Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 29 de abril de 2019

Ódios sub-reptícios do 25A


Por ocasião das comemorações dos quarenta e cinco anos do ’25 de abril’ escutamos – como nunca anteriormente – vozes a clamarem de resquícios de ódio que perpassaram esses longínquos dias e outros momentos de convulsão…nas hostes militares e não só.

Fuzilamentos e ajustes de contas entre quem fez a revolução e outros oponentes, à mistura com um certo branqueamento que nos foi passado de que na mudança de regime político não tinha havido mortos registados, quando, afinal, houve uma mão cheia de vítimas (quatro civis e um funcionário da polícia política), só mais tarde reconhecidas e lembradas…

Decorridas quatro décadas e meia, ainda foi possível captar nas imagens da (dita) manifestação popular, vozes reclamando da vida de outros que não têm nada a ver com o assunto dos fantasmas com que tantos/as se enfrentam na sua memória. Pretender encomendar a um santo a morte de um chefe de estado estrangeiro não deixa de ser além de esquisito um sinal mais do que evidente de que há pessoas que se reclamam ‘democratas’, mas isso só funciona em circuito fechado para os que são da sua cor, ideologia ou simpatia do lado da barricada. Ainda há gente que fareja as atrocidades de outras paragens e parece querer implantar por cá laivos desses regimes facínoras e praticantes de carnificinas sobre quem não pensa ou não concorda com a sua mentalidade, visão do mundo ou entendimento da pessoa humana.

Mais uma vez poderemos aduzir a estes casos o nosso adágio popular: se queres conhecer o vilão, coloca-lhe o pau (do mando) na mão! Isto é, certas pessoas quando chegam a postos de importância – o tal lugar do mando, seja a instância que for – revelam quem são, tratando os outros da forma que não deixa dúvidas de que por ali há tiques de ditadura, mesmo que sob a capa de ‘democracia’…mal-amanhada. 

= Para além da discriminação em não se viver numa das duas áreas metropolitanas – Lisboa, que vai de Setúbal a Vila Franca de Xira, passando por Cascais, Sintra e Amadora; e do Porto, que abrange concelhos desde a Póvoa de Varzim até Santa Maria da Feira, passando por Gondomar, Valongo e Santo Tirso – temos ainda de suportar alguma petulância de certas figuras que consideram os que não vivem nestes espaços como portugueses de segunda categoria. A AML tem quase três milhões de habitantes, a AMP com quase dois milhões de habitantes, perfazem, deste modo, mais de metade da população do país.

Se a isto acrescentarmos a concentração da maior parte das estruturas, infraestruturas e investimentos, poderemos considerar que bastará pacificar os vivem nestas áreas metropolitanas para manter o país em sossego e numa certa paz social. Veja-se o que aconteceu há duas semanas na ‘crise dos combustíveis’, privilegiando no reabastecimento estas regiões para que não houvesse alarme social… Os ganhos e custos destas áreas metropolitanas percebem nas campanhas publicitárias/políticas, nas apostas de reivindicação e mesmo no nítido favorecimento dos salários para aqueles que ali vivem.

O monstro está a engordar e parece que não há interesse algum em fazê-lo entrar em dieta, pois daí vêm os votos nas eleições e até os cartazes privilegiam quem por aqui mora, dado que podem decidir quem possa continuar a beneficiá-los. As franjas da capital – o Oeste ou a Estremadura, tendo em conta ainda o Alentejo – e do grande Porto – como os distritos de Braga e de Aveiro – continuam à espera que caiam as migalhas das mesas dos ricos, que, embora não produzindo, gerem os impostos que recolhem de espaços bem mais trabalhadores e produtores de riqueza do que as ditas áreas metropolitanas... 

= Neste momento histórico e cultural nota-se que falta horizontes a tantos/as que exercem o poder, nas suas várias formas: político, religioso, de comunicação social, desportivo e mesmo económico. Na maior parte dos casos quem decide olha para o seu umbigo e para a forma de capitalizar – mesmo que alguns se digam combatentes do capitalismo – em influência as decisões que tomam ou as posições em que se colocam… No entanto, esta vertente de ódio com que vemos certas situações serem geradas e geridas podem trazer dissabores ao país em geral e aos menosprezados ou até desprezados em particular.

Até quando haverá um leque de iluminados que se acha dono do ’25 de abril’? Até quando teremos de suportar incompetentes arvorados em chefes? São fracos para serem mandados, quanto mais mandarem!

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 26 de abril de 2019

’25 de abril’ dos sem-voz


Longe da prosápia da macrocefalia da capital – estendida à AML e acrescentada à língua marítima de norte a sul do território europeu – onde está o ’25 de abril’? Essa pretensão dos três ‘d’s’ – descolonização, democratização e desenvolvimento – já chegou aos que continuam a estar ‘sem-voz’, hoje como no passado do regime anterior?

Por muito que certas figuras do poder, nestes 45 anos de revolução abrilina, digam que já foram cumpridos os tais três ‘d’s’, ainda estamos muito longe de criar condições mínimas para que isso seja verdade para todos os portugueses, tanto do litoral como do interior.

Por constituir algo de simbolicamente bizarro vou reportar-me ao ritual da comemoração do 25 de abril na Moita – espaço onde vivo há oito anos, sete meses e vinte e oito dias – num misto de aprendizagem, de reconhecimento e mesmo de aferição…

Durante cerca de uma hora, na manhã de 25A, pode-se ver um certo desfile de forças em conglomeração, como se de pagamento de favores se possa tratar: um misto entre desfile carnavalesco e de procissão mal-amanhada percorre os espaços centrais da povoação. O ritual vai perdendo fogo e os sinais dos intervenientes podem considerar-se desconexos, pois se uns levam os estandartes alçados, outros levam-nos ao ombro – sabe-se lá se conhecem o significado de cada qual das posições – isto já para não falar em vermos outros roçar em terra com os símbolos das coletividades surgidas depois de quarenta anos de novo regime…

Que as forças da dita democracia se achem no direito de ostentarem as causas que as fazem correr, ainda se suporta, mas será, no mínimo, duvidoso que as autarquias – ou quem as suporta ideologicamente – considerem que os espaços públicos possam ser tratados à maneira do seu quintal individualista, onde cada um possa impor-se a quem não pensa nem vota como quem governa…isso, sim, há quase tanto tempo como reinou a terceira república… Terá a ditadura outro nome, se for votada sob manipulação democrática?
Os pagadores do recebimento de subsídios vão-se arrastando numa leitura mais ou menos vangloriosa, desde que passeando-se no veludo da boa harmonia e enquanto vai havendo proventos para flutuarem por mais algum tempo.

E, se, de repente, tudo mudasse de coloração: qual seria a reação – sim, essa que julgam terem exorcizado, mas que continua a reclamar – dos atuais ocupantes dos postos de mando? Talvez seja preciso algum entendimento para se colocar no lugar dos ‘sem-voz’, pois são ostracizados só porque não fazem parte da mentalidade reinante e reinadora…

Até onde irá a arrogância de quem se acha dono-e-senhor de algo que não lhe pertence, mas faz parte indistinta de todo o povo e não de fações, ideologias ou partidos?

Quem ensinará certos mentores ‘urbanos’ a respeitarem os ‘rurais’, silenciados à força ou condicionados por míngua de meios para se fazerem ouvir? 

= Se quiséssemos inventar outros três ‘d’s’, quarenta e cinco anos depois da revolução abrilina, teríamos de conjugar dinheiro-desvergonha-diversão para classificarmos algumas das atitudes atuais de menor denominador comum. Outra hipótese para os três ‘d’s’ poderia ser a de desilusão-disparate-dissonância, numa tentativa de encontrar quem se aproveitou das possibilidades propostas e as fez reverter para si e para os do seu grupo de interesses.

Se atendermos às mais recentes revelações dos episódios que fizeram a revolução abrilina vemos que muitos dos descendentes do seu incremento não conseguiram libertar-se dos assomos de vingança – em certos momentos reclamando fuzilamento dos opositores – e, para já em forma de verborreia, vão continuando o que antes foi tomado por reivindicação, felizmente, não-concretizada

Hoje continua a haver uma imensa multidão silenciosa e/ou silenciada que vai vivendo fora das categorias de vitoriosos, adiando a possibilidade em serem pessoas com iguais direitos, almejando passar da fase das obrigações. Basta de submissão aos protegidos das classes que têm acesso ao prato, onde a comida é servida com discrepâncias intoleráveis. Não serão denúncias das ‘políticas de casos’ e atoardas anti-cobardia que farão deste país um espaço democrático, tolerante e com futuro… Palavras leva-as o vento!          

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Liberdade com misericórdia


De entre os binómios possíveis de agrupar, numa leitura ‘humana/divina’, podemos conjugar e tentar viver este da ‘liberdade – misericórdia’. De facto, é um dos mais complexos nas possíveis leituras da nossa ténue vida, pois nem sempre este binómio se articula com respeito pela condição pessoal e a dimensão comunitária. Com efeito, poderá parecer que a liberdade nos concede como que viver de rédea solta e, por seu turno, a misericórdia nos confinaria a uma visão mais religiosa senão mesmo um tanto pietista. Não há nada de mais enganoso.

A liberdade é essa faculdade que nos capacita para assumirmos as nossas responsabilidades mais básicas, tanto pelo que pensamos, como pelo que decidimos e fazemos. Há gente que vem para a rua clamar pela liberdade, mas que não passa de marioneta em feira de ideologias e das vaidades de quem pouco faz, mas que pretende vender o produto de engano nos saldos da comiseração mal-assumida. Cartazes de liberdade, não, obrigado!

Por estes dias ocorre o 45.º aniversário da (dita) conquista da liberdade, mas quantos vivem ainda aferrados à complexidade da manipulação. Uns tantos ainda se armadilham com artefactos alusivos à reconquista da liberdade, mas por dentro estão aprisionados – desde a boca até à ação política – com grilhões sem cadeias…esses que prendem a consciência até à medula mais profunda.

Embora se tenha desenvolvido no quadro das intervenções católicas a terminologia da ‘misericórdia’, esta não poderá nunca reduzir-se a um sentimento mais ou menos religioso e que não tenha, minimamente, a ver com a vida do dia-a-dia. É aqui neste terreno que é posta à prova a nossa maior ou menor capacidade de nos deixarmos guiar, consolar e comprometer com a misericórdia, desde a mais simples até à mais complexa e sacramental.

Para usarmos uma certa linguagem futebolística, não podemos deixar que a liberdade marque golos na baliza da misericórdia, só porque esta se encolheu na defesa dos direitos dos mais fragilizados e não os lançou na conquista da vitória, se bem que esta possa não sair do terreno do empate, isto é pela complacência menos boa para com aqueles que mereciam ser aplaudidos pelas claques bem organizadas e com amor à camisola…

A capacidade de ser livre mostra-se na vivência em ser compassivo e misericordioso. Efetivamente será necessário fazer a experiência da misericórdia – a divina e mesmo a humana – para que possamos não ter nada a ter, portanto, em sermos livres e disponíveis para seguirmos o nada temer e tão pouco nada ter a esconder. 

Recordando as palavras da Sagrada Escritura: ‘conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres’ (Jo 8,32), será, então, pela libertação operada pelo Espírito da Verdade que seremos capazes de nos irmos libertando de tantas formas e feitios de aprisionamento. Será quando deixarmos que a misericórdia divina venha preencher as lacunas de tantas dimensões de nós mesmos que saberemos apreciar melhor como Deus ama cada um de nós e nos faz ser livres n’Ele. 

= Num tempo em que marcadamente contam mais os direitos do que os deveres, tratar o tema da liberdade será mais útil vê-lo na linha das perguntas do que no campo das afirmações, se bem que aquelas possam ser mais contundentes na subtileza do que estas.

* A liberdade é, para mim, um valor, um critério ou uma reivindicação?

* Aceito as opções de liberdade dos outros ou considero as suas opiniões menos boas só porque não são como as minhas?

* Na linha das escolhas partidárias/ideológicas respeito as escolhas alheias com toda a legitimidade como desejo que aceitem as minhas?

* Procuro esclarecer-me das tomadas de posição dos outros ou embarco com facilidade naquilo que uns certos ‘fazedores de opinião’ me impingem de forma acrítica e, tantas vezes, preconceituosa?

* Terei evoluído nas minhas opções, critérios e votações ou fixei-me em arquétipos de há décadas sem ter estudado as possíveis incongruências dos mentores de tais correntes?

Ser livre custa muita liberdade…interior e exterior.

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 23 de abril de 2019

Tradições pascais…em maré de laicismo


Com alguma facilidade e divulgação vemos, em certas regiões do país, aparecer a expressão ‘tradição pascal’ como forma de classificar algo que se faz por ocasião da Páscoa e é apresentado como habitual e próprio desta época. O leque de assuntos/temas é um tanto diversificado, abrangendo desde a gastronomia até às (apelidadas) atividades culturais, passando por aspetos regionais ou mais difusos e atingindo vertentes religiosas, mais ou menos tradicionais até à inclusão de ‘tradições’ de outros países ou culturas.

O que mais me intriga é que tudo isto parece ser vivido sob um (diáfano ou tenebroso) manto de laicismo, onde uma boa parte dos intervenientes/usufruidores parecem fazê-lo de forma acrítica mais pelo benefício do que pela consciencialização das coisas, do sentido das mesmas e das implicações que elas trazem, de verdade. O laicismo coloca a suas regras ou nem as tem para ser mais laico ainda?

Tomemos por exemplo alguns ingredientes da gastronomia das ‘tradições pascais’, onde se usa o borrego, cabrito, cordeiro; os doces, entre os quais as amêndoas, o pão de ló, a bola do folar ou os ovos pintados; momentos de convívios entre famílias, vizinhos, associações ou comunidades… muitas vezes à volta da mesa e por mais tempo do que é habitual nos outros dias do ano…

Mas será que todos sabem o significado do uso de tais ingredientes como ‘tradições pascais’? Se abordássemos muitos dos nossos contemporâneos ficaríamos admirados com a falta de resposta adequada, no entanto, continuam todos a usufruir das coisas como se elas lhe dissessem alguma coisa ou coisa alguma…

Desde logo a inclusão do ‘borrego/cabrito/cordeiro’ tem raízes na celebração judaica da páscoa, como lemos nas narrativas do livro do Êxodo, onde se relata a libertação do povo israelita do cativeiro do Egito e que tiveram de comer à pressa o cordeiro que prepararam, pois o anjo de Deus passava nessa noite – vide Êxodo 12. Inclusive ‘páscoa’ quer significar ‘passagem’, tanto de Deus que passa e liberta o seu povo, como do povo que é libertado e passa para uma nova etapa da sua história e identidade…

O uso de ovos – desde a sua existência mais simples até ao seu uso na confeção de doces e outras iguarias – tem a ver com um sinal da vida… Talvez muitas crianças sejam levadas a pensar que dos ovos nascem coelhos ou que os coelhos dão ovos. No ovo está contida, em semente, a vida e os coelhos simbolizam também eles a reprodução em vida, tornando-se ambos sinal da vida que renasce em tempo de primavera…ao menos no hemisfério norte…

Porque as pessoas, em tempos de vivência rigorosa da quaresma, não usavam os ovos na alimentação, podiam, em maré da páscoa, confecionar doces e outros sinais de festa que eram partilhados uns com os outros e dados, particularmente, aqueles sobre os quais tinham alguma responsabilidade…espiritual. Daqui advém o costume, nalgumas regiões, de os padrinhos darem o folar por ocasião da páscoa, onde os ovos tinham maior significado e presença como sinal de amizade e de reconciliação… 

= Até agora percorremos algumas ‘tradições pascais’ que valem para crentes e não crentes, com estes a darem a impressão que nem sempre se questionam com as razões mais profundas de tais costumes. Agora vejamos outras ‘tradições pascais’ com marca mais cristã como as limpezas das casas, a visita pascal ou o compasso, as flores em abundância, os sons de sinos e música, procissões festivas…onde tem realce o ‘aleluia’, que não foi cantado na liturgia durante a quaresma.

A limpeza das casas, nalgumas regiões por dentro e por fora, com a caiação das mesmas, refere a consonância entre a casa de habitação e a purificação dos pecados na pessoa pela reconciliação sacramental… tudo isso para que Jesus ressuscitado seja bem recebido por cada um.

A visita pascal ou o compasso é esse momento de anúncio às pessoas e às famílias da alegria de Jesus ressuscitado…Em tempos muito conotado com a visita do pároco/padre às famílias tem vindo a renovar-se pela inclusão de leigos/as nesta tarefa de Igreja católica… Quem já tenha vivido isso perceberá que é um tempo de festa muito intenso, interessante e vivido. Após a contenção penitencial da quaresma, as flores, que abundam em tempo de primavera, dão um ambiente festivo e alegre, sendo, nalguns casos associada a música, os cânticos e os ‘aleluias’. Às procissões penitenciais e de Passos são contrapostas, durante o tempo pascal, momentos de procissão com motivos de alegria no âmbito mais social e exterior…      

 

António Sílvio Couto

sábado, 20 de abril de 2019

Incêndio de Notre-Dame…cumpre profecias de La Salette?


 
Por ocasião do recente incêndio na catedral de Notre-Dame, em Paris, circulou na internet uma estampa, de 1956, em que era apresentada, ao estilo do tempo, uma pintura do Sagrado Coração de Jesus, tendo nos cantos superiores do mesmo a representação de algo parecido com a catedral de Paris e a catedral de São Pedro, no Vaticano, ambas em chamas…

Tal figuração seria alusiva às ‘profecias’ dadas pelos videntes Maximin e Mélanie, na manifestação de Nossa Senhora em La Salette…uma povoação nos alpes franceses. Com efeito, percorridas as ‘profecias’, do final do século dezanove, aí se referia que, um dia, Notre-Dame e o Vaticano seriam consumidas pelas chamas… Para além de alguns castigos de efeito mais ou menos imediato nos campos e na saúde das populações, as ‘profecias’ de La Salette são algo tenebrosas não só pelas consequências, mas em razão das causas. Pior: muitas destas continuam ativas e atuais, podendo ser remanso para extremistas tanto religiosos, como sociopolíticos… estenderem as suas garras, conjeturas e suposições.

Mas será que o incêndio da catedral de Notre-Dame pode ser lido como o cumprimento de alguma das ‘profecias’ de La Salette? Poderemos querer confirmação de algo que poderá ser mais do que um mero acidente? Até que ponto mais de cento e cinquenta depois poderemos ver, neste incêndio, o cumprimento de tais ‘profecias’? Será correto, histórica e sensatamente, atribuir algum nexo de causa-efeito, entre as ‘profecias’ de La Salette e o trágico incêndio de abril de 2019?

Se, porventura, dermos crédito a tais ‘profecias’ teremos de, agora, esperar que as chamas atinjam a catedral de São Pedro, no Vaticano, corroborando a interpretação de que o ‘mal’ tomara posse do governo da Igreja católica. Será isto sério, sensato e aceitável? Teremos de andar a escarafunchar os meandros da Santa Sé para confirmar tais teorias da conspiração? Será tudo isso justo, correto e honesto?

Dá a impressão de que, quanto mais caminhamos na senda de nos sentirmos participantes da história deste mundo, mais surgem uns certos ‘intelectuais’ e uns tantos ‘devocionistas’ a puxarem para trás, isto é, confundirem os outros, dado que eles mesmos estão confusos, baralhados e saudosistas em terem as pessoas presas pelo medo e não pela capacidade de lerem, interpretarem e viverem de forma livre, consciente e responsável… 

= Mutatis mutandis: a quem interessa continuar a insistir na ‘missa tradicional’ se vamos perdendo clientela na missa do Vaticano II? A quem interessam certas roupagens, para além do espavento de tempos idos e de ideias em paragem no cortejo da vida? Não se andará em excesso a encadernar gente, que precisava de sujar mais as mãos e não de as ter limpas de não fazerem nada?

De facto, o recrudescimento de muitas das devoções, nos nossos dias, manifesta uma crise profunda de identidade, tanto de quem as promove, como de tantos outros que nelas se refugiam, tentando salvar a sua ‘alminha’, mas pouco se importando com atanazar os demais com recursos de pouca valorização humana, emocional e espiritual.

Pior: muitas dessas devoções têm de ser alimentadas com proventos económicos nem sempre claros e tão-pouco aceitáveis. Há casos em que pessoas de parcos recursos passam mal só porque se acham na obrigação de corresponderem ao fluxo de ‘convites’, anúncios e produtos perfeitamente escusados para quem queira ser cristão normal e não deseje pertencer a qualquer grupo ou tendência mais ou menos exotérica… em uso. É um abuso e violência da consciência tanta coisa que faz por aí, explorando a ignorância das pessoas de boa fé ou em estado de debilidade não recomendável para não respeitar…condignamente.  

= A Páscoa tem de trazer novas formas de viver a fé, despindo-a de folclores que já não refletem a vivência que certos ritos pretendiam propor. Será numa Páscoa que celebra a Vida e que faz dessa celebração um nexo de compromisso que haveremos de deixar que o lume novo consuma o que de velho há em cada um de nós. Precisamos de nos deixarmos espantar com a novidade da Páscoa de Jesus, deixando os pingarelhos das nossas certezas no túmulo do sepultamento de Jesus. Precisamos de sair homens/mulheres novos pela dinâmica da Páscoa da Ressurreição…

  

António Sílvio Couto

quarta-feira, 17 de abril de 2019

‘Portugal é Lisboa… o resto é (mesmo) paisagem’


Há quem deduza esta frase duma obra de Eça de Queirós. No entanto, do lamento à realidade não estamos tão longe assim, seja lá qual for a área de intervenção, o campo de trabalho ou mesmo o setor de atividade… humana, económica, cultural ou mesmo espiritual/religiosa.

De que adianta os ‘rurais’ protestarem, se na capital se distribui o dinheiro, as promessas, as contas e as prebendas. De que adianta dizerem que isso está a mudar, se vemos que, numa singela decisão para repor os níveis de combustíveis acessíveis ao público, se privilegia Lisboa, a seguir vem o Porto e talvez mais tarde, se sobrar alguma coisinha, o resto da paisagem será contemplado…

Até já os estrangeiros concluíram desta (nossa) enfermidade e dizem que só dez por cento da despesa pública é gasta com a administração local. Podem as universidades da ‘paisagem’ apresentarem níveis de investigação, de qualidade de ensino, de boa relação instrução-emprego, que nada acontece sem o beneplácito lisboeta… agora mais alargado às fronteiras entre Setúbal e Vila Franca de Xira, no circuito de área metropolitana…

A macrocefalia da capital vai amedrontando a ‘paisagem’ e uma certa menorização de quem não faz parte dessa tal elite – política, económica, intelectual, religiosa, social e cultural – estende-se em aval de desconfiança e, por vezes, de subjugação para ainda conseguir recolher algumas migalhas que caiam da mesa dos ricos senhores, que nem sempre são senhores ricos.

Bastará sair desta bolha complexa – às vezes é mais complexada – da área metropolitana da capital para perceber que muitos, que vivem na ‘paisagem’, ainda não se aperceberam do ostracismo a que estão votados. Por estes dias vivi uma dessas experiências ao ter ido participar na celebração do centenário do jornal ‘Diário do Minho’ e não ter visto rastos de qualquer órgão de comunicação social de imagem, fazendo ignorar uma efeméride de realce para a região, a cidade e mesmo a Igreja católica. E não vi qualquer desconforto no ato, por parte dos responsáveis, não tendo sequer percebido se tal aconteceu por opção, por lacuna ou por mera coincidência ou já por hábito em se ver ignorado, sem voz/imagem e, por isso, fora das notícias…dado que aquilo que não se mostra não existiu! 

= Repare-se na ausência de figuras que surjam de fora de tal circuito – por vezes, queiram desculpar, mais parece um circo – onde quem se diverte como público-alvo faz parte do elenco de quem se exibe. Veja-se o campo da política, onde se vai fechando o leque das escolhas nas mesmas famílias – como a história se repete com tanta facilidade! – e se vai arregimentando do mesmo caldo quem há de depois favorecer os que agora governam. Que dizer ainda das opções para lugares de responsabilidade na Igreja católica. Uns promovem os outros para que (quase) tudo continue na mesma e não se façam ondas que destoem da mentalidade reinante. Porque será que algumas dioceses já há vários anos não têm escolhas reconhecidas por quem apresenta os candidatos? Será por inépcia dos responsáveis, por falta de qualidade dos possíveis servidores ou por incapacidade de os fazer valer nas instâncias de decisão? Neste campo em concreto algo vai mal para certos círculos de intervenção, enquanto outros – talvez mais sagazes e habilidosos – estão quase sempre na linha de chegada… Mesmo assim cresce o número dos despromovidos à escala do país e da intervenção reflexiva, teológica e pastoral.  

= Somos um país pequeno em dimensão territorial, mas apequenamo-nos ainda mais quando uns tantos se acham no direito de menosprezar quem não faça parte do seu âmbito de influência, privilegiando mais o clientelismo do que a qualidade, favorecendo mais a partidarite do que a competência, relegando para fora da corrida quem não alinhe na vulgaridade, na superficialidade e, mais recentemente, no nepotismo descarado. Caminhamos a passos largos para meio século da revolução abrilina e os tiques de ditadura só mudaram de cor, pois algumas autarquias estão em ditadura quase há mais tempo do que o regime anterior: todo o resto da população não evoluiu na mentalidade, quando as ideologias que tais suportavam já claudicaram há três décadas!

O mais grave é quando os que vieram da ‘paisagem’ se acomodam à capital e fazem pior do que antes!

 

António Sílvio Couto

Porque não se viu nenhuma TV?


Por ocasião da gala do centenário do jornal ‘Diário do Minho’, no passado dia 15, não vi nem vislumbrei nenhuma câmara de televisão, nem das habituais em atos de tal significado nem as mais pessoais e correntes… como agora se diz, do público fazedor de notícias. E questionei-me: foi esquecimento de quem organizou ou descuido de quem costuma estar presente ao mais pequeno sinal de notícia importante? Tal efeméride não será algo de tão relevante assim nem sequer para os meios de comunicação social da Igreja católica? Terá havido algo que desmereça ser noticiado ou não haverá algo mais neste falhanço, por sinal, transversal a tantos dos meios de comunicação?

Que o facto era considerado importante viu-se pela presença dum número significativo de autarcas dos distritos de Braga e de Viana do Castelo? Que o episódio foi considerado marcante viu-se no elevado número de presenças – ‘convidados’, diga-se – no ato solene e na refeição subsequente. Que não foi um episódio de somenos notou-se pela presença de tantos dos colaboradores (de trabalho e em opinião), onde humildemente me inclui.

Ainda no decorrer da festa/gala dei conta da estranheza aos responsáveis, tanto da arquidiocese como do jornal e ficou-me um amargo de desconsideração para com uma espécie de boicote por parte dos órgãos de comunicação social em massa. Não que se deva achar estranheza nos critérios de notícias em tantas das televisões, pois ali não havia um escândalo nem um acidente e tão pouco um desses filões que agora fazem ganhar leitores/ouvintes/anunciantes, mas tão-somente a comemoração de cem anos de um jornal feito com base na região Norte, no Minho mais precisamente, que procura veicular valores – como foi referido por alguns dos intervenientes – e de inspiração cristã. Será que é esta que se torna nó górdio da compreensão daquilo que não se compreende e, por isso, se contesta, ignorando, silenciando e censurando?

Seja lá qual tenha sido a razão de não ter estado nenhuma televisão a reportar o primeiro centenário do ‘Diário do Minho’, aqui fica a minha honesta, singela e despretensiosa observação, denúncia e quase protesto.

Com um redobrado sentimento de gratidão realço: parabéns, mais uma vez, pelo centenário deste jornal.

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 12 de abril de 2019

No faroeste da pseudomoralidade


Mais uma vez se está a cumprir o ritual: por ocasião da semana santa – Páscoa, surgem na comunicação social ‘factos’, insinuações, episódios, conjeturas, acusações, suspeitas sobre Jesus Cristo – a sua pessoa e o seu mistério – e sobre a Igreja…sobretudo na vertente católica, particularmente dos seus ministros, seja qual for a instância, serviço ou ministério.

Por outro lado, recorrentemente vemos aparecerem no espetro nacional (e não só), uns certos caçadores de prémios – qual faroeste da (dita) sociedade ocidental – a reclamarem prémios de terem descoberto prevaricadores duma tal moralidade que os denunciantes nem praticam. Por agora emergiu uma tal publicação on-line a farejar temas que possam dar-lhe protagonismo sem terem de investir na impressão das suas impressões – que, por vezes, mais parecem imprecisões – com larga difusão dos seus ímpetos pagos a bom preço. Os cartazes com ‘procura-se’ já não são afixados nas paredes dos cafés ou nos lugares de divulgação, mas surgem nas páginas da internet, nos rascunhos do facebook ou mesmo nas partilhas das redes sociais… Aí se pode ver e dizer de quase tudo, desde que o denunciante se esconda sob um anonimato cobarde ou camuflado de anti-herói sem caráter… Isto já para não falar das denúncias anónimas de ressabiados por não conseguirem atingir os patamares dos acusados, julgados e condenados na praça pública sem culpa formada nem qualquer julgamento…   

= Paremos aqui diante desta campanha de moralismo sem ética. Vejamos como funcionam os mecanismos de conquista e as delongas de insinuação. Comparemos atitudes de setores e, com verdade, cuidemos de analisar aquilo que faz correr tanta gente…em ziguezague para não ser atingida com as avaliações mais exigentes, atentas e sensatas.

Desde há alguns anos a esta parte a Igreja católica, na pessoa dos três últimos papas, tem vindo a reconhecer erros, lacunas e pecados, dos quais tem vindo a pedir perdão – quantas vezes o fez o Papa João, antes e depois do jubileu do ano 2000 – a reconhecer as suas falhas e faltas, denunciando, de forma ousada, os prevaricadores, e afastando mesmo os que podem ter feito escândalo…

Alguma instituição fez isto como a Igreja católica, tanto ao nível universal como em cada país. As forças armadas fizeram o seu ‘mea culpa’ por haver quem tenha cometido infrações nas suas fileiras? As polícias alguma vez se retratam das atrocidades praticadas, tanto contra indefesos como para com criminosos? Na política vimos alguém reconhecer os seus abusos e manipulações? Ou, pelo contrário, casos há em que ascenderam aos mais altos cargos da nação de forma promotoria da lavagem por conluios e favorecimentos ignóbeis? No setor do ensino não há nada a modificar? No âmbito da saúde – onde se jogam tantos interesses e lóbis – está tudo acalmado? Nas categorias dos vários desportos, nunca houve atrocidades nem incorreções?  

= Quem está posto em causa em tantos destes episódios colocados a preceito nas redes sociais e na comunicação social mais tradicional? A quem se pretende atingir de forma astuciosa e ardilosa?

Não tenhamos medo de falar do que se quer criticar, afundar e destruir: a família… é esta a entidade que incomoda tanta gente vendedeira duma certa ética mais ou menos republicana, agnóstica e, tendencialmente, anticristã. À família estão ligados tantos dos aspetos que querem combater, de forma mais ou menos assumida.

Se para atingir tais fins for preciso difamar e inventar, ridicularizar ou atraiçoar, subverter e ideologizar, manipular ou mentir…tudo servirá, desde que os feitos sejam sorvidos a conta-gotas para que o veneno seja assimilado tão rapidamente e não rejeitado. Os caçadores de prémios andam por aí e com facilidade podem acrescentar mais presas, desde que andemos em sonolência de boa vontade narcotizada pelas modas de cada tempo e nos mais diversos lugares. Sem entrarmos na caça-às-bruxas, temos de as denunciar, mais pelo que escondem do que pelos aspetos que apresentam. Urge fazer cair a máscara a tantos/as que se apresentam como moralizadores, mas que não passam de juízes em causa própria e beneficiados da conivência de outros, igualmente réus e fazedores de vítimas!

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 9 de abril de 2019

Como ‘ser a voz dos sem voz’, hoje?


Está prestes a completar cem anos de existência, o jornal ‘Diário do Minho’, com sede em Braga.

Para além de se dizer, no estatuto de editorial, que é um jornal de ‘informação geral, de expansão regional e de inspiração cristã’, apresenta-se como ‘a voz dos sem voz’, não privilegiando ‘interesses particulares’ nem ninguém, rejeitando os totalitarismos (de direita ou de esquerda), mas estando ‘ao serviço de todo o homem e do homem todo’, construindo ‘uma sociedade cada vez mais justa e mais fraterna’ e opondo-se, pelos seus princípios, a ‘tudo quanto se opõe à vida humana’.

As circunstâncias do seu surgimento, 1919, eram assaz conturbadas…tanto dentro como fora das fronteiras. Em Portugal recuperava-se do assassínio de Sidónio Pais, lutava-se contra a gripe pneumónica…que vitimou, nalgumas regiões, dez por cento da população, num total de 60 mil do nosso país. Na esfera internacional davam-se passos para a consolidação da paz, no final da primeira guerra mundial, com o ‘tratado de Versallhes’. Ao nível da Igreja católica era Papa, Bento XV, que, em novembro desse ano, escreveu, entre outros documentos, a carta apostólica ‘Maximum illud’ sobre a atividade desenvolvida pelos missionários no mundo. Ao tempo era arcebispo de Braga, D. Manuel Vieira de Matos, considerado um grande resistente à lei da separação na primeira república…e introdutor no escutismo no nosso país.

Feito este enquadramento histórico-social-eclesial talvez possa ser útil reporta-nos a algumas das linhas daquele diário de inspiração cristã.

* Rejeitando interesses particulares e totalitários

Este jornal sobreviveu a três repúblicas – a primeira em cujo contexto surgiu; a segunda sob a tutela salazarista; a terceira – pós revolucionária…em vias da pretensa democracia. Uma obra não se mede pela popularidade conseguida, mas pela atitude de caminhar rumo à meta, fazendo das etapas, isso mesmo, degraus que fazem crescer e não os meros lucros a que se deixa enfeudar sem saída… 

* Em defesa da vida

Neste aspeto o jornal define, no seu estatuto de editorial, quais são os campos em que se compromete a lutar pela vida: na sua expressão mais simples e direta – ‘homicídio, genocídio, pena de morte, aborto, eutanásia e suicídio voluntário’; naquilo que pode ser entendido como ofensa indireta – ‘tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências’; os aspetos atinentes à dignidade humana – ‘tudo quanto ofende a dignidade da pessoa, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o tráfico de mulheres e jovens’; e ainda as vertentes sócio-laborais – ‘as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis’.

De quantas formas este diário tem denunciado, anunciado e proposto este valor inquestionável da vida humana. Em certos momentos – sobretudo na fase dita da democracia – houve tensões, provocações e momentos em que os valores cristãos foram atacados, ofendidos e menosprezados, mas o bom senso e a correção voltaram a fazer caminho… Uns exemplares a menos vendidos não valem a subversão do essencial!   

* Ser a voz dos sem voz

Parece-me que este aspeto continua a ser um dos mais relevantes da linha editorial, Com efeito, quando tantos se querem fazer ouvir, pelas mais díspares (nalguns casos disparatadas) formas, ser a ‘voz dos sem voz’ é (e continua a ser) um objetivo cada vez mais audaz, pertinente e urgente.

Nem todas as notícias dadas são as mais importantes, algumas ignoradas deviam ter espaço, comentário e análise. Quando tantos se acham no direito de fazerem parte das notícias, será essencial que os profissionais não se demitam nem usem de menos boa conduta, só porque uns tantos se colocam em bicos de pés sem outra intenção de serem figurantes de um episódio de classe inferior…até nas coisas da Igreja.

‘Os sem voz’ precisam de ser atendidos, acolhidos e apresentados na chamada à primeira página, pois eles são o reflexo dos anónimos, dos votantes, dos cidadãos, dos crentes…com dignidade de filhos de Deus!

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Haverá (ou não) riscos de islamização da Europa?


Talvez seja uma inquietação dos europeus: já não corrermos o risco de vir a ser criado o ‘grande califado’, como ameaçou o autodenominado ‘estado islâmico’? Com as nossas teorias de abertura e boa convivência, estamos a salvo de tais pretensões de muçulmanos mais exagerados ou fundamentalistas? Por quanto tempo poderemos usufruir da possibilidade de viver festas religiosas cristãs/católicas com a indiferença religiosa crescente deste mundo ocidental? Tanto quanto é percetível entender os ditos valores da democracia não correm perigo, se continuarmos a dormir e a amolecer na vigilância sociocultural?
Quem não se recorda dos tumultos, por vezes graves, que ocorreram após a intervenção do Papa Bento XVI, na universidade de Ratibona, em agosto de 2005? Quem esteve interessado em esticar as más interpretações daquilo que foi dito, de facto e não tirado do contexto do discurso? Até que ponto os muçulmanos são tão ‘intocáveis’ e fazem temer o (dito) ‘mundo ocidental’?
Entretanto, as mais recentes viagens do Papa Francisco a países de incidência muçulmana têm algum significado nesta abordagem à possível islamização da Europa? Como poderemos interpretar factos, palavras, sinais e atitudes do Papa nesta leitura sobre a (possível) islamização da Europa?
Na exortação apostólica ‘Evangelii gaudium’ (Alegria do Evangelho) sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual, o Papa Francisco refere-se ao diálogo dos católicos com o islão – n.os 250-254 – dos quais vamos respigar algumas ideias.
* Partindo de ‘uma abertura à verdade’ para que possa haver diálogo inter-religioso, o Papa considera que ‘este diálogo inter-religioso é uma condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever para os cristãos e também para outras comunidades religiosas… Um diálogo, no qual se procurem a paz e a justiça social, é em si mesmo, para além do aspeto meramente pragmático, um compromisso ético que cria novas condições sociais’ (n.º 250).
* Uma condição essencial a ter em conta, nesta tarefa do diálogo inter-religioso, é cada um ser o que é e saber respeitar o outro na sua identidade. Segundo o Papa, ‘nunca se deve descuidar o vínculo essencial entre diálogo e anúncio, que leva a Igreja a manter e intensificar as relações com os não-cristãos… A verdadeira abertura implica conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade clara e feliz, mas «disponível para compreender as do outro» e «sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos»…Longe de se contraporem, a evangelização e o diálogo inter-religioso apoiam-se e alimentam-se reciprocamente’ (n.º 251).
* Fazendo um breve enquadramento da presença dos muçulmanos em muitos países de tradição cristã, onde eles têm liberdade de culto – coisa que os cristãos/católicos não têm nos países de cultura islâmica – e muitos deles estão integrados na sociedade, o Papa tenta encontrar pontos de convergência com a fé do islão (n.º 252), traçando depois linhas de condutas. De entre essas linhas, o Papa Francisco refere-se à ‘adequada formação dos interlocutores, não só para que estejam sólida e jubilosamente radicados na sua identidade, mas também para que sejam capazes de reconhecer os valores dos outros, compreender as preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer aparecer as convicções comuns’ (n.º 253). De entre os diversos riscos, o Papa salienta o do fundamentalismo violento, auspiciando que haja bom acolhimento aos cristãos nos países de expressão muçulmana.
Talvez precisemos de não confundir os contatos e as boas intenções dos responsáveis, mas na vertente popular nem sempre será tudo tão arejado como se apresenta quando a liberdade religiosa é (ou não) respeitada! Ainda falta uma purificação da memória de tantos séculos de acusações e de desconfianças! Será preciso respeitar o sangue de milhares (ou talvez de milhões) de mártires cristãos (católicos e/ou protestantes) ainda hoje feitos em tantos dos países muçulmanos!
Ao Ocidente insípido, anódino ou agnóstico isto diz alguma coisa ou provocará mais desdém pelo fenómeno religioso, tenha a expressão que tiver? Os nossos antepassados merecem mais respeito!

Em tempo de quase-semana santa poderá ser útil não esquecer os milhões de cristãos – das várias denominações e nos diversas latitudes, a começar pela Terra Santa – que não têm condições mínimas para celebrar com dignidade a sua fé em Cristo Jesus!

 

António Sílvio Couto

sábado, 6 de abril de 2019

Da ataraxia estoica…à paixão silenciosa de Cristo


Por estes dias ouvi alguém que, referindo-se ao seu estado de saúde, dizia que não estava habituado a queixar-se… até porque estamos em tempo de Quaresma.

A capacidade de não-inquietude dos estoicos deixou alguns resquícios na forma como nos foi transmitida uma certa dose de tranquilidade de ânimo ou a ausência de inquietude na paixão de Cristo através dos Evangelhos: o longo, profundo e interrogativo silêncio de Jesus em todo o processo a que foi submetido como foi apresentado aos seus discípulos para quando estivessem em maré de perseguição, de provação ou mesmo de confronto consigo mesmos e/ou com o exterior.  

= Sem querer abusar dos três sinais que caraterizam o nosso tempo – aspirina, micro-ondas e fraldas descartáveis – percebe-se como se torna difícil não reagir ao mais pequeno contratempo e ao constrangimento dos nossos prazeres. Com efeito, a ‘apatia’, que fundamentava o processo de ataraxia dos estoicos, está contraditado ao mais ínfimo pormenor pessoal, social e mesmo cultural. Nada nem ninguém pode afetar a nossa ‘felicidade’, muitas vezes feita de casmurrices se não mesmo de vícios e má-educação.

Quem ousa apresentar a fé cristã onde se contenha pinceladas de sacrifício? Quem tenta referir a dimensão sacrificial da missa, se sentir indícios de comichão no assento dos ouvintes/praticantes? Quem não tenta ‘inovar’ na via-sacra para que esta não nos confronte com os sofrimentos (físicos, psicológicos e morais) de Jesus? Quem não dará voltas à imaginação para que não afugente o resto dos praticantes, se lhes falarmos da entrega dos nossos sacrifícios em vez das reivindicações habituais?

Estas e outras questões se podem levantar quando nos aproximamos da vivência da ‘semana santa’, onde meditamos o mistério pascal da paixão-morte-ressurreição de Cristo. Ele, que tanto sofreu por nós e em cujas chagas fomos curados, continua a ser uma provocação ao nosso melaço de vida, onde nem os mínimos sacrifícios enquadramos nesse Seu mistério de entrega por nós e pela nossa salvação. 

= Escutemos a voz do magistério sobre o modo como devemos conduzir-nos neste tempo, que não é pior do que outros momentos do passado. Temos, sim, de saber compreender os sinais de Deus para connosco.

«É salutar recordar-se dos primeiros cri­stãos e de tantos irmãos ao longo da história que se mantiveram transbordantes de alegria, cheios de coragem, incansáveis no anúncio e capazes de uma grande resistência activa. Há quem se console, dizendo que hoje é mais difícil; temos, porém,de reconhecer que o contexto do Império Romano não era favorável ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem à defesa da dignidade humana. Em cada momento da história, estão presentes a fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a concupiscência que nos ameaça a todos. Isto está sempre presente, sob uma roupagem ou outra; deriva mais da limitação humana que das circunstâncias. Por isso, não digamos que hoje é mais difícil; é diferente. Em vez disso, aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram as dificuldades próprias do seu tempo. Com esta finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a recuperar algumas motivações que nos ajudem a imitá-los nos nossos dias» - Papa Francisco, ‘Alegria do Evangelho’, n.º 263.

À luz do silêncio de Jesus, na sua paixão, poderemos aprender também nós o modo como Ele nos conduz, verdadeiramente! Não haverá, por aí, muito desperdício de sofrimento que poderia ser redentor e salvador? Não teremos de viver esta continuada entrega de tudo e de quanto nos faz sofre para que haja abertura à graça divina de tantos que precisam de intercessão?

Olhemos a cruz vazia e ofereçamo-nos com Jesus. Adoremos o Senhor que jamais passará pela cruz. Contemplemos a irradiação do Céu, quando soletramos a jaculatória: ‘nós Vos adoramos e bendizemos, ó Jesus, que pela vossa santa cruz remistes o mundo’… ontem, hoje e por toda a eternidade!

A cruz não esmaga, pelo contrário, levanta e eleva! A quietude estoica paralisa e embaraça. A cruz é sinal de caminhada, os exoterismos estoicos fazem mergulhar no narcisismo…

Os estoicos serenam-se, os cristãos incomodam-se para que outros acolham a salvação trazida por Jesus. O resto poderá ser pietismo barato ou devocionismo de circunstância. Deixemos entrar Jesus, serenamente!

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Para uma pequena mistagogia da ‘semana santa’


Considerada pela tradição católica como a ‘semana maior’ – não pela extensão dos dias, mas pelo significado de cada um deles – a semana santa reveste-se dum significado muito especial.
Nos três primeiros dias – segunda, terça e quarta – algo que nos pode e deve fazer refletir. Referimo-nos ao ‘mistério de Judas Iscariotes’, esse que foi o traidor e que entregou Jesus às mãos dos judeus para ser morto. Com efeito, os textos da liturgia da palavra da missa desses dias são assaz ‘perturbadores’ – Jo 12,1-11: Judas questiona o uso do perfume de Madalena para com Jesus; Jo 13,24-33.36-38: Jesus preanuncia a traição de Judas e as negações de Pedro; Mt 26,14-25: Judas como que negoceia a entrega de Jesus aos chefes judaicos.
* Missa crismal – dom do sacerdócio
Na manhã de quinta-feira santa reúne-se todo o presbitério com o seu bispo, numa expressão de comunhão e de renovação de compromisso. É um momento fundamental de todo o padre e da diocese: não pode haver verdadeiro ministério sem comunhão dos padres uns com os outros e de todos com o bispo diocesano…mesmo que possa ser só padre religioso!
* Celebração da ‘ceia do Senhor’
Na tarde (ou ao final da mesma) da 5.ª feira santa, a Igreja convida-nos a celebrar ‘a missa vespertina da ceia do Senhor’, confluindo para esta celebração o memorial da páscoa judaica e a instituição que Jesus faz da eucaristia, isto é, o memorial do Seu Corpo e Sangue. Tendo o rito dos ‘lava-pés’ como sinal central, esta celebração introduz-nos o centro do mistério da paixão-morte-ressurreição de Jesus. Nela meditamos, agradecemos e nos comprometemos com tudo quanto Jesus fez por nós, pela sua dádiva de amor, de oblação, de entrega… desde fazer do seu Corpo e Sangue nosso alimento até ao sofrimento da paixão – no sentido mais profundo do termo e da vivência – duma vez para sempre.
O tempo de silêncio em adoração ao Senhor não pode parecer uma vigília de velório nem sequer uma espécie de passagem pelo ‘horto das oliveiras’ como esteve o Senhor, mas antes um momento de adoração, ação de graças, intercessão e súplica em união com todos quantos celebram como nós este mesmo mistério espalhados pelo mundo unidos ao todos os cristãos.
* Na força da 6.ª feira santa
Como dia de jejum e de abstinência, este dia de sexta-feira santa faz-nos caminhar em recolhimento e até contensão de palavras, meditando a narrativa da Paixão segundo São João, vivendo a adoração da Cruz – onde nem devia estar a imagem do Senhor para que a cruz fosse sentida como verdadeiro instrumento e sinal de salvação – e sendo alimentados pela eucaristia dos pré-santificados. Neste dia é duma grande beleza e simbologia a longa oração universal, onde, desde tempos imemoriais, se reza por tudo e por todos…até pelos descrentes e ateus.
Segundo alguns costumes, nesta noite de 6.ª feira santa, faz-se a procissão ‘do enterro do Senhor’, termo indevido, pois não levamos ninguém a enterrar e tão pouco a sepultar, antes, pelo silêncio e a meditação – onde a música pode e deve ajudar-nos – caminhamos escutando textos do sepultamento de Jesus. É algo anacrónico que alguém participe na ‘procissão do enterro do Senhor’ se não viveu o resto da liturgia desse dia… Certos folclores precisam de ser purificados e exorcizados, à luz duma formação simples, aceite e crescente…
* Sábado santo: do silêncio à explosão da luz…ressuscitada e ressuscitadora
Num dia sem celebrações litúrgicas, preparamo-nos para a significativa vivência da vigília pascal, que nos coloca diante de quatro grandes dimensões litúrgicas: da luz, da Palavra, batismal e eucarística. Cada uma delas é longa e essencial para a nossa fé cristã. Por isso, a vigília pascal não pode ser feita a correr e talvez seja uma abuso fazer mais do que uma nessa mesma noite.
– na liturgia da luz contemplamos, em forma de oração, o mistério da redenção operada pela ressurreição do Senhor, luz que brilha nas trevas.
– na liturgia da Palavra percorremos os momentos essenciais da história da salvação em ordem à ressurreição do Senhor.
– na liturgia batismal acolhemos novos irmãos e renovamos o nosso batismo.
– na liturgia eucarística damos graças e recebemos o dom do Senhor vivo e ressuscitado para sempre.

 

António Sílvio Couto


terça-feira, 2 de abril de 2019

Pontífice, apontador, apontamento…


No final da ordenação episcopal, no último dia de março, no Porto, D. Américo Aguiar proclamou-se construtor de pontes… isso já desde o tempo da juventude (disse ele, na vertente política), acentuando para o futuro que deseja ser ‘pontífice’ (fazedor de pontes) entre as várias regiões socioculturais do país (Porto-Lisboa) e até na nomenclatura desportiva de rivalidades…

Para quem conheça minimamente o recém-ordenado bispo saberá que é pessoa afável – mesmo na intrincada mescla da comunicação social – e com um sentido de presença da Igreja muito para além das despesas comuns e factuais. Embora não tenha uma idade onde se apensa bastante experiência de vida pastoral, não deixará, certamente, de ser isso mesmo que anunciou tão solenemente: criador de pontes nos campos que enunciou e em tantos outros em que Deus o colocará como presença, instrumento e intérprete.  

* Ser pontífice

Esta nota de criador de pontes costuma ser aduzida ao Papa, a quem comummente se lhe chama ‘sumo pontífice’, elevando à categoria de fazer pontes quem está no (dito) ligar cimeiro da Igreja católica. Embora já usado, na linguagem do mundo, tornou-se no século V da era cristã como que um título dado a bispos notáveis e passou a ser utilizado, especialmente, pelos Papas, depois da rutura entre católicos (Roma) e ortodoxos (Constantinopla) no século IX.

No entanto, a função de fazer pontes sempre foi considerada uma tarefa de grande utilidade humana e cultural, na medida em que era difícil atravessar os rios e as pontes permitiam tal desejo de passar duma para outra margem… Isso ainda é mais valorizado quando se veem a despontar tantos muros entre povos e civilizações, entre culturas e nações…sem esquecer as barreiras psicológicas que os muros arrastam na mentalidade hodierna.

Na linguagem e no comportamentos algo agressivos com que nos temos de confrontar, pretender ser pontífice parece um bom programa de vida, sobretudo para quem terá de estabelecer diálogo com situações onde as boas intenções nem sempre favorecem quem delas se pretenda servidor… 

* Querer ser apontador

Esta outra nota adstrita ao ministério de um bispo – de um padre ou de um leigo – poderá não ser tão desfasada da realidade do que possa parecer, pois ser apontador merecerá ter algo para onde indicar e apresentar meios para tal atingir. Inserido em meios variados, o termo ‘apontador’ poderá ajudar-nos a compreender a missão de alguém que aponta, traça uma diretriz ou que ajuda a fazer caminho numa determinada direção. Ser apontador poderá ainda apresentar ideias correlacionadas ou situações afins, criando nessa função modos de resolver questões, por vezes, um tanto complexas, mas que com ajuda se poderão ultrapassar.

Quem é que não deve ser apontador, na vida, das soluções do Evangelho? Quem não desejará tornar-se apontador de metas e não quedar-se pelas etapas? Quem não descobrirá mais incentivo para caminhar, quando conseguir envolver outros nos projetos?  

* Que apontamento?

Ao longo da nossa vida já tomamos muitos apontamentos, isto é, fomos recolhendo para nossa orientação, instrução e aprendizagem muitos pensamentos, tantas frases e multíplices ideias de outros que connosco tal partilharam, ensinaram ou conviveram. Há apontamentos importantes e notas de rodapé. Há apontamentos que ficam para a vida e outros que esquecemos na voragem dos dias. Há apontamentos quase sagrados porque nos foram ministrados por mestres da sabedoria, da vida e da santidade.

Talvez nos falte o hábito de tomar notas – tirar apontamentos – das coisas simples da vida, mas seria de grande utilidade aprendermos uns com os outros na escola do dia-a-dia, onde o mais pequenos sinal nos possa falar de Deus e os outros possam ser os nossos mestres na interpretação dos mistérios divinos na vida.

Ao novo bispo desejamos que seja pontífice, apontador e apontamento de Cristo em todo o momento… 

 

António Sílvio Couto