segundo a própria condição, são chamados a exercer a missão que Deus confiou à Igreja para esta realizar no mundo.
§ 2. Esta Igreja, constituída e ordenada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele».
Diante destas palavras, questiona-se o por quê de certa visão ainda piramidal de Igreja e, sobretudo, de atitudes, funções e serviços na mesma Igreja católica. Que os mais velhos - anteriores ao Concílio Vaticano II e ao Código de 1983 - usemos esta terminologia, tolera-se, mas já era tempo de sermos exigentes na forma e no conteúdo do que dizemos, pois, revelará, sem nos darmos conta, o pensamos e como vivemos...

2. Do ser ao tornar-se
Na mensagem para o 59.º dia mundial das vocações o Papa Francisco usa algumas imagens/exemplos/testemunhos, que por serem simples e significativas, as citamos, apresentando breves questões práticas.
- «As seguintes palavras são atribuídas a Miguel Ângelo Buonarroti: «No interior de cada bloco de pedra, há uma estátua, cabendo ao escultor a tarefa de a descobrir». Se tal pode ser o olhar do artista, com muito mais razão assim nos vê Deus: naquela jovem de Nazaré, viu a Mãe de Deus; no pescador Simão, filho de Jonas, viu Pedro, a rocha sobre a qual podia construir a sua Igreja; no publicano Levi, entreviu o apóstolo e o evangelista Mateus; em Saulo, cruel perseguidor dos cristãos, viu Paulo, o apóstolo dos gentios. O seu olhar de amor sempre nos alcança, toca, liberta e transforma, fazendo com que nos tornemos pessoas novas».
Como seria diferente a nossa vida - muito mais do que a mera existência - se deixássemos esculpir em nós e através de nós, aquilo que Deus faz encobrir pela nossa frágil condição humana e pecadora. De que adiantam os títulos humanos, se o verdadeiro ser precisa, antes, de ser moldado a partir do interior? De facto, concordaremos que não é de bom-tom que alguém acrescente ao seu nome a sua condição ou estado de vida (civil), isto é, não vemos alguém dizer que é solteiro, casado, divorciado ou viúvo...antes da sua identificação. Porque fazer-se isso na condição dos padres, se tal é vocação e não profissão?

- «Diz um provérbio do Extremo Oriente: «Um sábio, ao olhar o ovo, sabe ver a águia; ao olhar a semente, vislumbra uma grande árvore; ao olhar um pecador, sabe entrever um santo». É assim que Deus nos olha: em cada um de nós, vê potencialidades, às vezes ignoradas por nós mesmos, e atua incansavelmente, ao longo da nossa vida, a fim de as podermos colocar ao serviço do bem comum».
Perante uma certa bolha - como agora se diz - será de perguntar como reagiremos se alguém apensar ao seu nome o título (doutor, engenheiro, professor), quando isso não passa de uma profissão. Ora, por haveremos de aceitar que o padre acrescente a sua vocação à identificação? Não sofreremos ainda de bastante clericalismo, que se pode tornar bizarro se lido fora do contexto social de cristandade, que já não somos!

3. Fiéis todos somos, numa «sinodalidade, o caminhar juntos é uma vocação fundamental para a Igreja e, só neste horizonte, é possível descobrir e valorizar as diversas vocações, carismas e ministérios». Para quando a descoberta e a vivência de sermos irmãos em Cristo pelo batismo, servindo-nos fiel e eclesialmente?

António Sílvio Couto

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Trombalazanas – quem e por quê?



 Decorria, por estes dias, uma entrevista-memória com um político recém-retirado da vida ativa, quando, ele mesmo, citou uma frase que o pai lhe terá dito algures: por que tens sempre essa cara de trombalazanas? Achei adequado o termo aplicado à figura em causa e ainda me detive até final do programa para ver como tal epíteto se conferia ao réu…tendo ajudado a mudar a minha impressão (não julgamento) sobre a pessoa.

 1. Consultei, então, o dicionário sobre o significado de ‘trombalazana’ (ou trambalazana) e pude reconhecer que o termo define – dizem que num regionalismo português – alguém trombudo, de má cara, algo ingénuo, que exibe cara fechada (tromba será um adjetivo de outros animais), carrancudo… Se alargarmos ao sentido mais conotativo poderemos dizer que é alguém que faz meças à simpatia, pouco simpático – ao menos na versão exterior – e de feições duras ou endurecidas…

 2. Não andará por aí muita personagem trombalazana, que se transfigura quando quer ‘vender’ a sua imagem, nas mais diversas circunstâncias e situações? Será benéfico ou contraproducente alguém ser trambalazana? Não será, antes, mais prejudicial vermos figuras a tentarem impingir aquilo que não são, mesmo que possam ascender na tabela das simpatias? Nunca nos desiludimos, quando conhecemos alguém mais na proximidade, na familiaridade ou na intimidade…respeitosas?

 3. Se, por momentos, nos detivermos a analisar a imagem: essa que temos de nós mesmos; a que queremos dar de nós aos outros; a que os outros têm de nós; a que seria desejável ou ainda a possível… teremos um longo e árduo trabalho de autoanálise e de avaliação dos outros. Com efeito, nem que isso nos desgoste, há um artefacto que todos temos em casa que, no mínimo, engana-nos e com isso achamos que conseguimos ludibriar os outros: o espelho. Claro que ninguém, conscientemente, usar a autocontemplação atribuída à ‘velha bruxa’ da fábula: espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais bela do que eu? E se reparássemos que o espelho nos dá as coisas em contraste, dar-lhe-íamos tanto significado e importância nos enfeites que diante dele produzimos?

 4. Efetivamente vivemos num tempo onde o culto da imagem – identidade, identificação, apresentação e (boa) impressão – como que vai fazendo a (nossa) cultura da aparência, seja ao nível pessoal ou social, seja pela competência profissional, seja ainda pelos penachos com que nos vamos enfeitando ou deixando adular. Num país de baixa instrução, um titulozito amanhado à pressa poderá fazer jeito até que se descubra a farsa. Num país onde se confunde cultura com títulos ‘académicos’ corremos o risco de patrocinar incompetentes, malformados e oportunistas…à la carte.

 5. Quem não descobrirá, desgraçadamente, a ausência de uma cultura do mérito e da competência sem olhar à cor do cartão partidário ou ainda à bolha social em que nos colocamos ou somos colocados? Quem não sente náuseas e arrepios por ser relegado para fora do circuito da valorização só porque não se vendeu às pretensões nem sempre claras dos avaliadores? (Tudo isto é asqueroso no âmbito socio- político-económico, mas torna-se abjeto quando o vemos acontecer nas teias da Igreja e nos círculos religiosos)…

 6. Ninguém é como é ou como se apresenta sem ter razões para tal. Quantas vezes encontramos uma pessoa que é retraída porque nunca foi valorizada, mas antes reprimida. Quantas vezes conhecemos pessoas à defesa ou na desconfiança, no trato com os outros, porque se desiludiram, quando confiaram, foram magoadas ou ofendidas. Quantas vezes confundimos identificar – o rosto, o nome ou qualquer outra condição – alguém com o conhecer esse alguém.

 7. Qual o contrário de trambalazana? Será simpático, de cara sorridente, bem-disposto, sem azedume nem rosto aferrado, não destilando fel, vinagre nem limão sobre os outros? Como poderemos mudar, já?                

 

António Sílvio Couto


segunda-feira, 2 de maio de 2022

‘Mês de maio’ - com Maria rezamos pelos continentes

 


‘Maio’ como que evoca, para boa parte das pessoas, algo que tem a ver com natureza florida, flores (muitas, bem cheirosas e coloridas), sinais de alegria e de festa e, porque não dizê-lo, para os crentes algo invocativo de Nossa Senhora, na devoção ou na religiosidade popular mais simples e atrativa.

Que tem ‘maio’ a ver com flores e na sua profusão? Que pode fazer para aspirarmos a situações de contacto com a natureza? Como explicar certas festas - por exemplo das ‘Cruzes’, em Barcelos, ou do Senhor das Chagas, em Sesimbra - no início do mês de maio, onde se entre-cruzam as flores com a expressão de Cristo na Cruz ou mesmo na representação de crucificado? Como conciliar ou explicar a cruz florida - na frente e no reverso - nesta visão cristã mais popular? Haverá algo na longa história dos tempos e dos povos, que expliquem tais tradições?   

1. Desde os tempos mais antigos que o mês de maio tem um caráter de ligação à dimensão da feminilidade na sua expressão social e mesmo cultural. Maio (em latim, ‘maius’) é referido em relação à deusa grega Maya, mãe de Hermes que foi identificada, na mitologia romana, com a deusa da fertilidade ‘Bona Dea’, cujos festivais os romanos celebraram neste mês. Alguns dos ritos, em contexto rural, colocam, sobretudo as jovens, a celebrar certos rituais festivos e de iniciação, onde as grinaldas com se enfeitavam eram alusivas a momentos festivos, que foram deixando resquícios nalgumas culturas ocidentais. Repare-se na tradição das maias com que eram enfeitadas as portas e janelas, deixando uma nota festiva e de salvaguarda para os possíveis ‘males’ sociais ou morais.  É digno de ser referido ainda que ‘maio’ é um mês de primavera no hemisfério norte e de outono no hemisfério sul... na leitura do despontar ou no despedir da força da natureza...

2. Sobre o sentido do culto a Nossa Senhora no mês de maio diz o Catecismo da Igreja Católica (n.º 971) : «’Todas as gerações me hão-de proclamar ditosa’ (Lc 1, 48): «a piedade da Igreja para com a santíssima Virgem pertence à própria natureza do culto cristão». A santíssima Virgem «é com razão venerada pela Igreja com um culto especial. E, na verdade, a santíssima Virgem é, desde os tempos mais antigos, honrada com o título de “Mãe de Deus”, e sob a sua proteção se acolhem os fiéis implorando-a em todos os perigos e necessidades […]. Este culto […], embora inteiramente singular, difere essencialmente do culto de adoração que se presta por igual ao Verbo Encarnado, ao Pai e ao Espírito Santo, e favorece-o poderosamente». Encontra a sua expressão nas festas litúrgicas dedicadas à Mãe de Deus e na oração mariana, como o santo rosário, «resumo de todo o Evangelho».

3. Este ano - depois das provações da pandemia - na paróquia da Moita propomos, como forma de oração comunitária, que rezemos pelos cinco continentes, atendendo a cada um nas diferentes semanas. Sugerimos ainda que, nos diversos dias da semana, rezemos por intenção específicas. Na primeira semana (1 a 7) - pela Ásia; da segunda semana (8 a 14) - pela Europa; da terceira semana (15 a 21) - pelas Américas; quarta semana (22 a 28) - pela África; nos últimos dias (29 a 31) - pela Oceânia... Houve a atenção em colocar alguns dos ‘dias’ específicos, como o da Europa, a 9 de maio, e o de África, a 25 de maio, inseridos na semana respetiva de oração.
Quanto às intenções para cada dia propomos: domingo - pela paz; 2.ª feira - pela fome; 3.ª feira - pelo trabalho; 4.ª feira - pela família; 5.ª feira - pelos regimes políticos: 6.ª feira - pelas condições religiosas; sábado - pela situação ambiental.
À semelhança dos anos ‘normais’ é proposto que, em cada uma das freguesias, que compõem a paróquia, haja uma procissão noturna: no Rosário, a um de maio; em Sarilhos Pequenos, a 13 de maio e na Moita, no dia 31 de maio.
Eis um breve itinerário, que desejamos que possa ajudar todos.

António Sílvio Couto