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sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Perdemos a memória…pessoal e coletiva?

 

Por ocasião do recente ‘dia de fiéis defuntos’ podemos ver – ainda não é reconhecer – um sinal algo perigoso da nossa condição e cultura coletiva e como reflexo de muitas atitudes pessoais: um abandono crescente da ausência das pessoas a recordarem – de forma assumida e pública – a lembrança dos seus mortos, antepassados, familiares ou não.

Sou procedente de uma região do país com outra vivência e envolvência social, onde o respeito pelos mortos tem quase um culto exacerbado. E aquilo que vejo não só me custa como me escandaliza. Por isso, esta breve partilha, reflexão ou quase grito de revolta não só quanto ao presente, mas atendendo ao futuro próximo.

1. Desde já uma observação de interesses: considero que se devia acabar com os feriados religiosos com incidência civil, pois, esta dimensão civilista obriga quem tem de estar no serviço religioso e não cumpre a finalidade para a qual foi feito o ‘feriado religioso’. Datas como 1 de novembro, 8 de dezembro, sexta-feira santa, corpo de Deus, Assunção funcionam como feriados civis mas que, de verdade, são ’dias santos’ e para os católicos com obrigação de preceito religioso. Faço parte de um minoria que não os usufrui… Não gosto, no entanto, de contribuir para a preguiça alheia, dando-lhe cobertura que seria escusada, se houvesse verdade no conteúdo e na forma.

2. Fixemos a atenção neste fenómeno cultural crescente que é a privatização da morte, senão mesmo o varrê-la para fora do nosso alcance de inquietação, como se, desta forma, a evitássemos ou mesmo dela conseguíssemos escapar.

Li, há dias, esta observação: «há crianças que não vão ao funeral de familiares diretos porque ficam traumatizadas, mas no halloween, os papás [e mamãs] vestem-nos de mortos-vivos e bruxas». Este incisivo revela bem a incongruência de tanta gente, que critica uns comportamentos e promove o mesmo, só que em contexto diferente.

Sem qualquer juízo de valor podemos ver que se torna difícil ser coerente, tanto nas ideias como nos comportamentos e, pior, como que se brinca com assuntos sérios banalizando-os com atitudes, gestos, palavras e preconceitos.

3. Recordo de lembrança frases como estas: um país sem memória é um país sem futuro; um povo sem memória é um povo sem história; um povo que não conhece a sua história está fadado a repeti-la… Por estas quase sentenças podemos tentar perceber que, muito daquilo que somos hoje, está inscrito na vivência dos nossos antepassados e que nós próprios fazemos parte da construção do futuro com as lições – boas ou menos boas e mesmo más – que colhemos do passado. Por isso, o crescente abandono às nossas referências históricas – pessoais, familiares, sociais, culturais e coletivas – torna-se, além de perigoso, uma espécie de atentado à nossa sobrevivência como pessoas e instituições: antes de nós já houve vivência e depois de nós continuará a existir vida, mas esta dependerá da forma como soubermos referenciar-nos aos valores essenciais e não meramente às intriguices de circunstância…

4. Nesta sociedade de consumo em que vivemos podemos entender um tanto melhor essa ortopráxis materialista com que tantas pessoas se deixam conduzir, isto é, guiados mais pelas coisas materiais das quais têm experiência e vivência, esquecendo os valores psicológico-espirituais. Com que facilidade vemos resvalarem para o esquecimento valores que foram critérios de vida de muitos dos nossos antepassados. Com que velocidade temos visto serem perdidas causas de pessoas que eram motivo de exemplaridade na vida familiar e social. Embora os tempos sejam outros – como dizem certas vozes – os valores da gratidão, da honestidade, da lealdade… são intemporais e precisam de ser promovidos, vividos e reconhecidos.

5. Embora o sepultamento em cemitério fosse um acicate ao não esquecimento (memória), que dizer das repercussões do rápido vulgarizar da cremação, não iremos esquecer mais anónima e facilmente?



António Sílvio Couto

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