Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O Natal ainda tem espaço neste tempo?

 

Embora possa parecer uma pergunta sem sentido, nela está contida uma inquietação: poderá haver Natal sem Jesus ou que sentido tem o Natal se Jesus estiver fora dele?

Embora possa parecer um elemento tradicional com raízes cristãs, o presépio é um dos ingredientes/marca de que o Natal de Jesus ainda não morreu de todo.
O tempo de Advento é propício para a descoberta do presépio, naquilo que tem de simbólico e de ‘mistério’ do divino no humano.
Mesmo que de forma sucinta deixemo-nos tocar por algumas das figuras mais comuns do presépio:

* as ovelhas como presença daqueles animais mais simples, numa busca de simplicidade e humildade na vida:
* burro/vaca (boi) são os representantes de uma outra faceta mais humanizada, pois, na linha da tradição franciscana – do presépio do século XIII – ‘o boi (ou a vaca) e o burro’, numa leitura cristianizada de Is 1,3; Hb 3, 2 e de Ex 25,18-20.
* José representa e simboliza a figura de pai - vemo-lo atento e vigilante na configuração do presépio. Com facilidade podemos encontrar em José o pai, naquilo que humana e crista-mente é atribuído à figura do ‘pai’.
* Maria é a presença da mãe no nascimento e na vida de Jesus, Ao olharmos para ela no contexto do presépio vemos a ‘mãe’, no sentido amplo e concreto do feminino, da maternidade e da eclesialização... mãe de Deus e nossa mãe.
* Menino na manjedoura - Ele o centro da celebração do Natal, isto é, o Festejado... tudo o resto - e é tanto ou sobretudo isso - é manipulação materialista e consumista, que nos pode entreter, distrair ou deixar de parte o essencial.
«Jesus é colocado numa manjedoura, que, em latim, se diz ‘praesepium’, donde vem a nossa palavra presépio. Ao entrar neste mundo, o Filho de Deus encontra lugar onde os animais vão comer. A palha torna-se a primeira enxerga para Aquele que Se há de revelar como «o pão vivo, o que desceu do céu» (Jo 6, 51). Uma simbologia, que já Santo Agostinho, a par de outros Padres da Igreja, tinha entrevisto quando escreveu: «Deitado numa manjedoura, torna-Se nosso alimento». Na realidade, o Presépio inclui vários mistérios da vida de Jesus, fazendo-os aparecer familiares à nossa vida diária» (Papa Francisco, Carta apostólica ‘Admirabile signum’ sobre o significado e o valor do presépio, n.º 2).

Questionemos a nossa vivência do Natal, tão atafulhado de coisas e pouco capaz de se abrir às pessoas. Estas são o que há de mais sagrado e, por vezes, as esquecemos ou a relegamos para plano secundário. Com que facilidade dizemos que amamos coisas e gostamos de pessoas, quando a ordem das prioridades deveria ser amar as pessoas e gostar das coisas.

Num tempo tão ávido de afirmação em razão do ‘ter’, como se torna urgente, necessário e essencial, alicerçar-se no ‘ser’, desde o mais profundo até ao possivel superficial… aí onde todos somos iguais em dignidade, em mérito e em miséria. Em dignidade porque Jesus assumiu a nossa condição humana e dignificou tudo e todos. Em mérito porque nada trouxemos para este mundo – como diz Job nas suas reflexões – e nada levaremos dele, a não ser as boas obras e gestos de atenção ao outros. Em miséria pois somos feitos todos da mesma massa; frágil, pecadora e caduca.

Valerá a pena preparar e viver condignamente este Natal, pois, nem sabemos se não será o último. Os mais recentes – 2020 e 2021 – foram disso bons sinais. Enquanto é tempo vivamos o que nos é dado poder viver!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Mantras, sutras e versículos...


Estas palavras como que resumem o modo de citar as ‘escrituras sagradas’ de algumas das expressões religiosas monoteístas mais representativas, como o hinduismo, o budismo, o islamismo, o judaísmo e o cristianismo...

Antes de mais poderá ser útil explicar alguns aspetos de como colocar a atenção sobre as tais ‘sagradas escrituras’, seja qual for a religião que suportam e à qual dão fundamento e significado. Isto é (ou pode ser) tanto mais necessário, quando vemos tanta gente a viver, hoje, sem orientação de nada que a vincule à mensagem divina ou que tenha algo que possa ser mais do que subjetivo e ao sabor daquilo que possa satisfazer os ‘seus’ desejos (apetites ou necessidades) sem aferição ao vínculo com os outros.

1. Mantra (do sânscrito ‘Man’, mente e ‘Tra’, controle ou proteção, significando "instrumento para conduzir a mente") é uma sílaba ou poema, normalmente em sânscrito. Os mantras tiveram origem no hinduísmo, porém são utilizados também no budismo e jainismo.

Sutra é um substantivo derivado do verbo ‘vsiv’, que significa costurar. Trata-se de um ensinamento basicamente religioso em forma de texto, originário das tradições espirituais da Índia, particularmente do hinduísmo, do budismo e do jainismo. Literalmente ‘sutra’ significa 'corda' ou 'fio' e, mais metaforicamente, refere-se a um aforismo ou a uma coleção de aforismos reunidos num manual ou, ainda um ensinamento mais longo, em prosa. No budismo, o termo "sutra" refere-se, de forma geral, às escrituras canónicas que são tratadas como registos dos ensinamentos orais de Buda Gautama.

Os versiculos são usados para citar o Alcorão (do islamismo) e a Bíblia Sagrada (do judaísmo e do cristianismo), sendo pequenas frases que se inserem em capítulos de livros ou textos aglutinados, particularmente na Bíblia, segundo critérios com longa história...

2. Feita esta aferição aos termos em uso, pretendemos, acima de tudo, colocar-nos perante a ‘sacralidade’ dos textos que servem de base a estas religiões monoteistas, tentando encontrar o nexo entre as escrituras, a sua interpretação e, sobretudo, a sua vivência por cada um dos crentes destas mesmas expressões religiosas.

Cada um destas formas religiosas tem algo a dizer sobre a inspiração, a leitura e a interpretação dos textos. Se há quem seja imutável – literal e fundamentalista – quanto ao texto escrito até hoje, no caso dos islâmicos, quanto ao Alcorão; outros tentam – como os católicos – enquadrar o contexto dos escritos, sejam pelos géneros literários, seja pelo contexto cultural da escrita; outros ainda – como os protestantes – assumem a leitura sem rede, onde cada um interpreta o que lhe convém – numa assunção quase subjetiva – ou se torna mais ao espírito da congregação onde se está.

Percorrendo esferas sócio-culturais que nem sempre – enquanto ocidentais – entendemos, as ‘mantras’ e as ‘sutras’ exigem que sejamos capazes de penetrar na metodologia que as usam e, sobretudo, na envolvênca mais profunda que desejam atingir...

3. Ora, num tempo, onde a dimensão religiosa, tanto dos escritos, quanto na vida, pouco ou nada conta, para uma maioria cada vez maior dos nossos concidadãos, sobretudo no Ocidente e na Europa em concreto, torna-se importante entender as formas de conduta destas religiões monoteístas. Vejamos os números das religiões: cristãos (católicos, ortodoxos e protestantes) – 2,4 bilhões; judeus – 14, 5 milhões; muçulmanos – 1,9 bilhão; hindus – 1,5 bilhão; budistas – 521 milhões... Há dias atingimos um total de oito mil milhões de pessoas no Planeta-Terra. Segundos dados conhecidos, há um século, na Europa, viviam dois terços dos cristãos, agora os europeus representam um quarto dos cristãos. No entanto, desde 1910, o cristianismo cresceu na África subsariana de nove milhões para 516 milhões.

Podemos e devemos refletir sobre o número dos ‘sem-religião’ (ateus, agnósticos), que são 16% (1, 2 bilihão) da população mundial...Há países na Europa (República Checa, Estónia, Dinamarca, Suécia, França e Noruega) em que ulrapassam uma largíssima maioiria populacional.



António Silvio Couto

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Ilusão é má-conselheira

 

Por estes dias foi notícia, mesmo que pouco divulgada: uma feira italiana deixou o hábito religioso para seguir a carreira de cantora. A estória conta-se de forma breve: uma religiosa ursulina da sagrada família, com hábito e tudo, participou num programa televisivo de música. Foi um sucesso e conquistou o público e o júri. Fascinada pelo sucesso dedicou-se a gravar músicas de teor mais profano e, aos trinta e três anos, decidiu largar a condição de religiosa e seguir a música de forma profissional. Por agora sabe-se que é empregada de mesa em Espanha, mas anseia concretizar os seus intentos de cantar o amor à vida…

1. Por que será que mais uma figura do espaço religioso não foi capaz de compreender que o seu ‘sucesso’ se devia não às cantorias bem executadas, mas à condição de ser ‘uma’ freira que cantava? Por que se vê com tanta regularidade pessoas que se deixam iludir pelas luzes da ribalta para além das razões mais subtis da fama, das palmas e da adulação? Não faltará uma gestão de tais pessoas – dados outros exemplos conhecidos – daquilo que as faz correr e não daquilo – mais profundo e intrínseco – que as leva a ser? Atendendo aos casos já passados – em tantas partes do mundo – não seria mais avisado cuidar de que não troque a nuvem por Juno?

2. De facto, o mundo – no sentido mais execrando do termo – sabe como fascinar quem nele entra sem preparação adequada e séria. Se tivermos em conta o tal ‘mundo dos espetáculos’, então, perceberemos como se torna complicado distinguir entre o real e o virtual, entre o que é e aquilo que reluz, entre as lantejoulas e as palmas em comparação com a verdade de tudo se poder, facilmente, desmoronar e reduzir a cinzas…

Embora não seja entendido na matéria de análise a sucessos e a derrotas nesta área, observando outras situações, vi figuras como ‘frei vicente’, a crescer na popularidade e, quando deixou de ter no nome o epiteto de ‘frei’ desapareceu dos escaparates da fama e do desejado sucesso. Que dizer ainda de ‘frei hermano da câmara’ – embora já cantor de outras festas – ganhou projeção quando beneditino e esfumou-se quase logo desde que deixou de pertencer à ordem de São Bento. Outro tanto se poderia referir a cantautores ligados ao mundo eclesiástico da época abrilina, que bem depressa foram deixados de ser tidos em conta quando saíram do espaço eclesial…

3. Dizia alguém com propriedade e sabedoria, no tempo de formação de futuros padres: não penseis que gostam de vós ou vos consideram mais simpáticos ou com mais qualidades por serdes (possivelmente) homens mais bem-parecidos ou interessantes, mas por serdes padres…Esta condição é que vos faz mais ‘apetecíveis’…É complexa a condição humana e, sobretudo, se virmos tantas destas questões pela perspetiva humana e com critérios mundanos.

Se tivermos em conta os exemplos supra citados, essas pessoas perderam qualidades musicais e de espetáculo por deixarem de ocupar uma função religiosa? A dispensa de tal tarefa desfez quem achava que as músicas e cantorias eram interessantes? Certos elogios e aplausos eram sinceros ou enfermavam de interesseirismo?

4. Sem qualquer moralismo barato, tentemos penetrar no âmbito da ‘ilusão’ e como ela pode tornar-se má conselheira, particularmente se quisermos encontrar sinais deste fator de vida para tantas pessoas, podendo servir-nos como autoavaliação no nosso quotidiano. Certamente poderemos reconhecer que a desilusão é proporcional à ilusão e que esta se alicerça em bases pouco consistentes, na medida em que esta pode ser mais fruto da imaginação pessoal e da efabulação alheia, por isso, sem realidade ou roçando a virtualidade. Se tivermos ainda em conta sinónimos de ilusão andaremos pelas franjas da fantasia, da alucinação, do engano, do disfarce, do logro, do engodo…Tudo palavras que, sem nos darmos conta, estão subjacentes a tantos dos nossos artistas ou cantores, vendedores de sonhos, candidatos em programas televisivos… de ontem e como hoje.



António Sílvio Couto

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Hipocrisia dos hipócritas… ressabiados

 

O mundial de futebol sénior-masculino, no Qatar, chegou. Temos visto e ouvido posições de certas figuras, de alguns figurões e de umas tantas figurinhas a pronunciarem-se quanto a questões de não-adequação naquele país… aos ‘valores’ mais conformes à normalidade, referindo erros, ofensas e atropelos aos (ditos) ‘direitos humanos’ e para com grupos protegidos por fações e lóbis no pretenso mundo ocidental.

O responsável máximo da entidade promotora do evento, a FIFA, denunciou a hipocrisia dos europeus, quanto àqueles temas, tendo-se afirmado e assumido como esse a quem os contestadores se consideram protetores e, hipocritamente, querendo impor a sua ‘normalidade’ como regime de aceitação a quem não pensa, age ou vive como eles.

1. Os arautos da boa-fé enviesada do mundo ocidental – prenhe de injustiças, anormalidades e de amoralidades, segundo outros conceitos – querem fazer crer que eles nunca ofendem os direitos humanos. Mas, ao combaterem os outros – que não pensam como eles – com tanta voracidade, não estarão a ser mais ditadores do que aqueles aos quais contestam? Ao querem impor a ‘ideologia de género’ será que usam de respeito para com quem não quer essa mesma ideologia? Ao vestirem certas roupas de marca – numa roupagem de ricos em confronto com os pobres, de verdade – saberão se não foram confecionadas por explorados e mal pagos? Ao envergarem chuteiras vistosas não estarão a ofender quem as fez e não recebeu os salários corretamente devidos?

2. As bolhas de certa esquerda – dialética, marxista e trotskista – invetiva alguns comportamentos, enquanto saboreia lautos almoços/jantares, onde os que os prepararam não terão sido pagos devidamente. Contestam as corridas de toiros, mas ao sabor de lagostas e de caracóis… esses sim, cozinhados vivos! Incentivam a luta contra os combustíveis fósseis, mas à custa de viverem em casas aquecidas com energias mais caras e, possivelmente, subsidiadas por forças não-democráticas. Como se deslocam para as manifestações – voam, caminham a pé ou pedalam para lá chegarem? O problema é sempre o uso daquilo que podia ser de todos, mas só uns tantos os usufruem, mesmo que à socapa e sem que se descubra até onde são, verdadeiramente, hipócritas e mentores de novas hipocrisias…

A ressabiada sugestão de os capitães das equipas nacionais – oito das 32 seleções – ostentarem uma braçadeira com as cores do arco-íris tem tanto de enferma de razões, quanto manipulada por setores ideológicos que usam os ‘seus’ meios para imporem as ideias, sem respeitarem quem não vai na sua linha…

Que se avalie esse famigerado gesto de ajoelhar antes dos jogos… quando o fez Portugal teve mau ou ridículo desempenho! Não é com esse folclore que se combatem os problemas!

3. Agora que rola a bola e faz a delícia da populaça, surgem uns iluminados do ‘nada fazer e só contestar’, pois há quem dê cobertura às manigâncias mal-amanhadas que sempre emergem do lodo fedorento mais ou menos gerido a contento. Por que não olham para os explorados na sua terra? Por que são tão bons a dizer mal e nunca assumem os erros cometidos, em eventos idênticos, quando chamados a realizar?

Segundo dados do comité organizador do ‘euro-2004’, em Portugal, morreram trinta e sete trabalhadores na construção dos estádios… No Qatar, para a construção dos estádios e outras obras do mundial de 2022, houve 6.750 mortos… sobretudo de emigrantes.

Os custos conhecidos globais da realização – estamos no dealbar do evento, naquele país arábico – ascendem a 200 mil milhões e euros… podendo, no final, dar mais de três mil milhões de euros de lucro.

4. Porque não acredito que não haja articulação potestativa de tantas forças em relação ao submundo do mundial de futebol sénior-masculino, no Qatar, é preciso pensar pela própria cabeça e descobrir quem articula esta onda agora tão empolada. Neste como noutros assuntos há lóbis muito fortes que se escondem, mas com um pouco de sageza se pode encontrar tão hábeis mentores… e o de ‘gender’ em particular une pontas de algo que ultrapassa o visível…nem que seja pelo arco-íris a reluzir.



António Sílvio Couto

domingo, 20 de novembro de 2022

Publicidade ao ‘jogo’...em tempos de crise

 


Dá a impressão que, quanto maior é (ou parece ser) a crise, mais agressiva é a publicidade. De facto, temos vindo a assistir a uma difusão crescente, acutilante e inventiva de falar do ‘jogo’ – apostas, máquinas, dinheiro a investir para ganhar – como possível arte de resolver os problemas das pessoas e da sociedade... a diversidade é cada vez mais atrativa, como se os candidatos aumentassem para dar ainda mais lucro.

1. Antes de mais é preciso determinar o que se entende por ‘jogo’. A expressão completa deverá ser entendida como: ‘jogo de apostas’. Consultando a wikipédia encontramos esta definição descritiva: «Um jogo de apostas ou jogo a dinheiro, é a aposta de dinheiro ou algo de valor material (algumas vezes, referido como "os riscos") em um evento com um resultado incerto com a principal intenção de ganhar dinheiro adicional e/ou bens materiais. O termo jogo, neste contexto, normalmente refere-se a instâncias em que tal atividade tenha sido especificamente autorizada pela lei. Nalguns países, a atividade de jogo a dinheiro é legal. A grande maioria dos "jogos de azar" são "jogos de apostas", o que muitas vezes faz com que ambas as expressões sejam vistas como sinónimas».

2. Segundo dados mais ou menos credíveis, nos últimos quatro anos, houve um aumento de 13% de jovens (dos 13 aos 18 anos) a jogarem em apostas desportivas, lotarias e outros jogos de casino, embora os jogos a dinheiro sejam, por lei, interditos a menores de dezoito anos. Há dados – estatísticos e não só – que nos podem fazer refletir. Quem joga na raspadinha? É mulher, ganha até mil euros por mês (embora um terço dos apostadores ganhe até quinhentos euros/mês), tem entre 35 e os 54 anos, a maioria é casada ou vive em união de facto e com o nivel de instrução entre o segundo e o terceiro ciclo. Cinco em cada dez portugueses fazem apostas a dinheiro e a raspadinha é o mais investida... Nas preferências dos (ditos) jogos sociais quem tem a dianteira é o euromilhões, seguindo-se a raspadinha, totobola/toloto, lotarias e placard...

3. Alguns entendidos e estudiosos da matéria consideram que a preferência por certos jogos tem a ver com a tentativa de resposta imediata ao desejo de aumentar as fontes de recursos e mesmo a necessidade de gratificação rápida... Dá a impressão que estamos a pagar a fatura de certas opções de vida e de conduta ética, pois se exalta mais o efeito de ‘querer ser rico’ sem grande trabalho, associando o sucesso mais à preguiça e à sorte do que ao esforço efetivo, consequente e a longo prazo. O aumento da dependência do jogo – de acordo com dados conhecidos – quadruplicou, entre 2012 e 2017, de 0,3% para 1,2%, significando o aumento de 60 mil pessoas, enquanto o vício do jogo duplicou de vítimas, atingindo mais 24 mil portugueses.

4. Numa visão cristã/católica sobre este assunto, que diz o Catecismo da Igreja Católica? «Os jogos de azar (jogo de cartas, etc.) e as apostas não são, em si mesmos, contrários à justiça. Mas tornam-se moralmente inaceitáveis, quando privam a pessoa do que lhe é necessário para as suas necessidades e as de outrem. A paixão do jogo pode tornar-se uma grave servidão. Apostar injustamente ou fazer batota nos jogos constitui matéria grave, a menos que o prejuízo causado seja tão leve que quem o sofre não possa razoavelmente considerá-lo significativo» (n.º 2413). Inserida na explicação do sétimo mandamento da Lei de Deus – ‘não furtar nem injustamente reter ou danificar os bens do próximo’ – e particularmente na secção relativa ao ‘respeito pelas pessoas e seus bens’, esta citação configura uma exigência sobre si mesmo mais do que uma desculpa para cada um fazer o que lhe apetece, como hoje, recorrentemente, se diz ou se desculpa...

5. Não teremos de questionar tantas sugestões de apostas em jogo, num tempo que se carateriza por menos recursos e baixa de rendimentos? A quem interessa difundir este ambiente de ‘sorte-e-de-azar’? Não andaremos a cultivar mais a preguiça do que o trabalho? O maior beneficiário de tudo isto não será a entidade das finanças? Até onde irá o nosso silêncio...cúmplice?



António Silvio Couto

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Poder dos ‘anónimos’ – casos, denúncias e acusações…


 Tem vindo a ser recorrente na configuração das questões mais vulgares ou das complexas, que parece ‘bastar’ uma denúncia anónima para desencadear todo um processo de investigação… Aquilo que antes era considerado um rumor, uma suspeita, uma bisbilhotice, agora, tem foro (ou desaforo) de acusação, seja sobre quem for, tenha o alcance que possa atingir ou a marca que pretenda almejar…

1. Quantos casos – da área política, do espaço económico, da vertente religiosa, da esfera desportiva, do campo da vizinhança, etc. – trazidos a público têm a subtil marca da ‘denúncia anónima’. Será isso um bom serviço aos outros ou uma forma de camuflar algo que pode nem ser tão sério como se deseja fazer crer? Não haverá muitos cobardes a tentarem entalar outros com tais diatribes de circunstância? Até que ponto será credível uma denúncia anónima, sem que se saiba os proponentes? Será justo e correto dar crédito a quem se esconde, podendo cometer injustiças nunca saldadas? Não se tem vindo a exagerar nesta ‘ferramenta’ para trazer para a luz do dia questões, situações ou casos que deveriam ser tarefa das polícias e não de um qualquer bufo sem rosto nem possível credibilidade?

2. Se consultarmos o item para a denúncia anónima, na internet, da polícia vemos as vertentes a preencher: suspeitos, vítimas, data (da ocorrência), local, exposição dos factos (o quê, como, porquê e quando)… tudo campos de preenchimento obrigatório.

Podemos ainda encontrar, na internet, quais os tipos de queixa para a denúncia: ofensa à integridade física, violência doméstica, maus tratos, tráfico de pessoas, lenocínio, furto, roubo, dano, burla, extorsão, danos contra a natureza, poluição, auxílio à emigração ilegal, angariação de mão-de-obra ilegal, casamento de conveniência…

3. Embora seja um assunto específico de legislação podemos encontrar sobre este assunto da ‘denúncia anónima’ algo que diz no Código do processo penal: «A denúncia anónima só pode determinar a abertura de inquérito se: a) Dela se retirarem indícios da prática de crime; ou b) Constituir crime» (artigo 246.º, n.º 6).

Perante isto teremos de aprender a saber estar como cidadãos que se prezam responsáveis e não como fautores de insegurança pública, assumindo as responsabilidades dos seus atos, sem pretenderem uma justiça ressabiada ou mesmo que venha a castigar de forma injusta, imoral ou provocadora de mais criminalidade.

4. Ao vermos a alusão vulgarizada à ‘denúncia anónima’ como uma espécie de querer fomentar algo uma democratização de que todos podem tramar todos, mesmo que se possam esconder nesse estratagema mais ou menos aceite de que ‘denunciado, logo é’ ou ‘pela aparência se julga quem pode fazer-nos sombra’… Há tempos alguém exemplificava que, em certos casos mais mediatizados, quase se pode incluir na lista das prevaricações as denúncias anónimas, mesmo que sem consistência… Repare-se na abrangência de possibilidades na citação supra colocada para preencher os campos da tal ‘denúncia anónima’…desde os pretensos suspeitos até aos possíveis factos aduzidos. O problema parecer confundir-se a ‘denúncia anónima’ com a certeza de que o denunciado é mesmo isso que se pretende que seja…

5. A ‘denúncia anónima’ não correrá o risco de se tornar perjúrio ou difamação? A ‘denúncia anónima’ não andará nas franjas da cobardia, da inveja ou até da baixa ética (moral) dos ressabiados, dos incompetentes e mesmo dos ditadores? A ‘denúncia anónima’ não poderá ser equiparada à traição pela mesquinhez de caráter? Ninguém está a salvo de ser vítima de uma denúncia anónima…sobretudo pela manipulação da justiça e dos pretensos executores humanos!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Sobre os rios da Babilónia…

 



1 Junto aos rios da Babilónia nos sentámos a chorar, recordando-nos de Sião. 2 Nos salgueiros das suas margens pendurámos as nossas harpas. 3 Os que nos levaram para ali cativos pediam-nos um cântico; e os nossos opressores, uma canção de alegria: "Cantai-nos um cântico de Sião." 4 Como poderíamos nós cantar um cântico do SENHOR, estando numa terra estranha?

Este excerto do Salmo 137, 1-4, veio-me mais à lembrança, quando naquela tarde-noite do dia 13 de novembro de 2022, vi chegarem os símbolos das JMJ ao cais da Moita, procedentes do Montijo.
A Cruz e o ícone de Nossa Senhora, que já percorreram imensos lugares, por ocasião das JMJ noutros países, estavam ali, trazendo memórias e vivências, sentimentos e alegrias, gestos e atitudes... enquanto, na expetativa, dezenas de crianças, com adultos à mistura, numa simbiose de fé, de festa e de fazer parte dessa longa multidão de tantos outros que fizeram idêntica vivência aquando do acolhimento dos símbolos... nas suas terras!
Caía a noite e o ‘Boa Viagem’ chegou ao cais. De lá ouvíamos o rufar dos tambores dos jovens de uma associação do Montijo, que tentou suprir o programado para a banda da Moita, algo exigente em meios em vésperas do dia... da margem escutava-se o hino das JMJ 2023, entoado pelos mais novos da catequese... no ar o som e a cor de parcos foguetes, traçando um ar de festa e de alegria, tão comum noutras datas naquele mesmo lugar...
O pico da maré fez adaptar a receção dos símbolos das JMJ à Moita e isso nos pode (ou deve) trazer sinais de reflexão para uma presença do cristianismo neste tempo e neste mundo.

1. Uma luz brilha nas trevas – alumiados os símbolos com archotes podemos caminhar para o lugar da celebração da eucaristia de domingo, acomodada no horário, mas também na significação. Talvez não tenha sido muito habitual, os símbolos chegarem pela noite. Por isso, se notou um tanto a falta de luminosidade, essa que nós, os cristãos, temos de trazer e de levar.

2. Saber viver o momento – daqui a anos, poderemos lembrar-nos que estes símbolos estiveram entre nós e que os recebemos com respeito e dignidade. Aliás, no sopé da cruz foi colocada uma fotografia do bispo D. Daniel Batalha Henriques, recém-falecido e que estava a fazer a ‘negociação’ para que se possa fazer uma manifestação idêntica com barcos no rio Tejo, por ocasião das JMJ, particularmente na semana de 1 a 6 de agosto do próximo ano: a ele confiamos mesmo a sua intercessão, no Céu, para que possamos ter condições de levar a cabo esse projeto…

3. Envolver quem possa participar – numa ação de ir ao encontro os símbolos da JMJ 2023 foram às escolas onde há alunos em idades correspondentes aos participantes nas jornadas – acima dos quinze anos à data da realização das mesmas. Nesta iniciativa de pescar fora do aquário vai mais do que um ato de cordialidade social, é, sobretudo, um desejo de querer fazer diálogo com que possa ser, pata além do público-alvo, um alvo da evangelização dos mais novos, para os mais novos e pelos mais novos, isto é, os jovens. Como se dizia no texto da Conferência Episcopal Portuguesa enviado sobre o sínodo dos bispos: ‘Mais do que pensar qual é o lugar dos jovens na vida da Igreja é preciso perceber que lugar pode ocupar a Igreja na vida dos jovens e, para isso, a Igreja tem que escutar e dar tempo aos jovens’.

4. Abertura e compromisso – a presença dos símbolos da JMJ 2023 – cruz e ícone mariano – são dois sinais bem claros de diálogo entre os cristãos: a cruz sem Cristo abre para uma aceitação e presença aos protestantes, nisso que para eles parece importante e que para os católicos não faz objeção de ritual; o ícone mariano de Nossa ‘Salus populi romani’ permite-nos alguma proximidade aos ortodoxos, por vezes tão avessos às imagens de Nossa Senhora.

Estamos em caminho de peregrinação não só dos símbolos, mas também das pessoas, hoje como ontem!



António Sílvio Couto

sábado, 12 de novembro de 2022

Efeitos de ‘guerra’ nas estradas



Segundo um relatório da autoridade nacional para a segurança rodoviária, até final de julho último ocorreram mais de 18 mil acidentes nas estradas portuguesas, deixando 253 mortos, 1398 feridos graves e 22021 feridos ligeiros. Estes dados comportam algo de preocupante para a segurança de quantos – e somos todos – andam nas estradas, com uma crescente circulação rodoviária, apesar das constantes subidas dos preços dos combustíveis...

1. Com melhores vias de comunicação (estradas, vias-rápidas e auto-estradas) e mais evoluídos veículos de locomoção corremos mesmo assim o risco de não ver diminuir estas dados algo aterradores, só comparáveis a resultados de guerras com armas ultra-sofisticadas. Com efeito, a natureza dos acidentes mais habituais são as colisões (53 %) e seguidos dos despistes (34%). Ainda segundo a entidade citada, os atropelamentos subiram (32%) de forma significativa. De referir também que a sinistralidade nas localidades aumentou quase oitenta por cento em relação a igual período do ano de 2021... A maioria das vítimas mortais (66 %) nos acidentes referidos são condutores...

2. Colocados diante deste diagnóstico assaz tenebroso como que temos de questionar a capacidade de evolução de tantos dos intervenientes em todo este processo de mobilidade e até de mobilização, pois há qualquer coisa que falta na cadeia de vivência cultural, social e humana. Não será que se verifica um desfasamento entre quem conduz – com habilitação creditada – e as condições de tempo e de espaço? Muitos dos ‘nossos’ condutores não passam de agentes do volante e não de sujeitos de presença responsável na estrada e não como meros atores de velocidade sem-rosto nem educação? Não poderemos ser surpreendidos – mesmo em caso de acidente – com atitudes, gestos e ações de certos condutores, que reportámos como pessoas com senso e cordiais, mas que se transformam quando estão com as mãos ao volante e os pés no acelerador?

3. Atendendo a estes dados mais oficiais podemos, de alguma forma, olhar as estradas como verdadeiros campos de batalha, onde escapar com vida como que reveste uma de duas consequências: sorte por não ser atingido por causas tão óbvias e empregar todo o esforço por sair ainda ileso de cada combate (viagem) mais longo ou mais breve… Potencialmente todos estamos sob a mira dessa ‘arma’ fatídica que é o carro em que andamos e de que outros se servem para se deslocarem, seja qual for a intenção, a necessidade ou a ocasião.

4. Numa interpretação adequada às coisas de cada tempo, a Conferência Episcopal portuguesa apresentou, em 2003, uma lista de ‘pecados novos’, numa linha de ‘responsabilidade solidária pelo bem comum’, assim intitulou essa nota pastoral. Na lista apresentada de ‘’novos pecados’ surge a seguinte formulação: «a irresponsabilidade na estrada, com as consequências dramáticas de morte e feridos, que são atentado à vida, à integridade física e psicológica, ao bem-estar dos cidadãos e à solidariedade».

Ao tempo essa formulação colheu de surpresa muitos dos cristãos mais ou menos praticantes e conscientes da necessidade de formarem a sua consciência de acordo com as exigências de cada época. Com efeito, temos de enquadrar a nossa vivência com os outros e em relação a Deus, tendo em conta as diversas matizes de vida e nas facetas mais diversas e conflituosas.

5. Excessos de velocidade, desconformidade dos veículos em circulação, desrespeito pelas regras do código da estrada, abusos e não-cumprimento como peões, estacionamento sem cuidado, uso ou abuso de meios eletrónicos na condução, falta de cuidado para com os outros condutores… e tantas outras situações – que cada um conhece e transgride – podem ser pequenos ajustes para fazer, de cada um de nós, um potencial assassino, nas coisas relacionadas com a estrada… e não é preciso que haja policiamento nem multas.

A ‘guerra’ está aí, saber vencê-la é tarefa de cada dia, sem nunca estar vencida, pois, à mínima distração podemos pagar as consequências em nós e para com os outros!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Possíveis condescendências perniciosas

 


Já foi algo de grande expressão em todo o mundo,.. em Portugal vem decaindo aos poucos e em solavancos. Foi uma força de sucesso e criou impérios... por cá ainda tem resistido às mudanças sócio-económicas. Usou métodos de perseguição com milhões de vítimas... e no nosso país governou em muitos lugares por décadas. Desapareceu da maior parte dos parlamentos europeus e por cá está quase reduzido ao mínimo. Foi abjurado em muitas sociedades ocidentais, mas no nosso país parece gozar de simpatia, de condescendência e de uma tal tolerância que se pode confundir a opção com a militância...

1. Possíveis sinais quanto à conduta interior deveriam -- ao comum dos mortais - fazer-nos refletir seriamente quanto aos métodos ‘democráticos’ usados. Se fosse noutras agremiações seriam possivelmente combatidos, mas lá não há contestação, nunca se conhecem (possíveis) correntes de pensamento de tal modo é uniforme, ao menos para fora.

Pequenos espaços de luta e de combate emergem quando chegam, numa contestação que arrasta outros na onda, mas não se percebe no seu interior. A construção do pensamento uniformizado parece ser ainda piramidal, numa anulação de quem pense (se pensa) de forma diferente.
Problemas de linguagem e de terminologia usada fazem-nos recuar ao tempo da ‘revolução industrial’ do século dezanove, num discurso mais fossilizado do que adequado à configuração histórica dos tempos digitais e nem a insistência consegue cativar os mais incautos e iletrados.

2. A condescendência é de tal forma reconhecida e aceite que muitos (ditos) católicos tentam harmonizar as suas ideias com os ideais propostos, numa espécie de simbiose de crenças quanto a uma sociedade mais fraterna, tendencialmente justa, embora com resquícios de que, quem faz parte da nomenclatura, tem regalias que outros nunca beneficiarão... Com que facilidade há quem vote sem questionar as ideias, mesmo que os contextos socioculturais já tenham mudado desde quando eram jovens.
A conjuntura mundial tem vindo a mudar, no entanto, as posições oficiais não olham aos fins para continuar nos mesmos objetivos... Nem o fim de uma certa era conseguiu fazer entender o descalabro ideológico.

3. São perniciosas as consequências de não sabermos entender as mudanças... pessoais, sociais e, particularmente, culturais. Não deixa de ser questionante que haja ainda jovens atraídos pela roupagem – e não é só o vestir quase exótico de outras paragens – de tais forças. O erro histórico da fixação em certos clichés poderá trazer outros revivalismos, mesmo que combatidos no antagonismo do espetro ideológico.
São perigosas as misturas até com cores clubísticas, aferrando à atualidade aquilo que era esotérico em maré de outras governações... Mais uma vez parece que a confusão serve quem tenta ludibriar ou enganar-se. = Perante estas possíveis condescendências perniciosas temos de denunciar, de informar e, sobretudo, de pensar pela própria cabeça, enquanto vamos a tempo!





António Silvio Couto

domingo, 6 de novembro de 2022

Da competência à meritocracia

Talvez seja algo que não se vê nem seja promovido devidamente em muitas das nossas instâncias sociais, económicas, políticas, religiosas… e culturais. Pelo contrário vê-se, em larga escala (e escalada), a pulular o nepotismo, o clientelismo, o pagamento de favores (de forma explicita ou tácita), a incompetência, a luta de protagonismo… sem capacidade para os postos desejados.

Porque acredito mais na competência do que no mero oportunismo. Porque creio mais no mérito do que na esperteza ao desbarato. Porque espero confiadamente numa sociedade onde quem mais presta, melhor serve, ouso colocar algumas pistas de questionamento…sem rede nem filtros:

1. Duas considerações prévias: vivemos uma crise de liderança e são cada vez menos aqueles/as que aceitam que a sua vida seja exposta quando colocados em lugares de poder. Se atendermos ao último meio século – desde 1970 – da nossa história recente poderemos constatar como foi decrescendo a qualidade dos líderes políticos, sociais, económicos ou mesmo religiosos/católicos. Vejamos exemplos: Helmut Kohl, François Mitterrand, os vários Bush’s, Margaret Tatcher, os ‘fundadores’ de democracia em Portugal (Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal, Adriano Moreira (recém-falecido com mais de cem anos) e seus sequazes; investidores na economia, como Belmiro de Azevedo, Soares dos Santos, Salvador Caetano, Rui Nabeiro (ainda vivo); pensadores das questões sociais, com diversos sindicalistas ou mentores na linha da doutrina social da Igreja, tais como Manuela Silva ou Alfredo Bruto da Costa; e na linha eclesial como não recordar bispos, sobretudo, do pós-25 de abril e com intervenção lúcida, incisiva ou provocatória, como D. Manuel Almeida Trindade, D. António Ribeiro, D. Manuel Martins, D. Eurico Dias Nogueira ou D. João Alves… Isto já para não referir, por excelência, os papas, João Paulo II, Bento XVI ou Francisco. Todos, de uma forma ou de outra, somos devedores a estes líderes que foram consolidando a consciência de fé, a reflexão de vida e o compromisso ainda fosforescente.

2. E agora que temos naqueles como noutros campos de intervenção? Alguns arranjos de cozedura mal-amanhada, muitas vezes sem chama nem crepitação, parecendo mais devedores de quem os colocou no posto do que influenciadores a partir das qualidades que os fizeram ser figuras com autoridade e não meros ocupantes de postos de poder. Muitos dos substitutos daqueles que elencamos anteriormente não passaram de arremedos de incompetência, joguetes de forças obscuras e, por não dizê-lo e assumi-lo, tornando-se a ponta de algum icebergue à deriva num mar de interesses nem sempre explícitos. O pior é que quase todos veem isso nos outros e não conseguem detetá-lo nas suas condições mais básicas. A teoria do ‘espelho’ só serve para se enganarem e não para se avaliarem com verdade, serenidade e sem-presunção.

3. De entre os campos mais suscetíveis de concretização desta análise entre a mediocridade e a competência, entre o arranjismo e a meritocracia, entre o ‘não faças o que eu faço’ porque só tens a perder é a instância das forças autárquicas… câmaras e juntas de freguesia, com tudo o que lhes está adstrito pela conveniência e a oportunidade. De vez em quando emergem casos de conluio especulativo na esfera do poder autárquico, numa mistura que exige – nítida e simplesmente – grande capacidade de discernimento entre o possível, o razoável e o complexo de situações, de possibilidades e mesmo de manipulação…

O lóbi do betão já fez obra noutras épocas, depois vieram vários outros setores onde quem está no poder tenta não o deixar escapar, pois, para além da perda de protagonismo, pode hipotecar o futuro (risonho, de sucesso ou de travessia no deserto) do partido e até da família.

4. Quando surgirão servidores do povo sem quererem vender a imagem e não o ideal? Quando teremos homens com verdade, justiça e construtores de paz? O mérito promove a competência… sempre e com dedicação altruísta, simples e leal. Voltem os que sabem ter autoridade sem poder!



António Sílvio Couto

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

6.º ‘dia mundial dos pobres’

 

Por ocasião do trigésimo terceiro domingo do tempo comum (13 de novembro), a Igreja católica celebra o ‘dia mundial dos pobres´ – na sua sexta edição – e sob o tema: «Jesus Cristo fez-se pobre por nós (2 Cor 8,9)», tendo como objetivos, segundo as palavras da mensagem do Papa: ‘como uma sadia provocação para nos ajudar a refletir sobre o nosso estilo de vida e as inúmeras pobrezas da hora atual’.

Respigamos excertos da mensagem do Papa Francisco… colocando breves questões:

1. «Há alguns meses, o mundo estava a sair da tempestade da pandemia, mostrando sinais de recuperação económica que se esperava voltasse a trazer alívio a milhões de pessoas empobrecidas pela perda do emprego... Mas eis que uma nova catástrofe assomou ao horizonte, destinada a impor ao mundo um cenário diferente... A guerra na Ucrânia». Empobrecidos pela doença, tudo é agravado pela guerra...
2. «Quantos pobres gera a insensatez da guerra!... Como dar uma resposta adequada que leve alívio e paz a tantas pessoas, deixadas à mercê da incerteza e da precariedade?» Novos pobres num sem-razão e quase irracionalidade...
3. «Também nós, cada domingo, durante a celebração da Santa Missa, cumprimos o mesmo gesto, colocando em comum as nossas ofertas para que a comunidade possa prover às necessidades dos mais pobres». Será claro e percetível que a recolha económica na missa, por ocasião do ofertório, é para os pobres e não para as despesas das igrejas?
4. «Os povos que acolhem têm cada vez mais dificuldade em dar continuidade à ajuda; as famílias e as comunidades começam a sentir o peso duma situação que vai além da emergência». Dá a impressão que somos razoáveis a responder às desgraças, mas com facilidade nos acostumamos aos sinais de miséria, mesmo a mais gritante..
5. «A solidariedade é precisamente partilhar o pouco que temos com quantos nada têm, para que ninguém sofra. Quanto mais cresce o sentido de comunidade e comunhão como estilo de vida, tanto mais se desenvolve a solidariedade». Tem sido profícuo o papel de grande parte da comunicação social em gerar ondas de solidariedade, que não podem sobreviver com gestos esporádicos, mas numa organização consistente e fraterna.
6. «A generosidade para com os pobres encontra a sua motivação mais forte na opção do Filho de Deus que quis fazer-Se pobre». Jesus fez-se pobre, não numa encenação de faz-de-conta, mas assumindo as consequências de ser pobre com os mais pobres... Já teremos entendidos esta profecia de Jesus?
7. «Devemos refletir, sim, sobre o valor que o dinheiro tem para nós: não pode tornar-se um absoluto, como se fosse o objetivo principal. Um tal apego impede de ver, com realismo, a vida de todos os dias e ofusca o olhar, impedindo de reconhecer as necessidades dos outros». Numa cultura alicerçada no ‘ter’ e no ‘mostrar que tem’, urge refletir sobre o nosso sincero relacionamento com o dinheiro e quanto ele significa de posse e de possessivo.
8. «A experiência de fragilidade e limitação, que vivemos nestes últimos anos e, agora, a tragédia duma guerra com repercussões globais, devem ensinar-nos decididamente uma coisa: não estamos no mundo para sobreviver, mas para que, a todos, seja consentida uma vida digna e feliz. A mensagem de Jesus mostra-nos o caminho e faz-nos descobrir a existência duma pobreza que humilha e mata, e há outra pobreza – a d’Ele – que liberta e nos dá serenidade». Temos os dados para escolher: a pobreza que mata ou a pobreza, como a de Jesus, que liberta e nos ajuda a libertar-nos das armadilhas da inquietação e da superficialidade.
9. «Se Ele [Jesus] Se fez pobre por nós, então a nossa própria vida ilumina-se e transforma-se, adquirindo um valor que o mundo não conhece nem pode dar. A riqueza de Jesus é o seu amor, que não se fecha a ninguém mas vai ao encontro de todos, sobretudo de quantos estão marginalizados e desprovidos do necessário». Não é por acaso que a primeira das bemaventuranças nos situa na compreensão do que é ser pobre... à maneira e como Jesus.
10. «Não desprezemos os pobres, os humildes, os operários; são não só nossos irmãos em Deus, mas também os que mais perfeitamente imitam a Jesus na sua vida exterior. Eles apresentam-nos perfeitamente Jesus, o Operário de Nazaré». Esta citação, na mensagem papal, de Carlos de Foucauld, recentemente canonizado pelo Papa Francisco, comporta um desafio: os pobres são nossos irmãos, sempre!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Aos estimados seminaristas

Nos tempos que correm estamos sob a mira da exigência e os responsáveis da Igreja católica sentem-no, sabem-no e aceitam-no. Há, no entanto, um grupo muito específico que, creio na minha intuição, está ainda mais sob a alçada da voragem exigentista: os seminaristas, isto é, aqueles que se preparam, no seminário, para ordenação sacerdotal a curto ou a médio prazo.

Porque estamos na ‘semana dos seminários’ vou dedicar alguma atenção a este essencial setor da Igreja.

1. Tendo por tema – ‘não te envergonhes de dar testemunho de Cristo’, a semana dos seminários pretende «hoje, apelar aos mais jovens para que sejam testemunhas alegres e corajosas de Jesus Cristo e do seu Evangelho. .Afirmar a fé sem medo ou vergonha, dispor-se a levar a Palavra de Cristo a todos os lugares e ambientes, sendo missão de todos os cristãos, constitui um desafio dirigido especialmente aos jovens. Para alguns, a descoberta desta missão é de tal modo decisiva que se concretiza numa vocação de consagração de toda a vida», lê-se na mensagem da comissão episcopal das vocações e ministérios.

Refere ainda a mesma mensagem que «no atual contexto social e cultural, qualquer função educativa é exigente, mas a preparação dos padres do futuro, capazes de corresponder às necessidades de uma
Igreja em renovação e de um mundo em mudança acelerada, não deixa de ser uma causa nobre e estimulante. Não se pode esquecer ainda o relevante contributo de tantas pessoas que têm parte ativa no processo formativo dos Seminários: professores, colaboradores vários, famílias, comunidades cristãs, incluindo o papel decisivo dos presbitérios».

2. Lidas estas indicações creio que será de utilidade eclesial perceber as implicações de formação desses que serão mais cedo ou mais tarde os ministros da Igreja entre o povo de Deus. Desde logo a palavra ‘seminário’ vem de ‘semente’ (sémen), isto é, esse é um local onde se cuida de semente da vocação à vida em sacerdócio ministerial. Atendendo às condicionantes atuais – ‘sociais e culturais’, como diz a mensagem citada – é de grande exigência haver uma seleção (discernimento, avaliação e depuração) de quem frequenta o seminário. Nunca houve facilitações, muito menos agora se pode baixar a guarda nem abrandar a grelha do crivo… e nem o decréscimo do número pode inferir ou interferir na qualidade!

3. A maior parte dos seminaristas chega ao seminário já no tempo de juventude, no mínimo cerca dos vinte anos, portanto, com uma personalidade já estruturada minimamente. Quantos são mesmos mais velhos com experiência de vida de algum tempo de trabalho ou com cursos noutras áreas. Talvez possa acontecer que provenham de regiões ou de famílias sem prática religiosa cristã. Nalgumas situações podem ter sido movimentos religiosos ou vivências espirituais que os cativaram e os ajudaram a questionar o chamamento à vida do sacerdócio ministerial…

Pela minha parte cheguei ao seminário com dez anos e lá vivi quase década e meia, num tempo em que havia muitos seminaristas procedentes dos meios rurais, com alguma instrução religiosa em família, de paróquias com religiosidade social e num ambiente algo propício à aceitação de vir a querer ‘ser padre’. Talvez hoje não seja tão fácil – sobretudo em certos meios e em espaços menos aferidos à fé cristã – essa razoável conformidade em declarar tal vontade de tornar-se padre…

O risco de terem terminado os seminários menores – espaços de estudo, de aprendizagem, de convivialidade e de amadurecimento humano, afetivo e espiritual…por ocasião da adolescência – como que cavaram um certo fosso naquilo – com todos os perigos e possibilidades – que era um acrisolar de bons cristãos com valores bebidos na fonte de uma cultura com princípios de índole católica.

4. Aos que hoje trabalham afanosamente na formação dos seminários deixo o meu mais sincero reconhecimento, na medida em que estão a cinzelar os futuros padres com amor, carinho e dedicação. Àqueles que hoje são formados suplico de Deus a maior disposição interior e exterior para que saibam corresponder às expetativas que recaem sobre eles, por forma a serem padres cultos, santos e sãos…



António Sílvio Couto