Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Acabou a paz social?

 


Numa análise simples, correta e contundente um jornalista – desses que ainda sabe o que é o lead da notícia, que diz aquilo que pensa e avalia as análises, sem querer agradar ao patrão ou ao canal onde intervém – referia, ainda antes das eleições, que, depois destas, poderemos perceber: que acabou a ‘paz social’ em que vivemos nos últimos seis anos…talvez à força e sem grande suporte verossímil.

Quais eram (são) os indícios de que a ‘paz social’ – com a ausência de protestos, uma forte diminuição de greves, um aligeirar de conflitualidade nas ruas e nos trabalhos, um certa ‘harmonia’ entre os vários quadros intervenientes sociais, sindicais ou económicos – estaria ameaçada e que os itens apontados poderão emergir contra essa paz? Será que a ausência de conflitos abertos significava que havia paz? Não teremos vivido antes numa paz podre, com focos latentes de irascibilidade, de azedume ou de sobreposição entre ‘classes’, setores e animosidades?

Fazendo a leitura dos números da votação – maioria – poderemos encontrar algumas das respostas para o fim da tal ‘paz social’, feita de equilíbrio de tendências, de conquista de direitos ou mesmo à luz do pagamento de favores aos beligerantes, nas diversas instâncias de poder, de participação ou de manipulação.

 1. Muitos se arrepiam com os votos conquistados pelo ‘Chega’…Uns tais democratas da verborreia quase contestam quem nele votou, como se houvesse votos bons e votos indecorosos…aqueles são dos meus apaniguados, estes são dos que não pensam como eu; aqueles são de uma certa esquerda – trauliteira, aguerrida e ilustrada – numa certa visão, estes são dos ignorantes que se exprimem de forma diferente e com as mesmas obrigações e regalias…Deste modo a ‘paz social’ que vai acabar será salutar que deixe de estar encoberta e submissa aos interesses de um ‘tal povo’, com reduzida expressão… e com uns tais ‘trabalhadores’ que não passam de mitos ao serviço da dialética marxista ainda em vigor!

Nada me simpatizo com o ‘Chega’, dizendo, desde já, que votei sempre da mesma forma em quarenta anos!

 2. Como se pode dar tudo a todos, se o bolo minguou e são mais os pretendentes do que o que há para distribuir? De facto, só quando se produz, se poderá manifestar alguma abundância. Com efeito as empresas poderão pagar ordenados, se não têm meios nem condições? O fim da ‘paz social’ conquistará as ruas, se quiserem esticar os vencimentos sem meios que sustentem a sua exequibilidade. Numa mínima compreensão dos factos, teremos de considerar que só podemos distribuir riqueza se ela for produzida, amealhada e conquistada. Tudo o resto soará a demagogia, a propaganda – esta não acontece só por ocasião das eleições, é muito mais tentacular – e, sobretudo, a manipulação de quem dirige ou governa. Por isso, a ‘paz social’ é algo mais profundo do que ter dinheiro na mão para consumo: é preciso saber de onde este veio e se continuará a ser servido com verdade e justiça.

 3. Eis os resultados: PS – 41,6 % (117 deputados); PSD – 27,8 % (71 deputados); Chega – 7,1 % (12 deputados); IL – 4,9 % (8 deputados); BE – 4,4 % (5 deputados); CDU – 4,3 % (6 deputados); Livre – 1,5 % (1 deputado); PAN – 1,2 % (1 deputado)… Abstenção: 42,04 %. Que governo com esta maioria? Que estabilidade? Andamos a perder tempo e feitio! Brincar, não compensa!

 4. Houve assuntos esquecidos e/ou evitados, antes das eleições, que terão de ser tomados a sério. Em tempo já de seca, não se falou de água e esta – como sempre – é tema que envolve consciencialização tanto no uso como na racionalidade pessoal e coletiva. Não basta considerar que isso é questão rural, pois os (ditos) citadinos precisarão dela diariamente. Se não chover em breve, algo poderá caminhar para o dramático…

Quem falou da eutanásia? Mais uma vez os partidos se acobardaram sobre a temática e quererão fazer aprovar aquilo que nem sabemos o que pensam ou como resolverão o assunto de forma séria e civilizada. Matar não resolve nada, nunca!

A regionalização foi abordada? Só se foi em questiúnculas baratas. Mais cedo do que tarde pretenderão impô-la, mas como recurso de emprego a ‘políticos’ de categoria secundária. Haja seriedade e bom senso!

    

António Sílvio Couto

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Espiritualidade sem religião?

 


É recorrente ouvirmos – nas frases ditas em público ou em conversas mais pessoais – dizer: ‘eu cá tenho a minha espiritualidade e não pratico nem preciso de nenhuma religião’... Será isto possível e não passa de mais uma frase de moda e ao sabor da ocasião? Haverá nessa forma de estar algo que tenha a referir-se sobre o modo de ser? Com tanta pretensa autonomia não haverá algo de excesso de individualismo? Até que ponto este posicionamento - com algo mais intimista e menos institucional - é revelador de uma certa cultura? Não vivermos já este ambiente sócio-cultural?

1. Espiritualidade ‘à la carte’. Quem diga a frase citada manifesta por certo uma vivência que não se reduzirá à normalidade, isto é, muitas pessoas (a maioria senão uma quase totalidade) nem pensarão na necessidade de terem uma ‘espiritualidade’ que as possa guiar. O dito materialismo prático – como referia o Papa Bento XVI – não lhes deixa espaço nem tempo para se ocupar com ninharias que não sejam de índole materialista. Aspirar a reportar-se a uma espiritualidade soará a fora do normal, na teoria como na prática.

Há, no entanto, como que subjacente a quem refira aquela frase uma espécie de busca nas diferentes formas de se conduzir na vida, isso a que poderemos chamar de ‘espiritualidade’, isto é, algo que, de forma mais do foro do espírito guia e marca a diferença, senão mesmo serve de mote de conduta, nas pequenas como nas grandes coisas ou acontecimentos pessoais, de grupo ou sociais. Quem não se lembra da espiritualidade franciscana, sob a conduta da pobreza? Quem não recorda a espiritualidade de não-agressão do budismo? Quem não deteta diferença entre o modo de viver de um muçulmano ou de um judeu; de um vicentino ou de carmelita; de um jesuíta ou de um hindu? Mas serão estas ‘espiritualidades’ todas iguais, com o mesmo valor e sob o mesmo significado? Não correremos o risco de confundir as práticas com as razões teóricas? Será que uma pessoa vive sempre na mesma intensidade isso a que pretende designar de ‘espiritualidade’?

2. Sincretismo, holística ou definição? De facto, quem se reclama de uma certa espiritualidade, normalmente, sente-se mais humanista que outros, sem qualquer noção ou vivência espiritual. Só que, hoje, vemos surgirem propostas e condutas que vão recolhendo das várias espiritualidades aquilo que mais lhe convém, seja pelo interesse, seja por oportunismo mais ou menos acomodado... quase numa espécie de ‘nova religião’ sem ritos – cada um faz os seus –, sem códigos – cada qual engendra o que mais lhe convém – ou ainda sem ética – cada um gera e gere a sua...

Ao escutarmos a frase – ‘eu cá tenho a minha espiritualidade’ – podemos estar perante uma pessoa que tenta recolher das diversas expressões de espiritualidade aquilo que poderia ser considerado à semelhança do menor denominador comum e daí fazer traçar a bissetriz de todas ou quase todas.
Quem souber poderá rever na ‘new âge’ (nova era) essa espécie de sincretismo, tentaculamente recolhendo o que mais agrada nas expressões religiosas mais diversas. Os temas podem ser diversificados, tanto amplos como redutivos: a ecologia (natureza, animalidade ou um tal humanismo sem ética); lutas em favor da idêntica valorização de todas as religiões, desde que possam amesquinhar o cristianismo; defesa das liberdades individuais em detrimento das vivências coletivas; desvalorização de certos temas em relação com a vida (aborto, eutanásia ou reprodução ‘artificial’) e a moralidade (é preferido o termo ‘ética’) à luz dos valores cristãos...

3. Espiritualidade (mesmo) sem religião? Uma das consequências da pandemia que estamos a viver foi esta mesma: as pessoas foram-se fechando cada vez mais, deixando de participar nas atividades comunitárias – no caso católico, na eucaristia dominical – e reduzindo-se a uma espécie de autodefesa, quanto aos outros e mesmo na relação com o divino, se isso implicasse socialização. Deste modo fomos captando (ou capturando) um cristianismo quase a renegar as suas raízes mais profundas e significativas: a assembleia de fé celebrativa e comprometida. Isto como que favoreceu, por outro lado, um certo devocionismo à mistura com sinais preocupantes de uma espécie de religiosidade enjaulada pelo medo, o preconceito e, mais recentemente, por alguma abjuração da Igreja como instituição humano-divina, pecadora-santificada e mistério de presença de Deus em fragilidade... 

Os riscos estão aí, assim saibamos reconhecê-los e corrigi-los em conversão permanente.

 

António Silvio Couto

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Erros de paralaxe, nas sondagens e não só?

 


Quem lê, vê ou escuta os dados das sondagens – nestas eleições ou noutras quaisquer, digo por mim – fica com a sensação de algo vai mal no reino daquelas coisas de influenciar. Sim, porque, na maior parte dos casos das sondagens que nos são servidas, dá a impressão – coisa de ignorante na matéria! – que cada um introduz os dados que podem fornecer os resultados que mais lhe convenham.

Andava eu a matutar nestas questões quando me veio à lembrança uma expressão: ‘erros de paralaxe’. Fui consultar a wikipédia e encontrei a descrição definitória seguinte: «erro de paralaxe é um erro que ocorre pela observação errada na escala de graduação causada por um desvio óptico causado pelo ângulo de visão do observador». Quer dizer que o resultado da observação pode depender do ângulo de obervação, possibilitando a ocorrência de algum erro de ilusão, que outro observador não teria, se o seu ângulo for diferente...

1. Deixemos as questões técnicas e quase laboratoriais e saíamo para o mundo das coisas políticas: não será verdade que o ângulo de obervação de alguém pode influenciar a apresentação dos resultados, que se pretendiam sem erro, imunes ou quase-isentos? Não bastará introduzir uma variante de observação mais ou mesmo interesseira para que os resultados de tantas sondagens possam fornecer quadros de leitura enviesada e algo tendenciosa? Da experiência dos tempos mais recentes - particularmente nas autárquicas, há cerca de quatro meses - podemos colher que, em boa parte das ‘empresas’ de sondagens, foi um tanto não-disfarçado que, conforme a encomenda, assim se davam os resultados. Por isso, soa a complexo que se pretenda fazer crer que tudo corre de feição quando as variações se coadunam com as pretensões.

2. Com as eleições legislativas em curso, até introduziram uma nova modalidade: a sondagem diária, mas cujos descortinados não passavam de umas parcas centenas e daí se quis inferir que havia variação das sensibilidades, que as margens de erro andavam nos espaços de tendência e que até os manipulados eleitores não passavam de joguetes dos interesses das empresas de comunicação... Ao que chegamos no capítulo da informação-espetáculo, da tentativa de fazer crer que as mudanças ocorrem ao sabor dos produtos anunciados ou ainda que à força de tanto insistir há de resultar o que queremos impingir…

3. Dizem que as ‘redes sociais’ revolucionaram a forma de comunicar e que o modo de fazer política anda mais ao ritmo das pretensões de uns tantos habilidosos, que, anteriormente, eram chamados de estrategas na arte de comunicar, mas que agora mais parecem vendedores de feira em maré de saldos...

Aquilo a que chamavam comícios foram sendo convertidos em jantares-de-comer... para cada vez menos. As sessões de esclarecimento foram revertidas para a distribuição de propaganda e aquilo que eram manifestações – vulgo arruadas – se reduziram a passeios de rápidos, com pouca gente, fugindo do vírus e da sua propagação… Até os fastidiosos ‘tempos de antena’ perderam o sal, a invenção e a conotação dos cançonetistas mais apaniguados… As listas – sob o rótulo de abaixo-assinados – de apoio aos candidatos mais significativos já não cativam os mais incautos, quanto os fervorosos e infetíveis...Numa palavra_ quase tudo mudou para muito pior e mais egoísta!

4. Não será que mais estas eleições não passam de um conglomerado de erros de paralaxe, onde cada um vê o que quer e se conforta com o que lhe convém? Quando saberemos quem quer o bem da Nação e não quem anda a tentar impingir a ideologia ressabiada, de tempos idos e sem futuro? Prestes a escolhermos quem nos possa parecer mais capaz, fazemo-lo por verdade e com sentido de bem comum? Afinal, não voltaremos a ter de escolher o mal-menor e não os mais capazes e idóneos?

Continuamos a ser sebastianistas, mesmo sem disso nos darmos conta, verdadeiramente! Continuamos à espera de quem nunca chega, mesmo que possa ser um tal ‘messias’ sem lógica nem convicção! Continuamos num tempo que devia cuidar do future, com argumentos de um passado sem glória nem honra! Até quando?



António Sílvio Couto

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Filhos ou ‘animais de estimação’: (in)compatibilidades?

 


O Papa Francisco na primeira audiência geral deste ano civil (5 de janeiro) foi claro, contundente e preciso: «Há dias, falei sobre o inverno demográfico que há atualmente: as pessoas não querem ter filhos, ou apenas um e nada mais. E muitos casais não têm filhos porque não querem, ou têm só um porque não querem outros, mas têm dois cães, dois gatos… Pois é, cães e gatos ocupam o lugar dos filhos. Sim, faz rir, entendo, mas é a realidade. E esta negação da paternidade e da maternidade diminui-nos, cancela a nossa humanidade. E assim a civilização torna-se mais velha e sem humanidade, porque se perde a riqueza da paternidade e da maternidade. (...) A paternidade e a maternidade são a plenitude da vida de uma pessoa. Pensai nisto. É verdade, existe a paternidade espiritual e a maternidade espiritual para quem se consagra a Deus; mas quem vive no mundo e se casa, deve pensar em ter filhos, em dar a vida, pois serão eles que lhes fecharão os olhos, que pensarão no seu futuro. E também, se não podeis ter filhos, pensai na adoção. É um risco, sim: ter um filho é sempre um risco, quer natural quer adotivo. Mas pior é não os ter, é negar a paternidade, negar a maternidade, tanto a real como a espiritual».
O Papa falava numa catequese que vem desenvolvendo sobre São José, agora na vertente de ‘São José, o pai putativo de Jesus’.

1. Estas palavras do Papa desencadearam algumas reações dos (ditos) defensores dos direitos dos animais, tanto ao nível geral como nos nossos partizecos, que tentam mover-se na mesma linha animalista mais ou menos assanhada. Esses arautos dos animais foram desenterrar posições que o Papa Francisco tem apresentado, desde 2014, na denúncia pela troca de prioridades – ‘degeneração cultural’, nas palavras papais – entre os filhos e os animais (apelidados) de estimação. Os defensores da ‘vida animal’ chegaram ao ridículo de ironizar com o Papa por este ter escolhido como nome pontifício o de ‘Francisco’, considerado o patrono dos animais... Pior ainda é quando metem na equivalência dedicação – apelidada comummente de ‘voluntariado’ – em salvar vidas, dado que a vida seria sagrada para além da espécie. Não estaremos a confundir critérios e valores? Não estarão a misturar prioridades subjugadas por ideologias? Não se quererá jogar com palavras dando-lhes o sentido que mais possa convir aos intentos animalistas, conferindo cidadania idêntica a humanos e a animais?

2. Quanto aos ‘nossos’ argumentadores da defesa da vida animal, parece que podemos estar falados, pois eles misturam na mesma sigla ‘pessoas e animais’, acrescentando ‘natureza’ para que possam dar uns laivos de holística, sem tomar posição por nada, de forma assumida, refletida e clarividente. Os fogos-fátuos podem iludir durante algum tempo, mas não perduram o tempo todo. Isso mesmo se pode depreender de certas agremiações animalistas que mais não parecem do que correias-de-transmissão de ideias da ‘new âge’ (nova era), esse sincretismo de sabor pseudoecologista, que tende a ‘tomar a nuvem por Juno’, a árvore pela floresta ou de deitar fora a criança com a água do banho… Seja qual for a votação, a ecologia é mais abrangente do que os tiques de certos mentores… sem conteúdo, mas com alguma dose de oportunismo!

3. Vejamos as implicações socioculturais das palavras do Papa Francisco, quando nos adverte para que os animais de estimação – por muito salutares que possam ser ou de tornarem-se presença numa casa – não podem atrofiar a abertura ao dom da vida, pelos filhos, ou nem sequer podem funcionar como artefactos de substituição afetivo-emocional da paternidade/maternidade que se exprimem pela dádiva às pessoas, essas que mais se assemelham à natureza humana. Com efeito, certos ‘amores’ a animais quase deixam a nu que algo vai mal no reino da afetividade, da emotividade senão mesmo do equilíbrio de valores e de princípios.
Nalgumas situações não se poderá considerar quase uma barbaridade encafuar animais de razoável porte em pequenos andares? Não se poderá considerar que esses animais podem ser mais de estimulação (sabe-se lá do quê) do que de estimação? Para quando possa haver uma regra que proíba de usar os animais em proveito das intenções humanas, como se pode depreender do acumulado de animais na mesma casa/andar? Ora, em última instância, preferir os animais aos filhos será avanço ou recuo de civilização?

António Sílvio Couto

domingo, 23 de janeiro de 2022

Nomes de gente dados a animais e vice-versa

 

Embora assunto lateral, surgiu na campanha para as eleições: os nomes dados aos (ditos) animais de estimação de alguns dos nossos políticos... cada um com mais arremedo com nome de pessoa, não se tendo descoberto qual a razão mais razoável de tal intento.

Atendendo ao possível alcance desta onda de quase-aninalismo que percorre os nossos dias, poderá ser não displicente ir ao encontro das possíveis raízes deste fenómeno, bem como tentar descortinar as causas mais plausíveis para serem dados nomes de pessoas a animais e de, certos nomes de pessoas, nem sempre se coadunarem com a personalização das mesmas.

1. Para além de uma designação mais ou menos compreensível: o que significa ‘dar um nome’? Se tivermos em conta a linguagem bíblica ‘dar o nome’ é ter poder ou superioridade... pois ao saber o nome de alguém como que posso sentir algo que me dá um certo ‘poder’, pois até sei como se chama – seria mais lógico dizermos: ‘como é chamado’, pois ninguem se chama a si mesmo, à exceção de algum distúbio menos comum – e, ao pronunciar tal nome, o faça vir até mim, numa espécie de alusão a que eu sou como que o centro e os outros estão referidos a mim...

2. Outra questão que se pode colocar será: qual a ligação entre o nome e o sujeito com esse nome? O nome reporta-nos à identidade, numa frase bíblica que diz: ‘ele é o que o nome indica’ (1 Sm 25,25). Dizem que, nos povos índios, aquele que ia dar o nome à pessoa passava largo tempo – o que for necessário, de dia e de noite – com esse a quem seria dado nome, estudando a sua personalidade e o seu comportamento, ainda enquanto criança, para que o nome pudesse dizer algo dele e daquilo que é ou do que virá a ser.

Ao vermos por aí certos nomes, dados ou recebidos, em função da telenovela em exibição, da história da família ou mesmo do padrinho/madrinha, teríamos muito a refletir, a rever e mesmo a mudar... Como interpretar, então, os nomes de pessoas dados a animais: serão preito de estimar para com alguém que partiu ou, pelo contrário, poderão ser entendidos como possível animosidade descarregada sobre os bichos? Cada qual saberá as razões, que sejam de boa mente.

3. Outro aspeto que a referência aos animais pode trazer-nos até pode incluir uma reflexão sobre a temática dos filhos, pois aqueles podem – consciente ou inconscientemente – substituir estes, o que seria ainda complexo de analisar, agora que estamos a viver o ‘inverno demográfico’ na Europa e no nosso país em particular. Dizia o Papa Francisco, na audiência geral do passado dia 5 de janeiro, na sala Paulo VI, no Vaticano: «Há dias, falei sobre o inverno demográfico que há atualmente: as pessoas não querem ter filhos, ou apenas um e nada mais. E muitos casais não têm filhos porque não querem, ou têm só um porque não querem outros, mas têm dois cães, dois gatos… Pois é, cães e gatos ocupam o lugar dos filhos. Sim, faz rir, entendo, mas é a realidade. E esta negação da paternidade e da maternidade diminui-nos, cancela a nossa humanidade. E assim a civilização torna-se mais velha e sem humanidade, porque se perde a riqueza da paternidade e da maternidade».

4. Depois destas palavras contundentes e claras do Papa, logo emergiram – mesmo no contexto português, politico, social e associativo – condenações sobre o não-alinhamento com o progressivo animalismo da nossa sociedade ocidental e portuguesa em particular. Como se o Papa tivesse de se alinhar com as visões reinantes e marcadamente intencionais em trocar os valores essenciais – as pessoas – pelos convenientes – os animais e seus sequazes – senão na conteúdo ao menos na forma.

Em jeito de anedótico dizia-se que um certo partido ganhou algums ascendente sobre as pessoas mais velhas, que conisderavam que havia alguém que defendia os seus ‘animais de estimação’ e nada lhes pedia em troca. Mas preferir os animais aos filhos será avanço ou recuo de civilização?



António Silvio Couto

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Hora de votação dos proscritos

Depois de várias conjeturas sobre o modo de votação nas próximas eleições legislativas daqueles que se possam encontrar em confinamento devido ao contágio (infetado ou em regime profilático) do ‘covid-19’: das 18 às 19 horas, do dia 30 de janeiro, os proscritos sociais podem sair de casa para cumprir o seu dever cívico de votar… Eis a forma engenhosa que encontram para reunir todas as condições para o exercício condicionado de um direito, o de escolher (ou não) que queremos que nos governe…

1. A solução saída das decisões dos organismos máximos da saúde, em Portugal, conseguiu fazer surgir um nado-morto, pois, se alguém que não esteja condicionado pelo vírus não poderá votar naquele horário estabelecido, assim como quem estiver sob a alçada da virose social só pode votar naquela parca hora do dia, por sinal já na penumbra da noite? Fosse qual fosse o veredito tomado haveria sempre prós-e-contras. Fosse qual fosse a decisão – nem sempre com acordo absoluto de todos – uns serão beneficiados e outros prejudicados, sobretudo enquanto contarem mais os interesses individuais do que as condições coletivas e de bem comum.

2. Há, no entanto, uma lição que venho colhendo com mais acutilância nos tempos mais recentes: como reagirão os cerca de oito milhões de ainda não-contaminados pelo vírus: sentem-se acima da qualquer suspeita até ao dia que possam entrar na lista fatídica ou poderão tendem a ostracizar os já atingidos com a sobranceria de quem ainda não testou positivo? Se, como dizem, mais tarde ou mais cedo, todos seremos atingidos, não seria de bom senso cuidar das repercussões de quem, para além da provação, ainda tem de ser submetido à exclusão social e quase-política?

3. Passados quase dois anos sobre esta pandemia ainda não aprendemos lições mínimas de mudança, desde a convivialidade até às normas sanitárias mais básicas, passando ainda pela aprendizagem no cuidado que todos precisamos de fazer sobre nós próprios e os outros, respeitando-os e sendo respeitados. A custo fomos aprendendo que estamos no mesmo barco – como nos dizia o Papa Francisco, por ocasião do gesto profético de 27 de março de 2020 – embora nos pareça que o barco se possa afundar bem mais depressa do que julgamos. Em pequenos sinais podemos captar que fomos procurado ultrapassar o assunto, mas não colhemos ainda as lições mais essenciais de reaprendizagem: as pessoas valem mais do que a economia; esta só interessa se servir as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis; estes não podem ser descartados como excremento humano, pois o animal vai ganhando foros de cidadania inexplicável…

4. Lá, onde se faz a diferença, continuamos a adiar o confronto com a mudança civilizacional em causa: poderemos estar (ou pretensamente ter) com maior ou menor qualidade de vida, se esta não for cuidada nas suas dimensões psicológica e espiritual, as regalias materiais não passarão de artimanhas de uma cultura para quem somos reduzidos à matéria mais ou menos descartável. Esta sensação de fragilidade que a pandemia nos trouxe a todos de forma acutilante, atroz e marcante... por várias décadas ainda, dever-nos-ia tornar mais humildes perante as dificuldades de saúde de tantos dos nossos contemporâneos e de nós mesmos. Precisamos de deixar cair as máscaras de autossuficiência com que nos andamos a iludir em tantos dos momentos da nossa vida. Precisamos de cuidar uns dos outros, não deixando ninguém de fora pela simples razão de estarem ou de terem estado sob confinamento em razão do vírus...

5. Este episódio da votação sob condição para com os ‘adoentados’ pode ser útil para todos nos consciencializarmos das nossas debilidades e não somente olhar os outros com algum desdém. Não podemos permitir que as (ditas) decisões políticas possam servir algumas forças, em detrimento de outros, mas fazendo com que todos assumamos as nossas responsabilidades cívicas, agora ou futuro. Não podemos permitir que haja proscritos em razão das suas fragilidades, mas que esta circunstância nos tem tornado mais cidadãos, aqui e agora!



António Sílvio Couto

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Alegria de viver

 



Quando vemos as disputas eleitorais em curso não poderemos ter a impressão de que aquelas pessoas não têm alegria de viver? Em certas palavras não parece que estamos mais perante pessoas ressabiadas, mal-resolvidas e até sob uma tristeza quase-mortífera? Não haverá, antes, mais azedume e mal-estar facilmente percetível nas palavras, nos gestos e até nos trejeitos faciais? Quando nos vemos ao espelho não nos aperceberemos que somos, de verdade, pessoas que têm alegria de viver? Pelos confrontos das ideias não será, desde logo, captado que os horizontes das reivindicações (minimalistas ou outras) não serão bastante egoístas e interesseiros?

Estas questões vieram-me à inquietação ao ouvir o cardeal Tagle - eclesiástico filipino e responsável pelas questões da Santa Sé sobre a evangelização - que intervinha, desde as Filipinas, via zoom, nas jornadas de formação das quatro dioceses do sul de Portugal a decorrerem por estes dias.
Por diversas vezes se emocionou o senhor cardeal ao dar-nos exemplos simples da sua vida pastoral e dos seus contactos em várias partes do mundo, deixando transparecer a alegria de viver, fundamentada em Jesus e vivida na Igreja.
Das duas intervenções destaco três aspetos: anúncio do Evangelho, tocar as feridas do mundo e a alegria missionária.
Embora as notas recolhidas nas comunicações do cardeal Tagle me sejam muito úteis, desde a visão deste homem de Igreja e colhendo lições do ministério do Papa Francisco, colhi algumas vertentes de reflexão que aqui coloco: serenidade e convicção; presença e humildade (sem medo de tocar as feridas), peregrinação com os outros, mudança em continuidade.

* Serenidade e convicção - para além do ambiente envinagrado de tantos dos nossos vendedores de questões políticas, poderíamos inserir a proliferação das palavras carregadas de agressividade, que incendeiam as relações entre as pessoas. Quantas vezes vemos pessoas que interveem na vida política e se tornam semeadores de conflitualidades, em vez de serem pontes de boa vontade entre pessoas, grupos e associações. Talvez tenhamos de atender aos incendiários na política e nas suas propostas de solução para o futuro próximo. Diz o povo: ‘quem semeia ventos colhe tempestades’. Esperamos que os extremismos de tantos dos políticos da nossa arena competitiva, recolham a curto prazo os resultados com o sabor a convir...

* Presença e humildade - muito para além da denúncia - nem sempre tão profética como seria desejável - urge estar próximo das dores e de cuidar das feridas dos outros. Quando vemos em continuação reclamar do endeusamento do auto-proclamado ‘serviço nacional de saúde’, dá a impressão que boa parte desses mentores nunca estiveram ao pé de quem sofria, de nunca terem sofrido com quem padecia ou de sentirem compaixão com as pessoas feridas. Parece que estamos perante pessoas onde o teor materialista como pretende subjugar a dimensão espiritual das pessoas. Só quem não passou, minimamente, pela experiência do ‘covid-19’ - de infeção, de confinamento ou do luto - poderá fazer zaping mental, quando se vê confrontado com as feridas dos outros...

* Peregrinação em mudança - aprender a caminhar, ao longo de toda a vida, nas suas várias etapas, faz-nos ser humildes em sinodalidade, onde caminhamos com os outros, aprendendo com eles, sem lhes pretendermos ensinar nada, que não seja esse estar lado-a-lado, coração-a-coração em continuidade. Precisamos de ser cada vez mais simples e de não perdermos todas as possibilidades de anunciar com alegria a presença de Jesus.
Foi isso que vi nas palavras e na presença simples, afetuosa e convicta do cardeal Tagle. Como dizia o senhor cardeal assistente da ‘Caritas’ internacional, a Igreja pede-nos tudo e oferecer-nos tudo, sendo evangelizadores que se abrem sem medo a Deus e aos outros.



António Sílvio Couto

domingo, 16 de janeiro de 2022

Emplastro ou coruja?

 

Por estes dias de campanha para as próximas eleições temos visto gestos, atitudes e comportamentos que bem nos devem fazer pensar, se não na reflexão mais aprofundada ao menos na tentativa mais conjetural de ler o significado…para avaliarmos as pessoas.
Explicando as duas palavras (ou estórias) contidas no título:
‘Emplastro’ tem sido a designação dada a um tal rapaz – tais gestos não poderão ser de pessoas adultas – que aparece, sem ser chamado e sem qualquer relação com as pessoas ou os assuntos a serem tratados nas reportagens televisivas: surge nos mais díspares lugares e nas mais diversas situações, muitas vezes destoando e tornando-se assaz ridículo... (Já tive de o pôr na ordem há anos, em Vila do Conde).
A estória da coruja é bem mais antiga e resume, segundo as intenções mais moralistas, uma forma de ver e, sobretudo, de ser visto. Com efeito, a coruja como ave noturna de rapina – simbolizando a sabedoria, a inteligência e mesmo o mistério – não é de grande beleza. Ora, havia uma disputa entre a coruja e a águia sobre qual delas tinha os filhos mais bonitos. Houve mesmo um pacto de não-agressão entre ambas para que respeitassem os filhos uma da outra. Depois de uma caçada encontraram-se e disse a coruja: viste como são lindos os meus filhotes? Ao que a águia respondeu: o que vi, ali atrás, foram uns filhotes cheios de fome, de bico aberto, todos depenados e muito feios, num ninho e como estava com fome, aproveitei e comi-os. Não eram os teus filhotes, pois não? A coruja achava que os seus filhotes eram os mais bonitos, enquanto a águia não os vi assim tão lindos!

1. Olhemos agora para as circunstâncias da apresentação das ideias a serem votadas em breve, nas eleições. Vimos, há dias, dois competidores em refrega, cada qual dirimindo as ideias em contenda com o outro. Independentemente da simpatia, de quem tenha ganho ou de quem foi mais assertivo, vimos um deles a trazer para o debate um tal ‘OE’, que foi rejeitado há cerca de dois meses e que disso decorreu estarmos agora em eleições… Qual imagem subliminar – atenda-se a esta expressão no contexto comunicacional – estava o volume do ‘OE 2022’ a ser apresentado…qual emplastro inoportuno e, particularmente, como ‘filhote da coruja’, isto é, não têm nada melhor e querem que votem nele… porque aquilo é o que conseguiram engendrar, agora e para o futuro e, sabe lá, quais serão as custas a pagar…

2. Será que vale tudo (e o resto) com que uns tantos podem servir-se de tudo (ou muito mais) para atingirem os seus fins? Não deveria haver um mínimo de civismo para que não sejamos todos tratados como mentecaptos e como subservientes do poder em funções? Até onde pode ir o silêncio cúmplice de tanta da comunicação social, onde, depois dos debates, se gastam horas a desmembrar frases que não têm o mínimo significado daquilo que lhes atribuem? Até onde irá a esperteza de uns tantos, que não contam com a inteligência dos que não alinham com eles? Não será contumácia no erro (político, social e económico) ao insistirem no ‘OE’ rejeitado, por maioria, já no parlamento?

3. A coruja também simboliza ou preanuncia ‘mau agouro’, sobretudo, em certas regiões: é como que um aviso para a morte que se avizinha. Disso mesmo parece que ainda não se aperceberam os fabricantes de sondagens. Com efeito, como se explica que, dias depois do frente-a-frente entre os dois maiores concorrentes, surja uma tal ‘sondagem’ a dar mais de dez pontos percentuais de diferença entre ambos? Querem que ainda se acredite nas patranhas que engendram? Todos sabemos que certas movimentações de avaliação sobre o comportamento das pessoas dá o resultado que quisermos que deem, desde que introduzamos os dados a condizer com as nossas pretensões ou segundo os critérios preconceituosos.
A empresa de sondagens – favorável em dez pontos de diferença entre o concorrente do governo em funções e quem o desafia – é a mesma que, chegou a dar o dobro da votação a quem perdeu em Lisboa, nas eleições autárquicas…recentes. Coincidência ou mero erro de teimosia programada?
Pelo menos seria de bom-tom que não se fizesse alarido com os números… até porque os dados recolhidos – dizem – são anteriores (6 a 12) ao debate onde o emplastro sem mostrou bastante coruja de mau agoiro!

António Sílvio Couto

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Silêncio – ausência ou presença?

 


Um dia a professora, no início da manhã, perguntou às crianças se alguém saberia explicar ‘quem é Deus’. Uma das crianças levantou o braço e disse: Deus é nosso pai, Ele fez a terra, o mar e tudo o que está neles, fez-nos seus filhos. A professora, querendo ouvir outras respostas, retorquiu: como sabem que Deus existe, se nunca O viram? Fez-se silêncio na sala e o Pedrito, um tanto a medo, levantou o braço e disse: a minha mãe disse-me que Deus é como o açúcar no meu leite, que ela prepara cada manhã; eu não vejo o açúcar misturado com o leite, mas se ela não o coloca, fica sem sabor. Deus existe e está sempre connosco, só que nós não O vemos, mas se Ele sair de perto de nós a nossa vida fica sem sabor...

É estória. Não terá algo a querer incomodar-nos?
Falar sobre o silêncio poderá parecer ter conteúdo mais profundo de Deus.

1. «O silêncio: aquele espaço de interioridade nos nossos dias nos quais damos ao Espírito a oportunidade de nos regenerar, de nos consolar, de nos corrigir. Não estou a dizer que devemos cair num mutismo, não, mas devemos cultivar o silêncio. Cada um olhe para dentro de si mesmo: muitas vezes estamos a fazer um trabalho e quando terminamos procuramos imediatamente o telemóvel para fazer outra coisa, somos sempre assim. E isto não ajuda, faz-nos escorregar para a superficialidade. A profundidade do coração cresce com o silêncio, um silêncio que não é mutismo, como eu disse, mas que deixa espaço à sabedoria, à reflexão e ao Espírito Santo. Por vezes temos medo dos momentos de silêncio, mas não devemos recear! O silêncio far-nos-á muito bem. E o benefício para os nossos corações curará também a nossa língua, as nossas palavras e, sobretudo, as nossas escolhas».
Eis como o Papa Francisco, na audiência geral de 15 de dezembro de 2021, definia, incentivava e exigia que nós, cristãos, sejamos cultivadores conscientes e dinamizados pelo silêncio, à semelhança de São José.

2. Agora que surgem trocadilhos como ‘dar voz ao silêncio’, propostas artísticas: ‘silêncio que se vai cantar o fado’ ou ainda desafios a dar tempo ao silêncio num esvaziamento para o nada (das religiões exotéricas e da moda), torna-se essencial ver quais devem ser as caraterísticas do nosso silêncio cristão.
Antes de mais ‘cada um um olhe para dentro de si mesmo’. Sim, precisamos de ver a figura palradeira com que tantas vezes nos entretemos, não ouvindo nem deixando os outros ser ouvidos.
Silêncio de profundidade: com que destreza dizemos coisas, mas sem conteúdo, tal a velocidade das palavras vazias, ocas sem nexo.
Quando se tem algo a dizer com profundidade não se faz tanto barulho com os dentes – outros falariam de outros adereços mais ruidosos – nem se grita como se os outros fossem surdos, pois quando o coração fala escuta-se com respeito, veneração e significado.


3. A questão de fundo parece ser esta: o que faz adoecer mais, o silêncio ou o barulho? Com efeito, vemos tantas pessoas desequilibradas pelo basqueiro – termo regional minhoto para dizer: barulho em excesso ou confusão de vozes – em que se metem e onde tentam colocar o relacionamento com os outros. Não se calam nem um segundo, pensando com isso ganharem ascendente sobre os outros. Repare-se na insonorização que precisamos de constuir para que os debates políticos tenham qualidade de serem um pouco mais do que algazarra sem nexo nem propostas...aceitáveis.


4. Se não atalhamos com urgência, dentro em pouco será impossível comunicarmos uns com os outros. Precisamos de ter espaço e espaços onde se cultive o silêncio como método de vida e como atitude social, onde não haja música (dita) de ambiente, que mais não é do que alienação para que ninguém se escute ou possa comunicar minimamente. Até os lugares de celebração da fé cristã precisam de ser reeducados para o silêncio, onde Deus fale: nós o escutemos a Ele e uns aos outros. Silêncio, precisa-se!



António Silvio Couto

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Em processo de humilhação…social

 


Mesmo que de forma inconsciente temos estado a viver um processo de humilhação, que, por ser rotativa, ainda não fez com que todos assumíssemos que nos atingiu com maior acutilância: o confinamento por ocasião das restrições criadas pelo vírus da pandemia. Agora que se tem vindo a acelerar a quantidade de pessoas sob a alçada dessa privação necessária da liberdade talvez isso deixe de ser algo lateral para se tornar um aspeto essencial da nossa vida coletiva.

Nunca pensei que as pessoas fossem tão atrozes, quando está em causa uma espécie de perigo de contágio. Nunca julguei que certos gestos pudessem tornar-se marginalizadores, mesmo que com sentido de prevenção. Nunca considerei que alguns aspetos dissuasores da possível doença revestissem a possibilidade de afastar as pessoas sob o medo.

1. Estamos prestes a completar dois anos sob a alçada do ‘covid-19’. Aquilo que parecia uma pequena infeção tornou-se infetocontagioso em alta escala, espalhando entre todas as sociedades, desde as mais civilizadas até às mais remotas; desde os palácios mais desinfetados até aos tugúrios mais fétidos; desde os laboratórios científicos até às masmorras mais recônditas e esconsas; desde as finas figuras mais higienizadas até aos que mergulham na imundície mais sórdida… Tornamo-nos uma sociedade anónima prenhe de medos… e não foi só a máscara que nos fez anonimar, foi tudo o que foi criado em volta de nunca sabermos quando será a nossa hora de sermos submetidos à prova…

2. Até que um dia, quando menos se esperava, o teste deu positivo, mesmo que os indícios da doença sejam diluídos. Dizem que serão aos milhares os que terão de sair de circulação por mais ou menos tempo. A previsão que de todos seremos (seríamos) contaminados vai ganhando qualidade de convicção. Enquanto houver quem cuide dos outros ainda será uma contingência salutar. Os números crescem de dia para dia e aquilo que ontem era suspeita, hoje tornou-se realidade: precisar de ajuda não é mais uma fraqueza, mas uma certeza de que estamos numa cadeia de relações crescentemente vinculativas da fragilidade de todos e de cada um.

3. Artefactos como testes (rápidos ou em laboratório) e vacinação, certificados e novas testagens passaram a fazer parte da rotina para dar acesso a locais com presença de outras pessoas. Assim nos vamos enganando, sem nos apercebermos que, por muito pouco, poderemos ser fatores de humilhação (pública ou privada), se não houver tato e cuidado nas abordagens e nos comportamentos. Em todo este processo social há riscos e perigos múltiplos e sabermos entender, interpretar e vivenciar tudo isto exigirá capacidade de educação, de civismo e mesmo de compreensão básica.

4. Duas linhas parecem querer confrontar-se na interpretação do fenómeno desta pandemia: uma mais de pendor sanitário e outra de teor mais económico, como se pudesse haver saúde sem economia ou economia sem saúde. Alguns setores de atividade, como as escolas nos diversos níveis, têm andado ao sabor dos números da pandemia… abrindo ou fechando em consonância com as oscilações de maior ou menor contágio e/ou risco de difusão. Somos e estamos num contexto de interdependência de proximidade, como confiar em quem não acredita em si mesmo e tão pouco respeita os outros?

5. De entre as várias consequências destes quase dois anos de estarmos com o ‘credo na boca’ em razão do vírus, há uma que relevo: parece que nos temos vindo a tornar menos egoístas, se bem que andemos na defensiva, pois aquilo que os outros fazem têm repercussão na nossa vida e também aquilo que nós vamos vivendo pode deixar marcas nos outros: desde os cuidados higiene-sanitários, passando pela vacinação e até pelo distanciamento recomendado ou o uso da máscara… Há algo que me confunde: como é que há pessoas que, vendo perecerem tantas vítimas, ainda se julgam no direito de não respeitar os demais? Como poderemos considerar tais criaturas dignas de viverem em sociedade? Ninguém escapará sozinho!

António Sílvio Couto

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Negar a negação?

 


Por estes dias o termo ‘negativo’ pode ter sido das palavras mais ansiadas em ver escrito ou de ter ouvido… No entanto, não é desse ‘negativo’ sanitário a que nos queremos referir.

Ora, numa outra lógica da linguagem, por vezes, surge a proposta de negar duas vezes, na mesma frase, parecendo isso ser algo positivo. Isto inserir-se-ia naquela asserção (mais ou menos matemática) de que menos com menos dá mais.

 1. Nos tempos mais recentes temos andado entretidos com fraseologias algo vazias, senão mesmo ocas de significado. Veja-se o que se diz – na empestada lógica do politicamente correto – de que não há obrigação de vacinação das populações, mas para ter acesso a uma razoável quantidade de locais e serviços de possibilidade pública têm de ser apresentados documentos que obrigam à vacinação e, sem tal ‘livre-trânsito’ imprescindível, fica-se à porta. Portanto é negada liberdade de não ter sido nem de não querer ser inoculado…Mas ninguém assume a obrigação. Embora gratuito, assuma-se que não é facultativo, mas antes benéfico para todos. Fique claro: estou vacinado – a dose de reforço teve de ser adiada – e submeter-me a teste (embora a custo) não obsto.  

2. Mais uma vez emergiu – com o desenrolar da campanha para as eleições do final do mês – o fantasma que de que quem não alinha nas ideias que não sejam de uma certa esquerda não tem direito a ter opinião nem sequer pode exprimir-se com liberdade, pois esta tem de ter um rótulo da subserviência a certos valores prefabricados, embora já fora de validade em muitas latitudes.

Nota-se que há uma grela ideológica onde se tem de entrar e não alinhar acriticamente não permite ser aceite. Alguns denotam tiques de nomenclatura orwelliana dos finais do século passado, não permitindo que certos animais se destaquem dos seus congéneres. Com que subtilezas ressurgem ciclicamente estas coisas em maré de eleições, sobretudo se estão em jogo campos ideológicos mais ou menos antagónicos, desde que não se misturem nas conveniências práticas.

 3. Temas não essenciais vão ocupando espaços de longa discussão, deixando de fora o que mais interessa debater, esclarecer ou mesmo questionar. Tem algum jeito trazer à liça questiúnculas resolvidas há quase dois séculos, como a pena de morte ou a prisão perpétua? Os problemas atuais não cativam mais a atenção de quem precisa de ser educado nas convicções cívicas? Habilidosos de tal entretenimento gastam parcos minutos em frentes-a-frentes de gritaria e malcriadez. Qual jogatana de boxe ou combate de kickboxing somam os pontos após cada disputa…sem atender ao mínimo interesse dos assuntos, mas não deixando que não consigam dizer nada… Até já dão pontuações…ridículas, tendenciosas e sem nexo. Será que isso se reverte em votos ou vale antes desinteresse?

 4. Os leques de comentadeiros/as – dizem que têm carteira de jornalista – parecem não passar de arietes camuflados de forças em competição. Agora que o povo está novamente em confinamento encapotado, tais programas podem concorrem ainda mais acentuadamente para a abstenção, pois quase tudo é parece recesso, vazio e requentado de outras épocas e estações.

Há uma questão que considero abominável: uns tantos acham que os votos neles devem valer, mas se forem expressos noutros não têm idêntica valorização. Felizmente cada um só tem um voto ou será que não é bem deste modo?

 5. Não parece minimamente sério nem credível a discussão sobre a influência na votação das pessoas que possam estar confinadas por ocasião das eleições. Certas sugestões continuam a estar eivadas de marginalização de quem tem de se submetido a restrições em razão do vírus. Alguns precisariam de não se colocarem acima dessa possibilidade, pois, com tão rápido contágio, hoje posso ser obrigado a não poder sair de casa, quando ontem não o previa… Negar a negação pode não servir para tudo nem para todos!    

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

‘Vacina’ – a palavra de 2021

 


Foi divulgada a escolha da ‘palavra do ano’ de 2021: vacina.
Das palavras colocadas à votação encontramos as seguintes: apagão, bazuca, criptomoeda, mobilidade, moratória, orçamento, podcast, resiliência e teletrabalho.
Nota-se, nas palavras do ano passado, uma preponderância de termos económicos e poucas palavras relacionadas com a temática de saúde, que temos vivido com intensidade nos tempos mais recentes.

1. A sondagem-inquérito de índole cultural-popular ‘A palavra do ano’ é uma iniciativa da Porto Editora que tem como principal objetivo sublinhar a riqueza lexical e o dinamismo criativo da língua portuguesa, património vivo e precioso de todos os que nela se expressam, acentuando, assim, a importância das palavras e dos seus significados na produção individual e social dos sentidos com que vamos interpretando e construindo a própria vida.
Assim se lê na divulgação da iniciativa…na qual tenho participado, votando, nos últimos anos.

2. Nas anteriores edições – com início em 2009 – as palavras vencedoras foram: saudade (2020), violência doméstica (2019), enfermeiro (2018), incêndios (2017), geringonça (2016), refugiado (2015), corrupção (2014), bombeiro (2013), entroikado (2012), austeridade (2011), vuvuzela (2010) e esmiuçar (2009).
Pelo que podemos interpretar, nestes treze anos da iniciativa, como que ser-nos-á um tanto mais fácil fazer uma leitura sincrónica da nossa história recente…e daquilo que nos preocupou, motivou ou mesmo conduziu.

3. Se nos fixarmos, agora, na palavra-chave de 2021 – vacina – podemos captar aquilo que ela significou como resposta à pandemia que nos assolou nos últimos dois anos. De facto, perante a difusão do vírus deu-se uma notável intervenção da ciência para debelar as mazelas do ‘covid-19’. Foi, até ao momento, mais fácil enfrentar as consequências do que de encontrar as causas. Estas continuam no segredo dos deuses – sim desses que conhecem tudo e aos humanos condicionam os comportamentos – e que, no afã de querermos ser aventureiros nos temos deixado ultrapassar pela mediocridade das respostas.
De muitas e variadas formas sinto que as nossas interrogações sobre todo este mistério do ‘covid-19’ têm sido pouco ousadas e que, por falta de inteligência ou por orgulho intelectual, temos preferido continuar ignorantes a sabermos questionar verdadeiramente o nosso Deus: Ele sabe o que nos quer dizer com tudo isto, mas a soberba da vida, a incapacidade dos meios e a insuficiência de recursos têm adiado a assunção de respostas… humildes, sinceras e sensatas. Perdoando a comparação: parecemos crianças a brincar ao esconde-esconde, mas sem deixarmos que se nos mostre a solução…

4. Aos profetas do slogan bacoco do ‘vai ficar tudo bem’ podemos dizer que não passaram de mentirosos, sem tino e tão pouco bom senso, pois estava claro que a purga de velhos – em lares e famílias, mais ricos ou mais pobres, de direita ou de esquerda, crentes ou incréus, nas cidades ou nas aldeias – dizimou uma fatia de pessoas sem apelo nem agravo. Dizer que a vacinação iria colmatar as lacunas sanitárias foi outra das patranhas servidas a rodos e sorvidas sem modos. Se os confinamentos atenuaram alguns dos riscos, as tentativas economicistas deitaram quase tudo a perder, obrigando a gastar milhões em testes e vacinas como se tudo se resolvesse com remendos e não com o enfrentamento real das coisas.

5. Algo se agrava quando temos de passar pelas experiências relatadas de outros: os dias de isolamento tornam-se intermináveis; os cuidados de não contactarem connosco agravam a sensação de proscrito; a ansiedade do resultado do teste (rápido ou de laboratório) assume incapacidade de lidar com o imprevisto; a sensação de abandono – quase por Deus – como que assalta, à semelhança do salmista rezingão…
Depois de tudo isto não ficaremos iguais. Ora como dizem que mais tarde ou mais cedo todos seremos contagiados, espero que saia desta experiência uma sociedade mais sensível à fragilidade alheia e, por conseguinte, mais humana, mais fraterna e, sobretudo, mais cristã… Nada poderá ser igual, nada!

António Sílvio Couto

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

À descoberta do significado do batismo de Jesus


«9 Por aqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi baptizado por João no Jordão. 10 Quando saía da água, viu serem rasgados os céus e o Espírito descer sobre Ele como uma pomba. 11 E do céu veio uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado» (Mc 1, 9-11 // Mt 3, 13-17; Lc 3, 21-22; Jo 1, 31-34).

 As circunstâncias do batismo de Jesus por João Batista são de simples compreensão: caminhando com os outros – ‘Deus connosco’ (Mt 1, 23) – apreesenta-se na simplicidade, sem se fazer avisar, para ser batizado, tendo João ripostado a tal pretensão – «eu é que tenho necessidade de ser batizado por Ti, e tu vens a mim? Jesus respondeu-lhe: deixa por agora. Convém que cumpramos toda a justiça. E João, então, concordou» (Mt 3, 14-15). Solidarizando-se com os pecadores pelo batismo, Jesus manifestava como a sua missão se distanciava do sonho judaico de um Messias triunfante (cf. Mt 11, 2-6; 16, 13-23).

Ao sair da água deu-se a teofania das três Pessoas divinas, revelando o mistério de Jesus de Nazaré. Deus Pai, com o Espírito Santo, apresenta-o solenemente como seu Filho, que assim inaugura a vida pública. Segundo Lc 3, 21, isto aconteceu quando Jesus estava em oração. Em Mt 3,17, a voz do céu é dirigida às pessoas que estão presentes. João é, simultaneamente, ministro e testemunha: ele viu e tornou-se aquele que creditou tal manifestação trinitária.

«Após esses trinta anos de vida escondida, começa a vida pública de Jesus. E tem início precisamente com o batismo no rio Jordão. Mas Jesus é Deus, por que se faz batizar? O batismo de João consistia num rito penitencial, era sinal da vontade de se converter, de ser melhor, pedindo perdão pelos próprios pecados. Certamente Jesus não os tinha. De facto, João Batista procura opor-se, mas Jesus insiste. Porquê? Porque quer estar com os pecadores: é por isso que se põe na fila com eles e faz o mesmo gesto. Ele fá-lo com a atitude do povo, com a sua atitude [do povo] que, como diz um hino litúrgico, se aproximava com “nua a alma e nus os pés”.  A alma nua, ou seja, sem cobrir nada, pecador. Este é o gesto que Jesus faz, e desce ao rio para se imergir na nossa própria condição. Com efeito, batismo significa precisamente “imersão”. No primeiro dia do seu ministério, Jesus oferece-nos assim o seu “manifesto programático”. Ele diz-nos que não nos salva de cima, com uma decisão soberana ou um ato de força, um decreto, não: salva-nos vindo até nós e assumindo os nossos pecados. É assim que Deus vence o mal do mundo: abaixando-se, e assumindo-o sobre si mesmo. É também o modo como podemos elevar os outros: não julgando, não lhes dizendo o que fazer, mas estando perto deles, partilhando o amor de Deus. A proximidade é o estilo de Deus para connosco; Ele próprio disse a Moisés: “Pensa: que pessoas têm os seus deuses tão próximos como tu me tens a mim?”. A proximidade é o estilo de Deus para connosco» (Papa Francisco, ‘Angelus’, 10 de janeiro de 2021).

Porque Deus está próximo, mesmo no nosso interior, saboreemos a sua presença, agradecendo, hoje, o dom do nosso batismo.

 * Testemunho de João – «31 Eu não o conhecia bem; mas foi para Ele se manifestar a Israel que eu vim baptizar com água.» 32 E João testemunhou: «Vi o Espírito que descia do céu como uma pomba e permanecia sobre Ele. 33 E eu não o conhecia, mas quem me enviou a baptizar com água é que me disse: 'Aquele sobre quem vires descer o Espírito e poisar sobre Ele, é o que baptiza com o Espírito Santo'. 34 Pois bem: eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus» (Jo 1, 31-34 // Mt 3, 13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22).

 Na secção de Jo 1,19-34 encontramos a importância que o evangelista confere a João Batista, num ambiente de expetativa messiânica, centrando as posições de João Batista naquilo que podemos considerar a passagem de testemunho entre ele e Jesus, apresentado como ‘o Cordeiro de Deus’ (vv. 29-30) e, particularmente pela teofania do batismo (vv. 31-34). Dá a impressão que João não conhecia bem Jesus – «E eu não o conhecia, mas quem me enviou a baptizar com água é que me disse: 'Aquele sobre quem vires descer o Espírito e poisar sobre Ele, é o que baptiza com o Espírito Santo'» (v. 33), mas tinha uma ‘informação’ de que aquele sobre quem visse o Espírito Santo manifestar-se, em forma de pomba – dizem algumas traduções – esse era «o Filho de Deus».

«Da parte de Jesus, o seu baptismo é a aceitação e a inauguração da sua missão de Servo sofredor. Deixa-se contar entre o número dos pecadores. É já «o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1, 29), e antecipa já o «baptismo» da sua morte sangrenta. Vem, desde já, para «cumprir toda a justiça» (Mt 3, 15). Quer dizer que Se submete inteiramente à vontade do Pai e aceita por amor o baptismo da morte para a remissão dos nossos pecados. A esta aceitação responde a voz do Pai, que põe toda a sua complacência no Filho. O Espírito que Jesus possui em plenitude, desde a sua conceição, vem «repousar» sobre Ele (Jo 1, 32-33) e Jesus será a fonte do mesmo Espírito para toda a humanidade. No baptismo de Cristo, «abriram-se os céus» (Mt 3, 16) que o pecado de Adão tinha fechado, e as águas são santificadas pela descida de Jesus e do Espírito, prelúdio da nova criação» (Catecismo da Igreja Católica, 536).

 

António Sílvio Couto

  

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Resumindo e concluindo...certas e determinadas coisas

 


Nas conversas que temos ou que ouvimos há, por vezes, expressões – frases-feitas, chavões ou moletas de linguagem – que nos obrigam a refletir sobre o possível vazio, o recurso que utilizamos ou mesmo o sem-sentido de tais intervenções.

Depois de algum tempo a linguajar, talvez sem nexo ou de forma difusa, alguém sugere para atalhar: ‘resumindo e concluindo’, isto é, tiremos resultado daquilo que falamos,  espremámos a conversa para ver se temos conteúdos, tanta coisa de verborreia para dizer e tão pouco ou quase-nada...

Noutro sentido pode ir a expressão ‘certas e determinadas coisas’, pois nela correm o risco de se misturarem suspeitas com conjeturas, difamações com mentiras ou mesmo má-fé com acusações eivadas de preconceitos, ressentimentos ou até de ruindade.  

 1. Possivelmente a melhor forma de explicar estas duas expressões poderá passar por ‘casos’ concretos, muitos deles servidos em bandeja de engano ou sob corolário de mesquinhez. Quem não se recorda do processo algo complexo da mais recente provação a que a Igreja católica tem sido submetida na última década: a descoberta e denúncia, a exposição e difusão, de casos de abusos – de menores ou não – sobre pessoas frágeis e fragilizadas, tanto no âmbito sexual como noutras vertentes de consciência e/ou arbitrariedade de poder.

Saído das trevas do tempo este problema tem sido uma questão onde ‘certas de determinadas coisas’, quando evocadas, mais ofuscam a verdade do que as consequências, onde o manto tenebroso da suspeita mais aterroriza do que a aceitação dos erros, das maldades e das lacunas de tantos e tantas.

Com que habilidade algumas forças colocaram ‘situações’ sob a alçada de ‘certas e determinadas coisas’, desde que se possa condicionar – mais ou menos conscientemente – o apuramento da verdade. Que dizer da tal comissão dos ‘241’, que se fez ouvir com alarde, por forma a colocar tudo e todos sob suspeição, pois as comisões diocesanas de averiguação pareciam ‘incapazes’ de acertar em ‘certas e determinadas coisas’. Alguns até investidos de assistentes religiosos de movimentos de jovens preferiam a dita ‘comissão independente’, às de indole diocesana, como se duvidassem da idoneidade destas e apregoassem as certezas daquela. Se têm dados porque não os apresentam? Não será isto uma manobra para colocar na engrenagem ‘certas e determinadas coisas’, que mais não passam de efabulações do que de reais verdades. Quem assim procede a quem serve? Que pena elogiarmos os estrangeiros e denegrimos os nossos... Esta capacidade de subdesenvolvimento é atávica e funesta, hoje como ontem!

 2. Por estes dias de antecedência às eleições do final do mês poderemos ver ‘certas e determinadas coisas’ das lutas partidárias, nunca antes vistas, mas possivelmente desenterradas ‘à la carte’, pois o medo quase sempre é bom conselheiro para lançar notícias falsas ou falsidades nas notícias. Quais influenciadores da democracia, eis que se perfilam ‘personalidades’ a manipular as pretensões, quando ainda nem se sabem os resultados. Os tiques de inquisição não têm limites, desde que ‘certas e determinadas coisas’ possam correr-lhe de feição. Se fossem outros a fazerem algo idêntico como reagiriam?

 3. Resumindo e concluindo: precisamos de cuidar da nossa capacidade mínima de credibilidade, pois colocar os outros em dúvida só porque nos podem ofuscar as pretensões, além de inveja reveste a faceta de ignorância, a qual quando elevada ao poder costuma deixar marcas por longos tempos na subserviência, no caciquismo e até no despotismo...

Resumindo e concluindo: urge ter capacidade de denúncia das tropelias alheias, mas sem nunca deixar que sejamos corrigidos pelas intenções formuladas para com os outros.

Resumindo e concluindo: quão útil será atendermos aos dedos investidos em acusação, pois dos cinco, dois invetivam os outros, mas três denunciam-nos a nós mesmos. Coerência, a quanto obrigas!

 

António Silvio Couto