Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Interpretando ‘coisas’ do Natal

 

Por estes dias tentei entender ‘coisas’ que acontecem por ocasião do Natal – por que passam as pessoas tanto tempo a mesa, preparando e degustando iguarias inigualáveis? Qual a razão de terem mais tempo para as conversas umas com as outras? Como explicar certos rituais não-religiosos, mas com incidência quase mitológica? O que levou a verificar-se um progressivo afastamento dos sinais religiosos (cristãos em particular), foi a acomodação, o consumismo ou a banalização do imediato sobre o espiritual? Com tanta superficialidade na celebração do Natal, ainda haverá sentido humano e cultural para o continuarmos a tentar vivenciar? Que alcance têm as expressões: boas festas ou feliz Natal?

1. O Natal como o vemos traduzido na vida de tantas pessoas corre o risco de se reduzir a uma época gastronómica de algum interesse, aliado a ritmos de uma sociedade que vive mais ao sabor do ventre do que da mente ou do coração. As toneladas de alimentos que foram comprados por estes dias, traduzidas no monte de lixo produzido em consequência. Será que se passa assim tanta fome ao longo do ano e neste tempo se pretende colmatar as lacunas? Dá a impressão que estamos a atingir o colapso cultural, preenchendo-o com coisas materiais ou que satisfazem a dimensão materialista mais exacerbada. Além de perigoso este percurso poderá trazer-nos grandes riscos até ao nível da saúde. Valerá a pena não fazer-de-conta que está tudo controlado, pois de pouco importa que cuidemos do corpo (biológico e sensitivo), se depreciarmos ou negligenciarmos os aspetos psicológicos e mesmo espirituais. Muito honestamente estes são indícios de um final de ciclo humano e histórico…

2. Dedicar tempo aos outros é um outro fator essencial no tempo de Natal: dar espaço para a partilha, as conversas e as recordações, o convívio, o estar com os outros, as visitas a familiares e amigos, até a troca de presentes pode ser vista como positiva nas relações humanas e sociais… algo esfriadas por ocasião da recente pandemia. Por vezes faltam-nos oportunidades para dar tempo aos outros, nalguns casos arranjamos desculpas pouco convincentes para não atendermos mais e dedicadamente àqueles que vivem ao pé de nós. Se o tempo de Natal conseguir recuperar o tempo perdido, será muito benéfico e teremos todos a ganhar numa sociedade tão egoísta e interesseira como aquela em que nos é dado viver. Todos temos muito a aprender, já e enquanto é tempo…

3. Mesmo na configuração religiosa cristã/católica há rituais que precisam de ser entendidos, explicados ou mesmo revistos. Continuar a fazer como era costume ou por mera tradição de pouco valerá, na hora de dar sentido às coisas, mesmo as mínimas. Ocorrendo, este ano, oitocentos anos sobre a feitura do primeiro presépio por São Francisco de Assis, podemos e devemos aproveitar a oportunidade de explicar a razão de ser desta tradição católica, sem infantilizar o assunto, mas antes dando-lhes conteúdo e atualidade. Celebrações como ‘a missa do galo’ – sua origem e significado; gestos como o ‘beijar do menino’; representações com sabor a memória (com teatros ou encenações), alusivos ao nascimento de Jesus ou à adoração dos magos…são – ou eram – alguns dos temas tradicionais do tempo de Natal. Mas não podem ser como eram antes, pois muita coisa mudou, mesmo nos conhecimentos religiosos prévios. Temos de partir de que as pessoas não sabem e devemos fazer as coisas explicando tudo a todos.

4. Neste como em tantos outros pontos da época da cristandade, o Natal é usado por crentes e não crentes para finalidades pouco adequadas à sua origem e desenvolvimento histórico e cultural. Mais do que um tempo de gastronomia, o Natal precisa de ir ao fundo da questão da nossa condição humana mais básica e fraterna. Mais do que um tempo de ‘exaltação’ da família, precisa que sejam revistos os valores familiares mais essenciais, comprometidos e com alcance contínuo. Mais do que um tempo onde se lembram os mais necessitados – sobretudo na versão material – precisamos de aprender a cuidar uns dos outros com gestos verdadeiramente imbuídos de atenção…todos os dias do ano.

Fiz a minha interpretação de ‘coisas’ neste Natal. Cada deverá fazer a sua de forma simples e humilde.



António Sílvio Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário