Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Ano do rato-metal




Seguindo o calendário do horóscopo/calendário chinês, no passado dia 25, teve início o ‘ano do rato de metal’. Atendendo à simbologia desta nova etapa do ciclo chinês perspetiva-se que este novo ano possa ‘ser abundante em oportunidades e novos projetos, particularmente nos negócios’, embora com alguma incerteza.

Dizem os entendidos que o rato – em subdivisões: metal, água, madeira, fogo e terra – é o primeiro signo do horóscopo chinês, dando-se, assim, início a um novo ciclo de doze anos (*)… Para aqueles que se guiam pela suposição (ou será superstição) do horóscopo, o rato chinês tem a correspondência ao ‘sagitário’ no zodíaco mais divulgado na sociedade ocidental.

Ora, se tivermos em mira a área da economia, esta nova etapa seria bem-vinda para a grande potência do continente chinês, na medida em que a economia chinesa tem vindo a abrandar, mesmo com algum crescimento (6,1%), no ano de 2019, à mistura com um já longo conflito comercial com os EUA, quase em fase de resolução a contento de ambas as partes.

Há, no entanto, uma penumbra no horizonte: o aparecimento e difusão do ‘coronavirus’ com tentáculos já visíveis na saúde e, possivelmente, na dimensão financeira, na medida em que pode atingir o consumo e a mobilidade das pessoas dentro e para fora do país… A curto prazo veremos as consequências. 

= Embora a distribuição dos anos segundo um certo calendário à semelhança do zodíaco possa ser aceitável nalgumas culturas, como a chinesa, há algo mais profundo que deveríamos questionar particularmente naquilo que se possa referir-se ao ritmo das parcelas do zodíaco e a influência que alguns lhe atribuem. Será que a vida de cada pessoa estará previamente escrita nas entrelinhas de outras configurações não-pessoais? Como poderemos ligar as estrelas na linha de uma suposta influência na conduta humana, geral e pessoal (que é muito mais do que individual)? Quem se guia ou quem pretensamente cultiva essa forma de estar na vida, tem (ou pode ter) uma visão crente (cristã) da vida ou antes se deixa conduzir por crendices pseudocientíficas? Serão compatíveis ou aceitáveis para um cristão práticas como a adivinhação, astrologia, cartomancia, quiromancia, tarot, necromancia, de ocultismo, feitiçaria e bruxaria? O recurso a adivinhos, astrólogos, videntes, bruxos e feiticeiros comporta risco para a fé cristã ou fazem perigar a comunhão com Deus e a Igreja? Haverá seriedade mínima nas (pretensas) previsões do horóscopo, apresentadas em certos órgãos de comunicação social? Aquilo será crença, engano (cultivado e aceite) ou mera charlatanice?  

= Consideremos alguns aspetos subjacentes às questões colocadas. Com efeito, viver numa espécie de conduta daquilo que os horóscopos dizem, seria como que viver nalguma predestinação mecânica, onde cada pessoa não era ela mesma, mas condicionada por elementos não-livres para consigo. Se reparamos os itens (saúde, dinheiro e amor) que regulam a escrita/emissão dos horóscopos como que roçam a vulgaridade e lançam alguma suspeita sobre a inteligência de quem lê e, pior, se por tais perspetivas se guia, pois tudo é tão largo que um alguém qualquer se poderá rever nas previsões alienatórias. Hoje, quando se deseja um mundo onde tudo possa ser light e sem aflições, como que cresce a rapidez de recurso às soluções fáceis, que muitos dos mecanismos usados pelos cultivadores da ignorância pelos horóscopos facilitam e difundem.

O que diz o Catecismo da Igreja Católica sobre esta matéria? «Todas as formas de adivinhação hão de ser rejeitadas: recurso a Satanás ou aos demónios, evocação dos mortos ou outras práticas que erroneamente se supõe “descobrir” o futuro. A consulta aos horóscopos, a astrologia, a quiromancia, a interpretação de presságios e da sorte, os fenómenos de visão, o recurso a médiuns escondem uma vontade de poder sobre o tempo, sobre a história e, finalmente, sobre os homens, ao mesmo tempo que um desejo de ganhar para si os poderes ocultos. Essas práticas contradizem a honra e o respeito que, unidos ao amoroso temor, devemos exclusivamente a Deus. Todas as práticas de magia ou de feitiçaria com as quais a pessoa pretende domesticar os poderes ocultos, para colocá-los a seu serviço e obter um poder sobrenatural sobre o próximo - mesmo que seja para proporcionar a este a saúde - são gravemente contrárias à virtude da religião. Essas práticas são ainda mais condenáveis quando acompanhadas de uma intenção de prejudicar a outrem, ou quando recorrem ou não à intervenção dos demónios (n.os 2116-2117).

 

(*) A distribuição dos anos do horóscopo chinês: rato, boi, tigre, coelho, dragão, serpente, cavalo, cabra, macaco, galo, cão e porco.

 

António Sílvio Couto

sábado, 25 de janeiro de 2020

…E se fosse numa ‘casa de alterne’?




Apareceu, por estes dias, num canal televisivo uma reportagem – rotulada de ‘investigação’ – em que um pai aduzida que a sua filha única estaria a ser vítima de abusos por parte das religiosas/monjas do mosteiro onde tem vivido.

Os ingredientes apresentados pela reportagem eram quase todos na linha da depreciação daquela agremiação religiosa católica: os testemunhos apresentados, os casos trazidos à colação e até a pretensa reconstituição com a ‘monja’ vítima se serviu de elementos pouco adequados à pretensão, pois era colocado o livro ‘missal romano’ como texto da consulta e de formação…

É compreensível que um pai, dito como médico (ao que parece psiquiatra) tente o melhor para a sua filha única, mas talvez não seja muito correto – certamente saberá do ofício que exerce – colocar fantasmas, recorrer a possíveis difamações e, sobretudo, pretender lançar um labéu de suspeita, acusação e maledicência sobre uma organização católica internacional, presente no nosso país há quase vinte anos, desde Sesimbra e agora no Couço, diocese de Évora.

Durante alguns, enquanto não tiveram capelão exclusivo, fui dos padres que celebrou missa para as monjas de Belém, no mosteiro em Calhariz, Sesimbra. Tinham a sua forma própria de liturgia e do padre somente desejavam a celebração da missa, sem homilia. Eram as regras, não há como não cumpri-las… Nunca me foi dado ver nem observar nada daquilo que apareceu na dita ‘investigação’, onde se notava mais um afã de denegrir do que de informar ou esclarecer. No ar ficou, com alguma subtileza que em certas organizações católicas nem tudo é tanto como se pretende perceber com mentalidade mundana… Como era dito por uma das monjas, o mistério da vocação à vida religiosa nem todos conseguirão compreendê-lo…dentro da linguagem de dedicação a Deus e não tanto na tendência social.   

= Uma pergunta me percorreu, como um lampejo, após constatar o ar sombrio e algo preocupado daquele pai: e se a sua filha em vez de ter ido para um mosteiro tivesse ido para uma ‘casa de alterne’, colocar-se-iam, da mesma forma, os problemas de abuso como era postos na situação de estar num mosteiro? Seriam menos incompatíveis tais recursos à submissão na ‘casa de alterne’ do que no mosteiro? A lógica do prazer do mundo fascina mais do que a sedução dos prazeres espirituais, no seguimento de Jesus Cristo? Não andará no ar uma espécie de perseguição encapotada de ‘liberdade religiosa’, desde que seja para atingir quem segue o mistério da vocação cristã? Não falta respeito, por parte de muitos setores da vida social e cultural, por quem não se deixa ir na onda de querer ser em de continuar na fase do parecer? Não serão as atitudes menos compreensíveis de alguns/algumas, chamados/as por Deus, que incomodam a instalação, o comodismo e até a incongruência de certos denunciantes? 

= Na reportagem de onde partimos para esta reflexão pareceu pouco credível a aportação de alguns ‘casos’ internacionais – importando um tal relatório francês – para fazer verificar que há mais situações anómalas, neste como noutros mosteiros, conventos ou casas religiosas. Mais uma vez: porque só são divulgadas situações que envolvem a vertente religiosa e não aparecem com idêntico azedume o que envolve as forças armadas e de seguranças, tantos colégios não-religiosos ou agremiações secretas?

É claro que Deus pode incomodar e será mais fácil atirar-se aos que andam na sua esfera, pois não reagirão – pensam alguns mentores – de forma tão rápida, irreverente e também ao ataque. Neste, como noutros casos, será preciso, para além da defesa correta e duma certa dose de perdão cristão, uma capacidade de não se deixa queimar em lume brando, pois Deus está por nós, mas pouco fará sem o nosso contributo atento, sagaz e inteligente.

Urge saber quem vai orquestrando estas ‘reportagens’ a pedido ou ainda quem se esconde para tentar lançar a confusão, mesmo que à custa da mentira, do sarcasmo e até da liberdade sem responsabilidade. Nem tudo está totalmente correto nas associações, coletividades ou congregações cristãs, mas será preciso ser coerente e não se deixar embarcar em pias intenções, quando estão carregadas de malícia, falsidade e mesmo de falta de verdade, ontem como hoje!     

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Possível conexão entre Davos e Albufeira…


Coincidiram no tempo duas iniciativas onde esteve subjacente o mesmo tema: a ecologia no complexo da economia… nos nossos tempos. Em Davos (Suíça) decorreu, de 21 a 24 deste mês, a 50.ª sessão deste meeting internacional de grandes capitalistas mundiais. Por seu turno, em Albufeira, realizaram-se, de 20 a 23 também deste mês, as jornadas de formação do clero das quatro dioceses ao sul do Tejo. Neste evento o tema andou em volta da ‘ecologia integral: o homem no centro da criação’, enquanto a cimeira internacional teve como referências também aspetos relacionados com a crise climatérica e questões de economia.
Cerca de dois mil quilómetros de distância geográfica fazem-se próximos pela afinidade temática, num tempo em que as questões ambientais devem ser inseridas numa visão de ‘desenvolvimento humano integral’, como referiu Niccola Riccardi, um professor franciscano, subsecretário do dicastério do Vaticano para o serviço integral para o desenvolvimento humano. Este académico italiano substituiu o cardeal Peter Turkson (perfeito do dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral), que foi representar a Santa Sé no meeting de Davos, onde proferiu uma intervenção do Papa Francisco nas bodas de ouro daquele convénio mundial dos ricos…Na sua mensagem o Papa realçou a dimensão ética na definição das relações internacionais, salientando que “somos todos membros de uma família humana. A obrigação moral de cuidarmos uns dos outros decorre desse facto, assim como do princípio relacionado de colocar a pessoa humana, e não a mera busca de poder ou lucro, no centro das políticas públicas”.

= Feita esta aproximação no tempo e na temática poderemos encontrar algumas vertentes apresentadas nas jornadas de atualização do clero das dioceses do Algarve, Beja, Évora e Setúbal, num total de quase cento e vinte participantes.

Fazemos um breve respigo dos diversos palestrantes:

* Cada europeu consome por ano uma média de dezasseis toneladas de materiais e cria seis toneladas de resíduos (Francisco Ferreira);

* É um erro ser reduzido o conceito de desenvolvimento ao de crescimento económico…Será crescimento de todos ou de uma parte e qual será o preço deste crescimento sobre o ambiente. A Igreja guarda um pensamento sobre o bem comum, onde bem-estar é muito mais do que estar bem. Precisamos de ter uma visão unitária do relacionamento com as pessoas e o mundo. Verifica-se ainda o erro de uma espiritualidade separada da história e da criação. Com efeito, na união entre a história e o exercido da ‘guarda do jardim’ se encontra a realização do desenvolvimento sustentável (Niccola Riccardi);

* Trazemos impresso em nós o selo de Deus. Através do ‘critério de dependência’ podemos perceber que ninguém deu a vida a si mesmo e ninguém é dono de si mesmo. Duas palavras resumem esta visão: silêncio e repouso – silêncio envolve o mistério da criação e da redenção; repouso – expressão que leva à alegria e à misericórdia (Rino Fisichella);

* Vivemos um novo paradigma mais relacional, num outro tipo de sociedade: comunicação interativa. Como podemos, então, entrar nesse paradigma relacional? Tendo o sacramento da reconciliação por referência podemos compreendê-lo nessa relação com Deus, com os outros e com a natureza. O pecado será transgressão à lei ou como dimensão relacional? Sou amado, logo existo! (Martin Carbajo);

* A beleza da criação permite o conhecimento de Deus. Conexão entre ecologia e ética, formação da consciência, crítica pelas formas de individualismo, exigindo e sendo consequência da conversão ecológica, em ordem à vivência de uma autêntica espiritualidade ecológica (Rino Fisichella);

* Prevalece o mais adaptado e o mais altruísta. Informar a curiosidade exige muitas escalas de tempo – dos 10 anos aos 100 mil anos. É preciso distinguir entre o destinado e o planeado. O futuro é um passado abrindo outra porta (F. Carvalho Rodrigues);

* Deve falar-se de normas de proteção dos animais mais do que de direitos dos animais, pois os direitos implicam capacidade de liberdade, deve-se, portanto, terem conta a dignidade sobre a qual se alicerçam so direitos humanos (Pedro Vaz Patto).

Apesar dos milhares de quilómetros e dos campos de intervenção o que se passou em Davos e em Albufeira foram breves pinceladas para a salvaguarda da nossa casa-comum. Deus merece, a natureza e os outros!

   

António Sílvio Couto



segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Será a violência o preço da liberdade?




É uma questão recorrente questionar e equilibrar ‘liberdade e segurança’, fazendo desta o enquadramento daquela ou a primeira o estímulo para viver a segunda. Como entender, então, que estejamos a viver num certo clima de crescente violência – física, verbal, psicológica e até moral – de forma preocupada na nossa cultura e no nosso país?

Será útil e necessário distinguir como as diversas formas de violência estão a cativar a liberdade e como ainda questionam constantemente a segurança de pessoas e de bens. Uma sociedade securitária poderá ser compatível com a liberdade nas suas mais díspares manifestações? Que é mais valioso – social, económica e culturalmente – a segurança ou a liberdade, isto é, poderemos dizer e fazer tudo e o resto ou estarmos seguros sob condições de melhor regime? O recurso à linguagem violenta não tem vindo a fazer um percurso cada vez mais pernicioso, dentro e fora dos laços familiares? Como poderá sobreviver uma sociedade, se é complacente para com erros capciosos de violência em gestos e palavras subtis, até de crianças em regime de má educação? Não haverá uma certa tolerância, que desistiu de fazer das virtudes humanas um critério de conduta, fazendo-se mais abstémio de princípios e glutão de valores humanos e até cristãos?  

* Perante certos clichés ideológicos podemos assistir à incongruência de alguma oligarquia (dita) de esquerda, segundo a qual a liberdade não poderá ser questionada se estiverem em causa uns tantos grupos de proteção, nem que para isso se inventem umas palavras terminadas em ‘fobia’ à custa de haver uma pretensa igualdade para todos os cidadãos… e, à sua maneira libidinosa, cidadãs…ou de género. Nota-se alguma dificuldade de gestão da matéria, quando os ‘protegidos’ da oligarquia governante veem em competição de etnias que desejava fora da barricada de conflito! Que maçada verem-se, sobretudo, negros e ciganos a serem protagonistas de violência, quando se queria vender que eram, no fundo, vítimas…dos nacionais, brancos e pseudocapitalistas!  

* Os múltiplos sinais de violência atraem mais as notícias do que atos de benemerência ou de solidariedade. Talvez, deste modo, estejamos a contribuir para o recrudescimento da violência, senão explícita ao menos tácita. Há, no entanto, novos fenómenos de violência que merecem atenção, dada a incidência em que se encontram e aquilo que podem revelar de mais profundo da nossa podre sociedade. Os episódios de violência nos recintos desportivos e, em especial, nos estádios de futebol. Isso será tanto mais grave quando difundido nas transmissões em direto, dando-se, assim, cobertura a atos de violência quase de espetáculo gratuito. Não há, no entanto, controlo e fiscalização à entrada dos estádios? Por que razão ainda subsistem tais anomalias: por incúria ou por concordância? As caras-tapadas e os encapuçados não querem significar que estamos perante delinquentes que não se assumem com direitos nem com obrigações? Como deverá o governo, verdadeiramente, lidar com esta situação, que tem tanto de complexa quanto de simples? A segurança pública – mesmo na incidência de perturbação social – não deveria merecer um pouco mais do que frases-feitas – e, nalguns casos, afirmações tontas – de quem tutela a área?  

* Muita da violência hodierna funciona como uma espécie de nova expressão da ‘luta de classes’ da famigerada dialética marxista, pois aí se podia introduzir algo que condicionava e faria uns tantos que lutariam para vingar os direitos mais básicos. Ora, o que vemos hoje é alguma efabulação de consequências perante umas míseras causas, isto é, uma tal sociedade/cultura pretensamente urbana deseja aniquilar os que podem ser de procedência mais ou menos rural, na medida em que estes estão situados num quadro de valores que as franjas urbanas já não valorizam nem consideram como essenciais. Os rurais guiam-se ainda por virtudes que os citadinos já esqueceram ou nas quais nunca foram educados. Esta discrepância nota-se em pequenos gestos no nosso país, mas que uma boa parte vai obnubilando de forma mais ou menos consciente e consequente… Repare-se no fenómeno dos fogos florestais…só começaram a ser levados a sério – na linha da violência até noticiosa – quando atingiram as fraldas das tais povoações suburbanas…

A violência pode matar. A liberdade exige responsabilidade. A segurança pode condicionar a liberdade!   

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Ditadura do sucesso num colapso dos valores?


Parecem ser cada vez mais os sinais de que algo anda confuso no reino da portugalândia (*). Podemos ver o sucesso e questionar os seus efeitos. Podemos descobrir as consequências sem termos de identificar as causas. Podemos sacudir a responsabilidade e culpar os outros, que, embora possam ser companheiros na desgraça, se diluirão como a mensagem do agente secreto em poucos segundos…

É nessa terra imaginária em que se tornou o nosso país que vamos centrar a nossa reflexão sobre aspetos que podem parecer reais, mas que não passam de virtuais e onde uma boa maioria vive em perfeita alienação… até um dia acordar da letargia geral.

= Vivemos numa Europa onde há paz – isto é, sem guerras entre os países na totalidade, embora tenhamos tido a guerra dos Balcãs ou mais recentemente os conflitos entre a Rússia e a Ucrânia – desde o final da ‘segunda guerra mundial’. Os portugueses ainda tiveram as guerras ultramarinas, terminadas em 1974. No geral a Europa tem vivido numa espécie de paz social, embora podre, mas minimamente aceitável. Com a queda do ‘muro de Berlim’, em 1989, distendeu-se a todo o continente a pretensa paz com os tentáculos do progresso, do consumo, da qualidade de vida e de tantas outras proclamações mais ou menos efabuladas dos regimes políticos e ideológicos. Até a construção da União Europeia tem contribuído para o sucesso da maior parte dos países e nações. A inclusão de certos povos procedentes da ex-cortina de ferro fez com que o sucesso ultrapassasse fronteiras e barreiras alfandegárias. A livre circulação – sem necessidade de passaporte – de pessoas e bens foi construindo a utopia de que teremos sucesso com mérito ou sem ele.

= Uma espécie de interregno eclodiu entre 2008 e 2015, tanto na Europa e no mundo ocidental, quanto em Portugal em particular. É dessa época o termo que usamos supra – ‘portugalândia’ – e com isso os seus autores quiseram alertar para a possibilidade de não ser aproveitada a circunstância de ‘crise, mas antes para nos continuarmos a iludir, usando os velhos truques de recurso a técnicas menos claras ou de pretendermos ser melhores jogadores do que os outros, numa palavra: acabe-se com o chico-espertismo e o desenrascanço, que tão simplesmente nos tipifica…como portugueses.

= Agora que atingimos o sucesso de superavit orçamental – ainda não consegui compreender com que artimanha – poderá ser útil reparar nalguns sinais de que a ditadura do sucesso talvez possa trazer à luz um certo colapso de valores considerados fundamentais. Cingimo-nos tão simplesmente ao setor da família. Esta deveria ser o reduto mais sagrado para cada pessoa, mas tem-se tornado uma espécie de campo de batalha entre os vários elementos, sem respeito nem consideração. Os tempos de presença de uns aos outros vão sendo encurtados ou mesmo suprimidos, de entre eles destaco as refeições. Estas, feitas em espaços exteriores à casa de família, esfriam o ambiente de partilha, de encontro e de comunhão. Como alguém referia em jeito de piada: antigamente as filhas cozinhavam como as mães, agora bebem como os pais. Com alguma mágoa e tristeza vemos que a família deixou de ser um espaço de convívio para se tornar mais um espaço de conflito. A desconstrução da família é hoje mais propagandeada do que a estabilidade afetivo-emocional. Com que velocidade foram cortados os laços de relacionamentos alicerçados no compromisso entre os mais velhos – avós, pais e outros – para viverem mais ao ritmo da oscilação e, quantas vezes, dos interesses pessoais e não familiares.

Não deixa de ser sintomático que, geralmente, a causa para que possa ser anulado um matrimónio seja aduzida a ‘imaturidade dos noivos’…ao tempo. Estamos até a falar de pessoas com mais de vinte anos e que se revelaram imaturas para assumir tal compromisso. Nota-se uma catadupa de razões para que se tente explicar o insucesso. Efetiva e afetivamente custa a perceber por onde caminha o presente e com apreensão olhamos o futuro, se a família for a principal vítima da ditadura do sucesso. Com efeito, construir a família (com tantas coisas) em consonância fará com que todos se sintam participantes do mesmo projeto…sempre.     

 

(*) Portugalândia é o nome do local onde a ação toma lugar, num jogo criado por quatro especialistas do Instituto Superior Técnico (IST), da Universidade Técnica de Lisboa, uma editora nascida em 2012, com o objetivo de criar jogos inteligentes e que promovam o convívio e o espírito entre os participantes. Este é um jogo de cartas que satiriza a realidade vivida nas sociedades democráticas, dos jogos de poder às pressões e influências obscuras. O nome é sugestivo - «Vem aí a Troika» -, num jogo que desafia os concorrentes a levar um país à bancarrota. Esta é uma nação em queda livre. Qualquer semelhança com factos, entidades ou pessoas, dizem eles, “é pura coincidência”.


António Sílvio Couto

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

‘Simili modo’ (do mesmo modo, igualmente)


Esta expressão –‘simili modo’ – aparece-nos em vários momentos bíblicos e litúrgicos, numa referência de comparação entre algo transcendente e a nossa condição terrena, bem como na tentativa de incluir em linguagem humana aquilo que os nossos limitados sentidos vão conseguindo atingir, observar e almejar.

Ora, nas múltiplas incidências da nossa vida poderemos tentar analisar diversas situações ‘simili modo’ como se fôssemos ou deixássemos de ser algo que nos possa ter empenhado na vida, sobretudo numa envolvência militante, apaixonada (muito para além do sentido meramente emotivo/sentimental) e, particularmente, como ideal de toda uma vida.

= Trazemos a esta reflexão duas questões um tanto sensíveis e aparentemente díspares, não só pela sua complexidade como sabendo que podem atingir situações mais próximas senão mesmo personalizadas. Refiro-me ao tema do celibato sacerdotal e à ‘conversão’ possível de certos (ou de todos?) os militantes marxistas. Sobre o celibato sacerdotal citamos algumas frases – porque expurgadas por outros serão em recurso alheio – do Papa emérito Bento XVI. Quanto à pretensa mudança ideológica dos citados lançarei breves perguntas de sugestão que são um tanto mais do que suposições…

* Num livro escrito em parceria com um cardeal (prefeito da congregação para o culto divino e disciplina dos sacramentos), Bento XVI (de seu nome teológico José Ratzinger) não deixa de se pronunciar – clara, distinta e simplesmente – sobre o celibato sacerdotal, dizendo: ‘acredito no celibato’ dos sacerdotes, pois este ‘tem um grande significado’ e ‘é indispensável para que o nosso [o dos padres, em primeiro lugar] caminho na direção de Deus permaneça o fundamento da nossa vida’. Em jeito de advertência e numa quase lição testamentária, Bento XVI refere que ‘é urgente e necessário que todos – bispos, padres e leigos – parem de se deixar intimidar pelos apelos mal direcionados, pelas produções teatrais, pelas mentiras diabólicas e pelos erros a moda que tentam derrubar o celibato sacerdotal’.

Num tempo em que muitos – a maioria segundo conceitos mais de sabor mundano do que com visão cristã esclarecida, amadurecida e comprometida eclesialmente – discutem o tema do celibato sem que isso lhes diga respeito, é essencial que nos fixemos naquilo que é importante e não deixemos que interesses mais ou menos maquiavélicos preencham a ignorância de uns tantos na Igreja. Nunca por nunca ordenar homens casados –como foi de forma excecional sugerido no sínodo sobre a Amazónia – suprirá a acentuada falta de padres na Igreja católica. Se isso fosse a solução muitas das igrejas protestantes e até ortodoxas não teriam a mesma (ou maior) crise de vocações ao ministério sacerdotal.

É uma questão de vocação e não de mera conveniência de serviço. Digo-o de forma convicta e sem pretender reclamar qualquer ‘compensação’, se alguma vez algo se puder modificar. Foi conscientemente assumido. Ora, sobre este tema já escrevi, por ocasião dos vinte e cinco anos de padre, uma reflexão que cito como exemplo: ‘Dom e carisma de ser padre’, Prior Velho, Paulinas, 2008, pp.136-142.

* Poderá um marxista – comunista, socialista ou trotskista – convicto mudar a sua posição – na maioria das vezes a sua pretensa opinião – sobre tantos dos temas identitários da sua luta? Os clichés – luta de classes, capital/capitalismo, exploração, mais-valias, povo, trabalho/trabalhador – em que se ancora terão ainda lugar na política atual? A incapacidade para passar à prática as ideias dialéticas não faz abrir os olhos para a inconsistência/falhanço das mesmas? O empobrecimento social e económico dos países e das populações não fez perceber que a ditadura popular não criou democracia? O regime que criou mais vítimas (milhões em todo o mundo e desterrados às miríades) no século passado ainda merece confiança, hoje? A violência e discriminação sobre os que não eram da ideologia, não fez perceber a injustiça das ideias e há quem as defenda e vote, na atualidade? Certas posições autárquicas não serão de um certo marxismo capitalista?

Eis algumas das perguntas que fizeram uns tantos libertar-se das peias do marxismo, deixando-o como regime e quase religião ateia. Muitos dos testemunhos interrogam porque levou tanto tempo a compreender a farsa em que viveram… Muitos/as dos recauchutados/as perderam anos ou ganharam novo sentido de vida?

= Do mesmo modo que para muitos dos nossos coevos é de difícil compreensão o ‘mistério’ do celibato sacerdotal, tal é a erotização da sociedade, assim tenho algum resquício de incompreensão para com regimes que tão nefastos frutos deram para com a história da Humanidade recente…sem arrependimento percetível.

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Haverá (total) serviço nas lides político-partidárias?


‘Tu és ainda militante? Pago-te as cotas e tu votas num determinado candidato’!

Esta breve conversa era feita por um dirigente concelhio, que não foi escolhido pelas chefias para integrar a lista às últimas eleições… Agora passou-se para as hostes de um outro candidato, que, certamente, lhe terá prometido o tal posto desejado…sobretudo se estiver em final de tempo de serviço autárquico!

Na noite de rescaldo das votações internas de um certo partido ouvimos, por diversas vezes – umas de forma explícita e outras de modo mais insinuado – um dos dois que vão disputar a liderança a proclamar que nele ninguém votara com a promessa de vir a ter um qualquer lugar que o votante/eleitor almejasse…Por ele e para ele todos devem estar ao serviço do país, através do partido, e nunca querendo servir-se dos postos para conseguirem outros objetivos…

Daquilo que vemos e pelos resultados obtidos, será mesmo assim tão grande o despojamento em quem anda nas lides partidárias? Não se sentirá, na maioria das agremiações partidárias, uma espécie de antecâmara para outros voos e melhores lugares? Não será tão habitual assim não vermos jovens a entrarem nas formações juvenis dos partidos para conseguirem, num futuro mais ou menos próximo, um melhor lugar de trabalho (ou de emprego), desde as autarquias até às fimbrias do poder nacional? Alguém acredita mesmo que, pelos tiques manifestados, não temos tantos/as na profissão, sem nunca exercerem outra de forma clara, correta e capacitada? Ao vermos a corrida aos partidos de acesso ao poder, não seremos tentados a considerar que as iniciativas se podem confundir com projetos de candidatura a empregos melhor remunerados? Não se confundirão, por vezes, os desempenhos com os princípios e valores que deveriam informar os projetos?

 

= A partir de uma perspetiva cristã podemos e devemos questionar-nos sobre a presença e participação dos cristãos – particularmente os leigos – na vida social e política. Desde logo é fundamental esclarecer que a presença/participação dos cristãos na política é muito mais do que a mera envolvência partidária, pois esta, pela própria configuração terminológica de ‘parte’, poderá significar uma das partes e não a totalidade…

Atendendo aos desafios dos evangelhos – ‘vós sois o sal da terra; vós sois a luz do mundo’ – e às proclamações do magistério da Igreja católica, podemos considerar que a participação dos cristãos na vida do mundo sempre foi não só incentivada como feita a marca dos cristãos na intervenção no seu meio, isto é, reduzir a vivência religiosa ao culto nem sempre se faz cultura.

Quem conhecer as múltiplas referências do magistério na vida política recordará o celebre texto da ‘epístola a Diogneto’ (século II) onde se faz o elogio da presença dos cristãos no mundo, como sua alma e mesmo salvaguarda, até aos momentos mais significativos dos últimos papas (João Paulo II, Bento XVI e Francisco) sem nunca esquecermos a visão prospetiva do Concílio Vaticano II, especialmente na constituição pastoral ‘Gaudim et spes’.

Eis um breve excerto deste documento conciliar: «todos os cristãos tenham consciência da sua vocação especial e própria na comunidade política; por ela são obrigados a dar exemplo de sentida responsabilidade e dedicação pelo bem comum, de maneira a mostrarem também com factos como se harmonizam a autoridade e a liberdade, a iniciativa pessoal e a solidariedade do inteiro corpo social, a oportuna unidade com a proveitosa diversidade. Reconheçam as legítimas opiniões, divergentes entre si, acerca da organização da ordem temporal, e respeitem os cidadãos e grupos que as defendem honestamente. Os partidos políticos devem promover o que julgam ser exigido pelo bem comum, sem que jamais seja lícito antepor o próprio interesse ao bem comum» (n.º 75).

Se todos soubéssemos ocupar o nosso lugar nos vários círculos de presença, de intervenção e de compromisso conseguiríamos construir uma sociedade mais participativa tanto no serviço quanto na diversidade, onde cada um respeita os outros e coloca ao seu dispor as qualidades/dons que possui.

Continuar a fazer a figura dos ‘marretas’ – série televisiva com mais de quatro décadas – onde dois velhos rezingões tudo criticavam e contestavam, desde o seu camarote, vendo, preferencialmente, os defeitos alheios…não deixará rasto de mudança. Queira Deus que sejamos mais interventivos do que intervencionistas, cada qual no seu âmbito mais simples e sincero…     

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Looks de penteados…para rejuvenescer ou não


Com o início do ‘novo ano’ vão aparecendo sugestões – umas mais clássicas, outras mais ousadas e algumas um tanto bizarras – sobre o modo como enfrentar o tempo deste ano. Neste contexto deu-me na observação aquelas que pretendem lançar referências aos penteados, sobretudo na qualificativa de darem a entender algo que possa rejuvenescer quem queira alinhar, tanto no âmbito feminino como na vertente masculina.
As sugestões apresentadas são algo ‘tentadoras’, na medida em que, a partir de uma certa forma de cortar o cabelo, poderão ser retirados anos na aparência de quem é observado. Isso poderá ser aliciante tanto quanto somos, hoje, confrontados com essa eterna sedução de querermos parecer mais novos, mesmo que à custa do disfarce, do engano ou mesmo da aliciação.
Dada a complexidade da terminologia bem como da arte que envolve a possibilidade de recorrer aos cortes de cabelo para que possam deixar o sujeito mais jovem, ficamo-nos pela abrangência com que se pretende fazer desta arte uma nova imagem a dar aos outros. Por vezes dá a impressão que se pretende retocar por fora – na cabeleira ou sua ausência – a falta de conteúdo daquilo que ela envolve…pretensamente! 
= Efetivamente vivemos numa acentuada ‘era da imagem’: a temos de nós mesmos e a que queremos que os outros tenham de nós; essa que desejamos que tenham de nós, com todos os artefactos que usamos para a produzir, sustentar e/ou manifestar; essa outra que desejaríamos que tivessem, embora nem sempre se coadune entre o pretendido e o realizado; essa que gostaríamos de modificar, mesmo que à custa de artimanhas (lícitas ou menos boas) de retoque e/ou de camuflagem; essa imagem de imitação – veja-se a produção de cortes de cabelo ou de recurso às vestimentas em moda – em que mais fazemos de conta do que somos aquilo que revelamos, de verdade.
Com razoável regularidade encontramos pessoas que conseguem ‘enganar’ a idade real, seja pela forma mais ou menos arejada como se apresentam, seja pelo modo como se cuidam, arregimentando alguns adereços de moda, de adorno ou de disfarce…de modo a parecerem mais juvenis. Nalgumas circunstâncias podemos até encontrar mães que quase parecem ter a idade das filhas – isto acontece mais no feminino do que no masculino – e com tal observação sentirem-se lisonjeadas, mais do que ofendidas.
De facto, é preciso aprender a saber ligar com a idade que se tem, mais do que com aquela que se desejava ter. Nalguns casos seria útil haurir o mínimo de memória sobre aquilo que se observava e que talvez se criticava naqueles/as que tinham a idade que nós agora temos. Isso far-nos-ia ser mais ponderados, tanto nas críticas, quanto nas possíveis considerações menos favoráveis para com os outros…que agora podem (ou devem) ter para connosco. 


= Mesmo que de forma sucinta vamos tentar abordar as diversas abordagens que citamos supra:


* a imagem que temos de nós mesmos – algo que se vai delineando ao longo da nossa existência, tendo em conta aquilo que fomos apreendendo da vida e das situações boas/agradáveis ou difíceis/negativas… Tudo isso é mais do que aquilo que vemos, cada manhã, narcisisticamente, ao espelho, aferindo-nos ao desenvolvimento das experiências pessoais e/ou confronto com os outros;


* a imagem que os outros têm de nós – por vezes podemos não ser corretamente entendidos ou talvez julgados…isso nos fará aprender com a lidar com o menos bom apreço daquilo que somos, sem nos deixarmos vencer pelas críticas alheias…mais ou menos aceitáveis;


* a imagem que podemos querer que tenham de nós mesmos – tendo em conta as influências dos outros sobre nós, podemos desejar algo que nos pode condicionar no nosso comportamento, dando mais ouvidos àquilo que dizem de nós do que àquilo que somos de verdade;


* a imagem de imitação dos outros – com que facilidade podemos ser forçados a viver à maneira de outros, mas não somos eles, e isso poderá colocar-nos em conflito connosco mesmos e com os outros.


É essencial refletirmos nesta frase do pensamento grego: ‘conhece-te a ti mesmo’ (Platão), num misto de descoberta e de contínuo caminho de humildade, cada um para consigo mesmo e para com os outros…      
 


António Sílvio Couto

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Mais de 35 milhões de euros/dia para comer fora de casa


Os dados foram publicitados recentemente: em 2018, os portugueses gastaram 35,5 milhões de euros, por dia, a comer fora de casa. As contas totais, segundo as estatísticas da UE, perfizeram cerca de 13 mil milhões de euros que as famílias portuguesas gastaram a fazer refeições em restaurantes, cafés, cantinas e similares.

Atendendo à média europeia de sete por cento, os gastos dos portugueses colocam-nos em sexto lugar do índice com mais de nove por cento das despesas mensais das famílias.

Se compararmos os dados de vários países europeus: a Irlanda é quem mais gasta em comer fora com 14% do orçamento familiar, enquanto na escala dos que gastam menos nesta matéria encontramos a Roménia, a Polónia e a Lituânia, que ocupam os últimos lugares.

Se fizermos uma leitura comparada em dez anos – 2008 (início da ‘dita’ crise) a 2018 – sobre este facto de ‘comer fora de casa’ os dados revelam-nos que os portugueses subiram um ponto percentual – de 8,2 para 9,2 – tendo ainda em conta a descida do IVA na restauração de 23 para 13%, desde meados de 2016…

Estas contas dão para interpretar que estamos a viver melhor, indo com regularidade comer fora de casa? Será isto um indício de qualidade de vida ou uma extensão de algum novo-riquismo encapotado? O recurso à refeição fora pode ser revelador de bom ou de mau ambiente familiar? Estar exposto à refeição fora de casa ajuda a ser ou a parecer mais família?

Eis um pequeno excerto sobre este assunto do não-comer em casa, como família, do livro ‘Utopia’ de Tomás Moro (século XVI):

«Às horas fixadas para o almoço e para o jantar a sifogrância [termo que pode significar ‘comunidade’ no contexto da obra] inteira dirige-se ao seu refeitório, alertada por um clarim. Só não respondem à chamada aqueles que estiverem acamados nos hospitais ou em suas casas. Contudo, não é proibido a ninguém ir-se aprovisionar diretamente no mercado, depois de os refeitórios estarem abastecidos. Sabem que ninguém o fará sem razão. Com efeito, se bem que todos estejam autorizados a comer em suas casas, não o fazem de bom grado, porque isso é bastante mal visto. E acha-se absurdo ter o trabalho de preparar uma refeição pior do que aquela, excelente e abundante, que está à disposição de todos num refeitório próximo» (livro 2).

- Perante este texto com mais de quinhentos anos como que poderemos entender certas tentativas mais ou menos ‘coletivistas’ de sonegarem a importância do ambiente familiar, onde as refeições se deveriam tornar momentos de confraternização, de convivialidade e, sobretudo, de partilha em comunhão de vida, de história e em família…

- O incremento de tantos refeitórios em empresas dá-nos a impressão de parecer uma espécie de reminiscência à luz deste texto da ‘Utopia’, fazendo crer que as empresas/locais de trabalho se poderiam vir a tornar as substitutas da verdadeira família. Repare-se mesmo na avidez e no frenesi com que se fazem certos ‘jantares de natal’, nessa outra tentativa de reconverter o que na família possa acontecer, tornando tais façanhas algo de jocoso e de menos bom apreço, de espaço de substituição ou, sabe-se lá, se não seria ainda uma espécie de fazer humor contra a própria família.

- Efetivamente os ataques à família são mais do meramente ideológicos, mas, em pequenas coisas, fazem com que os gestos mais simples e marcantes da vida familiar tenham de ser vigiados sempre. Com efeito, o não-cozinhar em casa faz esmorecer a lareira, enquanto esta é fonte de irradiação do calor físico, psicológico, espiritual e moral. Veja-se como as casas se vão esfriando, enquanto os sentimentos se vão esboroando. Repare-se como o comer fora de casa se tem convertido num ato de mera ação de alimentação em vez de ser um espaço de enraizamento de todos na história comum e não meramente num sobreposição de indivíduos e não de pessoas…com afetos, sentimentos e laços de carinho.

- Não sei se é da idade ou se funciona como tentativa de fuga, mas cada vez menos me apetece ir a restaurantes, pois em casa podemos ser mais nós mesmos, conhecendo e dando-nos a conhecer… Até o paladar da comida é outro, quando cozinhada com tempo e em jeito de intimidade…para quem se cuida.

- A proliferação de tantos lugares de comer fora de casa não estará a matar a vida da família, ao menos no sentido cristão da mesma? Parafraseando um certo ditado, digo: família que se alimenta (come) unida, permanecerá unida!      

  

António Sílvio Couto

domingo, 5 de janeiro de 2020

Todos (acham que) têm um preço


As notícias sobre a compra-venda de jogadores tem sido habitual, sobretudo, na área do futebol, atingindo preços exorbitantemente escandalosos. Quem acompanhe, mesmo que ao-de-leve, estes assuntos do futebol saberá que o valor dos jogadores se mede da frente para trás, isto é, um avançado (de quem se espera golos e vitórias) vale mais do que um centrocampista ou um defesa e imensamente menos é valorizado o guarda-redes…como se o goleiro não dependesse dos outros para marcar…
Ora este espetáculo especulativo chegou a outros campos de atividade, tais como o jornalismo, a televisão, a representação em telenovela e mesmo o (pretenso) entretenimento…dito cultural. Assim temos visto figuras a trocarem de estação à cobrança de maior salário do que aquele – já substancial – auferiam.
A mais recente transferência – que, no fundo, é uma reincidência – foi protagonizada por um dos ‘velhos’ gatos com mau cheiro…este não tem nada a ver com odores, mas antes pelas impertinências – captadas por uns tantos iluminados – da jocosidade transversal. Embora de unhas enferrujadas ou em forma de fazer cócegas, trocou um canal privado (em vias de ser vendido) por outro que se considera em reformulação… acrescentando-se a outras trocas também milionárias, no passado não-muito longínquo.
Dizem que os números envolvidos que a mudança pode atingir cinquenta mil euros por mês ao agora trânsfuga regressado…Verdade ou mentira? Suposição ou embuste? Lenda ou revelação? Manipulação ou engano? Provocação ou falta de senso?
A fazermos fé nos números anunciados aquele montante será mais pago, essencialmente, pelos telespectadores mais do que pela qualidade do produto que possa ser apresentado. Com efeito, as ditas audiometrias, permitem aos grupos económicos, que gerem os contratos de publicidade, somar mais ou menos em conformidade com o número de telespectadores que acedem aos meios de comunicação em causa. Assim se muitos virem os programas do pretenso humorista/comunicador os custos/ganhos serão maiores para quem quiser inserir spots publicitários no horário de emissão… Será uma questão de números mais ou menos manipuláveis.

= Tendo em conta o tecido económico-social do nosso país parece que, casos como o que temos estado a analisar, conferem à nossa conduta coletiva uma espécie de anomalia mais ou menos escandalosa, na medida em que vemos sujeitos a serem pagos num mês o montante que uma fatia significativa da população não consegue auferir ao longo de um ano. Será isto moralmente aceitável? Não andaremos a construir uma sociedade em estratos de classes à custa da exploração da ignorância? O desequilíbrio entre os fatores não virá a tornar-se potencial de conflitos? Com que direito uns tantos se arrogam na presunção de importância que meros fatores secundários lhes conferem circunstancialmente? Será desta forma abusiva que iremos criar uma sociedade mais justa e acertada nos deveres e nos direitos? 
= Noutra perspetiva se pode ainda considerar que há muita gente – bem mais do que seria desejável – que tem sobre si mesma uma exagerada noção ou um conceito que só o seu ego idolatrado alberga. Tenho encontrado pessoas que lutam em excesso por serem apreciadas, confundindo os dons/qualidades que têm com a presunção de serem aquilo que os outros não lhe reconhecem. Esta ‘doença’ é bem mais vulgar do que se possa julgar e vai criando em muitos círculos de relacionamento focos de problemas senão mesmo de conflitualidade. Se aliarmos isto às pretensões que tantos/as manifestam poderemos entrar numa espiral de arrogância, bem mais visível do que seria desejável…
Quantos mentores e executores da política, na vida eclesial, nas áreas profissionais, nas autarquias ou nas instâncias de governo e partidárias acham que têm um preço, mas o seu valor é bem menor do que creem e mais mínimo do que pelo modo como se fazem pagar… A verdade seria a melhor conselheira de tanta dessa gente que está na vida pública, assim todos nos ajudássemos e fossemos ajudados…leal e sinceramente!  

António Sílvio Couto

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

‘Irritação’ do Papa – compreensão ou não-desculpa?


Percorreu a comunicação social – agora diz-se: de forma ‘viral’ – um gesto de alguma irritação do Papa Francisco para com uma senhora – dá impressão que era de aspeto oriental – que o tentou reter, por ocasião da sua passagem junto das barreiras do público, antes da celebração no último dia do ano passado…

Isso que aconteceu foi de tal forma desagradável que o próprio Papa pediu desculpa pública, na oração de Angelus do primeiro dia do ano, por ter perdido a paciência para com aquela senhora – seria fiel ou provocadora? – no dia 31 de dezembro passado.

As reações foram tão díspares – ou seria melhor dizer disparatadas – que talvez seja útil colocar alguns pontos de ordem à nossa reflexão humana, cristã, católica e mesmo papal.

Os títulos e os comentários roçaram alguma menos boa aceitação sobre o gesto/atitude/reação do Papa Francisco. ‘Papa irrita-se com mulher e dá-lhe palmada na mão’; ‘Papa irrita-se com mulher que lhe agarrou a mão’; ‘Papa Francisco bate na mão de mulher que o tentava puxar’… eis alguns dos títulos das publicações escritas por cá.

Há quem coloque o incidente sob a alçada da menos boa atuação da segurança para com o Papa com os inerentes riscos de ele se aproximar em excesso das multidões e de nem sempre ser atalhado que algo pode acontecer de imprevisto senão mesmo de atentado.

Embora reconhecendo que foi um mau exemplo por ter perdido a paciência, o Papa Francisco tão popular e excessivamente próximo de quantos dele se abeiram poderá intentar uma nova forma de se dizer próximo sem proximidades arriscadas…

Recordo a comunicação que ouvi, em Fátima, de António Spadaro – um jesuíta italiano com boa reputação desde o Vaticano – que comparava os dois últimos papas e os seus gestos: Bento XVI não alargava os braços perante as multidões mais do que a abrangência dos ombros, como bom alemão circunspeto que era e que é; enquanto Francisco exprimia a sua relação com as multidões abrindo o mais amplamente que podia os braços…à boa maneira da América Latina. Ora, sete anos depois de ter chegado à cátedra de Pedro, Francisco revelou este simples incidente no trato com as multidões que o cercam. Isto é mais do que um problema de segurança, poderá (e deverá) servir para rever o modo de estar com quem o procura, isto é, próximo mas sem exageros… para que não se tenha de retrair no modo de estar, condicionando a forma de ser…

Este episódio com o Papa não poderá deixar tudo na mesma, pois não pode ser interpretado como uma grande ofensa nem como algo de somenos interesse. O Papa Francisco é humano e pode reagir de forma menos correta. Por outro lado, não foi tudo deitado a perder sobre o que ele tem feito, dito ou atuado… ao longo de mais de oito décadas de vida, se bem que as últimas sete tenham sido mais sob os holofotes da comunicação social. Ter compreensão para com uma reação mais irritadiça não faz com que o Papa seja considero rude ou menos bem-educado. Também podemos e devemos considerar que, por vezes, há pessoas que não sabem respeitar os limites de aproximação aos outros, sobretudo àqueles que ocupam lugares de algum relevo humano ou social. Saída do anonimato a dita senhora talvez venha a tornar-se um alvo de atenção sobre a repercussão daquilo que lhe aconteceu com o Papa possa significar.

Num inquérito de um jornal de grande tiragem sobre o impacto do incidente com o Papa, as respostas situavam-se: dois terços dos que responderam eram a favor do Papa e só um terço aceitando que isso abalava a imagem de Francisco…

Que não seja um momento infeliz de irascibilidade que possa deitar a perder tudo quanto o Papa Francisco tem feito pelos outros, inclusive por aqueles que, de tantas e tão variadas formas, o vão detraindo. Queira Deus reconstruir o que algum mal ofuscou…  

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Condecoração: porque sim ou para que não?


A avaliar pelas várias, multiformes e altissonantes condecorações, conferidas pelo ‘estado português’ – no passado ou nos tempos mais recentes – podemos considerar que há uma espécie de saldos nesta distinção nacional. Não estão em causa muitas dessas benesses auferidas por figuras que se destacaram nas mais díspares atividades de presença de portugueses/as no mundo e/ou no recanto mais lusitano. Há, no entanto, uma inflação de figuras, de figurões ou de figurinhas que nos deixam alguma perplexidade, senão mesmo um certo desagrado a este conformismo inexplicável.

Se fizermos uma espécie de resumo das condecorações distribuídas pelos presidentes após o ’25 de abril’ poderemos considerar uma razoável lista – onde começa a rarear quem não caberá como ainda não-agraciado – podendo dar a desprestigiar quem assim foi galardoado…

A título de exemplo apresentamos as distinções – medalhas ou condecorações – dadas pelos últimos presidentes da república: Eanes – 2005; Soares – 2505; Sampaio – 2374; Cavaco – 1565; Marcelo (com o mandato quase a terminar) – à média de cem por ano, isto é, cerca de 300…

Mesmo que de forma sucinta quais são as categorias das ordens honoríficas em Portugal? São três: antigas ordens militares – ordem militar da torre da espada, do valor, lealdade e mérito; ordem militar de Cristo, ordem militar de Avis; ordem militar de Sant’Iago da espada; ordens nacionais: ordem do Infante D. Henrique e ordem da liberdade; ordens de mérito civil: ordem de mérito, ordem de instrução pública, ordem de mérito empresarial (agrícola, industrial, comercial).

Quais os graus? Há duas categorias de membros – titulares e honorários. Os graus por ordem descrente de preeminência – grande-colar, grã-cruz, grande-oficial, comendador, oficial e cavaleiro – dama/medalha. O título de membro-honorário pode ser atribuído a instituições ou localidades… Para além dos cidadãos nacionais também os cidadãos estrangeiros podem ser agraciados com as ordens honoríficas portuguesas.

Feita esta breve resenha das putativas condecorações segundo as ordens honoríficas, como que se podem colocar algumas questões mais de âmbito geral do que fulanizado em qualquer dos (já) agraciados.

– Certamente todas essas pessoas foram exímias cumpridoras das suas obrigações – profissionais, sociais, culturais e até mesmo humanas, no mínimo – mais elementares. Porque teriam de ser destacadas do resto dos mortais? Não será o cumprimento do dever o melhor reconhecimento, seja de quem for? Não soará a injustiça premiar quem se limitou a fazer o melhor que sabia e, em muitos casos, sendo bem pago para tais feitos? Este clima de condecorações não andará a camuflar certas incompetências sublimadas?

Ora, dentro de pouco tempo será preciso recorrer à distinção tão simplista quão desagradável: ‘recusou ser condecorado’… para que se possa reconhecer mais o mérito do que a (pretensa) adulação.  

– Por certo não estará em causa o devido reconhecimento dos feitos de tantos/as dos agraciados com os vários graus de reconhecimento, poderá é dar-se o caso de haver situações em que o comportamento posterior ao agraciamento possa ser questionado ou mesmo questionável. Vimo-lo em casos recentes e foi uma trabalheira para quase justificar o injustificável. Será ainda de mau tom que se retirem os títulos, sejam quais forem as causas, sobretudo se a sua consignação não tenha sido tão digna quanto era desejável.

– Seria ainda mais repugnante que se defende-se uma posição de só condecorar quem já tivesse morrido. Isso não serviria de exemplo para os que beneficiaram do testemunho humano, cultural e pessoal dessa pessoa, conferindo maior empenho em comprometer-se com o seu trabalho em favor dos outros. Será que tantos/as dos agraciados têm sido mesmo bons exemplos de cidadania, como era suposto serem mais do que parecerem?

– Se descermos ao âmbito autárquico e às condecorações distribuídas teremos muito a questionar mais pela inutilidade das distinções do que pela oportunidade dos acontecimentos. Com que facilidade se veem emergir figuras, coletividades/associações ou personalidades que mais não passam de glutões efémeros ou enfeites de ocasião…e, em maré de campanha eleitoral, é um fartote de casos, de situações ou de remendos.

– Na minha parca compreensão cristã tenho por princípio essa frase bíblica: depois de terdes feito tudo o que vos foi mandado, dizei – somos servos inúteis, só fizemos o que devíamos fazer! Por isso, questiono as condecorações e não os agraciados… hoje como ontem!    

  

António Sílvio Couto