Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 30 de abril de 2020

Aprender a lidar com um ‘novo normal’


Depois daquele bacoco, inócuo e utópico desejo – ‘vai ficar tudo bem’ – começamos a dar passos titubeantes para aprendermos a lidar com isso a que começam a chamar de ‘novo normal’…

Ao eufemismo idílico de que o ‘arco-íris’ nos guiaria, temos de saber como vai ser a nossa vida: onde o que era, acabou e em que aquilo que tínhamos por adquirido não mais voltará. O nosso existir não se constrói com rosinhas e abracinhos, mas edifica-se com pessoas capazes de trilharem a senda da mudança, seja ela mais ou menos radical, numa simbiose entre a virtude (de ‘vir, viris’, força, homem) e a capacidade de saber interpretar as coisas sem laivos de preconceitos…baratos e/ou de circunstância.

Desde logo será preciso saber o que é isso de ‘normal’, pois, a simples condição de cada um ‘sair’ ou de ‘estar em casa’ modificou-se radicalmente. Estamos numa nova configuração de vida, em que tudo deixou de ser como era. Por breves – ou poderão ser ainda mais longos – instantes estamos em suspenso. A liberdade não é mais – nem teoricamente nunca foi – fazer aquilo que se quer para passar a conjugar-se com a determinação de atender àquilo que é melhor para os outros, incluindo para o próprio.

Palavras como ‘confinamento’, ‘vírus’, ‘pandemia’, ‘emergência’ ou ‘calamidade’… Gestos e sinais como restrições à saída do concelho de residência ou à mobilidade mínima…Notícias constantes e absorventes sobre a evolução da crise… Tudo isto veio modificar o nosso dia-a-dia há cerca de dois meses e deixará rasto por longos e largos tempos, alguns conjeturam que será por anos. 

= Como se vai repercutir este ‘novo normal’ na vida de cada um de nós? Que teremos de corrigir para que haja mudança mais estrutural do que conjuntural? Estaremos disponíveis para prescindir de tanta coisa que achávamos imprescindível? Não seremos tolhidos na mente pelo condicionamento nos movimentos? As empresas – maiores, médias ou pequenas – terão meios para continuaremos a sobreviver aos abalos que sofreram por estes dias?

Estas e tantas outras questões poderemos colocar de modo a sabermo-nos posicionar neste novo xadrez de vida, onde temos de saber estar mais em atenção aos outros do que aos nossos (egoístas) interesses. Em muito daquilo que antes nos ocupávamos estava como que a tentativa de satisfazer algo que nos levou a acumular regalias e direitos, benfeitorias a qualquer preço e que, bem depressa, ruíram neste contexto de modificação do modo de ser e de estar, relativizando tudo e o resto.

Vemos, cada vez mais, crescer – assim o cremos e o desejamos – o respeito pelas pessoas, se bem que muitas não passem de números de infetados, de potenciais doentes, de portadores do vírus ou até de vítimas – contadas às centenas e aos milhares – deste surto silencioso, incolor e sem rosto, mas atroz nos seus efeitos.

Na contingência posta a nu podemos ver quanta coisa, afinal, se esboroa em poucos momentos. Quantos projetos se desvanecem por entre tantas incertezas de quem será a próxima vítima. Quantas prosápias de gente sem inteligência e lenta em compreender se apagam num ápice e sem quase deixar memória.

Vemos proliferar valas comuns em tantos países, tal a avalanche de falecidos. Sentimos a dor do luto não-feito em tantas famílias apanhadas no turbilhão deste fenómeno. Consideramos de uma tristeza marcante quem não alimenta qualquer esperança.  

= Está na hora de aprender este ‘novo normal’ do qual ninguém tem lições a dar, pois tudo é novidade no conteúdo e na forma. Com humildade deixemo-nos ensinar, partilhando o que vamos descobrindo às apalpadelas…psicológicas e espirituais.

Não, não vai ficar tudo bem…

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Telescola: novo ensino sem intermediários?





Para dar resposta ao confinamento exigido pelo ‘covid-19’ foi ressuscitado, recentemente, um método de ensino que vigorou no nosso sistema de aprendizagem durante alguns anos: a telescola, isto é, a receção de aulas através da televisão.
Se entre 1965 e 1987 [final do governo de Salazar e dois anos após a entrada na CEE], esse modo de ensinar tinha um objetivo, o agora reimplantado tem outro. Naquela época – antes, durante e depois do regime caído em 25 de abril – esse sistema coexistia com o do ensino presencial e era supletivo para quem não conseguia descolocar-se aos postos de ensino por dificuldades muitas delas económicas, a telescola reproposta agora tem outras caraterísticas.
Embora tenham existido outras experiências ligada ao ensino superior – a lecionação do ano propedêutico e também a universidade aberta – em versões de estudos televisionados, entre 1988 e 2013, vamos, no entanto, centrar a nossa atenção nos dois projetos relacionados com o ensino obrigatório.
* A telescola nos anos 60 e 80 dirigia-se aos alunos do quinto e sexto anos de escolaridade, portanto, do ciclo preparatório; o projeto =estudoemcasa envolve desde o 1.º até ao nono ano de escolaridade
* Naquele tempo a telescola era um recurso para quem tinha dificuldades de ir à escola, tanto financeiras como de transporte…chegando às zonas rurais e franjas da sociedade em expansão; agora a situação deve-se à necessidade de não haver contato entre as pessoas devido ao perigo de contágio pelo vírus;
* Naquele tempo as lições eram ministradas por um professor tutelar da disciplina, através de aulas gravadas em estúdio e acompanhadas por um outro professor em sala de aula (mais em escuta), segundo as duas seções de aprendizagem, letras ou ciências…em não muito poucos casos um dos professores-monitor era o pároco da freguesia, com o que tal significava sobre os parcos proventos económicos que auferia; agora não há sala de aula nem professor que acompanha, tudo vai direto ao aluno à distância…em casa, estando o (pretenso) estudante diante da televisão, sem ser perturbado nem sendo perturbador do aproveitamento, em aula.
= Atendendo às potencialidades das novas comunicações temos de reconhecer que foi possível pôr em marcha um plano de ensino à distância que a todos orgulha e que faz crer que somos capazes de fazer melhor do que desdenhar das faculdades alheias. Temos mais do que capacidades de desenrascanço. Já na primeira experiência da telescola nos anos 60 a 80 do século passado fomos considerados pioneiros na arte de fazer chegar a educação aos mais desfavorecidos. Agora, em menos de duas semanas, foi posto em marcha um processo de resposta às necessidades criadas pelo ‘covid-19’. Os nossos alunos e professores podem continuar o mecanismo de ensino-aprendizagem, usando tecnologias inovadoras (ou serão as suas ferramentas habituais?) em ordem a sermos eficientes na forma e com bom conteúdo.              
= Embora este panorama possa parecer simbólico/cultural – atingindo para já o último período do ano letivo – poderemos formular algumas questões um tanto preocupantes:
- a função de professor – como é conhecida e mesmo reconhecida – continuará a ser a mesma? O silêncio dos sindicatos parece ensurdecedor e comprometido, senão com a solução ao menos com a razoável confusão;
- Os alunos/estudantes não terão um novo estatuto e, com isso, possam adquirir mais autonomia em relação a quem ensina em sala de aula? Na época do ‘touch’ parece estar a surgir uma nova geração em aprendizagem.
- Os espaços de aquisição de conhecimentos não poderão ser diferentes desses que tínhamos até agora? Dá a impressão que os casos de mau comportamento na sala de aula podem ter outra solução…
- Não estará a surgir um novo modelo de ensino, que corre o risco de ser mais ideológico do que o das aulas presenciais? De uma forma mais generalizada poderão ser veiculados valores e princípios tendencialmente mais de teor estatizante, com marca mais agnóstica ou até sob a alçada de um saber humanista sem referência à divindade…isto sem esquecer essa outra visão sem valores com que tanta gente se rege, se conduz e vive.
= Sem recurso às mais básicas utopias abrilinas poderemos construir um país/nação onde todos possamos contribuir para uma sociedade mais justa porque mais fraterna, mais solidária porque mais atenta aos outros e não aos nossos vis interesses, pessoais ou de grupo. Assim aprendamos a caminhar de olhos postos na meta e não aferrados ao ponto de partida…


 António Sílvio Couto





sábado, 25 de abril de 2020

Há algum ‘milagre português’…nestas coisas do vírus?


Quem ouviu o presidente da república a falar na convocação para o 3.º ‘estado de emergência’ ter-lhe-á ficado no ouvido a referência em que ele acentuou o ‘milagre português’, naquilo que ele interpretava como a chave do (aparente) sucesso – ou melhor, no tão não-pior cenário – de combate à disseminação do ‘covid-19’ entre nós…

À boa maneira de outros momentos da nossa história coletiva há uns tantos mais habilidosos na arte do disfarce que procuram rejeitar qualquer alusão ao divino, seja naquilo que for e, particularmente, quando as coisas não forem tão dramáticas como seria expetável ou – pasme-se a subtileza! – na conveniência das suas ideias antirreligiosas. 

= Considero do mais elementar da nossa condição social e cultural denunciar que há forças – umas assumidas como braço dos aventalistas/maçónicos, outras como projeção de vários esquerdismos (marxistas, trotskistas e anarco/amoralistas) – para as quais lhes custa, minimamente, considerar, ao menos como hipótese, que não conseguem explicar logicamente o que lhes escapa…acham-se donos de tudo e do bastante, reduzem quem não seja como eles ao irrazoável de não-fé. É vê-los a pulular em programas televisivos, arvorados em intelectuais, de circunstância ou residentes no poleiro; jornalistas que precisam de afirmar a sua não-crença como se tal lhes desse mais estatuto ou superior credibilidade; intervenientes em programas de entretenimento – barato e subtil da manhã ou na versão arrastada da tarde – que puxam a conversa para a sua afirmação da descrença e não da sua posição profissional ou especialidade seja lá naquilo que for…e pelas (ditas) redes sociais é um estendal de agnósticos, de laicos (na versão de aversão ao fenómeno religioso) ou vendedores de ilusões bem mais patranhosas do que as que pretendem gatafunhar aos crentes… 

= Retornemos à leitura da situação de ‘milagre português’ nas palavras do presidente. Reportando-se aos números das vítimas do ‘covid-19’, o presidente fez-se eco, no seu discurso de 16 de abril, da forma como os portugueses foram ‘solidários e mobilizados, com disciplina, com zelo, com determinação, com coragem’, suportando fortes privações neste caminho a que tantos estrangeiros chamam ‘o milagre português’. Explicando esta expressão, o presidente considerou ainda que ‘se isto é um milagre, como lá fora dizem, então nós, povo português, somos um milagre vivo há quase nove séculos. Se isto é um milagre, o milagre chama-se Portugal’.

Este excerto da comunicação do presidente da república não nos pode fazer essa figura de inferiorizados com que tantas vezes nos apreciamos, nos catalogamos ou ainda nos golpeamos em jeito sadomasoquista.

Não será preciso recorrer ao imaginário religioso da nossa história coletiva para que não continuemos a mergulhar num tal pedantismo sem nexo que julga tudo conseguir e nada apreciar em si mesmo e nos outros. Talvez nos faltem líderes capazes de conduzirem este povo que, tantas e de tão variadas formas, faz das suas fraquezas as melhores das forças…e não é só no futebol. Nos mais diversos campos – inclusive no âmbito religioso – temos tido dirigentes lerdos, sem visão e pouco nível intelectual e cultural…não-dignos dos nossos antepassados heróis e santos.

Com facilidade nivelamos as conquistas pelo senso comum, sem ambição nem união. O servilismo das forças partidárias/ideológicas tem servido mais para promover uns certos nababos do que para reconhecer a competência e o mérito. Muitos dos ‘governantes’ – nos vários níveis e instâncias – mais parecem correias de transmissão e paus-mandados, onde só vinga quem melhor adula, onde só ascenda ao posto superior quem mais engana e mente, quem, afinal, nivela o chegar pela amarra do partir.

Porque será que em tantas das autarquias estamos a atingir a fasquia da governança do rotulado fascismo? Não haverá nessas terras gente melhor do que os da mesma cor, quarenta e tantos anos depois? Isso será democracia dinástica com direito a sucessão, sem interferência nem alternância?

 

= O milagre português começou com a lenda de Ourique, as loas de Aljubarrota, as ruturas anti-hispânicas… com horizontes e não com esses antolhos seguidistas. Portugal merece melhor!    

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 22 de abril de 2020

46 anos depois…


A comemoração do ’25 de abril’ este ano foi alvo de razoável controvérsia…mais por inépcia dos intervenientes do que pelo objeto da questão.

Novamente veio a público uma certa tendência – 46 anos depois já era tempo de ultrapassar esse complexo freudiano – de alguns que se acham donos/senhores/proprietários/administradores do ’25 de abril’. Dá a impressão que registaram a patente, mas se esqueceram do processo adstrito da marca…

Agora que as coisas da economia estão a voltar à estaca zero, emergem fantasmas de um passado que só tem deixado feridas no tecido humano e social. Num ápice aquilo que era sucesso foi reduzido a pó no almofariz da pandemia do ‘covid-19’. Esse pó vai ter de ser sorvido como cicuta social por bastante mais tempo do que seria previsível. Em escassos dois meses perdemos tudo quanto diziam que tínhamos conquistado, chorando nos mesmos locais onde antes se fazia festa. Atividades de sucesso e grandes ganhos – como turismo ou a restauração – caíram a pique e, segundo dizem, serão os maiores fornecidos de gente para o desemprego…  

= A título de partilha deixo um texto que enviei – por sua solicitação – para os serviços de comunicação da Câmara onde resido. Foi-me pedido e tornado público…no facebook camarário:

A liberdade é um dom divino concedido a todas pessoas, crentes ou não-crentes.

A liberdade não é um conceito abstrato: há pessoas livres e pessoas não-livres.

De que adianta gritar liberdade, senão houver liberdade para gritar?

Quem é livre, é responsável, respeita os outros na sua diferença, seja qual for a opinião ou a cor…

Em 25 de abril queremos comemorar a recuperação de uma certa liberdade, mas será que já o conseguimos?

Em 25 de abril de 74 disseram-nos, com gestos e palavras, que podíamos ser mais livres, mas será que somos mais livres porque respeitadores e responsáveis?

Agradeço a todos quantos me ensinaram a pensar pela própria cabeça, sendo livre.

Agradeço a quem me concedeu espaço de valorização cultural e humanista.

Agradeço a quem me ensinou a reconhecer, aceitar e pedir perdão pelos meus erros.

Em resumo: conhecereis a verdade e a verdade vos fará realmente livres.

Sejamos, então, portugueses livres, respeitadores e responsáveis, hoje mais do que ontem e amanhã melhor do que hoje!  

= Há 46 anos atrás apresentaram a ‘revolução’ com três d’s: democratizar, descolonizar e desenvolver. Vejamos como têm sido postos em marcha essas boas intenções:

* Democratizar – será que é democracia o governo de minorias para si mesmas? Será sinal de igualdade haver a sensação de uns que se sentem mais democratas do que os outros? Quem tem a patente de mais democrata, se todos parecem combinar antes a luta pelos seus direitos e não pelos deveres? As ideologias – mesmo as defuntas noutras paragens – não precisarão de refletir sobre a sua função democrática ou mais ditatorial? O melhor retrato da pior democracia verifica-se na crescente abstenção nas eleições. Nem tudo está garantido, antes como agora e no futuro…

* Descolonizar – fomos um exemplo catastrófico neste campo: deixamos quase só porcaria por onde passamos, criando mais miséria do que sucesso, entregando o poder a senhores bem piores do que antes, confundindo as populações com decisões de cobardes, que fogem na hora da verdade… A melhor referência é a miséria em que deixámos a maioria dos ‘nossos’ colonizados…depois de séculos de ocupação!  

* Desenvolver – não fora a adesão à União Europeia, em 1985, e continuaríamos ainda mais na cauda da Europa. Como país de migração – teremos quase metade dos residentes lá fora – fomos deixando escapar imensas oportunidades de crescimento, de valorização e de desenvolvimento, que seja mais do meramente económico… Teremos evoluído com sentido de responsabilidade no quadro europeu e mundial?

Ainda haverá quem insista no chavão: ’25 de abril sempre’, quando não fizemos o mínimo do sonho? Já seremos, de verdade, a terra de fraternidade que tão pomposamente proclamamos na canção-hino? 

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Depoimento sobre o ‘25 de abril’ (*)


A liberdade é um dom divino concedido a todas pessoas, crentes ou não-crentes.

A liberdade não é um conceito abstrato: há pessoas livres e pessoas não-livres.

De que adianta gritar liberdade, senão houver liberdade para gritar?

Quem é livre, é responsável, respeita os outros na sua diferença, seja qual for a opinião ou a cor… 

Em 25 de abril queremos comemorar a recuperação de uma certa liberdade, mas será que já o conseguimos?

Em 25 de abril de 74 disseram-nos, com gestos e palavras, que podíamos ser mais livres, mas será que somos mais livres porque respeitadores e responsáveis? 

Agradeço a todos quantos me ensinaram a pensar pela própria cabeça, sendo livre.

Agradeço a quem me concedeu espaço de valorização cultural e humanista.

Agradeço a quem me ensinou a reconhecer, aceitar e pedir perdão pelos meus erros. 

Em resumo: conhecereis a verdade e a verdade vos fará realmente livres.

Sejamos, então, portugueses livres, respeitadores e responsáveis, hoje mais do que ontem e amanhã melhor do que hoje!  

 

(*) Texto solicitado pelos serviços da Câmara Municipal da Moita para ser incluído nos testemunhos sobre o 25 de abril…deste ano!  

 

António Sílvio Couto

domingo, 19 de abril de 2020

Escravos em abril: parecer ou ser?


Pelo jeito que as coisas estão a ser conduzidas, o mês de abril será de renovado condicionamento, com a terceira dose do ‘estado de emergência’, a contenção no contato social…à mistura com certas expetativas de, em breve, regressarmos à normalidade possível.

Desde logo uma ressalva de princípios: considero um abuso intolerável que haja, quase cinco décadas depois, quem se arvore em ser ‘dono’ da dita ‘revolução dos cravos’, nem que se apresentem como arautos alguns dos que mais contribuíram para o desvirtuamento disso que a utopia quis insuflar no país/nação. Muitos daqueles que querem dar lições esquecem-se de fazer antes um ato de consciência cívica sobre o modo como tem sido gerida a (tal) democracia: só a deles e dos seus apaniguados (cor ou ideologia) é que vale, os outros seriam quase dispensáveis até para darem algum valor às suas vitórias…muitas delas pírricas.

= A nova dose (terceira) de ‘estado de emergência’ entra pelo próximo mês de maio. Digamos que o mês de abril – pretensamente apelidado da ‘liberdade’ – é vivido em estado de não-total liberdade ao menos exterior. Tal como noutros temas, também neste temos visto algum atabalhoamento nas decisões: um dia diz-se, no outro vem uma correção; num dia alarga-se a bitola, no seguinte afunila-se o entendimento; num dia há um decreto-lei, no outro aparece uma portaria com um sentido divergente da legislação anterior…

Diz-se que deve continuar o confinamento social e um certo espaço de distanciamento entre as pessoas (dois a quatro metros, dependendo da cubicagem de cada um), mas para a sessão evocativo/funerária da ‘revolução’ os intervenientes podem acotovelar-se sem risco nem perigo… Idêntico folclore se avizinha para o dito ‘dia do trabalhador’… 

= Dado que este tempo de recolhimento tem permitido refletir sobre os mais díspares problemas, deixo aqui algumas questões de inquietação:

- Quando assumirão os seus erros e falcatruas os inveterados da ‘revolução dos cravos’?

- As empresas que faliram ou foram descapitalizadas não merecem serem mais do que escombros de tempos gloriosos, arruinadas e agoirentas?

- Os sindicatos que arruinaram tantas das empresas não deveriam ir a julgamento, repondo o que desviaram?

- As forças políticas ditas democratas, quando serão responsabilizadas pelo afundamento repetido, contumaz e ciclo do país em quatro décadas?

- Ser livre será só fazer o que lhe apetece, protegendo os seus compinchas ou não deverá passar pela defesa da liberdade na diferença?

- A esponja da farsa não deveria ser lavada para desinfetar quem a usou mais do que para continuar a sujar quem com ela foi prejudicado?

- Qual será a diferença entre gritar liberdade ou ter liberdade para gritar?

- Quando aprenderemos a aceitar as ideias dos outros mais do que as manhas e subtilezas das ideologias?

- A iniciativa privada ainda é entendida como obstáculo à mentalidade estatal ou esta sobrevive porque aquela trabalha, produz e paga impostos para alimentar quem engorda nos (ditos) serviços públicos?

- Até quando continuaremos a ver promovidas e a vivermos em ‘classes’ sociais, mais marcadas pelo preconceito do que pela eficiência, mais à luz do compadrio do que da qualidade, mais no favorecimento da mediocridade do que da meritocracia?

- Por que há tanto revanchismo e desvirtuamento da história quando se trata de denunciar os milhentos erros do comunismo e se faz alarde com idênticos crimes do nazismo e quejandos?

- A história terá mesmo de ter filtros e manipulações, dependendo dos interesses (ignorâncias, cumplicidades ou manipulações) subjacentes?

 

= Em abril estamos confinados pelo estado de emergência, aproveitemos para refletirmos sobre nós mesmos, os outros, o nosso mundo e os deles, o nosso futuro e as possibilidades alheias… Sem desenrascanços subtis, sejamos dignos da história de país/nação com quase nove séculos de altos e baixos, de heróis e de santos…

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Solidários na desgraça ou desgraçados sem solidariedade?


Os episódios mais recentes da nossa história comum – que é muito mais do meramente coletiva – coloca-nos diante de uma experiência quase dramática de cada um e de todos: num ápice caiu o (propagandeado) ‘sucesso’ económico; aquilo que há um mês – início de março – era certeza, hoje – meados de abril – é dúvida, medo ou ansiedade; setores que eram considerados de grande pujança, estão hoje nas ruas da amargura, senão fechados prestes a implodir; filas de espera nos restaurantes trocaram de indumentária e mendigam à porta dos espaços assistenciais particulares ou institucionais; as escolas estão vazias e tristemente silenciosas, onde agora chilreiam pássaros antes eram tolhidos pelo barulho das crianças; os espaços de culto estão encerrados à participação de fiéis, entretanto transformados em telespectadores e cibernautas com celebrações à la carte; aquilo que antes era normal, agora é considerado excecional…a alma da nossa identidade cultural foi ferida, está magoada e, nalguns casos, quase moribunda…

Talvez estejamos a viver a pior crise humanitária generalizada desde o final da segunda guerra mundial: esta é cultural e não só bélica; é de regime e não só de sistema; é de todos e não de uns tantos, que se reclamavam vencedores; agora somos todos derrotados…até os que possam tê-la desencadeado. O mundo foi varrido por esta pandemia em resultado de muitos condicionantes, razoáveis ou até irracionais.

Se a saúde – biológico-química sem deixar de atender à de índole psicológico-espiritual – foi posta em risco, algo mais nos deve fazer refletir sobre tantos dos problemas a que temos dado alguma importância, pois muitos deles não passam de ninharias diante do essencial. A transversalidade de tudo que estamos a viver faz-nos ser mais humildes, pois não conseguimos ascendente de uns sobre os outros e, quem tal ousar, saberá que está a faltar à verdade moral, filosófica e até metafísica. 

= Será, entretanto, oportuno recordar a contraposição entre os princípios, tendencialmente, individualistas da ‘revolução francesa’ de 1789 – liberdade, igualdade e fraternidade – com novos princípios e critérios decorrentes da revolução de 1989, com a queda do ‘muro de Berlim’ – cf. João Paulo II, carta encíclica ‘Centesimus annus’, no centenário da Rerum novarum, de 1 de maio de 1991, n. os 22-29. De algum modo se introduz uma nova designação daqueles princípios agora mais na dimensão personalista da pessoa e da convivialidade com os outros: democracia, participação e solidariedade.

É tendo em conta esta onda de interdependência em tudo o que temos estado a fazer – e o mais que possa vir a ser preciso – é pouco, embora significativo. Com efeito, será tomando medidas para suster o contágio do ‘covid-19’ que estaremos a cuidar de nós mesmos e dos outros numa intercomunhão de gestos, de atitudes e de ações.

Esta pandemia veio colocar a nu muito daquilo que já anteriormente era considerado subjacente: há uma razoável fatia (ou será fação?) da nossa sociedade que ainda não interiorizou que estamos em interligação muito mais do que funcional, logo que se um não aceita as regras sociais ou não se comporta em função dos outros, todos somos prejudicados…mais cedo do que mais tarde. 

= Nesta conjugação de vivências a que temos estado a ser submetidos, há questões que não podemos deixar de atender. Mais do que solidários na desgraça temos de saber criar condições para sermos solidários nas boas propostas, na criação de um razoável espírito de partilha, na conjugação dos critérios de convivência, na sintonia com os valores de humanismo, na disponibilidade para sabermos estar mais a pensar nos outros do que em nós mesmos.

Mesmo que uma certa maioria da comunicação social nos vá infestando de notícias negativas e obscuras, temos de ir vislumbrando sinais de esperança em tantos gestos de dedicação aos outros, seja na área da saúde, seja no âmbito do social. Os números estão dados a público: mais de cem mil idosos (velhos, muito velhos) vivem em lares de não-família, muitos deles cuidados por instituições de benemerência com suporte cristão – misericórdias, IPSS (centros paroquiais ou outros), associações de base solidária – que menorizam os estragos da solidão a que muitos dos mais velhos são lançados. Espera-se que o Estado acorde para este setor da ‘economia social’ e não se limite a lançar dinheiro aos seus apaniguados…na cor ou na ideologia!    

     

António Sílvio Couto

segunda-feira, 13 de abril de 2020

‘Covid-19’ não atinge tanto os pobres ou ataca mais os ricos?


Há frases que ditas de repente podem soar a sem-senso, mas que refletivas poderão despertar algo sobre o qual deveríamos pensar um pouco melhor.

Por estes dias ouvi: ‘este vírus ataca sobretudo os ricos’… americanos, europeus, chineses...deixando de fora uma boa parte da população de África e territórios mais pobres…do Planeta e até do nosso país!

Numa primeira fase de contaminação parece que foram os que mais se movimentaram – para feiras e negócios, para festas e passeios, em razões profissionais – de um lugar para outro, que foram os maiores difusores do vírus…embora colocando esses aspetos sob reserva mental.

Se atendermos às sociedades atingidas pela pandemia podemos considerar que o assunto desencadeado em finais de 2019 – daí a designação de ‘covid’: corona rus disease (doença do coronavírus) e ‘19’ como a data de surgimento, em dezembro do ano passado em Wuhan, na China – ganhou expansão desde o extremo Oriente e não foi levado tão a sério como devia nalguns países, como por exemplo em Itália, Espanha, Estados Unidos da América…

Numa atitude sem precedentes foi decretado um recolher obrigatório – apelidado de confinamento social – na maior parte dos países, uns mais cedo e outros mais tarde. Estes como que pagaram (e continuam a pagar) caro alguma negligência das autoridades, aliadas a comportamentos de risco de parte da população.

Adereços como máscaras e luvas foram largamente difundidos como tentativa de não expandir a doença, tanto quanto se sabe, propagada através das gotículas que são emitidas pela tosse ou ao espirrar, lançadas para o meio ambiente e contaminando superfícies de convivência comum, através das mãos (por isso o uso de luvas) e convívio social (em razão de tal difusão se recomenda o uso de máscaras).

A cadeia de surto de ‘covid-19’ percorreu já várias etapas: preparação (não foi muito levada a sério como risco geral), de resposta – contenção (ainda à distância), contenção alargada (transmissão já na Europa e no nosso país), mitigação (transmissão local, tanto em ambiente fechado como no convívio social) e, por último, a fase de recuperação…onde se poderá verificar o decréscimo fiável da doença. 

= Independentemente da forma como cada um de nós foi reagindo, neste pouco mais de um mês – o primeiro caso registado em Portugal aconteceu a 2 de março – tudo mudou e nem o slogan bacoco – ‘vai ficar udo bem’ – criou melhor ambiente e mais atitude responsável por parte de muita gente. Alguns achavam que isso era só para os outros – veja-se a forma indecente com que foram para a praia ou continuaram a fazer festas como a da ‘mulher’ (no início de março) ou até mesmo festanças do carnaval à mistura com sobrancerias de ignorantes e quase criminosos. As exceções para poder andar na rua – fazer compras, ir à farmácia ou passear o cão – nem sempre foram encaradas com a razoável seriedade, pois os pobres dos animais eram (são) usados como alibis de espertos/as sem consciência. Repara-se nas longas filas do norte para sul desde Lisboa para tentarem romper o estado de emergência… Será isto aceitável? Até onde irá a falta de civismo: se é para todos, também me atinge a mim… 

= Perante os dados conhecidos – há quem diga que, pelo menos, são falsos numa discrepância que pode ir até cinco vezes mais – Portugal tem tido resultados que, embora duros, estão muito abaixo da gravidade de outros países europeus: nalguns dias morriam, em Espanha, Itália ou Grã-Bretanha, mais pessoas do que o máximo total registado do nosso país. Haverá razões para esta ‘proteção’? Será isto resultado de algo que nos envolve ou sustem? Na linha de crença cristã/católica será este um indício da proteção de Nossa Senhora, desde sempre – há quase nove séculos – a nossa mãe e protetora? Isso de estarmos na cauda da Europa não será benéfico e salutar? Dado que só temos uma fronteira terrestre, isso dar-nos-á ascendente sobre outros países europeus? Não será que a nossa pobreza ganha aos pontos os evoluídos do resto do hemisfério norte?

Há quem considere que este mês de abrandamento das atividades económicas, das deslocações em transportes e mesmo de algum recato das pessoas em casa fez mais pela salvaguarda do Planeta do que todas as campanhas e manifestações… Agora ouvem-se os pássaros a chilrear a qualquer hora do dia, a esvoaçar com mais à-vontade. Como sempre em tudo Deus sabe tirar o melhor proveito…

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Morrendo destruiu a morte e ressuscitando restaurou a vida


Ele é o Cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo: morrendo destruiu a morte e ressuscitando restaurou a vida’ – rezamos no prefácio pascal I, em que marcamos os parâmetros do mistério da paixão-morte-ressurreição de Jesus.

Se tivermos em conta as duas essenciais vertentes desta oração – morrendo destruiu a morte // ressuscitando restaurou a vida – em Igreja poderemos vislumbrar algo que pode estar contido nas diferentes orações de prefácio do tempo pascal:

– porque a nossa morte foi redimida pela sua morte e na sua ressurreição ressurgiu a vida do género humano (prefácio II);

– foi imolado sobre a cruz, mas não morrerá jamais; foi morto mas agora vive para sempre (prefácio III);

– porque, vencendo a antiga corrupção do pecado, renovou a vida do universo com uma nova criação e restaurou o género humano na sua integridade original (prefácio IV);

– pela oblação do seu Corpo na cruz, levou à plenitude os sacrifícios antigos, e, entregando-se a Vós pela nossa salvação, tornou-se Ele mesmo o sacerdote, o altar e o cordeiro (prefácio V).

Numa primeira leitura podemos encontrar dois binómios: cruz-morte; ressurreição-vida… referenciando-nos à dimensão soteriológica e redentora de Cristo pela Igreja.

De que morte ou de que vida se trata, quando rezamos e, sobretudo, quando cremos, professando a nossa fé? Será ‘morte’ no sentido físico ou na dimensão psicológico-espiritual? A ‘vida’ reduz-se só aos aspetos sensoriais ou envolve outras vertentes, nem sempre tão cuidadas quanto devíamos?

Tentemos elucidar estas questões.

– Antes de tudo ‘vida’ refere-se a tudo quanto faz de cada um de nós e de todos os outros seres viventes, nas suas mais diversificadas referências, que não meramente as de natureza material/animal. Não será que muitas pessoas do nosso tempo se reduzem, preferencialmente, a alimentar o corpo, menosprezando os aspetos de natureza psicológica e espiritual. Quantos vivem como se se confinassem à matéria do seu corpo físico-biológico, apreciando, valorizando e cuidando dos prazeres sensoriais. Reparemos nos adereços com que se envolvem – às vezes mais por fora do que por dentro – para que não corra perigo aquilo que conhecem ou ao qual dão valor. Com o passar do tempo – como este é o melhor mestre da vida – vão (vamos) percebendo que isso a que dávamos tanta importância se vai tornando relativo ou aquilo em que gastavam (gastaram) tantas energias, afinal, vai perdendo a importância tão exaltada.

– Talvez a maturidade das pessoas se possa perceber ou avaliar (sem julgar) mais pela ‘desvalorização’ de si mesmas do que pela exaltação ou até culto do próprio eu. O problema é quando se vive numa sociedade onde a superficialidade faz critério e o papel de embrulho é mais valorizado que o conteúdo. Talvez seja isso em que temos andado entretidos, isto é, a confundirmos o essencial com o urgente ou a trocarmos os critérios pelas circunstâncias.

= O sinal mais central da paixão-morte-ressurreição de Jesus é a Cruz: no contexto do Calvário – o de ontem e o de hoje – tanto ao contemplarmos nela Cristo crucificado, como ao olharmos para ela despida. Sendo símbolo da confluência entre o Céu e a Terra – a haste vertical, que representa o mistério da encarnação; a haste horizontal foi isso que Jesus fez, levando-nos com Ele em toda a sua humanidade e salvando-nos pela sua entrega, pelo mistério da redenção. É na Cruz que está contida em semente a explicação das palavras que rezamos nos prefácios das eucaristias do tempo pascal: ‘morrendo, destruiu a morte’ com tudo quanto envolve rutura com Deus pelo pecado; ‘ressuscitando, restaurou a vida’ naquilo que nos foi concedido na dimensão espiritual, quando aceitamos Jesus Ressuscitado na nossa vida, tudo renasce e ganha novo sentido, a vida nova em Deus.

Podemos – e vamos – continuar a experimentar a morte física, no nosso corpo, composto por matéria frágil e biodegradável, mas, na dimensão espiritual, renasceremos pela configuração com Cristo pelo batismo. Talvez este estado de pandemização, que estamos a viver, nos possa ajudar a rever muitos dos nossos valores e critérios: mais do que solidários na desgraça podemos/devemos tratar de viver uma comunhão na conversão. Isto é um apelo à dimensão comunitária/social com incidências pessoais muito intensas…      

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Como viver a ‘semana santa’ em tempo de pandemia?


Considerada pela tradição católica como a ‘semana maior’ – não pela extensão dos dias, mas pelo significado de cada um deles – a Semana Santa reveste-se dum significado muito especial no quadro da espiritualidade católica e este ano de uma forma ainda mais especial, dado o estado de confinamento à habitação de cada um de nós.

Embora estes dias sejam de contenção e de silêncio, eles ganham ainda mais significado se nos ativermos à abrangência de tudo isto por todo o mundo, onde a Igreja se insere, participa e comunga de igual vivência.

Na capacidade de adaptação que temos, vão surgindo propostas, algumas delas com interesse, para vivermos, pessoal e familiarmente, este tempo de ‘semana santa’. Assim, a diocese de Setúbal apresentou a ‘cruz em rede’, onde se fazem sugestões para cada dia, enquanto se compõe uma cruz com os símbolos diários.

Eis o itinerário:

Nos três primeiros dias – segunda, terça e quarta – algo que nos pode e deve fazer refletir. Referimo-nos ao ‘mistério de Judas Iscariotes’, esse que foi o traidor e que entregou Jesus às mãos dos judeus para vir a ser morto. Com efeito, os textos da liturgia da palavra da missa desses dias são assaz ‘perturbadores’ – Jo 12,1-11: Judas questiona o uso do perfume de Madalena para com Jesus; Jo 13,24-33.36-38: Jesus preanuncia a traição de Judas e as negações de Pedro; Mt 26,14-25: Judas como que negoceia a entrega de Jesus aos chefes judaicos.

Efetivamente, ‘Judas Iscariotes’ sempre foi um mistério: ele que viveu com Jesus tornou-se o veículo para entregá-Lo aos seus adversários, tanto religiosos como políticos. Aí está o confronto com a nossa (minha) condição de discípulo envergonhado, manhoso e talvez traidor…   

– Quinta-feira santa tem dois grandes vetores: a missa crismal e a celebração da ‘ceia do Senhor’

* Missa crismal – dom do sacerdócio

Aquilo que deveria acontecer na manhã desta quinta-feira santa – a reunião de todo o presbitério com o seu bispo – é adiado para outra data oportuna, quando passar esta fase de resguardo social. Mesmo assim valerá a pena aflorar sobre o sentido desta ‘missa crismal’: ela é a expressão de comunhão de todo o presbitério e nela se faz a renovação do compromisso sacerdotal. É um momento fundamental de todo o padre e da própria diocese: não pode haver verdadeiro ministério sem comunhão dos padres uns com os outros e de todos com o bispo diocesano…mesmo que possa ser só padre religioso!

* Celebração da ‘ceia do Senhor’

Na tarde (ou ao final da mesma) da 5.ª feira santa, a Igreja convida-nos a celebrar ‘a missa vespertina da ceia do Senhor’, confluindo para esta celebração o memorial da páscoa judaica e a instituição que Jesus faz da eucaristia, isto é, o memorial do Seu Corpo e Sangue. O rito dos ‘lava-pés’ apresenta-se como um sinal central, introduzindo-nos ao mistério da paixão-morte-ressurreição de Jesus. Ora, atendendo a reduzida participação de fiéis na celebração, tal rito não se faz…este ano.

= Na proposta da ‘cruz em rede’, a sugestão diocesana coloca-nos diante de breves considerações: desde logo a preparação e confeção do pão ázimo (sem fermento) para a vivência da refeição da ‘ceia’, onde é apresentado também um caminho de lava-pés em família, bem como uma bênção da mesa com salmos, ritos e orações apropriados à presença em família, associando todos os elementos, inclusive as crianças…numa quase para-liturgia com sabor a shabat hebraico. Inclui-se ainda um tempo de oração de vigília, com textos da agonia de Jesus no horto das oliveiras (cf. Mc 14-32-42) e uma breve oração de intercessão pelos vários intervenientes neste clima de pandemia. 

– Sexta-feira santa centrada na leitura da Paixão e na adoração da Cruz

Como dia de jejum e de abstinência, o dia de sexta-feira santa faz-nos caminhar em recolhimento e até em contenção de palavras, meditando a narrativa da Paixão segundo São João, vivendo a adoração da Cruz – onde nem devia estar a imagem do Senhor para que a cruz fosse sentida como verdadeiro instrumento e sinal de salvação – e sendo alimentados pela eucaristia dos pré-santificados. Neste dia é duma grande beleza e simbologia a longa oração universal, onde, desde tempos imemoriais, se reza por tudo e por todos…até pelos descrentes e ateus, com este ano a incluir-se uma prece pelo estado de pandemia.

= Na proposta da ‘cruz em rede’, a sugestão diocesana coloca-nos num ambiente em casa um tanto idêntico àquele que deveríamos ter nos espaços litúrgicos: com uma cruz, uma toalha branca e um recipiente com água…à mistura com não muita luz. É sugerido que se possa seguir uma transmissão (televisiva ou via internet) das celebrações de 6.ª feira santa. A leitura da paixão segundo o evangelho de São João – Jo 18,1-19,42 – ocupa um largo espaço. Depois faz-se a adoração da cruz, que termina com uma oração de um autor do século IX, lembrando várias facetas de pedido de perdão e de adoração ao sinal da Cruz. Em família faz-se a ‘sepultura’, que consta em envolver a cruz numa toalha, que simboliza o ‘sudário’…entrando-se no grande silêncio de ontem e de hoje.

Segundo alguns costumes, nesta noite de 6.ª feira santa, far-se-ia a procissão ‘do enterro do Senhor’, termo indevido, pois não levamos ninguém a enterrar e tão pouco a sepultar, antes, pelo silêncio e a meditação – onde a música pode e deve ajudar-nos – caminhamos escutando textos do sepultamento de Jesus. É algo anacrónico que alguém participe na ‘procissão do enterro do Senhor’ se não viveu o resto da liturgia desse dia… Certos folclores precisam de ser purificados e exorcizados, à luz duma formação simples, aceite e crescente…   

– Sábado santo: do silêncio à explosão da luz…ressuscitada e ressuscitadora

Num dia sem celebrações litúrgicas, preparamo-nos para a significativa vivência da vigília pascal, que nos coloca diante de quatro grandes dimensões litúrgicas: da luz, da Palavra, batismal e eucarística. Cada uma delas é longa e essencial para a nossa fé cristã. Por isso, a vigília pascal não pode ser feita a correr e talvez seja uma abuso fazer mais do que uma nessa mesma noite… Na liturgia da luz contemplamos, em forma de oração, o mistério da redenção operada pela ressurreição do Senhor, luz que brilha nas trevas; na liturgia da Palavra percorremos os momentos essenciais da história da salvação em ordem à ressurreição do Senhor; na liturgia batismal acolhemos novos irmãos e renovamos o nosso batismo; na liturgia eucarística damos graças e recebemos o dom do Senhor vivo e ressuscitado para sempre.

= Na proposta da ‘cruz em rede’, a sugestão diocesana coloca-nos, desde a manhã deste dia de sábado santo na expetativa, incluindo os elementos figurativos: a toalha que envolveu a cruz, tem um certo espaço de simbólica, merecendo que junto dela se acenda uma vela, em sinal de respeito e alguma reverência. É proposta a leitura de uma homilia antiga de sábado santo, onde se fala do grande silêncio que ‘cobre a terra’. Os momentos de oração comuns são extraídos do livro do Cântico dos cânticos.

A noite de oração – réplica da vigília pascal – desenvolve-se à mesa, que deve ser festiva. O início da ‘celebração’ dá-se à entrada da porta de casa, num misto de alusão judaica e de liturgia cristã…de liturgia da luz, com a intervenção da mãe e do pai. Chegados junto da mesa todos ficam em pé, enquanto a mãe coloca a vela no centro da mesa. Lê-se, então, a narrativa de São Mateus (28,1-10) da ressurreição de Jesus. Após um breve tempo de silêncio é feita a proclamação da Páscoa com o ‘glória a Deus nas alturas’, saudação da paz, acendendo-se as velas na mesa e prosseguindo o jantar… durante o qual se reza o credo e o pai-nosso. O pai dá graças sobre o pão, repartindo-o por todos… Na conclusão da ceia far-se-á uma oração a Nossa Senhora, como por exemplo o ‘Regina Coeli’…

Sobre a dinâmica do domingo de Páscoa falaremos depois.

 

António Sílvio Couto

 

sábado, 4 de abril de 2020

Não ‘vai ficar tudo bem’!


Espalhou-se numa espécie de estandarte-slogan, dizendo ‘vai ficar tudo bem’…associando à frase um grafismo com aquilo que faria lembrar o arco-íris. E, de repente, isso pareceu tornar-se um exorcismo coletivo sobre a pandemia em curso. Abstenho-me de tecer qualquer comentário à imagem que quiseram associar a esta iniciativa. Seria bem dispensável para que não se gerassem confusões ou, se as quiseram incluir, foi um ato de aproveitamento de mau gosto e de duvidosa ética….cultural e social.

Independentemente do motivo que fez crescer este desejo de que ‘ vai ficar tudo bem’, nota-se algum exagero naquilo que se quer exprimir ou, pior, parece que nos querem levar ao engano, enganando-nos e sendo enganados. Não, não ‘vai ficar tudo bem’. Este parece mais um daqueles mitos urbanos, onde uns tantos habilidosos, querem fazer-de-conta de que nada está a acontecer, levando os demais a esvoaçarem sobre as ruínas de algo que tinha sido criado sobre conceitos de utopia…com sabor a materialismo.  

– Efetivamente seria um desperdício de tempo – querendo dar a entender que ‘vai ficar tudo bem’ – o distanciamento social a que a maioria das pessoas se reduziu nas últimas semanas. Pequenos grandes gestos podem ter ajudado a suster a disseminação do vírus. Atos de contenção na exposição à vida pública podem ter contribuído para ganhar breves batalhas nesta grande guerra.

Talvez se tenham dados alguns passos para recuperar a casa – muitas vezes dita de família, mas que não passava de um rótulo frágil e ténue – como espaço de presença das pessoas umas às outras. As refeições, tomadas em casa contrastam com as longas filas de espera nos restaurantes, agora em risco de fecharem temporária ou definitivamente. Andávamos – nós portugueses em especial – a dar um ar de rico, mas que tinham medo de se enfrentarem à mesa e no reduto da habitação, que é (ou deve ser) algo de sagrado e não exposto à interferência alheia. Não teremos nada a mudar, depois desta experiência forçada e necessária? Não sentimos já que a nossa casa está mais aquecida porque nela se cozinha ou se come à mesma mesa?

Os hábitos que tínhamos precisavam de mudar, senão por convicção ao menos por coação!  

– Dizem por aí que as igrejas fecharam. Não, a assembleia dos irmãos – na origem etimológica ‘ecclesia’, igreja – é que deixou de se reunir com a presença de maior número de fiéis. Esta crise de pandemia veio trazer à luz do dia possibilidades diferentes de aproveitamento das (ditas) ‘novas tecnologias’ de serem colocadas mais organizadamente ao serviço da evangelização. Missas e outros atos de culto chegam a casa dos fiéis – leigos ou clérigos – de uma forma idêntica à de outras informações, notícias ou comentários. Novas ferramentas trazem novos requisitos. Não basta transmitir, por exemplo uma missa, como se os que nos vem fossem a parte tolerada, fazendo-a para aqueles que estão na nossa presença física. Agora é o destinatário da nossa mensagem que está para além daquela câmara, por detrás de um visor ou diante de um écran…

É um facto que a participação tocada não se estabelece. Não se pode comungar o corpo de Cristo, no momento da comunhão, mas temos de reaprender certas noções talvez menos bem explicadas, como a ‘comunhão espiritual’ ou de desejo, preparando-nos melhor para o momento celebrativo presencial.

Algo de idêntico se pode referir do sacramento da penitência pela celebração da confissão. Há reaprendizagens que urge fomentar e talvez devamos ser inventivos para que possa haver mais consciencialização da noção de pecado, de ofensa a Deus e de agravos aos irmãos… O distanciamento físico pode criar mais qualidade nas relações humanas e espirituais.  

– Não ‘vai ficar tudo bem’, se por ‘bem’ se entender, tudo igual. Veja-se a área da economia (trabalho, empresas, trabalhadores, mercadorias, contas, dinheiro): num instante as ruas, avenidas e autoestradas ficaram desertas e o turismo escafedeu-se; os ordenados baixaram e as finanças (pessoais e familiares) faliram; o sucesso governativo de excedente orçamental evaporou-se num ápice; o desemprego triplicou num só mês… Não, não ‘vai ficar tudo bem’… Dizer o resto é enganar as pessoas e pode ser considerado crime de lesa-majestade, pois os outros merecem-nos respeito sempre e não só em maré de crise… do vírus!        

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Páscoa sem passagem será ainda páscoa?


De entre as várias medidas lançadas pela segunda vaga de ‘estado de emergência’ há uma que, certamente, não será esquecida por muito tempo: não se pode circular para fora do concelho de residência habitual entre 9 e 13 de abril, isto é, desde a quinta-feira da semana santa até à segunda-feira após o domingo de Páscoa… Quem infringir o estipulado terá pesado castigo!

As várias medidas restritivas decorrentes do estado de pandemia do ‘covid-19’ tentam (tentaram ou tentarão) criar condições para controlar o problema, condicionando as pessoas o mais possível à sua casa. Embora uma parte significativa de pessoas tenha entendido, suportado e vivido este regime, nem sempre os factos foram tão benéficos quanto seria suposto num tempo de civilização… 

= Será que o confinamento das pessoas à sua residência resolverá, efetivamente, o problema da disseminação do vírus? Não andaremos a enfatizar pormenores – uso de máscaras, desinfeções e outros adereços – esquecendo-nos do essencial? O tal resguardo social não passará de um disfarce para enfrentarmos o que é mais importante, saber respeitar os outros mais do que vivermos sem restrições nem regras? 

= Em tudo isto que temos estado a viver – mais intensamente desde meados de março – podemos encontrar um chamamento a refletirmos sobre tantas coisas da nossa vida pessoal e social. De facto, em tempos de cristandade – correspondência entre sociedade e Igreja, misturando-se as funções, os atributos e mesmo as consequências… vigorou, nos países ocidentais, até meados do século XX – havia alguns condicionamentos em tempo de quaresma, desde a simbologia das cinzas até à erupção festiva da Páscoa: manifestações festivas eram contidas nesses dias, criando um ambiente de penitência coletiva/social. Com alguma da pretensa emancipação da sociedade – dita civil, mas antes civilista – como que acabaram, na maior parte do território nacional – cingimo-nos ao nosso país – gestos, atitudes, cores e devoções de âmbito geral… Se excetuarmos algumas procissões de ‘passos’ e certos ritos de ‘via-sacra’, a quaresma passou a ser uma questão de minoria, senão exótica ao menos exotérica, isto é, para iniciados.

Mas eis que o coronavírus ‘covid-19’ colocou toda a sociedade em quarentena. Só por ignorância ou má-fé se não faz a ligação entre as duas palavras, tanto na origem como na execução. Não queriam aceitar as regras religiosas, mas as circunstâncias higiene-sanitárias a tal exigem. Não queriam reter-se para celebrar as ‘coisas da religião’, agora fazem-no por coação. Fugiam de férias para o Algarve e em destinos de veraneio, agora estão confinados ao concelho de residência. Estavam-se nas tintas para as tricas religiosas católicas, agora se desobedecerem podem cair nas malhas da lei, indo ocupar as celas dos presos em soltura por indulto do Presidente…  

= Sobre o significado etimológico da palavra ‘páscoa’ temos de ir ao hebraico – ‘pesah’ – caminhar pelo grego – ‘paskha’ – andar pelo latim – ‘pascha’ – e dizermos em português, páscoa. Como festa de origem judaica remonta à vivência do êxodo do povo de Deus do Egipto em libertação: Deus passa, libertando o seu povo; o povo de Deus passa (sai), liberto da escravidão (cf. Ex 12). Assim, em cada ano, ao celebrar a Páscoa, os judeus estavam a fazer memória desse momento constitutivo como povo e nação.

Ora, a paixão-morte-ressurreição de Jesus aconteceu por ocasião da celebração da festa da Páscoa judaica. Isso fará com que os discípulos de Jesus ao celebrarem a ressurreição do Senhor lhe associem aquilo que eram as suas raízes no judaísmo. De verdade, o centro da fé cristã é a celebração da Páscoa de Jesus, tal como disse São Paulo: ‘se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé’ (cf.1 Cor 15,14).

Mas será que ao vermos tantos cristãos a trocarem uns dias de férias pela não-celebração da Páscoa não estaríamos a subverter em proveito próprio o central do mistério que levava a que tivessem algum tempo de descanso? Esses que tal tinham tal programa de vida já se questionaram sobre o significado mais profundo desta prescrição de isolamento não-social? O que faltará ainda para que deixemos de usufruir das coisas – vejam-se as comidas de páscoa e outros adereços – sem delas saberem o conteúdo e significação?

Páscoa é passagem de quê, para quem e porquê? A quaresma foi forçada, a Páscoa será mais consciente?  

 

António Sílvio Couto