Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quarta-feira, 31 de março de 2021

Habilidades e espertezas

 


Por decisão governamental das zero horas de 6.ª feira (26 de março) até às vinte e quatro horas de 5 de abril (2.ª feira) está proibida a circulação entre concelhos. Desta forma se pretende condicionar, por ocasião das celebrações (religiosas ou sociais, económicas ou turísticas, tradicionais ou de neo-veraneio) do tempo da Páscoa, a deslocação das pessoas e com isso atalhar à não-propagação do vírus, que tem dado origem a esta pandemia.

Atendidos os casos previstos de exceção, sobretudo em razão de trabalho ou de prestação de auxílio a terceiros de forma justificada e por escrito, logo emergiram ‘soluções’ para tornear as regras gerais...Como bons portugueses, uns tantos mais espertos puseram a funcionar a sua capacidade habilidosa de subverter a ‘lei’ e com isso não cumprirem o que estava estipulado para todos. Dizem alguns dados que, até à hora estipulada para a restrição, ter-se-ão deslocado para mais de cem quilómetros da sua residência habitual, cerca de onze por cento dos portugueses... naquilo que daria quase um milhão de ‘deslocados’... Se atendermos , por outro lado, aos dados de deslocação dos portugueses por ocasião do Natal de 2020 – os mesmos cem quilómetros fora da residência habitual – pode verificar que só oito por cento o fizeram... com as consequências suportadas nos meses de janeiro e de fevereiro passados...

Nisso a que pretenderam designar de ‘confinamento a conta-gotas’ vimos nestes dados sobre os onze dias antes e depois da Páscoa como uma espécie de enxurrada quase sem-controlo e ainda roçando os laivos da provocação à cidadania, pois uns tantos acharam-se no direito de não cumprirem essas regras e disso fazem alarde ao aparecerem acintosamente nas televisões ou ao se ufanarem nas redes sociais... Daqui já se infere um aviso simples e linear: uma quarta vaga da pandemia se adensa no horizonte para o mês de maio com resultados ainda mais gravosos, à mistura com o processo de vacinação... titubeante em curso.

 = Confesso que há coisas que me confundem e baralham: haver quem se julgue mais esperto do que os outros, enquanto se apresenta – pública e notoriamente – como transgressor do mínimo respeito pelos demais. De facto, a convivência cívica é, antes de tudo, uma forma educada de ser respeitador das regras comuns de civismo, nada fazendo nem tão pouco povocando a exceção, mas a igualdade de comportamentos, pois estes ajudam a sermos corretos no querer e no agir. Ora, certas figuras – mais parecem figurões – gostam de aparecer como fora do comum, não se dando conta que podem estar a ofender a normalidade. Com efeito, os que sairam de casa para ‘gozarem as férias de páscoa’ terão assim tantos rendimentos para irem de bagagens para as praias algarvias? Os rendimentos auferidos permitem programar tão rapidamente férias, iludindo as regras de confinamento? Serão todos tão fartos de economias que suplantam o normal, fazendo-o excecional? Ainda haverá cristãos – católicos sociológicos – que trocam a vivência das coisas essenciais da fé pela transgressão mínima da legalidade?

 = Em ligação com este clima de resistência às regras da cidadania sinto alguma tristeza e mau-estar essa publicidade a ‘comida para animais’, quando, minutos antes ou depois, vemos na mesma tela, filas de pessoas a mendigarem algo para colmatar a fome pessoal e da família. Isto não lhes dá repugnância? A mim revolta-me as entranhas. Não é que os animais não mereçam o melhor (ou o possível) cuidado, mas trocar as pessoas, isso faz-me confusão e baralha-me as ideias.  Vivemos, efetivamente, numa convulsão ética de grande expressão, dando-se a possibilidade de os critérios de valoração estarem confundidos. Seria razoável que estivessem invertidos, pois bastava voltá-los ao contrário e ficariam na posição desejada como natural e normal, mas não esta forma caleidoscópica em que se encontram os valores torna-se muito difícil colocar tudo na ordem, isto é, segundo critérios onde pessoa humana seja o centro e não mais uma peça no puzzle de entretenimento...

Os episódios de esperteza e as habilidades de contornar as regras nestes dias da Páscoa, manifestam o egoísmo, a falsidade e o oportunismo com que vivem tantos dos portugueses. Que falta para os corrigir?      

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 29 de março de 2021

Silêncio

 


Quem gosta do silêncio? Como podemos caraterizar o silêncio? Haverá etapas de silêncio, no dia-a-dia e na maturação da vida? Será pedagógico e necessário o silêncio? Como podemos criar condições para que haja (ou possa haver) silêncio? O silêncio será, efetivamente, uma linguagem de vida? Haverá diferença entre ‘estar calado’ e ‘sentir o silêncio’? Como entender a distinção entre cultivar o silêncio e ter de estar silenciado? O silêncio exterior não favorece e incentiva o silêncio interior na pessoa? Haverá técnicas para conseguir estar em silêncio, estando só ou com outras pessoas?

 1. Por estes dias o treinador de uma equipa de futebol recusou-se a falar porque o som ambiente do estádio – agora vazio e sem público assistente – estava, segundo ele, demasiado alto, não deixando ouvir nem falar em condições mínimas. Parece ser, hoje, uma corrente de comportamento essa em que as pessoas não conseguem estar num mínimo de silêncio, ao menos exterior: uma tal chinfrineira musical invade tudo e todos, quase questionando quem assim não vive se será normal…

 2. Há desportos e espetáculos onde o silêncio é como que exigido aos que assistem, tal é a concentração subjacente aos intervenientes. Nalguns casos, se houver prevaricadores barulhentos, são como que silenciados pelo resto dos espetadores, tornados, deste modo, como que participantes no espetáculo ou na ação desportiva. Claro que após o cumprimento da façanha – uma boa jogada, uma pega bem-sucedida, uma cantiga melhor executada – se dará uma explosão de aplauso, mas foi preciso guardar silêncio e estar calado para que isso viesse a acontecer…  

 3. Dizem alguns entendidos na matéria que o silêncio com conta-peso-e-medida equilibra a pessoa e fá-la amadurecer. Até as conversas entre as pessoas precisam de espaços de silêncio. Também neste aspeto o que vemos nas televisões e não só – mesmo no dito parlamento – é uma balbúrdia tal de vozes e de conversas que ninguém sabe quem diz o quê. Casos há em que gritaria se torna ofensiva a quem segue os pretensos debates. Temos vindo a crescer na malcriadez que nem feira ou campo de batalha. O pobre silêncio foi exorcizado do convívio social e mesmo do trato político, profissional ou mesmo cultural…

 4. Com o afã das transmissões televisivas, radiofónicas ou de redes sociais das celebrações religiosas foi decrescendo o tempo de silêncio nas mesmas, quase havendo medo dos espaços vazios de não-barulho. Ora, a qualidade de uma celebração não se avalia pelo muito que se diz ou canta, mas pelo que se vive em intensidade, interioridade e contemplação. Urge, por isso, criar as condições para que as celebrações – digo-o do ponto de vista católico – tenham qualidade de silêncio e não seja preciso entreter o não-falar com uma musiquinha de fundo, quando devia ser um espaço preenchido de encontro com Deus em comunhão com os irmãos…pela assembleia reunida. Claro que é preciso saber criar as condições para que haja um silêncio celebrante, desde o tom de voz até às palavras ditas ou caladas, passando pelo contributo musical e de educação de todos para o verdadeiro silêncio…  

 5. A Semana Santa é, por excelência, o tempo do grande silêncio: as palavras calam-se diante do grande mistério de Jesus connosco e para nós. O próprio Jesus emerge em todo o processo da Sua paixão como um homem de silêncio. Até Deus se cala. Assumindo uma dinâmica narrativa, os textos da paixão-morte-ressurreição de Jesus são a maior lição de silêncio em toda a história da Humanidade, reduzindo ao mínimo as palavras e perpassando um silêncio profundo, que não é de morte, mas semente de Vida.

As celebrações dos diversos tempos da Semana Santa são um convite permanente ao silêncio, não vazio de palavras, mas prenhe de contemplação… que há de ser erupção de alegria em domingo de Páscoa. Com efeito, precisamos de viver a intensidade do silêncio no lava-pés, da narrativa joanina da Paixão, na adoração da Cruz – reduzida ao essencial – e do longo silêncio de sábado santo para que a vigília pascal seja de luz, de cor e de som divinos porque humanizados em Jesus, por Jesus e para Jesus vivo e ressuscitado!    

 

António Sílvio Couto

sábado, 27 de março de 2021

Abandono

 


Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?

Esta frase – grito, oração, súplica ou pedido – perpassa a liturgia do Domingo de Ramos na paixão do Senhor.

Extraída do Salmo 22,2 esta citação aparece-nos na leitura do Evangelho segundo São Marcos 15,34.

Seguindo a língua aramaica – talvez a expressão linguística materna de Jesus: Eloí, Eloí, lemá sabachtáni? – encontrámos nas reações a esta súplica algo que nos pode confundir: Jesus clama pelo Senhor seu Deus (Elohim) e os que O escutam julgam que Ele está a chamar por Elias… uma cacofonia que seria jocosa, se o momento não fosse grave e sério… Até na cruz – vivência suprema de Jesus – não O compreenderam nem na linguagem e tão pouco na sua expressão orante…intemporal e dos nossos dias. 

 = Perante as várias situações – pessoais, familiares, sociais, eclesiais ou mesmo culturais – de ‘abandono’ vamos encetar uma breve reflexão sobre este tema… naquilo que ele tem de psicológico, de físico, de espiritual, de existencial, tanto na dimensão percebida quanto nos aspetos mais recônditos e nem sempre percetíveis ou verbalizáveis.

Neste tempo de pandemia tornou-se algo atroz ver a referência mais incisiva aos ‘animais abandonados’ do que às pessoas em abandono. Neste tempo pandémico emergiram tantas situações de pessoas mais velhas votadas ao abandono, tanto de familiares como das estruturas do Estado – autoapelidado – de ‘social, em que os mais frágeis e fragilizados se tornaram quase um empecilho para o designado ‘serviço nacional de saúde’. Neste tempo de pandemia surgiram questões, problemas e casos onde o abandono capcioso estrutural deixou de ser escondido nem os atropelos puderam mais ser encobertos.

Dá a impressão que abandono rima com ‘sem dono’, isto é, quase ninguém assume a sua responsabilidade, num primeiro aspeto tendo em conta a dimensão pessoal, pois, embora não sejamos controladores uns dos outros, podemos e devemos ser cuidadores atentos, próximos e vigilantes. Noutra instância de relacionamento poderemos considerar o potencial abandono numa perspetiva mais egoísta, na medida em que saberemos mais de quem está longe do que do nosso vizinho…até da porta do andar ao lado… Este ‘sem dono’ parece crescer, nisso a que agora chamam ‘distância sanitária’, pois o outro é (ou pode ser) um potencial contagiado e, por isso, contagiador do vírus para comigo…Vai levar bastante tempo a recuperarmos a confiança mútua… até não deixarmos o outro abandonado à sua sorte!

 = Confesso que em meados de janeiro passado tive a sensação de um abandono trucidante: parece que Deus nos tinha abandonado à nossa irremediável sorte… as filas de ambulâncias às portas das urgências – esse era o facto, gerador de pânico e medo – 303 mortos num só dia e ainda com dez mil infetados no penúltimo dia de janeiro… Por onde andava Deus? Como líamos estes dados dramáticos? Quem nos guiava na sua interpretação? Ainda haveria capacidade de se interrogar ou só de se defender?

Um tanto à deriva ou sem nexo de causalidade, os responsáveis eclesiais antecipavam-se às autoridades a fecharem os templos e a confinar os crentes às celebrações em rede virtual. Quase nos ajudávamos a gerir o abandono da prática da fé e da presença à eucaristia dominical. Por diversas formas era percetível que se palpava o abandono por medo, mas também por negligência e até por cobardia. Casos houve em que os funerais eram feitos sem acompanhamento religioso, pois os clérigos hibernaram senão na teoria ao menos na prática…pelo refúgio e salvaguarda da pele.

Tornou-se visível o abandono para com quem estava de luto. De formas algo subtis as famílias eram deixadas a um abandono que se vai pagar caro, tanto na celebração da fé (quem sufragará os seus defuntos se não houve coragem de estar na hora do funeral) como na vivência da esperança (deixada à deriva e sem conteúdo), pois a caridade tornou-se mais de esmolas para comer do que como virtude em ato contínuo de compromisso cristão.

Agora que celebramos o mistério pascal da paixão-morte-ressurreição de Jesus atendamos ao Seu grito de abandono, na Cruz e vejamos os abandonados que precisam da nossa (comunitária) atenção!       

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 24 de março de 2021

Semana santa – das igrejas vazias ao (possível) vazio da Igreja?

 


De muitas e variadas formas se tem procurado interpretar o significado mais profundo do esvaziamento das igrejas (templos e comunidades), particularmente neste tempo de pandemia… antes, durante e depois. Há estudos e inquietações – o recente livro de Tomás Halík, ‘O tempo das igrejas vazias’ é um expoente – à mistura com conjeturas e insinuações. Dependendo da perspetiva de análise poderemos encontrar leituras, propostas e até catalogações nas respostas que nos possam convir, deixando a ideia de que teremos uma solução sem enfrentarmos o verdadeiro problema.

De que adianta tentar encontrar culpados no esvaziamento da cristandade? Não fazemos todos parte do problema? Por que acusar, se estamos também na linha de mira dos acusadores? Os mais velhos serão mais culpados? E os mais novos não contribuíram para o seu desânimo? Certas teses inflamadas serão exequíveis ou somente servem para cocegar os cotovelos em estudo? Escorraçadas as pessoas ainda haverá rituais?

Recordo dois episódios. Um padre novo chegou a uma igreja e viu uma pedra no meio do templo. Logo a quis retirar, pois destoava da dignidade do espaço sagrado ao que antecessor o aconselhou a perguntar primeiro as razões para o facto ainda acontecer e não a iniciar a sua remoção… Haveria causas!

Dizia-me um padre em terras de emigração que encontrou uma ‘missão’ com muita gente, embora ainda algo tradicional, até nos cânticos. O antecessor esteve lá duas décadas, nunca aprendeu a língua, mas conseguiu que as pessoas não se afastassem…foi aguentando a fé.

Ora, nesta proximidade ao celebração do mistério pascal da paixão-morte-ressurreição do Senhor, veio-me à lembrança sugerir alguns passos nesta caminhada de passarmos da contínua aferição do ’eu’ ao ‘nós’ e na descoberta do ‘nós’ no ‘eu’.

1. Silêncio – antes de mais precisamos de fazer silêncio dentro e fora, pois a voz de Deus é de subtil comunicação nesta chinfrineira de sons, desafios ou superficialidades. Ter a coragem de se deixar confrontar nessa subtileza de mergulharmos no rio de água viva que nos percorre intensamente;

2. Escuta – desta nascerá a capacidade de perceber para onde vamos ou como não demos continuar, discernindo as múltiplas vozes e seduções. Mais do que falar é urgente saber ouvir, num exercício contínuo crescente e nunca acabado;

3. Tempo com qualidade – quando não queremos enfrentar-nos, engenhosamente, arranjamos desculpas e a falta de tempo é a mais recorrente. Ora, precisamos de ter tempo para nós mesmos, para Deus e para os outros, sem distrações nem falsas comunicações. A pressa é tantas vezes inimiga da qualidade e mesmo da eficiência;

4. Prioridade às pessoas – numa época de velocidade, onde os ‘gostos’ ou postes facebokianos contam mais do que as amizades de partilha, corremos o risco de nos iludirmos com as conquistas na nossa habilidade e não no amadurecimento sereno pelo estudo e na reflexão com as pessoas concretas e simples. Seremos capazes de desligar totalmente do telemóvel para estarmos só com as pessoas e para elas?

5. Querer aprender – pelo confronto sadio e sereno, pela partilha despretensiosa e humilde, pela sábia humildade de nada ensinar e com todos aprender, poderemos criar uma abertura à diferença, sabendo cada um quem é e respeitando o outro na sua identidade. Quando alguns pararam no tempo e acusam a Igreja de estar parada, teremos a coragem de convidar a virem ver como estamos, sem esconder o que somos?

6. Caminhar com os outros – agora que nos coartaram a possibilidade de termos gestos de afeição, torna-se ainda mais necessário saber ler no olhar e caminhar sem medo com os outros, mesmo os mascarados. Já não há mais distinção entre católicos e outros cristãos, mas entre crentes e descrentes, ateus ou indiferentes.  

7. Falar com sinceridade – o pior que nos podia acontecer era descremos da palavra alheia, desconfiando uns dos outros ou acusando-nos mutuamente. Todos precisamos de crescer na obediência à Palavra de Deus, para que haja verdadeira conversão… de vida e para a vida.

Pior do que constatar as igrejas vazias será percebermos o vazio da Igreja. De facto, a Igreja somos nós, tenhamos ou não a possibilidade de nos reunirmos presencialmente. Não deixemos que o vazio nos invada nem nos tornemos testemunhas de um Cristo sem rosto nem voz. Hoje somos a Sua presença, amando-nos e respeitando-nos, sem acusações nem lamúrias. O vazio não é de Deus…

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 23 de março de 2021

Assistente no Renovamento Carismático – quem, por quê e para quê?

 


Por estes dias foi-me solicitado a intervenção num espaço de formação dos seminaristas da diocese de Setúbal sobre o lugar e significado do ‘assistente’ no Renovamento Carismático. Estava – via zoom – com outros padres ditos de ‘assistentes’ de movimentos na Igreja.

Lá como agora vou recorrer a uma memória descritiva daquilo que vivi, podendo questionar o que se pode estar a fazer e respondendo às três questões colocadas no título deste texto.

 

1. Efetivamente conheci o Renovamento Carismático Católico, em 1976, portanto, pouco mais de nove anos do seu surgimento na Igreja católica, em 1967, e quase no dealbar da sua manifestação em Portugal. Tinha dezassete anos, estudava naquilo que hoje corresponde ao décimo ano da escolaridade, no seminário médio, em Braga… Situando ainda mais: o segundo Concílio do Vaticano tinha acabado há cerca de onze anos… Politicamente, no nosso país, vivíamos uma fase conturbada, mas esperançosa, ao menos para os mais novos.

 

2. De facto, comecei a viver num espírito ‘carismático’ ainda antes de qualquer formação mais sistemática e teológica. Via nos grupos de oração do Renovamento carismático católico leigos (homens ou mulheres), padres e freiras, mais novos e mais velhos, com instrução universitária ou quase analfabetos, da cidade ou do campo… todos ao mesmo nível, louvando, cantando, lendo ou escutando passagens bíblicas, onde cada um fazia a ressonância que considerava útil aos outros, sem grandes lições nem arrebiques moralistas. Foi neste ambiente que cresci, fora do seminário, até ao tempo da ordenação sacerdotal. O padre, neste contexto, só era ‘assistente’ pela simples razão de que estava e participava com os outros irmãos na fé e não havia distorções teológicas acentuadas, pois estávamos em oração não em aulas ou sob observação da ortodoxia…

 

3. É este o meu background teológico-pastoral no RCC e não entendo outra forma de estar, mesmo que, nestes quase cinquenta anos de presença em Portugal e no mundo, algo tenha ‘evoluído’ (uso a palavra entre aspas pois não considera tal naquilo que aconteceu como evolução, mas mais como fixação e defesa de estruturas) para outra forma de estar. Deixo, por isso, excertos dos estatutos da coordenação nacional e ao nível do Vaticano. A ordem de citação é esta pela simples razão da anterioridade na publicação: os de índole lusa são de 2012 e os de âmbito internacional de 2019.

 – Desde logo se faz uma distinção entre o ‘assistente eclesiástico nacional’ e o ‘assistente diocesano’ – aquele é nomeado pela Conferência Episcopal, sob a apresentação de três nomes pela equipa de serviço nacional, com o mandato de cinco anos, renováveis; enquanto o ‘diocesano’ é nomeado pelo bispo, não se dizendo quem o apresenta, tendo também um mandato de cinco anos, renováveis.

Tanto um como o outro têm como atribuições: ‘assistir espiritualmente’ os órgãos da conferência nacional ou do serviço diocesano, respetivamente; ‘zelar pela autenticidade e fidelidade evangélica e eclesial das atividades’; participam nas reuniões dos respetivos órgãos, sem direito de voto. O assistente diocesano tem ainda como função de ‘fazer a ligação entre a ESD [equipa de serviço diocesano], os párocos e o Bispo Diocesano e ajudar na resolução de problemas dos grupos da Diocese quando necessário’.

– Quanto ao assistente preconizado pela estrutura internacional (charis) refere-se que pode ser um bispo ou um sacerdote ‘incumbido de acompanhar todas as atividades promovidas pelo charis de um ponto de vista doutrinário e espiritual e garantir a fidelidade de todas as ações empreendidas pelo charis para o magistério da Igreja Católica’. A sua participação nas reuniões ou outras atividades é considerada quando ‘útil ou necessária pelo moderador do Serviço Internacional sem direito de voto’. O assistente ao nível internacional é nomeado, por apenas três anos, pelo Dicastério para os leigos, a família e a vida, sendo apresentado pela estrutura que vai servir.

Fazendo uma leitura comparativa das incumbências pode perceber-se que o ‘assistente’ tem a obrigação de zelar pela ortodoxia da fé, a fidelidade doutrinal e o acompanhamento espiritual, mais velando do que intervindo, parecendo mais estar de fora do que comprometido, exceto se for chamado ou sendo útil àqueles a quem assiste.

 

4. Vou tentar, então, responder às três questões colocadas no título deste texto:

* Quem? – sendo o RCC um ‘movimento’ de leigos – no início havia dificuldade em reduzi-lo a tal – não haverá leigos com formação teológica suficiente para ser assistente da fé e da doutrina? Terá de ser tutelado por um padre – não está escrito que não possa ser um diácono permanente – como que lançando uma penumbra de menorização sobre os não-clérigos? Será desta forma que se fará dos leigos participantes e protagonistas ou meros colaboradores dos eclesiásticos?

* Por quê? – numa Igreja que se deseja cada mais carismática – cf. Constituição dogmática ‘Lumen gentium’ sobre a Igreja, n.º 12 – e de serviço não andaremos a repiramidá-la quase de forma inconsciente? Não dá a impressão que foi deitado fora muito do esforço de vivência com a cunhagem deste termo para dar lugar ao padre no grupo do RCC?

* Para quê? – atendendo aos sinais dos tempos precisaremos ainda de usar termos que podem não quer significar a renovação desejada da Igreja no espírito do Concílio Vaticano II? Não andaremos a ‘engaiolar’ –nas palavras do Papa Francisco – o Espírito Santo, segundo os nossos esquemas nem sempre claros nem tão cristãos?

 

Nota: embora tenha aceitado, há cerca de sete anos, a nomeação para assistente da equipa de serviço diocesano de Setúbal, tenho a noção clara de que há algo a mudar, mais pela fidelidade ao espírito primeiro do que por adaptação às circunstâncias…   

   

António Sílvio Couto

domingo, 21 de março de 2021

Agremiações discretas/secretas, atuais/proféticas

 


Emergiu na discussão política – mas também pode ser económica ou financeira, desportiva ou clubística, social ou cultural – a necessidade, a possibilidade ou a exigência de que os deputados declarem a que agremiações pertencem…talvez para sabermos quem são, a quem servem ou quem os influencia…

Bastou levantar-se tal nuvem no horizonte e logo certas forças se consideraram sob suspeita – como se tivessem elas ou os seus seguidores algo a esconderem – e conjeturando quanto às razões de tais iniciativas. Tanto quanto foi percetível há dois setores que estão em causa – a maçonaria (nos seus vários quadrantes ou lojas) e o ‘opus Dei’… naquilo que podem ter de discreta ou não tanto, bem de secreto ou muito menos…

Desde logo acho que há outras forças ditas discretas que o são mais secretas ou ainda que vetores da nossa sociedade se comportam muito mais perigosos e acintosos naquilo que pretendem influenciar nas decisões dos deputados/políticos. Um outro aspeto referido naquelas duas forças ‘perseguidas’ elas seriam transversais até aos partidos e, portanto, os seus seguidores e mentores estariam suscetíveis de se deixarem guiar por essas influências e não tanto pelas ideologias político-partidárias.

Agora repare-se na capacidade de mobilização e de paixão dos clubes grandes do futebol nacional: perpassam vários partidos e até sensibilidades regionais ou setores sócio culturais. Não serão eles bem mais perigosos pelos lóbis que suscitam, desenvolvem e impõem? Com tantos interesses subjacentes às questões do futebol quem acredita que não possa haver jogos de ‘fortuna-e-de-azar’ conluiados com processos jurídicos e de manipulação? Não haverá branqueamento de dinheiro em certas situações com cobertura democrática, só porque uns tantos se acobardaram na hora de decisão?

Por outro lado, que dizer ainda das forças económicas, muitas delas que se perceber serem suporte de ‘casos’ e de decisões nem sempre claras? Será que há declarações de interesses, quando são adjudicadas certas obras pagas com dinheiros públicos? Até onde vai a clareza de métodos e de ações, quando certas decisões são entregues a gabinetes de advogados incluídos na feitura da legislação e na sua interpretação?

Nota-se em casos recentes da nossa vida pública – a situação da transportadora aérea é a mais paradigmática – uma magna subterrânea que une uma boa parte das forças da apelidada ‘geringonça’. Tomadas de posição, iniciativas sindicais, manifestações e reivindicações perpassam a suspeita de que há forças não-visíveis a conduzir o processo. Os arietes governamentais não passam, afinal, de peões para outras batalhas, pois a guerra é fazer crer que o estatal é melhor do que aquilo que não o é – onde o privado se inclui, mas não se exclui – fazendo com que tudo concorra para a sua concretização.

 

= Como se explica, então, que havendo informação mínima sobre algumas das forças secretas atuais ainda se verifique um recrutamento de novos membros, desde o tempo universitário até à prestação de outros serviços ditos públicos? Os mais novos precisarão destes suportes ‘secretos’ para subirem na hierarquia das suas profissões, agremiações ou autarquias? Não andaremos a clamar por transparência, colocando, por seu turno, teias de permeio que ofuscam, seduzem e enleiam?

É um facto indesmentível: temos falta de líderes, nos mais vários quadrantes da sociedade. Também estamos em grave crise de liderança, pois sendo escassos por natureza, corremos o risco de suicidar pela maledicência os poucos que surgem. Estamos entregues a uma classe dirigente muito deficiente, tanto ao nível humano e cultural, como na dimensão mais oblativa e espiritual. A mediocridade está no poder nos mais díspares setores. À meritocracia encontramos a mandar, na maior parte das vezes, os inúteis e paus-mandados. Por isso, o carreirismo é a profissão mais comum na nossa vida pública e não só. Colocados nos postos de poder em razão do cartão partidário – as autarquias são o mais lídimo exemplo – por aí pululam tantos incompetentes, que arvorados em mandões, se tornam verdadeiros ditadores, que arquitetam prolongarem-se no poder pela caterva de subordinados e subsidio-dependentes…Em tempos isto era caciquismo!

= Onde estão as vozes proféticas, que não temem perder o penacho e vivem na lógica da Verdade? Onde se pode ver alguém que recuse ser condecorado pela simples razão de ter cumprido o dever? Será que encontraremos uma pessoa equilibrada que o seja pela simples razão de pensar pela sua cabeça e segundo os valores (cristãos e humanistas) que perfila? Não será, antes, o homem lobo do homem?        

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 19 de março de 2021

Ainda teremos pai?

 


Desde logo talvez tenha de corrigir o título deste texto, podendo/devendo mudar a palavra ‘pai’ para a sugestionada ‘progenitor’; no entanto, fica-me a dúvida sobre qual deles – progenitor – seria: o ‘A’ ou o ‘B’, pois alguns acertos de linguagem podem ter interesse, mas não passam de tautologias cacofónicas baratas e sem grande significado...senão para alguns setores pretenderem de sair do anonimato pelas razões mais bizarras e quase inconsequentes. O que quero dizer é isso mesmo: pai, no sentido de masculino, interventor na gestação desse que há de ser filho ou filha...com toda a propriedade e consequências.

Efetivamente ainda teremos pai? Com tantas dúvidas provocações socio-culturais, ainda haverá quem aceite ou deseje ser pai? Com efeito, tentaram matar o pai e com isso criaram uma orfandade muito mais do que física, psicológica e quase espiritual: o pai, por vezes, não tão forte como devia desejável, foi sendo substituído por outras figuras moldáveis aos interesses em discussão; o pai enfraquecido permitiu emergirem laivos freudianos de substituição, deixando à deriva quem contesta a autoridade, ridicularizando o poder; o pai ofuscado pelas sensações de abandono pode ser o que cada um quiser, desde que não tenha de enfrentar os seus fantasmas mal-resolvidos na infância e na adolescência.
É verdade que, para certas forças dialéticas, deu jeito confundir a figura do pai com os despotismos do poder, pois isso permitiu-lhes engendrar acusações, inventar torpezas sobre mitos e até cuidar de ‘nacionalizar’ os filhos...custando mais do que ajudar as famílias.
Não é inocente a exploração do tema da violência doméstica, na maior parte dos casos colando à figura do pai o executor dessas tropelias. As teorias de ‘ideologia de género’ procuram, com razoável subtileza, meter no mesmo saco todos os erros, pois saberá que, à força de tanto insistir pela negatividade, há de colher os frutos do medo, da confusão e mesmo da manipulação.
Olhemos para os desafios que nos são colocados neste tempo e nesta época de dificuldades humanas, sociais e espirituais.

Celebrar o ‘dia do pai’ no ‘ano de São José’
«A figura do pai é especialmente fulcral porque em momentos como este [tempo de pandemia], e independentemente da religião, da raça ou do país em que cada um vive, a importância da família revela-se fundamental como elemento essencial da nossa humanidade, da nossa vivência, como o núcleo em que cada um de nós se apoia, se identifica e se desenvolve. Em momentos como este, é à família que voltamos, que não coloca condições nem obstáculos a apoiar, a ajudar, a acolher. O pai que somos, o pai que todos temos, tem a bela missão de cuidar e de ser sinal da paternidade de Deus».
Este excerto da mensagem da Comissão episcopal do laicado e família para o ‘dia do pai’ deste ano, intitulada 'ser pai - um desafio de disponibilidade e serviço' – recorda-nos ainda várias etapas entrecruzadas de vida e de complementaridade do que é ser pai, pois, «o pai que, sendo também filho, cuida do seu pai em situações de doença, fragilidade e isolamento; o pai que, ao longo destes meses de pandemia, perdeu prematuramente os seus pais ou os seus filhos; o pai que se vê confrontado com maior precariedade e instabilidade económica, fruto do contexto económico que enfrentamos; o pai que, na linha da frente deste combate, tem sido chamado a um esforço redobrado para equilibrar as suas obrigações profissionais com a sua vida familiar».
Quais os desafios de celebramos o ‘dia do pai’ no ‘ano de São José’, que decorre desde 8 de dezembro do ano passado? «Este “Ano de São José” é uma oportunidade para todos conhecermos melhor o pai adotivo de Jesus e o esposo de Maria que desempenhou um papel central na história da salvação e que pode ajudar cada pai a viver plenamente a sua missão».
Mais do que pais idealizados vivamos as condições de paternidade que nos são possibilitadas. Àqueles a quem foi dada a graça de serem pais - biológica, afetiva e espiritualmente - desejamos, enquanto cristãos, que olhem para São José e o vejam como modelo e intercessor de pais na vida...

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 18 de março de 2021

Treze situações de ‘estado de emergência’ depois…

 Esta coisa da pandemia, em vigor desde março do ano passado, ensinou-nos (ou melhor tivemos de conhecer o conteúdo) novas palavras: umas com mais sabor popular e outras com teor mais científico; algumas que já faziam parte do nosso vocabulário corrente e outras menos conhecidas, mas que à força de tanto insistirem já nos parecem ser familiares; umas tantas da ordem da saúde, enquanto outras emergiram do espaço mais securitário (pessoal ou coletivo); umas de âmbito regional, outras transnacionais e mundiais.

Recolhemos um breve glossário do coronavírus: isolamento/confinamento e quarentena; máscaras e vírus; epidemia e pandemia; fases epidemiológicas (contatos, transmissão local ou comunitária); letalidade e mortalidade; estado de calamidade e estado de emergência; casos suspeitos e casos confirmados; infetados, internados…e, mais recentemente, vacinados… Ao nível laboral fomos trazendo para a luz do dia e, portanto, para a prática social, expressões como lay-off, teletrabalho, subsídios e compensações, prejuízos na economia, crise em setores (turismo, restauração, viagens, mobilidade ou falta dela), reclamações, compensações por perdas e danos…tentativa de redução de impostos.

A cadeia de gravidade dos vários ‘estados’ – alarme, calamidade e emergência – foi sendo experimentada neste último ano: sobretudo atendendo à perigosidade das várias vagas – em janeiro último entramos na terceira – da doença, apreciando os contagiados, os infetados, os internados e os falecidos…com momentos dramáticos e fatalmente atrozes, nos hospitais e na população.

Cada ‘estado de emergência’ sempre trouxe mais alarme social, fazendo com que as regras de confinamento fossem progressivamente apertadas, nalguns casos quase parecendo garrotes sobre a economia, as escolas ou mesmo as atividades religiosas.

De 16 a 31 de março está em vigor o 13.º estado de emergência, mantendo-se o dever de recolhimento domiciliário, embora abrandando algumas medidas numa espécie – porque se faz-de-conta com regras algo infantilo-senis – de desconfinamento gradual…A proibição de circulação entre concelhos continua aos fins-de-semana e até à Páscoa (4 de abril).

 
= Que aprendemos neste ano de pandemia? Decorridos doze meses, já teremos percebido a gravidade do assunto? Chegamos a cair na conta de que isto era (é) grave ou preferimos adaptarmo-nos sem qualidade de vida mínima? O dever de ‘ficar em casa’ ajudou ou condicionou a nossa aprendizagem social de convívio e de respeito pelos outros? Com tantas emergências não banalizamos o recurso à gravidade do tema e da matéria por algum tempo?

O futuro nos dirá se esta não foi mais uma oportunidade perdida para reaferirmos os nossos critérios de vida e reaprendermos a estar uns com os outros. O futuro nos revelará se soubemos adaptar-nos mais do que converter-nos. O futuro porá à mostra como é tão falho de inteligência quem tem poder, mas não autoridade… em tantos dos setores da vida.

Como sempre nestas épocas de crise surge sempre alguém que faz fortuna com a desgraça alheia, dizemo-lo desde os mais simples ‘artistas’ que enriqueceram com as vendas de gel, de máscaras e de material desinfetante, mas tantos outros habilidosos crescem quando as pessoas estão fragilizadas e em pior situação de trabalho, de condições de vida e mesmo de alimentação. 

Pelo que temos percecionado o fator vacina vai funcionar tanto ou mais tenazmente do que a doença, pois, em breves e incisivos pormenores – como a área do ensino, pois educação é muito mais do que o que vemos ministrar – deu para perceber o fantasma estatal tem uma abrangência quase paranoica, como se os professores e alunos do não-Estado, fossem de segunda ou pior, pagando impostos, sejam relegados para a fim da lista, como aconteceu no setor da saúde não-pública…

Enquanto andarmos a coagir e não a dar razões claras, sérias e simples para fazer, continuaremos a ser um povo domesticado (à força ou sob coação), mas não educado com racionalidade!

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 17 de março de 2021

Leigos: colaboradores, participantes ou protagonistas? (*)

 


Decorreu, nestes dias (16 de março) um tempo de formação para o clero da diocese de Setúbal, sobre ‘Os fiéis leigos na Igreja e no mundo: é hora dos leigos, mas parece que o relógio parou’ com o Padre Amaro Gonçalo, pároco da Senhora da Hora, Matosinhos.

Os trinta e sete participantes em zoom, escutaram algumas observações mais pastorais do que teológicas – segundo disse o palestrante – sobre a dimensão laical da Igreja católica e como tudo isso se exprime na dimensão de sinodalidade missionária.

Reportando-se regularmente à sua experiência de pároco, o Padre Amaro Gonçalo incidiu a sua comunicação sobre documentos do Papa Francisco, citando-os de forma tácita ou explícita, naquilo que valorizam os leigos na Igreja e no mundo.

Eis algumas citações da primeira comunicação do palestrante:

É a hora dos leigos diz-se muitas vezes, mas parece que o relógio parou’, diz o Papa Francisco.

A época atual terá como protagonistas da missão todos os fiéis batizados, e sobretudo os fiéis leigos, que são a grande maioria dos membros do Povo de Deus.

– É importante darmo-nos conta de que há um mal-entendido de base quando se fala da missão dos leigos, colocando-a exclusivamente em contexto eclesial, ou seja, que “tarefas” se lhes deve confiar na dinamização da vida da IgrejaSer leigo é ser leigo, não é ser um substituto do padre.

– “Se o coração da identidade do sacerdote está na consagração do pão eucarístico, o centro da missão dos leigos está na consagração do mundo, segundo o projeto de Deus – diz-nos o Papa Francisco.

Os cristãos estão no mundo não para conquistar território, para ocupar espaços, mas para desenvolver processos.

Não é o pastor que deve dizer ao leigo o que fazer e dizer, ele sabe tanto e melhor que nós.

Uma Igreja viva precisa de leigos comprometidos na sua missão, de verdadeiros interlocutores com as pessoas que vivem no campo ou na cidade.

 

= Partindo destes pensamentos, permeados com múltiplas citações do Papa Francisco, podemos colocar a questão se, muitas das vezes, eclesiasticamente, não queremos ter leigos que possam ser colaboradores, isto é, sob a tutela do padre, mais como prolongamento da nossa ação do que como intervenientes na sua missão? Com algum jeito damos lugar aos leigos, não para que integrem um autêntico processo de evangelização, mas que componham o ramalhete das coisas litúrgicas…

Como dizia, de forma profética, o Padre Amaro Gonçalo, será que temos leigos que se tornam discípulos? Efetivamente, os leigos que colaboram connosco são dos que concordam com o que dizemos ou damos-lhes ferramentas para pensarem por si e em espírito de Igreja?

 

Sinodalidade missionária

Num segundo momento da sua comunicação o Padre Amaro Gonçalo trouxe-nos desafios, nisso que designou de ‘sinodalidade missionária’, expressão que aparece no documento final do sínodo dos jovens, de outubro de 2018.

Novamente respigamos aspetos do subtema apresentado:

Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta, ciente de que escutar «é mais do que ouvir». É uma escuta recíproca, onde cada um tem algo a aprender.

Não estamos ali para defender uma “agenda”, uma ‘ideologia’ … O objetivo não é chegar a acordo por meio de uma competição entre posições opostas, mas caminhar juntos, a fim de encontrarmos a vontade de Deus, deixando que as diferenças se harmonizem.

O padre Amaro Gonçalo deteve-se por algum tempo sobre o documento da Comissão Teológica Internacional: ‘A sinodalidade na vida e na missão da Igreja’ (2.3.2018) e, posteriormente, sobre a Constituição Episcopalis Communio, de 15.09.2018.

Finalizou a comunicação com três desafios lançados à Diocese de Setúbal, que, em breve, iniciará o seu caminho sinodal em vista dos cinquenta anos da sua criação… e a próxima JMJ. Eis as propostas:

– Passar do “ide e ensinai” ao “ide e escutai”…para uma Igreja da escuta.

Passar de uma Igreja paternalista, a uma Igreja ‘caminheira’ e ‘companheira’, uma Igreja que caminha e acompanha os mais novos e confia neles.

– Passar de uma Igreja clericalista, autoritária, a uma Igreja sinodal, participativa e corresponsável.

 = Nestas propostas e desafios – pertinentes e audazes – sinto que será preciso adultar muito mais os ‘nossos’ leigos, desde os mais novos até aos já encadernados nestas coisas religiosas.

Nesta apreciação daquilo que foi dito e de quanto por aqui vivemos, veio-me à lembrança uma observação do nosso anterior bispo diocesano: não tenha ilusões, os cristãos que estão na Igreja (a palavra poderá também dizer do templo), na nossa diocese, são iguais aos do norte do país, tradicionais, ritualistas e defensores das suas devoções… que, quando tocadas, desencadeiam reações cá como lá.

É verdade: dos quase vinte e quatro anos de presença na Diocese de Setúbal, vejo-me, tantas vezes, sem recetividade nem abertura como conheci, noutros tempos, na região do Minho…

De facto, não consigo ver – como desejaria – os leigos como protagonistas nem capazes de gerar sinodalidade, como nos falava o Papa Francisco e, só espero, que o tempo de Sínodo em que vamos entrar não seja uma oportunidade perdida, tanto pelo clericalismo eclesiástico como esse outro camuflado nos leigos… É verdade: precisamos de aprender a escutar-nos, mesmo nos de fora do templo!

 

 

(*) Fui desafiado a escrever sobre este tempo de formação da Diocese de Setúbal. Tinha tomado – como sempre – as minhas notas sobre aquilo que o senhor padre palestrante foi dizendo. Recusei entrar na lógica de uma notícia, pois para isso a Diocese tem quem o faça bem e de forma preparada. Por mim exerço tão-somente a função de refletir sobre aquilo que me impressiona – e tem sido tanto nesta fase de confinamento – e disso faço registo…primeiramente para mim mesmo, pois quando escrevo só quero partilhá-lo com outros… Foi isso que me deu neste texto que aqui deixo…eclesialmente. 

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 16 de março de 2021

Direito à vida sem dever de viver?

 

Num hábil trocadilho o tribunal constitucional decidiu (a 15 de março) por sete votos contra e cinco a favor chumbar a lei que pretendia despenalizar a morte medicamente assistida, isto é, a eutanásia.

Ato sequente a esta decisão, o presidente da república vetou a dita lei e fê-la voltar ao posto de saída, o parlamento, que agora terá de expurgar as inconstitucionalidades detetadas…

Ora, na explicitação da votação do tribunal constitucional (TC), o presidente do dito referiu que “o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”. Deste modo o TC considera que “a conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico, que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe, legitima que a tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento possa ser resolvida por via de opções político-legislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa”.

= Por momentos caí na tentação de ir vir o que dizia o tal acórdão do TC. São dezenas e dezenas de páginas, milhares de palavras numa leitura só tolerável para quem tenha de usar tais argumentações ou de se ‘entreter’ com posições nitidamente ideológicas, que não simplesmente políticas ou racionais.

Numa avaliação algo apreensiva ficamos a vislumbrar que os tais juízes do TC podem vir a considerar possível uma lei que regulamente a morte assistida em vista de vir a ser constitucional.
Talvez, se forem explicados e justificados certos conceitos – esses mesmos que fez com que o presidente da república tivesse enviado o assunto ao TC – a lei poderá passar. Os conceitos são: ‘sofrimento intolerável’ e ainda ‘lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico’.
 

Desde logo onde está o aparelho de medida do ‘sofrimento intolerável’? Haverá um mecanismo capaz de aferir até onde vai e daí não passa a capacidade de resistência ao sofrimento?

As dúvidas dos juízes continuam ainda perante o tal conceito de ‘gravidade extrema’ e como é que esta pode ser aferida pelo pretenso ‘consenso científico’…

 = Como alguém dizia ao apreciar esta votação do TC, o tema da eutanásia joga-se em casos concretos e para resolver situações em presença. Não será que, perante as deambulações da lei, quando esta entrar em vigor – sim, à semelhança do aborto, as forças proponentes só descansam quando atingirem os famigerados objetivos – já não será solução para os casos que fizeram gastar tanto tempo, exacerbar tantas posições e, sobretudo, azedar mentalidades mais ou menos de pendor materialista e algo dialético… Como fato talhado à medida, a lei da eutanásia tem tudo para se tornar alvo de risota geral, pois muitos dos velhos já estarão defuntos e tantos dos ‘doentes’ necessitados de serem eutanasiados já serão falecidos, não ‘gozando’ da decisão que outros lhes facultariam.

 = De entre os argumentos do TC há um que me cria engulhos: ‘o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância’. Qual o alcance desta provocação – não encontro outra palavra – para definir esta subtil distinção, entre ‘direito à vida’ – que a tal constituição consagra no artigo 24 – e a não transfiguração ‘num dever de viver’? Não está aqui enunciado uma pretensão de legalizar a eutanásia, sugerida pelo próprio TC, que deveria ser isento e não tão ideológico? O mais grave é a referência a que isso se possa dar ‘em qualquer circunstância’, isto é, pode haver, na subtileza do legislador, situações e casos onde o direito é subjugado ao ‘dever’ de reduzir o tempo de viver.

Já percebemos que o lóbi pró-morte é cada vez mais forte. Não me refiro às agências funerárias nem aos apetrechos que lhe estão adstritos, como a proliferação de crematórios e outros produtos comerciais. Tenho na minha mente que um número crescente de pessoas joga a sua vida pelos critérios de morte. Foi assim na legislação do aborto, passou pelos critérios de conduta em matéria de casamento e vai a passos largos nisto da eutanásia. Queriam constituir-se em donos da vida e eis que um sopro de pandemia pôs a nu as pretensões: não somos donos da vida, mas meros administradores… Se querem morrem, tenham coragem de optar pela morte, mas não levem todos na enxurrada, sobretudo os mais frágeis… respeitem-nos, ainda! 

 

António Sílvio Couto

 

segunda-feira, 15 de março de 2021

Ao postigo…da ‘nossa’ desilusão

 


Uma das reintroduções, após o tempo de confinamento de mais de cinquenta dias de vigência, é a de possibilitar vendas ‘ao postigo’…como uma espécie de tábua de salvação para quem vive da atividade comercial, antes de porta aberta e por estes dias ora encerrada, ora entreaberta…para conhecidos ou frequentadores mais assíduos.

Qual o significado, então, de ‘postigo’? Isso pode ajudar-nos a perceber esta modalidade de comércio…em tempo de pandemia e crise de valores.

‘Postigo’ significa: pequena abertura (em porta, janela, balcão de atendimento, etc,) pela qual é possível a comunicação entre o público e os funcionários de um estabelecimento, bilheteira, etc.; pequena porta; pequena porta secundária em muralha ou fortificação; pequena abertura ou pequena janela em porta grande ou janela; fresta.

Diante desta descrição como podemos ou devemos entender a venda ao postigo? Com tantas desconfianças e defesas quanto aos intervenientes será saudável acreditarmos naquilo que desejam desconfinar? Onde podemos encontrar algumas reminiscências desse ‘vender ao postigo’, que agora querem reintroduzir?

Consta que, em tempos de alguma convulsão socio-religiosa, noutras paragens europeias, uma vertente cristã mais rigorista quis impor a proibição de vender álcool aos fregueses… ao que os vendedores, usando de artimanha, não abrindo totalmente a porta faziam passar o produto desejado pelo postigo, isto é, essa brecha, fresta ou porta pequena incluída na porta grande…

Sem se darem conta ou talvez porque conheciam a história, os nossos governantes permitem agora que sejam vendidas bebidas – no confinamento nem água era permitido – ao postigo, obrigando os clientes de cafés, bares e mesmo lojas de outros artigos a adquirirem os produtos na rua, faça-sol-ou-faça-chuva, aglomerando a clientela e fazendo parecer que vivemos em estado de racionamento, sob controlo das forças policiais e de segurança.

 = Decorrido um ano de pandemia do coronavírus sars-cov-2 continuamos a tatear soluções, a regatear constrangimentos e a não-assumirmos que tudo isto veio introduzir uma nova e diferente forma de estar na vida e de uns com os outros: cada interlocutor continuará a ser um potencial infetador e cada um de nós um infetado não-assumido ou não declarado ainda… como se dizia, no início, com os resultados dos testes: ‘não-detetável’… As regras higiene-sanitárias vão prosseguir por muito e longo tempo. Os cuidados primários não poderão ser minimamente descurados, sabe-se lá por quantos meses ou anos.

Agora que estão a chegar as vacinas – tendo presente os vários fabricantes e interesses envolvidos – ir-se-á agravar a discrepância entre pobres e ricos, entre os estatais e os do privado, os do litoral e os do interior, os que têm compadrios e os que não conseguem proteção de nuvem superior…

Sim estamos ao postigo da desilusão, mendigando favores, que deveriam ser direitos; reclamando da eficácia, quando todos somos cidadãos, mas – à semelhança da revolução de George Orwell – há animais que são mais diferentes (não devia ser iguais?) do que outros, que me movem na mesma pocilga…

 = Depois do boom do turismo com toda a panóplia de atrativos e de resultados até final de 2019, vemos que restaurantes e cafés, alojamentos e hotéis, viagens e convívios, para além da seleção do que valia alguma coisa, vemos a catadupa de desempregados, a turba de subsidiodependentes pendurados nas malhas de quem governa, o crescimento de tantos que não aprenderam na crise de 2011-2015 a não esticar as possibilidades…

Pior do que tudo isto, é a sensação de que os vendedores ao postigo estão-nos a enganar, pois impingem-nos produtos contrafeitos, aliciam-nos com propagandas mal-amanhadas e servem-nos bebidas (é uma imagem) fora de prazo de validade. Com este tempo de fechamento muita coisa caducou, sobretudo aquilo que nos podia aliviar a dor e reconfortar a alma. Não, esta está entorpecida e carente de algo mais do que coisas materiais: precisa de um alimento que não se compra, mas que se cultiva diariamente. Podemos sair de casa, mas vamos andar à deriva, até porque as lamúrias não se curam com alimento vendido ao postigo. Se já éramos tristes, esta dificuldade não nos revigorou, antes nos enfermou de uma tristeza de morte…a prazo.     

 

António Sílvio Couto

sábado, 13 de março de 2021

200 anos do fim (oficial) da inquisição

 


Rezam os dados da História que, em 31 de março de 1821, foi oficialmente extinta a Inquisição em Portugal.

Esteve em vigor entre nós desde 23 de maio desde 1536… quase três séculos, desde o reinado de D. João III… até ao de D. João VI.

Duzentos anos decorridos que lições podemos e/ou devemos aprender? Não andaremos a correr atrás do prejuízo, sem sabermos inserir a questão na devida proporção histórica e cultural? O desenquadramento histórico não corre o risco de fazer o papel de outros tantos que se acoitam sob a capa anti-inquisição para esconderem as suas nefastas façanhas posteriores? Enquadrar o assunto no contexto histórico é tão importante quão essencial para percebermos o mal da Inquisição, se hoje continuarmos a usar os mesmos métodos (sem religião) para atingirmos os ‘nossos’ macabros fins…

 = Efetivamente, a publicação do decreto de extinção do tribunal do Santo Ofício, no nosso país, aconteceu em 5 de abril desse mesmo ano, dando conta da votação unânime das Cortes constitucionais a 31 de março anterior. A razão evocada para o caso era a de que: “a existência do Tribunal da Inquisição é incompatível com os princípios adotados nas bases da Constituição”. Foram ainda apresentados breves artigos de explicação da decisão de abolição daquele Tribunal, tais como: a revogação de todas as leis e ordens emanadas da Inquisição, a entrega dos processos pendentes à jurisdição dos bispos e a gestão dos seus bens e da sua documentação.

Talvez se deva referir que, desde o ano passado, temos, em Portugal, o ‘dia nacional da memória das vítimas da inquisição’, que ocorre a 31 de março, data-referência à sua extinção no nosso país.
Segundo registos existentes, entre 1536 e 1761 – data da última vítima, por sinal um jesuíta, condenado por heresia – foram queimadas vivas 1.175 pessoas, nos autos-de-fé públicos, enquanto a prisão e tortura atingiu perto de 30 mil pessoas...

= Introduzido no século dezasseis (1536), em Portugal, pelo rei D. João III, o Tribunal do Santo Ofício era um instrumento de vigilância social e ideológica de um país que tinha convertido à força e incorporado na comunidade católica muitos milhares de judeus – designados de ‘cristãos-novos’. Juntava-se ainda a preocupação com as heresias protestantes, numa época em que as diferenças religiosas eram consideradas uma séria ameaça à unidade política e à paz social do reino. A Inquisição estava, deste modo, ao serviço da ortodoxia católica, sempre atenta a práticas e comportamentos considerados como nocivos, digamos, à ideologia e moral dominantes. Contava também a Inquisição/Santo Ofício com proteção da Coroa e consubstanciava, de um modo geral, o apoio da população.
Julgar no contexto da fé e executar a condenação pelo braço político foram aspetos recorrentes nos vários séculos de Inquisição em Portugal. Com o abrandar da ‘perseguição’ aos cristãos-novos, na primeira metade do século dezoito, os tentáculos da Inquisição voltaram-se para outros grupos e setores heréticos, como a maçonaria. Com o tempo do Marquês de Pombal, a Inquisição tornou-se ainda mais um braço politico dos ‘inimigos’ do rei, transformando-se num tribunal da coroa e dos interesses do Estado.

Quando, nos primeiros anos do século dezanove, se discutiu a extinção do Santo Ofício, pareceu que já estava defunto e morto…deixando um rasto de perseguição, de condenação e de morte!

 = É verdade, a Inquisição – como fenómeno cultural, político ou religioso – é uma nódoa na história humana e da Igreja. Pois nunca se deveria usar a vertente da fé para maltratar, ofender ou, pior ainda, matar seja quem quer que seja. Desgraçada crença que usa a força para se impor e vencer quem não partilha da mesma vivência.

Se nos tempos em que vigorou a Inquisição estávamos sob uma espécie de cesaropapismo, onde religião e política se uniam para tirarem proveito, agora parece que vivemos num tal amorfismo que os responsáveis políticos se comportam como seres a-religiosos, não vá a sua fé interferir nas coisas de governança. Dois séculos decorridos a Inquisição é outra: usa avental e faz do compasso o instrumento de raciocínio…

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 11 de março de 2021

Caixão com vitrina


Dir-se-á que as coisas se adaptam às necessidades ou que procuram ter em conta os desafios, propondo novos produtos e enfrentando diferentes respostas.

O tema que agora trago é algo funesto e talvez tenebroso, mas temos de ter capacidade de refletir sobre assuntos que não nos sejam tão agradáveis quanto desejaríamos.

Por estes dias fui confrontado com uma nova forma de proposta visual de caixão: dado que se foi tornando difícil, senão impossível, de abrir a urna na fase final do enterro, agora ‘inventaram’ um modelo em que se vê somente a parte da face, mantendo ocultação sobre o resto do cadáver…

Esta ‘inovação’ agora difundida torna-se mais importante dadas as condicionantes deste tempo de ‘covid’. Se bem que noutros locais e, segundo as circunstâncias, como o transporte de falecidos por via aérea, tal já era praticado. As novas vivências decorrentes da pandemia, como que obrigam a atenuar a capacidade de luto e a sua expressão em maré de ocorrência de casos fora-do-normal.

Dada a complexidade dos tempos mais recentes, onde este tema do post-mortem tem andado, na minha perspetiva, a ser um tanto mal tratado e em que certas questões mais do que resolvidas têm sido empurradas para fora do nosso ângulo de visão/compreensão, deixamos breves aspetos, entretanto, aflorados.

 * Milhares de mortos sem total dignidade?

Se compararmos os números veremos a aberração daquilo que aconteceu no último ano – março de 2020 a março de 2021 – morreram, em Portugal, afetados (real ou simbolicamente) pelo ‘covid-19’: 16.617 (à data em que escrevo). Se compararmos com dados de outras circunstâncias, veremos como tudo isto é aterrador. Por exemplo, a guerra colonial portuguesa – de 15 de março de 1961 a 24 de abril de 1974 – deixou 8.831 militares mortos, em combate, vítimas de acidentes ou por doença… para além dos efeitos colaterais em feridos e traumatizados de guerra. Por seu turno, os mortos em acidentes de viação, na última década, no nosso país, totalizaram: 6.880 em resultado direto da sinistralidade…

Atendendo a estes dois esporádicos dados, teremos de considerar que a morte por ‘covid-19’ deixou um manto apocalítico atroz e com consequências quase inexplicáveis. Talvez não haja ninguém que não tenha tido alguém falecido – familiar, amigo ou simples conhecido – por esta doença. Quais os resultados práticos para a nossa vida? Já nos apercebemos da fragilidade em que nos movemos e existimos?  

 * Que luto foi feito ou está por fazer?

Com tanta velocidade com que se difundiu este vírus deixou-nos a todos algo aparvalhados, senão intelectual ao menos emocionalmente ou até nas duas dimensões. Depois da estupefação, veio o medo e deste surgir a incapacidade de gerir novos factos e piores situações. Com o devido respeito poderemos considerar que as pilhas de mortos deixaram pouca normalidade para chorar quem partia, tal era a avalanche de funerais – chegou a haver cremações com duas semanas de atraso – acrescentando uma certa paranoia higienista que foi assoberbando, pela negativa, tudo e todos. Quanto luto que ficou por fazer. Quantas lágrimas encalhadas. Quantas despedidas nunca realizadas…E nem a subtileza da fé era lenitivo para os mais crentes ou emocionais.

 * Soluções, respostas ou enganos?

Em todo este contexto humano e social fui vendo pessoas a quebrarem a sua arrogância diante do assalto do vírus e isso ajudou-me a perceber que a melhor forma de sermos mais humanos é a de passarmos pelo crivo da dor e do sofrimento. Mesmo que espreitando para o caixão pela vitrina a descoberto, continuo a considerar que nos falta um razoável percurso para estarmos mais atentos às fragilidades alheias e com isso podermos ser melhor compreendidos nas nossas.

Há coisas que só a experiência de vida nos ensina e o ‘covid-19’ tem sido uma boa escola de humanismo. Assim nos deixemos educar!

 

António Sílvio Couto