Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quarta-feira, 29 de junho de 2022

Parlamento nem de marretas?


Há dias, numa conversa de rua, entendi que se nota – três meses depois de ter iniciada a nova legislaura – alguma apreensão sobre o que nos vai tocar em sorte nos (possíveis) anos de reinação da nova maioria parlamentar: são muitos e muitas, mas falta nitidamente um projeto; são mais do que o resto, mas não se percebe claramente para onde vamos; ganharam nos votos, mas não sabem eficazmente o que fazer com a vitória... Veio-me, então, à lembrança enquadrar a interpretação destes factos e episódios com o recurso à série icónica dos anos setenta: ‘os marretas’. Expliquemos os figurinos e tentemos enquadrá-los nos personagens hodiernos.

1. ‘Os marretas’ é uma série de televisão norte-americana criada, em 1976. Intitulada originalmente ‘The Muppet Show’, tinha por cenário um teatro de "variedades/entretenimento" onde atuavam bonecos à maneira de ‘robertos’ de feira à portuguesa, que eram comentados dois velhos rezingões instalados nos camarotes. Entre os marretas, contavam-se ‘Gonzo’, um estranho animal de bico curvo; o urso ‘Fozzie’, cuja imagem de marca eram as piadas infelizes; e os mais famosos: o sapo ‘Cocas’ (o contrarregra do teatro) e a porca ‘Miss Piggy’... Estes formavam como que um par romântico: ela tinha um fraquinho por ele, mas ele fugia dela a sete pés. Em todos os episódios, havia um convidado de carne e osso, tendo passado pelo programa diversos artistas famosos dos EUA. A série estreou, em Portugal, na televisão estatal, em março de 1979, tornando-se um clássico da televisão... e do imaginário de quantos viveram esses tempos.. em maré revolucionária!

2. Quem encontraríamos no espetro socio-político para fazermos corresponder a alguma das ‘figuras’ dos ‘marretas’? O ‘sapo cocas’ corresponderia a quem? A ‘miss pigg’ colava em quem? Os velhos rezingões eram assumidos por quem? O das piadas sem nexo nem conteúdo daria a tarefa a qual dos governantes ou mesmo parlamentares?

A nossa democracia não parece um desses espetáculos dos ‘marretas’, onde os convidados se adequam mais à tarefa de serem populares no desempenho do que na boa (ou sofrível) prestação em favor dos outros, que neles votaram e em que minimamente confiaram? Não se nota algum resquício de teatro gil-vicentino – da velha e nunca acabada capacidade de corrigir os costumes pela ironia e o humor – naquela série de índole anglo-saxónica?

3. Ao tempo em que foi exibida a série dos ‘marretas’, a popularidade dos artistas era medida pela prestação dada. Outrossim aconteceu, no nosso país, quando reinou a ‘contra-informação’ – um pequeno programa com cenas da vida política e arremedos jocosos dos intervenientes – entre 2007 a 2010... fazer parte dos bonecos era uma espécie de barómetro de popularidade. Faz-nos falta algo idêntico – com educação, capacidade crítica e pertinácia – nos nossos dias, pois com tanto disparate bom seria não deixar escapar ao menos para que os ‘retratados’ se corrigissem!

4. Se pesquisarmos quais as profissões dos deputados portugueses na XV legislatura (2022) teremos o resultado mais comum e transversal: jurista – 61; professor – 45; economista – 20; engenheiro – 19; técnico superior – 8; gestor – 7; psicólogo – 6; empresário – 6; sociólogo – 5; consultor – 5.

Será que no parlamento estão os melhores da nação ou os mais oportunistas nos partidos, seja qual for a bancada? A maioria reinante já terá atingido o nível cultural dos ‘marretas’, tanto nas intervenções (nível de QI), como nas atuações (nível QE) mais elementares? Tantos e tantas eminências pardas acrescentarão algo à resolução dos problemas mínimos?

5. Neste teatro da vida é preciso mais do que saber representar, estar atento e ensaiar cuidadosamente, pois poderão surgir novos protagonistas e os de serviço serão relgados para fora do palco. Assim aprendêssemos com os ‘marretas’!



António Silvio Couto

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Chama-lhe, antes que te chame…

 


Numa discussão de rua podemos registar duas filhas e duas mães, dirimindo contendas do foro familiar, social e até pessoal. Dizia uma mãe à filha: chama-lhe (um impropério não reproduzível aqui), antes que te chame…algo que possa ofender a tua honra ou honorabilidade. Embora umas e outras estivessem no mesmo patamar moral/ético, quanto ao passado e mesmo em relação ao presente, quem ofendesse primeiro tomava a dianteira de acusar com quem se dirimia…

Entre muitos ‘casos’ que podiam aqui ser elencados, colocamos os acontecimentos mais recentes por ocasião da morte de uma criança, em Setúbal, como um desses nós de marginalidade e um possível elo de uma cadeia menos visível aos olhos mais incautos ou distraídos.

 1. Muito para além do caso da criança que morreu – talvez se deva considerar que foi morta – pelas mais diversas razões, não deixou de ser inquietante ver, observar e analisar as reações: muitos/as do que reagiram de forma desabrida, onde andavam quando a criança estava viva e sofria de menos bons tratos? Não terão negligenciado as condições para agora virem contestar as consequências? Todo o aparato – gritaria, ofensas e barulho – será o arrebato da consciência acordada pelos efeitos de tantos silêncios cúmplices e quase-acobardados? Até onde irá esta onda de reação e não de prevenção, em tantos casos idênticos e não-declarados?

 2. A comunicação social encarregou-se de desenterrar outros casos mais ou menos recentes e onde podemos constatar que ainda não aprendemos nada com os sucessivos momentos trágicos que têm envolvido crianças. Parece haver um país subterrâneo que emerge de vez-em-quando para nos recordar que há crianças em perigo – muitas mais do que seria desejável – de segurança, sem laços de afeto e, sobretudo, que se continua a reproduzir uma pobreza que é mais moral do que económica… mais humana do que de condições da habitabilidade… mais entendível na perspetiva da relação com o divino do que na harmonização social ou cultural! Com efeito, quando Deus é colocado fora da educação de tantas pessoas, que se poderá esperar, agora e num futuro próximo? 

 3. A fazer fé naquilo que foi noticiado, as causas que levaram à morte daquela criança, em Setúbal – entre um ato de bruxaria (com um valor referido de quatrocentos euros) e a possível vingação, passando pela negligência familiar e dos serviços estatais – estamos perante um quadro humano, cultural e ‘religioso’ de alguma complexidade, pois corremos o risco de misturar vários vetores, onde a ignorância pontifica e deixa pouco (ou nenhum) espaço para reformular as causas, remediar as consequências e modificar a curto-prazo o que podia ser diferente e preventivo para o futuro.

 4. Nesta como em tantas outras situações podemos ver a fragilidade dos laços familiares, onde as crianças e os mais velhos são os elos mais fracos da cadeia de relações humanas, tornando estes setores fulcrais da sociedade os elementos quase-descartáveis, silenciados e varridos da preocupação dos ainda ativos na condição de trabalho. Efetivamente os conceitos de produtividade entram na mentalidade dos nossos dias, excluindo os mais novos que estão fora dos mecanismos de rendimento e os mais velhos chutados para fora desse mesmo processo…uns e outros estão nas franjas daquilo que poderíamos considerar uma cultura materialista prática e acintosamente criadora de marginalidades…

 5. Interpretando o título deste texto – chama-lhe, antes que te chame – deixo um breve elenco de algumas das caraterísticas da nossa sociedade: somos egoístas no pensar e no agir; vivemos como interesseiros assumidos ou presumidos; favorecemos mais a exclusão do que a inclusão; guetizámos muitas das franjas sociais; produzimos e reproduzimos marginais e marginalizados; lançamos sementes de promiscuidade que darão frutos de maior amoralidade; vendemos processos sociais centrados nas coisas materiais mais ou menos declaradas… Desenterremos Deus e Ele nos fará perceber o ridículo em que temos andado!

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Saúde, educação e justiça…a caminho do colapso

 

A perfazer três meses de funções, o XXIII governo constitucional parece abrir – ou será a continuar? – fissuras, sobretudo nestes três campos de atividade: saúde, educação e justiça, se bem que outros, como a segurança (conflitos e distúrbios) e o ambiente (seca) também manifestem problemas mais ou menos visíveis e a exigirem solução a curto prazo…

1. Depois do acrisolamento da pandemia, a saúde está nas notícias com engulhos na questão das maternidades, particularmente nas urgências dos principais hospitais. Aquilo que costumava ser relatado no tempo de verão, em razão das férias e da deslocação das pessoas para regiões de maior procura, surgiu por ocasião dos ‘santos populares’ – dose só de Lisboa – e com graves atropelos às mínimas condições de atendimento. Como de costume vieram as acusações de falta de profissionais, a desarticulação entre o público (apelidado de ‘serviço nacional de saúde’) e o setor privado, os baixos vencimentos naquele e a fuga para este…no abrir de um livro de reclamações sempre disposto a ser lido, mas nem sempre a ser corrigido…
Fazendo jus ao apelido a titular da pasta da saúde parece ter o futuro tremido, em razão das oposições que fervilham no partido onde entrou de forma tão solene e aclamada! Quem suportou as agruras da pandemia parece sucumbir aos atritos de conveniências e de intrigas!

2. Que dizer de escolas onde ainda faltam professores e estamos no final do ano letivo? A fazer na fé nos números dos sindicatos cerca de trinta mil alunos acabaram o segundo período letivo, a faltar, pelo menos, um professor. À ausência de docentes junta-se a míngua de funcionários, as turmas sobrelotadas e as escolas degradadas. Mas o que mais acrescentou de conflitualidade parece ter sido a descentralização de competências do setor da educação do governo para as autarquias, a partir do passado dia 1 de abril. Sem questionar o processo de ensino-aprendizagem nota-se que a qualidade de instrução e de educação tem vindo a decair, estando prestes a bater no fundo bem profundo…
Chegados à época de prestação de provas – exames e não só – temos de levar a julgamento quem afunilou o ensino para a sua estatização e andou a vender sonhos de todos serem doutores ou engenheiros…
O titular da pasta entrou com grande empenho, não sairá depois de ter feito algo mais do que semear cizânia ideológica?

3. O campo da justiça é algo de quase surreal, pois vemos, numa mistura confusa, casos e questões, processos e julgamentos… réus e vítimas … advogados, procuradores e juízes
A média de duração das execuções cíveis (questões laborais, insolvências, processos crime-inquérito, processo crime-julgamento, recursos de contraordenação/transgressões) era, em 2021, de sessenta meses (cinco anos), com a fasquia mais alta (77 meses) em Santarém e a mais baixa (23 meses) nos Açores… Em seis anos – de 2016 a 2021 – subimos de 45 meses para os tais 60 meses…O morosidade da justiça não será já uma forma de injustiça? Isto para não falar das custas da mesma justiça, onde se nota, perfeitamente, que há uma para ricos e outra bem diferente para os pobres…
Considerado um vetor fundamental das democracias ocidentais – com a separação de poderes em relação ao legislativo e ao executivo – o mundo judiciário mais parece uma densa floresta, onde, quem nela entra, dificilmente sai incólume ou sem marcas…
Quase sempre o titular da pasta da justiça é alguém de grande competência, mas quase passa sem dele (ou dela) se dar conta, desde que não cometa erros demasiado ostensivos!

4. Sobre os dois setores supra anunciados – segurança e ambiente – estão a emergir para a conflitualidade, pois os distúrbios nas ruas começam a dar que falar e a seca – falta de água – em todo o território vai exigir mudanças de comportamentos, bem como medidas a curto prazo.
Quem pensava que iriam ser rosas, num governo de maioria absoluta, os espinhos são mais do que seriam desejáveis, já e no futuro próximo!

António Sílvio Couto

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Atos de imitação à revelia ou como rebeldia?

 


Meia-volta vemos surgiram nas redes sociais e em fotos de celebrações imagens de liturgias onde o enquadramento das ditas tem mais roupagem do passado do que do presente, seja na forma ou no conteúdo. ‘Missa em latim’ segundo o rito tridentino, pessoas – nalguns casos crianças na primeira comunhão – a comungar de joelhos e na boca, altares decorados com meia dúzia de velas, padres de costas para a assembleia, roupas e rendas do século dezanove, adereços para-litúrgicos de antanho… são alguns dos exemplos de atos de imitação de liturgias de outras épocas que podem e devem ser questionadas.

Embora seja um tema delicado – porque denota uma razoável desunião entre os católicos – vamos tentar abordar aspetos que possam esclarecer e situar na comunhão da mesma fé, tanto professada como celebrada.

 1. A quem interessa a missa tradicional em latim: aos celebrantes ou aos outros fiéis? Quais as regras para poder celebrar missa segundo esse rito? Haverá algo de rebeldia ou de rebelião em quem assim faz a missa? Este nicho de católicos são mais velhos ou há também (ou sobretudo) novos? Algum do ‘saudosismo’ da missa em latim não revelará incapacidade de saber ver os sinais dos tempos atuais, refugiando-se num passado sem regresso e quase inviável? Saberão ‘latim’ suficiente para além do escrito e talvez mal pronunciado? Numa palavra: Deus – da glossolalia do Pentecostes – só entenderá latim, quando O celebramos liturgicamente?   

 2. Com data de 16 de julho de 2021, o Papa Francisco publicou uma Carta apostólica em forma motu próprio ‘Traditionis custodes’ sobre o uso da liturgia romana anterior à reforma de 1970, decorrente do Concílio ecuménico do Vaticano II. Eis alguns excertos (dos oito artigos) dessa carta apostólica.

«Na senda da iniciativa do meu venerado antecessor Bento XVI de convidar os bispos a uma avaliação
da aplicação do Motu Proprio Summorum Pontificum [2007], três anos após a sua publicação, a Congregação para a Doutrina da Fé levou a cabo uma ampla consulta aos bispos no ano 2020, cujos resultados foram ponderadamente considerados à luz da experiência adquirida nestes anos.  Ora, tendo em conta os desejos formulados pelo episcopado e ouvido o parecer da Congregação para a Doutrina da Fé, desejo com esta Carta Apostólica prosseguir mais ainda na procura constante da comunhão eclesial».
- Os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano.
- Ao bispo diocesano compete regular as celebrações litúrgicas na sua diocese… é da sua exclusiva competência autorizar o uso do ‘Missale Romanum’ de 1962 na sua diocese, seguindo as orientações da Sé Apostólica.
- O bispo, nas dioceses em que até agora haja a presença de um ou mais grupos que celebram segundo o Missal anterior à reforma de 1970... verifique que esses grupos não excluam a validade e legitimidade da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II; haja um lugar ou mais lugares para a celebração eucarística, mas não nas igrejas paroquiais; as leituras sejam em língua vernácula; o sacerdote delegado do bispo tenha conhecimentos de língua latina; seja avaliada a utilidade de tais celebrações para a vida espiritual dos fiéis.
- Os presbíteros ordenados após a publicação do presente Motu proprio, que pretendam celebrar com o ‘Missale Romanum’ de 1962, devem dirigir um requerimento formal ao Bispo diocesano.
- Os presbíteros que já celebrem segundo o ‘Missale Romanum’ de 1962, requererão ao Bispo Diocesano licença para continuar a valer-se dessa faculdade.

 3. Dá a impressão que circula (ou será vegeta?) por aí – para além do desconhecimento deste documento do Papa – algo mais do que devoção e/ou saudade do antigo. Certas atitudes de culto ao antigo soa a remoque de quem não quer ser fiel à Igreja, mas antes se contenta com seguir os ‘gostos’ – duvidosos, diga-se – mais de teor individualista do que comunitário e sinodal. Valerá a pena recordar o que nos disse o Concilio Vaticano II, no documento sobre a liturgia: «as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é sacramento de unidade» (Sacrosantum Concilium, 107)…

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Ainda iremos a tempo?

 

Por vezes há situações, momentos, casos, episódios, vivências… que, por serem únicos e irrepetíveis, fazem com que a mais pequena falha possa como que tornar-se irreparável.
Por vezes há pessoas que quase se escandalizam, quando me ouvem dizer: esta pode ser a última páscoa ou o último natal; este momento (de um aniversário, de uma festa, de um encontro, etc.) poderá tornar-se algo que pode deixar marcas, pela negativa, se eu estiver ausente…

1. Contaram-me, há dias, que uma determinada família ‘faltou’ ao almoço de páscoa dos ascendentes… e isso foi o último de todos reunidos. Trocaram o evento – simples e talvez sem grande significado noutras circunstâncias – por um jogo de futebol dos descendentes mais novos, que ocorreu na mesma data… Só que um dos membros da família, entretanto, faleceu e aquele que poderia ter sido mais um almoço de páscoa em família, tornou-se no derradeiro…sem todos! Não consegui perceber o que isso significou para os mais novos, mas, quanto aos mais velhos, fui entendendo – ainda antes do falecimento – que estava feita uma mágoa, espetada uma ferida e, porque não, algo espinhoso de interpretar… a curto prazo!

2. Lemos nas Escrituras Sagradas:
«1 Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu:
2 tempo para nascer e tempo para morrer,
tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou,
3 tempo para matar e tempo para curar,
tempo para destruir e tempo para edificar,
4 tempo para chorar e tempo para rir,
tempo para se lamentar e tempo para dançar,
5 tempo para atirar pedras e tempo para as ajuntar,
tempo para abraçar e tempo para evitar o abraço,
6 tempo para procurar e tempo para perder,
tempo para guardar e tempo para atirar fora,
7 tempo para rasgar e tempo para coser,
tempo para calar e tempo para falar,
8 tempo para amar e tempo para odiar,
tempo para guerra e tempo para paz»
(Eclesiastes/Qohélet 3,1-8) .

3. Com a velocidade com que a maior parte das pessoas vive parece que nem se dá conta destas circunstâncias de vida, podendo passar ao lado de momentos importantes e/ou valorizar o que, noutras visões, poderia ser secundário. Efetivamente neste ponto temos de ter critérios e valores ou cairemos num pântano sem nada que nos faça aferir para além dos nossos (mesquinhos) interesses de ocasião. O tempo – como diz a sabedoria popular – é o melhor mestre de vida e cura tudo!

4. Sem qualquer pretensão moralista, ouso deixar um básico critério de conduta: as pessoas são o mais importante! De entre as pessoas a beneficiar com a minha preferência deverei ter em conta as mais frágeis e debilitadas… Foi assim que nos ensinou Jesus e a Igreja católica sempre nos educou. Por que teremos bifurcado destas orientações? Não será porque Deus capitulou na nossa vida – alguns chamar-lhe-iam vidinha – e agora andamos à deriva, até de nós mesmos?
Queira Deus permitir irmos ainda a tempo! Comecemos hoje, pois amanhã já poderá ser tarde!

António Sílvio Couto

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Recauchutagem das ‘marchas-populares’... de lisboa e não só

 


Apresentado como um ‘produto’ de matiz popular, as (ditas) marchas voltaram ao serão na véspera de S. António. Proposto como marca dos (ditos) santos populares, as tais marchas ocupam horas e horas de televisão (estatal, isto é, paga pelos impostos de todos), impondo ao país uma pretensa forma ‘cultural’ das franjas (ou bairros) da capital, que emergem como submundo de uma tradição bem mais retrógada – meados do século passado – do que aquilo que pretendem impingir nalguma democratização não-pedida e talvez nem sempre desejada.

Alguns laivos de encanto – de politicos e de ‘intelectuais’, de artistas e de concorrentes, de residentes ou de turistas – deixam um pouco a desejar sobre a seriedade de tudo isto e da convicção com que aparecem... mais como figurantes do que como intérpretes...

1. Vejamos uma fundamentaçao histórica das tais ‘marchas-populares’...da capital e estendidas tentacularmente ao todo nacional.

Lê-se na wikipédia:
As marchas populares de Lisboa remontam a 1932, quando foram organizadas as primeiras marchas competitivas, sob orientação de José Leitão de Barros, então director do Notícias Ilustrado, apoiado pelo olisipógrafo Norberto de Araújo e pelo Diário de Lisboa. Esta é uma das mais antigas e crescentes tradições da cidade de Lisboa (às marchas juntaram-se, em 1958, os casamentos de Santo António).. Porém, em Lisboa já se realizavam marchas desde o século XVIII.
Em 1940, as marchas populares de Lisboa saíram à rua, na comemoração de um duplo centenário, da fundação do Estado Português (1140) e da Restauração da Independência (1640)...

2. As roupas – mais parecem roupagens mal amanhadas, embora vistosas na forma e na confeção – com as músicas e as letras, à mistura com as danças – numa linguagem entre o pitoresco e um tanto brejeiro – algo sintonizadas com um certo ritmo trovadoresco constroem um ambiente que tenta enlear quem ouve e, sobretudo, quem se deixe envolver por gestos, pretensões e desejos nem sempre completamente dizíveis, mas antes servidos em insinuação... Seria algo demasiado inocente não perceber que as ‘marchas populares’ seduzem e não deixam ninguém indiferente... ou a mensagem estaria menos apropriada à comunicação.

3. Tudo passou a ter outro alcance quando quiseram fazer das ‘marchas populares’ uma espécie de espetáculo, de rua ou de televisão. Embora, na maior parte dos casos, seja a televisão estatal (isto é, suportada pelo dinheiro dos contribuintes) a gastar horas de emissão, não deixa de ver-se os outros canais a rondarem a marchas, pois precisam de ocupação em maré de feriado na capital. E aquilo que era localizado e datado, começou a ser imitado em povoações onde se celebram os três ‘santos populares’ do mês de junho: S. António, S. João e S. Pedro. De diversas formas e feitios fomos vendo a exportação do figurino para outros locais onde, certamente, haveria modos de festejar – como as rusgas ou tocatas e outras – e de envolverem as pessoas nas festas e romarias...

4. As marchas populares não deixam transparecer um país algo anedótico (anacrónico) e com laivos de ruralismo? As marchas não servem mais de produto comercial do que de expressão cultural? Quando dizem que as marchas são tradição estarão a ver o alcance pitoresco, mas não atualizado de fazer festa e diversão? A quem interessa vender esta produção de mediana qualidade, quando se varre para debaixo do tapete a sua origem no sistema do ‘estado-novo’? Diga-se tudo e não só meia-verdade!

Talvez seja hora de serem exorcizados tantos fantasmas que povoam os arquétipos de alguns mentores culturais. Não aconteça de fazerem aqui como aconteceu ao fado, de sinal do regime totalitário tornou-se totamente democrata por convenência... de uns certos cantores e cantadeiras!



António Silvio Couto

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Um ‘pcp’ assaz humanista…sobre a eutanásia

 

Foi a única declaração do debate realizado, no passado dia 9 de junho, sobre a (pretensa) despenalização da morte medicamente assistida, vulgo, eutanásia, que ouvi. Daquilo que foi dito ficou-me uma visão bem digna de ser apoiada pelos valores/critérios cristãos.
Por conter uma leitura assaz lúcida, clara e interpelativa, deixo um excerto (quase metade da intervenção) da deputada comunista… No final coloco algumas questões de teor humanista e não-ideológico de religião…

* O texto do grupo parlamentar comunista:
«Não se discute aqui a dignidade individual seja de quem for. O que se discute é o sentido em que a sociedade se deve organizar e em que os seus recursos devem ser mobilizados perante a doença e o sofrimento.
Continuamos a considerar que o sentido do progresso das sociedades humanas é o de debelar a doença e o sofrimento, mobilizando os seus recursos, o conhecimento científico e a tecnologia, assegurando que todos os seres humanos beneficiam desses avanços. É nesse sentido de progresso que o Estado se deve empenhar e não no de criar condições para antecipar a morte.
O Estado Português não pode continuar a negar a muitos dos seus cidadãos os cuidados de saúde de que necessitam, particularmente nos momentos de maior sofrimento. A criação de uma rede de cuidados paliativos com caráter universal tem de ser uma prioridade absoluta. Ninguém entende a eutanásia como um sucedâneo dos cuidados paliativos (...): um país não deve criar instrumentos legais para antecipar a morte e ajudar a morrer quando não garante condições materiais para ajudar a viver.
Inquietam-nos neste processo legislativo as consequências sociais que dele podem decorrer, pensando sobretudo nas camadas sociais mais fragilizadas, nos mais idosos, nos mais pobres, nos que têm mais dificuldades no acesso a cuidados de saúde, aqueles a quem aparecerá de forma mais evidente a opção pela antecipação da morte.
A evolução da ciência e da tecnologia tem permitido avanços da medicina que eram impensáveis ainda há poucos anos. Essa evolução é inexorável e é cada vez mais rápida. A questão é que os recursos disponíveis sejam postos ao serviço de toda a comunidade.
Através de boas práticas médicas, que rejeitem o recurso à obstinação terapêutica e que respeitem a autonomia da vontade individual expressa através das manifestações antecipadas de vontade que a lei já permite, o dever do Estado é garantir que a morte inevitável seja sempre assistida, mas não que seja antecipada.
Num quadro em que, com frequência, o valor da vida humana surge relativizado em função de critérios de utilidade social, de interesses económicos, de responsabilidades e encargos familiares ou de gastos públicos, a legalização da eutanásia acrescentará novos riscos que não podemos iludir».

* Questões:
- Quem beneficiará da eutanásia: os pobres ou os ricos?
- Terão os trabalhadores reais (e não os virtuais de certa esquerda), meios para se entreterem com elucubrações moralistas e outras tantas invetivas ideológicas...à socialista e bloquista?
- Não se percebeu ainda que certos ‘liberais’ são mais perigosos do que os marxistas mais ou menos camuflados?
- Por que será que quem serve a saúde – médicos e enfermeiros – contestam esta anomalia de teor ético, mas não sanitário?
- Referendar este assunto não seria um risco, tanto mais perigoso, quanto se tem vindo a perder o sentido do sofrimento, mesmo no contexto cristão-católico?

Agora que, pela terceira vez o assunto foi votado no parlamento, esperamos que isto não sirva para ser bandeira de oportunistas, seja qual for a barricada onde se coloquem…

António Sílvio Couto

terça-feira, 7 de junho de 2022

Os privados que aliviem a crise, senhor costa?

 


«Nós temos que nos próximos quatro anos conseguir fazer todos em conjunto, a sociedade, o Estado, as empresas, o esforço para que o peso do nosso salário, dos salários dos portugueses, no conjunto do produto interno bruto, seja pelo menos idêntico àquele que existe na média europeia, ou seja, subir dos 45 para os 48%, o que implica um aumento de 20% no salário médio do nosso país».

Foi desta forma empolgada e sublime que o atual primeiro-ministro sugeriu que os privados façam o ‘sacrifício’ até 2026 de aumentarem o salário médio segundo aquela bitola de vinte por cento. Do alto da sua cátedra de proponente ousado, o governante ainda acrescentou que «as empresas têm de compreender que se querem ser competitivas a vender, têm de começar a ser competitivas no momento da contratação, se querem, efetivamente, contratar, fixar e atrair o talento que necessitam para poderem ser empresas que produzem, efetivamente, bens e serviços de maior valor acrescentado».
A avaliar pelos presentes na atividade em que assim se exprimiu – jornalistas, ativistas, políticos, investigadores, humoristas e artistas – esta intervenção dá a impressão de ser mais um ato de humor para jornalista difundir, enquanto uns tantos artistas tentarão jocosamente interpretar...no palco da vida em faz-de-conta. Como diz um programa televisivo: ‘isto é gozar com quem trabalha’, a sério e no duro, que não estes governantes!

1. A esta inopinada posição do PM dá vontade de responder: ‘bem prega fei tomás, olhai o que ele diz, mas não para o que ele faz’. Com efeito, porque não faz ele isso que propõe para com os que tem ao seu cuidado, isto é, os funcionários públicos? Que ‘autoridade’ tem este dito governante para querer sugerir ainda redução de dias de trabalho – até quatro por semana – se não o aplica aos seus servidores? Mas não são esses ‘privados’ que pagam os impostos até ao tutano, sem reclamar das exigências dos senhores da democracia? Ao atirar ao lado na competitividade das empresas que dizer que os funcionários públicos, para além de mal pagos, ainda são vistos com pouco produtivos e, possivelmente, incompetentes para quem os tutela?

2. A perceber pelas reações dos (ditos) parceiros sociais, esta intervenção do senhor costa, é ‘politicamente bonita’, mas vem sem ‘livro de instruções’, não tendo em conta outras reivindicações dos trabalhadores... Dir-se-á: estiquem a corda e verão caírem em catadupa tantos lugares de emprego!

3. Esta gente ainda não compreendeu que não se pode distribuir riqueza, se esta não é produzida. E, no quadro europeu, nós ocupamos um lugar muito pouco recomendável, tanto na organização como na capacidade de dinamização de todo o ‘processo de trabalho’. Estas expressões cheiram nitidamente a linguagem marxista assimilada. Com que facilidade se descarrega – sabe-se lá a que custo, em breve – dinheiro para cima dos problemas, mas não se educa para a co-responsabilidade de todos os ‘fatores de produção’ – novo termo marxista – desde os que investem, aos que trabalham e mesmo às mais-valias que são geradas, mas que devem ser geridas com qualidade e não ao desbarato...

4. Desde há algum tempo a esta parte temos andado a brincar com o futuro de todos, pois, querendo dar a impressão que fazemos parte de uma Europa rica, não passamos dos mais empobrecidos, mais pela forma como nos têm conduzido do que pelas capacidades de trabalho... Essas, quando bem geridas, fazem sucesso noutras paragens e com resultados dignos dos maiores encómios. Portanto, o que é questionável é a gestão dos recursos humanos. Estes, quando devidamente inseridos, tornam-se os melhores dos melhores.

5. Enquanto não forem limpos certos esteriótipos marxistas (alguns leninistas e outros também trotskistas) nunca sairemos do fundo da tabela do desenvolvimento. Com efeito o refrão – ‘os ricos que paguem a crise’ – ainda deambula pelo testo de alguns mandantes... A sanha contra quem não depende do estado-patrão continua a alimentar muitas arengas de mau-gosto e de duvidosa qualidade.

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Acolhimento, diálogo e escuta: desafios da caminhada sinodal

 


Quem ler, com atenção a síntese da diocese de Setúbal  dos grupos sinodais, que existiram na primeira fase (paroquial) de preparação do Sínodo dos bispos de 2021-2023, poderá ver a frequência, insistência e abrangência com que estas três palavras – acolhimento, diálogo e escuta – são salientadas. Com efeito, entre o diagnóstico e as propostas, passando ainda pela visão intra e extra-paroquial podemos e devemos atender àquilo que é matéria de trabalho de todos, para todos e com todos... os fiéis, isto é, eclesiásticos, religiosos e leigos.


1) 6475 participantes...de 40 paróquias
Apesar  de tudo a participação registada das paróquias foi significativa - ‘das 57 Paróquias (54 Paróquias e 3 Quasi-Paróquias) da Diocese só não participaram 17, pelo que a participação ronda os 70, 2%’ - diz o relatório-síntese. Das sete vigararias houve três que tiveram participação de todas as paróquias - Almada, Barreiro-Moita e Palmela-Sesimbra...

2) Nove questões mais debatidas
Segundo os dados do relatório-síntese verificou-se uma certa concordância sobre os temas mais debatidos pelos participantes nos grupos sinodais, que foram: acolhimento, compromisso, comunicação (ligação), sobrecarga (de tempo) dos padres, tomada de decisão (de todos com todos), cuidados com a liturgia (linguagem e celebrações), necessidade de formação (de todos), diminuição (decréscimo) de crianças e jovens nas comunidades.  Deste elenco de questões se pode inferir uma leitura atenta dos participantes, o que manifesta presença e também pertença à Igreja e não às minudências das igrejas (particulares).
Salienta o documento-síntese da diocese de Setúbal que não se verificou ‘grande tensão’ durante as reuniões sinodais, embora tenham aparecido ‘diferenças sobretudo nos temas ditos fracturantes (por ex: acolhimento dos homossexuais, situação dos recasados), com diferentes sensibilidades que acentuam uma linha mais conservadora e outra que aponta para a necessidade de reforma por parte da Igreja’.

3) Aspetos positivos e negativos encontrados
Como aspetos positivos (cinco na síntese publicada) foram considerados como mais relevantes: as pessoas sentem-se Igreja, a dimensão social é reconhecida como uma parte importante da vida pastoral e da mensagem da Igreja.
Na vertente dos aspetos negativos, o documento apresenta, entre outros (são quinze no elenco), os seguintes: as igrejas frequentemente encerradas durante o dia; algumas paróquias referem a falta de acolhimento e inclusão dos que procuram a comunidade; tendência do tradicionalismo; na relação entre a Igreja e a sociedade, nota-se muitas vezes um desconhecimento mútuo; falta de estruturas de escuta e de participação (conselhos necessários nas paróquias); excessivo centralismo do papel do pároco; um certo comodismo por parte dos fiéis (talvez se devesse dizer leigos?) que, muitas vezes, optam por serem apenas “consumidores de sacramentos”, sem compromisso, limitando-se à participação na eucaristia.

4. Propostas de mudança
Correndo o risco duma visão simplista, seguimos, a partir do documento-síntese, aquelas três palavras-chave, respigando algumas das sugestões (são dezoito no total):
* Acolhimento – rever a forma de acolhimento nas nossas igrejas; procurar construir uma Igreja que não se limita à assistência social, mas que procura capacitar para o encontro de soluções.
* Diálogo – apostar no diálogo entre paróquias a nível laical, na possibilidade da existência dos conselhos vicariais; promover o diálogo em três níveis diferentes: dentro de cada igreja cristã, na relação com as outras igrejas cristãs e finalmente com as restantes religiões não cristãs.
* Escuta – fomentar a escuta do outro; necessidade de a Igreja voltar a ensinar o silêncio às pessoas.

 

António Silvio Couto

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Números escondidos – por quê ou por quem?

 


Verificaram-se, em Portugal, entre 20 de maio e 2 de junho. mais 358.485 novos casos de covid-19.

A taxa de mortalidade no nosso país está em 22 óbitos por milhão de habitantes, a sete dias, verificando-se um aumento de 20% face ao valor registado na semana anterior. A incidência fixou-se nos 1.835 casos por 100 mil habitantes, numa média a sete dias, o que representa uma subida de 7%.

1. Estes números não são facultados – divulgados e noticiados – à população em geral. Nota-se algo que nos deveria interrogar e inquietar: por que se escondem estes e outros números ainda mais dramáticos? Será que, de vez, a economia se sobrepõe à saúde? Por que temos a sensação de que algo de grave deambula por aí e ninguém nos diz a verdade? Por quê o afã de tantas festas e festinhas, se o tema ainda não foi resolvido condignamente? Será mera coincidência o ressurgimento de novos casos após grandes concentrações de pessoas, como a seguir à peregrinação de Fátima ou à festas dos futebóis? Por que custa tanto aprender com erros do passado recente? Já passou o temor desses fatídicos dias de janeiro do ano passado, em que chegaram a morrer mais trezentas pessoas por dia?  

2. Os dados referem que foi está vacinada mais de oitenta por cento da população. No entanto, vemos aparecer um ressurgimento de nova vaga de covid-19 – dizem que a sexta – atingindo pessoas que antes não tinham sido atingidas e re-infetando outras – nalguns casos mais do que uma vez – que já tiveram sinais da doença. Dá a impressão que se quis andar depressa, baixando a guarda, particularmente  no aliviar do uso da máscara. Estão criadas as condições para que esta pandemia continue por bons e largos meses ou talvez anos!

3. Já era tempo de aprendermos lições mínimas da convivialidade, pois muito desta transmissão continua a ser resultado do excesso de contactos entre as pessoas e pouco (ou nenhum) cuidado com as regras da higiene. Nota-se que ainda não conseguimos perceber que o resguardo é a mais adequada dose de combate a algo tão transmissível, tanto na forma como nos resultados. Enquanto não interiorizarmos que a melhor capacidade de debelar este vírus é defender-nos, continuaremos a constatar novos casos e, possivelmente, bem mais graves e com sequelas ainda imprevisíveis…

4. Pelo que nos é dado ver e viver, precisamos de mudar de registo, tanto ao nível pessoal como na dimensão social. Efetivamente não ficou tudo bem e muito menos igual. Se alguém disser o contrário ou hibernou e não viveu o drama de tanta gente ou andou distraído com os seus botões (egoístas e autossuficientes) sem ter presente os demais. Queira Deus que não nos comportemos como o ouriço-cacheiro que coloca os picos para se defender, sabendo que isso pouco ou nada salvaguarda se o caminho não for percorrido com olhos de ver e em atenção aos outros.

 5. Está na hora de despertarmos da letargia geral em que nos vão embalando e, quantas vezes, manipulando: basta de quererem fazer de nós papalvos e usarem-nos para os seus intentos mais mesquinhos. A comunicação social não pode continuar a ser o antro da ditadura dos fortes sobre os mais fracos, pois estes poderão deixá-los a falar sozinhos e cairá a máscara da incompetência e não haverá quem lhes pague as tropelias…mais ou menos subtis.

Digam a verdade, mesmo que o dono – governo, poder económico ou ideologia – não goste! Se ainda lhes resta algum pingo de dignidade sejam homens e mulheres de uma só cara e servindo um único intento, os outros! 

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Manifestação do Espírito Santo no Pentecostes

 


A manifestação do Espírito Santo, em dia de Pentecostes (1), marca a concretização da promessa de Jesus, em que o Espírito de Deus é derramado sobre a comunidade dos irmãos, reunidos no Cenáculo. Com efeito, «no dia do Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo, a Igreja foi manifestada ao mundo. O dom do Espírito inaugura um tempo novo na «dispensação do mistério»: o tempo da Igreja, durante o qual Cristo manifesta, torna presente e comunica a sua obra de salvação pela liturgia da sua Igreja, «até que Ele venha» (1 Cor 11, 26). Durante este tempo da Igreja, Cristo vive e age, agora na sua Igreja e com ela, de um modo novo, próprio deste tempo novo. Age pelos sacramentos e é a isso que a Tradição comum do Oriente e do Ocidente chama «economia sacramental». Esta consiste na comunicação (ou «dispensação») dos frutos do mistério pascal de Cristo na celebração da liturgia «sacramental» da Igreja» (2).

Algo novo acontece com a manifestação do Espírito Santo no dia de Pentecostes. A narrativa de São Lucas nos Atos dos Apóstolos tem caraterísticas muito específicas, que devem ser analisadas, tanto à luz das componentes adstritas à festa judaica, como naquilo que a passagem de At 2, 1-13 nos apresenta muito para além das palavras escritas ou mesmo dos conceitos subjacentes...

«1 Quando chegou o dia do Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo lugar. 2 De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam.
3 Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. 4 Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.
5 Ora, residiam em Jerusalém judeus piedosos provenientes de todas as nações que há debaixo do céu. 6 Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se e ficou estupefacta, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua.
7 Atónitos e maravilhados, diziam: «Mas esses que estão a falar não são todos galileus? 8 Que se passa, então, para que cada um de nós os oiça falar na nossa língua materna? 9 Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, 10 da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, 11 judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!»
12 Estavam todos assombrados e, sem saber o que pensar, diziam uns aos outros: «Que significa isto?» 13 Outros, por sua vez, diziam, troçando: «Estão cheios de vinho doce» (At 2, 1-13).

Podemos encontrar neste texto elementos prévios de enquadramento do texto na vivência judaica, pois, o povo estava na rua em festa: seja ela de teor mais agrícola – pelos primeiros frutos da terra ou pelos dons recebidos ao longo a ano – seja pela leitura do dom da Lei no Sinai, isso motivava a que Jerusalém fosse ‘invadida’ de povos vindos do mundo civilizado e ligado à religião judaica do tempo. A referência ao ‘vinho doce’ com que interpretaram as manifestações carismáticas pode fazer confundir essa leitura dos primeiros frutos oferecidos a Deus e partilhados com os outros. São Paulo advertirá, em 1 Cor 12, 2, que não se deve confundir a ação do Espírito Santo com outros efeitos, como os do vinho, referindo-se aos cultos dionísiacos em Corinto e noutras cidades gregas daquele tempo.
Vejamos aspetos mais salientes nesta teofania do Espírito Santo, em dia de Pentecostes: 

 

a)‘Som comparável ao de forte rajada de vento’ (v. 2). Tanto em hebraico como em grego é usada a mesma palavra para exprimir espírito e vento: ‘ruah’ e ‘pneuma’, respetivamente (3). A figura do vento simboliza o Espírito Santo, e o fato de o som vir do céu significa que Ele foi derramado da parte de Deus, conforme Jesus havia prometido (cf. Jo 14, 16. 26; 15, 26; 16, 7).9-11. Ele realmente veio do céu, da morada de Deus.

b) ‘Umas línguas à maneira de fogo’ (v. 3). Eles viram línguas à maneira de fogo e que poisaram sobre cada um deles. Na Bíblia o fogo, em várias ocasiões, aparece usado como símbolo da presença divina, realçando a santidade e o juízo de Deus. «O fogo simboliza a energia transformadora dos atos do Espírito Santo. O profeta Elias, que «apareceu como um fogo e cuja palavra queimava como um facho ardente» (Sir 48, 1)... João Batista (...) anuncia Cristo como Aquele que «há de batizar no Espírito Santo e no fogo» (Lc 3, 16), aquele Espírito do qual Jesus dirá: «Eu vim lançar fogo sobre a terra e só quero que ele se tenha ateado!» (Lc 12, 49). A tradição espiritual reterá este simbolismo do fogo como um dos mais expressivos da ação do Espírito Santo» (4).

c) ‘Começaram a falar outras línguas’ (v. 4), conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem. Talvez devamos considerar - mesmo pela experiência pessoal dos grupos do Renovamento Carismático, católico ou não - que mais do que línguas (idiomas), este é um assunto do âmbito da linguagem. «O dom de falar outras línguas significa a capacidade que os Apóstolos tinham de se fazerem entender perante outros povos. Assim, o Espírito restabelece, no Pentecostes, a unidade de linguagem que se tinha desfeito com Babel (Gn 11,1-9), prefigurando a universalidade da mensagem cristã» (5).

d) Diversos povos...fascinados pelas maravilhas de Deus (vv. 5-11). Na confluência e reunião que era Jerusalém da multiplicidade de povos e de culturas, vemos que as diversas nações enumeradas desde Este a Oeste, com a Judeia no centro, simbolizam a totalidade do mundo habitado...desde os iniciados até àqueles que estavam a dar os primeiros passos na religião judaica...todos tinham espaço, lugar e expressão na universalidade do cristianismo. 

 

Para percorrer a ação viva e vivificante do Espírito Santo recomendamos a leitura, meditação e oração do livro dos Atos dos Apóstolos, também designado ‘evangelho do Espírito’, saboreando a dinâmica que esse mesmo Espírito fez e faz na Igreja.

 

 

1. No Antigo Testamento, a designada festa do Pentecostes é referida como: Festa das Colheitas (Êx 23.16), Festa das Semanas (Dt 34.22) e Dia das Primícias dos Frutos (Nm 28.26)...três designações progressivas e complementares das vivências do povo de Deus... A designação ‘pentecostes’ tem a ver com a contagem de ‘cinquenta dias depois’ da celebração da Páscoa. Referir esta festa como das colheitas ou das primícias tinha a ver com esse momento em que todo o povo agradecia a Deus as colheitas da terra e Lhe oferecia solenemente os primeiros frutos. Com o passar  do tempo a esta festa de matiz agrícola foi sendo dada a tonalidade de agradecimento a Deus pela entrega da Lei no Sinai, que, nalgumas interpretações, teria acontecido, cinquenta dias depois da libertação do Egito (cf. Ex 19,1). Enquanto a celebração da Páscoa era mais de teor familiar, o Pentecostes abordaria a vertente comunitária e com a participação de todo o povo...em festa.
2. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1076.
3. «O termo «Espírito» traduz o termo hebraico «Ruah» que, na sua primeira acepção, significa sopro, ar, vento. Jesus utiliza precisamente a imagem sensível do vento para sugerir a Nicodemos a novidade transcendente d’Aquele que é pessoalmente o Sopro de Deus, o Espírito divino» – Catecismo da Igreja Católica, 691.
4. Cf. Catecismo da Igreja Católica, 696. «Depois do vento forte, as línguas de fogo (Is 5,24; 6,6-7) evocam também a teofania do Sinai (Ex 19,16-18) e o poder de Deus, que lhes comunica o dom de falar uma linguagem nova que todos serão capazes de entender» - Nota a At 2,3, na Bíblia Sagrada dos capuchinhos
5. Cf. Nota a At 2, 4 na Bíblia Sagrada dos capuchinhos. Glossolalia - ‘glossa’, língua, ‘lalen’, falar - é um fenómeno recuperado nos movimentos carismásticos/pentecostais e que fundamenta a sua expressão nesta faceta da narrativa do Pentecostes em At 2,4. Na maior parte dos casos faz-se equivaler a glossolalia com o dom das línguas (1 Cor 12, 10. Se bem que seja difícil definir, em conceitos humanos e segundo termos percetíveis em linguagem material, há quem use imagens algo simplistas para se referir ao dom das línguas e, sobretudo, ao canto em línguas, habitual na expressão carismática/pentecostal: seria como uma seara onde o vento faz ondular o trigo numa harmonia coordenada por alguém desconhecido; outros usam a figuração do carrilhão de sinos que parece tocar em confusão, mas cujo terminar há de ser harmonioso e sublime...outras imagens poderão ser apontadas, sempre numa conjugação da diversidade na unidade. Sobre o tema, dada a autoridade de saber e de espiritualidade, ver: Raniero Cantalamessa, Vem, Espírito Criador, Braga, AO, 2009, pp. 300-308

 

António Sílvio Couto