Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sábado, 30 de dezembro de 2023

Família – ontem, hoje e no futuro

 


Se há conceito que está em catastrófica transformação é o da família. Aquilo que era mais ou menos certo e válido há cinquenta anos, hoje é quase motivo de chacota de uma parte dos nossos coetâneos. Aquilo que era considerado valor, hoje provoca riso em boa parte dos nossos concidadãos. Aquilo que fazia acreditar e motivar a vida de tantas pessoas, hoje tornou-se como que algo desprezível, antiquado ou mesmo sem significado.

1. Lemos na constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ sobre a Igreja no mundo atual, do Concílio Vaticano II (1965): «A família - na qual se congregam as diferentes gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena e a conciliar os direitos pessoais com as outras exigências da vida social - constitui assim o fundamento da sociedade. E por esta razão, todos aqueles que têm alguma influência nas comunidades e grupos sociais, devem contribuir eficazmente para a promoção do matrimónio e da família. A autoridade civil há de considerar como um dever sagrado reconhecer, proteger e favorecer a sua verdadeira natureza, assegurar a moralidade pública e fomentar a prosperidade doméstica. Deve salvaguardar-se o direito de os pais gerarem e educarem os filhos no seio da família. Protejam-se também e ajudem-se convenientemente, por meio duma previdente legislação e com iniciativas várias, aqueles que por infelicidade não beneficiam duma família» (n.º 52).

À luz das propostas de há cerca de sessenta nos como que nos fica o travo amargo de que a família, para além de estar em crise de identidade, tornou-se uma espécie de caleidoscópio de influências não-assentes nem efetivamente capazes de nos darem a entender para onde caminhamos.

2. É claro que o combate à família, alicerçada nos valores judeo-cristãos, tem hoje imensos promotores, mesmo que escondidos na sombra de outras ideias trazidas à luz da convivência humana. Com facilidade vemos a palavra ‘família’ ser substituída por ‘famílias’, numa abertura a algo que ultrapassa os conceitos cristão mais básicos. Assim vemos considerar ser ‘família’ um conglomerado de pessoas sem vínculo estável, mas podem viver de forma conjunta até que resulte tal união. Podemos ver como considerado ‘família’ a união entre pessoas do mesmo género, mesmo sem vínculo legal ou legalizado. Por vezes, ouve-se considerar ser da ‘família’ até os animais de estimação ou outros.

3. A evolução dos conceitos revela e faz movimentar os comportamentos. Estes, por vezes, podem revelar o que há de menos bom na pessoa humana, como o egoísmo e os interesses mais ou menos mesquinhos, bem como elevados ideais, por vezes ofuscados pelo barulho que fazem os que contestam. É isso que acontece quando é tratado o tema da família: pretende-se impor um tipo de família onde cada um como que usa os outros enquanto lhe são favoráveis. Isto seria a tal ‘cultura do descarte’, onde as pessoas são usadas e depois deitadas fora como coisas. Onde estará nesta dimensão de família o cuidado de uns pelos outros? Como se compreenderá uma sociedade onde os outros são vistos como adversários senão mesmo como inimigos?

4. Já na década de sessenta do século passado o Concílio Vaticano II alertava, na constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ sobre certos riscos e perigos que atentavam contra a família. «a dignidade desta instituição [a família] não resplandece em toda a parte com igual brilho. Encontra-se obscurecida pela poligamia, pela epidemia do divórcio, pelo chamado amor livre e outras deformações. Além disso, o amor conjugal é muitas vezes profanado pelo egoísmo, amor do prazer e por práticas ilícitas contra a geração. E as actuais condições económicas, socio-psicológicas e civis introduzem ainda na família não pequenas perturbações. Finalmente, em certas partes do globo, verificam-se, com inquietação, os problemas postos pelo aumento demográfico (...) as profundas transformações da sociedade contemporânea, apesar das dificuldades a que dão origem, muito frequentemente revelam de diversos modos a verdadeira natureza de tal instituição» (n.º 47). Questões como a vida, o relacionamento das pessoas, certas questões fraturantes continuam a ofuscar a dignidade da família.

5. A família é essencial. Denegri-la ou vilipendiá-la terá as suas consequências.



António Sílvio Couto

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Interpretando ‘coisas’ do Natal

 

Por estes dias tentei entender ‘coisas’ que acontecem por ocasião do Natal – por que passam as pessoas tanto tempo a mesa, preparando e degustando iguarias inigualáveis? Qual a razão de terem mais tempo para as conversas umas com as outras? Como explicar certos rituais não-religiosos, mas com incidência quase mitológica? O que levou a verificar-se um progressivo afastamento dos sinais religiosos (cristãos em particular), foi a acomodação, o consumismo ou a banalização do imediato sobre o espiritual? Com tanta superficialidade na celebração do Natal, ainda haverá sentido humano e cultural para o continuarmos a tentar vivenciar? Que alcance têm as expressões: boas festas ou feliz Natal?

1. O Natal como o vemos traduzido na vida de tantas pessoas corre o risco de se reduzir a uma época gastronómica de algum interesse, aliado a ritmos de uma sociedade que vive mais ao sabor do ventre do que da mente ou do coração. As toneladas de alimentos que foram comprados por estes dias, traduzidas no monte de lixo produzido em consequência. Será que se passa assim tanta fome ao longo do ano e neste tempo se pretende colmatar as lacunas? Dá a impressão que estamos a atingir o colapso cultural, preenchendo-o com coisas materiais ou que satisfazem a dimensão materialista mais exacerbada. Além de perigoso este percurso poderá trazer-nos grandes riscos até ao nível da saúde. Valerá a pena não fazer-de-conta que está tudo controlado, pois de pouco importa que cuidemos do corpo (biológico e sensitivo), se depreciarmos ou negligenciarmos os aspetos psicológicos e mesmo espirituais. Muito honestamente estes são indícios de um final de ciclo humano e histórico…

2. Dedicar tempo aos outros é um outro fator essencial no tempo de Natal: dar espaço para a partilha, as conversas e as recordações, o convívio, o estar com os outros, as visitas a familiares e amigos, até a troca de presentes pode ser vista como positiva nas relações humanas e sociais… algo esfriadas por ocasião da recente pandemia. Por vezes faltam-nos oportunidades para dar tempo aos outros, nalguns casos arranjamos desculpas pouco convincentes para não atendermos mais e dedicadamente àqueles que vivem ao pé de nós. Se o tempo de Natal conseguir recuperar o tempo perdido, será muito benéfico e teremos todos a ganhar numa sociedade tão egoísta e interesseira como aquela em que nos é dado viver. Todos temos muito a aprender, já e enquanto é tempo…

3. Mesmo na configuração religiosa cristã/católica há rituais que precisam de ser entendidos, explicados ou mesmo revistos. Continuar a fazer como era costume ou por mera tradição de pouco valerá, na hora de dar sentido às coisas, mesmo as mínimas. Ocorrendo, este ano, oitocentos anos sobre a feitura do primeiro presépio por São Francisco de Assis, podemos e devemos aproveitar a oportunidade de explicar a razão de ser desta tradição católica, sem infantilizar o assunto, mas antes dando-lhes conteúdo e atualidade. Celebrações como ‘a missa do galo’ – sua origem e significado; gestos como o ‘beijar do menino’; representações com sabor a memória (com teatros ou encenações), alusivos ao nascimento de Jesus ou à adoração dos magos…são – ou eram – alguns dos temas tradicionais do tempo de Natal. Mas não podem ser como eram antes, pois muita coisa mudou, mesmo nos conhecimentos religiosos prévios. Temos de partir de que as pessoas não sabem e devemos fazer as coisas explicando tudo a todos.

4. Neste como em tantos outros pontos da época da cristandade, o Natal é usado por crentes e não crentes para finalidades pouco adequadas à sua origem e desenvolvimento histórico e cultural. Mais do que um tempo de gastronomia, o Natal precisa de ir ao fundo da questão da nossa condição humana mais básica e fraterna. Mais do que um tempo de ‘exaltação’ da família, precisa que sejam revistos os valores familiares mais essenciais, comprometidos e com alcance contínuo. Mais do que um tempo onde se lembram os mais necessitados – sobretudo na versão material – precisamos de aprender a cuidar uns dos outros com gestos verdadeiramente imbuídos de atenção…todos os dias do ano.

Fiz a minha interpretação de ‘coisas’ neste Natal. Cada deverá fazer a sua de forma simples e humilde.



António Sílvio Couto

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Sinais anódinos do Natal

 


É assunto que sempre me deixa inquieto, mas este ano ainda mais, até pela advertência vinda no norte do país, onde um padre (ainda jovem) se fez eco de uma espécie de ostracização do presépio em certos círculos sociais. Dá a impressão que os sinais cristãos do Natal têm vindo a encolher e, nalguns casos, a serem retirados, sabe-se porquê e para quê.

Os exemplos que ilustram este texto são disso algo revelador de que o Natal deixou de ser para festejar o nascimento de Jesus para ser trocado, substituído ou camuflado por outros intentos nem sempre claros tão pouco facilmente precetíveis...

1. As fotos apresentadas são de uma instituição relacionada com a Igreja católica e de um autarca em funções. Será que as ‘estrelas’ ganharam a disputa com a Estrela que é Jesus? Será que certos adereços vingaram sobre a mensagem cristã? Até que ponto não andaremos a brincar com coisas sérias, adjuvando-lhe tiques de neo-paganismo? Será que o dito respeito por quem não se sente cristão terá de fazer destes uma espécie de cobardes anónimos? Se aqueles que Lhe dizem pertencer são os primeiros a desertar, que futuro nos resta esperar?

2. Dá a impressão que os leves resquícios de cristianismo que havia na nossa sociedade estão a ser ardilosamente combatidos por forças bem organizadas e, porque não dizê-lo, combativas, seletivas e com propósitos definidos. As decorações de rua e dos espaços comerciais tresandam a consumismo. As linguagens incentivam a ficar pelo comer-e-pelo-beber, deixando de fora os valores típicos do cristianismo da fraternidade e da solidariedade. Sob a capa de tolerância de tudo e para com todos vão sendo varridos para debaixo do tapete social ou para fora do contexto cultural múltiplos valores humanos e de índole espiritual. O cristianismo quase só serve para promover a função horizontalista da vida, esquecendo o mistério de encarnação do Verbo. Com estes sinais caminharemos para um esvaziamento do verdadeiro sentido do Natal...

3. Citamos um pequeno excerto do recente livro do Papa Francisco, O meu presépio:
«São dois os sinais que, no Natal, nos guiam para reconhecer Jesus. Um é o céu cheio de estrelas. São tantas, infinitas, mas entre todas brilha uma especial, que impele os Magos a deixar as suas casas e a iniciar uma viagem, um caminho que não sabem aonde os vai levar. Acontece o mesmo na nossa vida: em certo momento, uma ‘estrela’ especial convida-nos a tomar uma decisão, a fazer uma escolha, a iniciar um caminho. Devemos pedir a Deus com força que nos mostre essa estrela que nos impele para além dos nossos hábitos, porque essa estrela levar-nos-á a contemplar Jesus, aquele Menino nascido em Belém que quer a nossa felicidade plena.
Naquela noite que se tornou santa pelo nascimento do Salvador encontramos um outro sinal poderoso: a pequenez de Deus. Os anjos mostram aos pastores um menino nascido numa manjedoura. Não um sinal de poder, de autossuficiência ou de soberba. Não. O Deus eterno reduz-Se a Si próprio a um ser humano indefeso, pobre, humilde. Deus rebaixou-Se para que nós possamos caminhar com Ele e para que Ele possa pôr-Se ao nosso lado; Deus não quer pôr-Se acima ou longe de nós.
Espanto e maravilha são os dois sentimentos que emocionam todos, pequenos e grandes, perante o presépio, que é como um Evangelho vivo que transborda das páginas da Sagrada Escritura. Não interessa como se arranja o presépio, se é sempre igual ou diferente todos os anos; o que importa é que ele fale à nossa vida».

4. Enquanto é tempo tentemos discernir (estas e outras) formas capciosas de combater ao Natal, mesmo que imbuídas de laivos de compreensão para com quem pensa e sente diferente de nós. Será que eles nos dedicam idêntica atitude? Não sejamos ingénuos nem papalvos... Os filhos das trevas são mais espertos do que os filhos da luz, mas será que são inteligentes?



António Sílvio Couto

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Ser e estar presente...neste Natal

 

Por entre a azáfama de ver pessoas em correria, buscando compras, com sacos e mais atarefamento – qual trituradora consumista – refreio tal tendência, recorrendo à memória de infância: não havia presentes, não tínhamos o hábito de os dar nem de os receber, ficando a simples vivência de estarmos presentes uns aos outros e com isso de sermos e, sobretudo, de vivermos o Natal.

1. Efetivamente, hoje, estarmos assoberbados de coisas, começando ainda longe da data natalícia (essa de referência que é a de Jesus) a conjeturar sobre o modo de oferecer presentes, que, em muitos dos casos, se convertem em prendas, isto é, em que cada um dá (ou pretende oferecer) aos outros aquilo no qual vai preso, numa capciosa tendência de se fazer notado a quem se deseja agraciar.
Tanto quanto é percetível vemos uma tendência de coisificação dos sentimentos e da forma de os expressar. Com facilidade ouvimos as pessoas referirem: amo uma coisa (comida, roupa, objeto) e gosto de alguém (humano). Ora, a ordem de preferência deveria ser ao contrário: amo uma pessoa e gosto de uma coisa (mesmo que esta até possa ser um animal, mais ou menos de estimação). Deste modo, isso a que designamos de ‘presentes’ podem envolver algo mais do que circunstâncias, mesmo que sejam muito válidas ou avalizadas pela nossa conveniência.

2. Mais uma vez podemos escutar certos slogans que por serem tão repetidos quase conseguem tornar-se estilo de vida. Um deles foi – ‘o melhor do Natal são os presentes’! Não há maior falsidade e pior manipulação do que esta, pois, o melhor presente do Natal é Jesus, o Filho de Deus nascido em condição humana. É do seu nascimento que decorre a nossa fraternidade humana e em que todos n’Ele somos irmãos. Esse é o presente que mais adequadamente podemos tributar uns aos outros, fazendo-nos presença de companhia, de cuidado, de estima e mesmo de respeito até pelas diferenças.

3. A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) lançou uma campanha de segurança rodoviária de Natal e de Ano Novo, intitulada: "O melhor presente é estar presente". Eis uma forma concreta de cuidar e de respeitar os outros, quando circulamos nas estradas. A boa mobilidade exige atendermos aos outros, prevenindo-nos dos riscos e cuidando das dificuldades. Se isto pode e deve acontecer quando andamos nas estradas também deveria ter idêntico acolhimento noutros setores da nossa vida pessoal e social.

4. A trituradora do consumismo não olha a meios para atingir os seus fins, que, na maior parte dos casos, começa por nos ofuscar a mente, continua nas desculpas da falta de tempo e acaba na insensibilização aos outros, a começar dentro da própria casa. No rescaldo dos parcos dois anos de pandemia estas caraterísticas ganharam outra potencialidade e expressão: de egoísmo em fechamento fomos criando como que carapaças de indiferença, nalguns casos quase sem disso nos darmos conta. Por isso, numa espécie de compensação descontrolada acordamos, por ocasião do Natal, para ainda olharmos, nem que seja de soslaio, para os que nos são próximos, numa tentativa de deles nos aproximarmos...

5. Certas campanhas (ditas) solidárias como que cheiram a ritual com mofo: os mais desfavorecidos precisam de ajudar e suporte ao longo de todo o ano e não só nesta época. É verdade que seria grave se já não o atendêssemos por esta ocasião, mas é muito pouco que saiam do escondimento de forma tão fugaz e algo tolerada...socialmente.

6. Não haverá, na minha memória, alguém que pode precisar da minha presença neste Natal?



António Sílvio Couto

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Premiar (novamente) a incompetência?

 Com a demissão do sr. Costa, a 7 de novembro, entramos num novo ciclo político em Portugal: por

causa de uma suspeita sobre o chefe do governo, este caiu e, de repente, uma maioria parlamentar claudicou com menos de dois anos de mandato... e o país entrou num frenesim eleitoral, que, em 2024, será, no continente, de dois atos para votação: março (legislativas) e junho (europeias). Mas eis que, repentinamente, se erguem tentáculos de reclamação, numa espécie de desresponsabilização das culpas próprias, atirando-as aos outros, a ver se pega...

1. Deveremos ser dos poucos países civilizados onde ainda os ocupantes de cargos políticos são tratados pelos títulos pretensamente académicos. Pior ainda é quando são eles mesmos a tratarem-se entre si com tais qualificações, como se estivessem a dirigir-se a entidades estranhas à linguagem normal e simples. Desgraçadamente os que ganham a vida nos trabalhos da política foram formados noutras áreas do saber e/ou profissionais, mas é na vida de serviço público que eles auferem os ganhos. Não seria de questionar que haja pessoas vindas da advocacia a mandar em autarquias ou que formados em engenharia sejam titulares de mandatos no parlamento? Não seria necessário e útil haver ‘escolas de política’ mais do que espaços de mentalização partidária/ideológica? Até onde continuará a ir a conivência com termos na condução dos destinos coletivos arietes de interesses económicos, esconsos e quase subterrâneos? Por que nos admiraremos da balbúrdia ambiental se uns se dizem defensores do (pretenso) equilíbrio climático, quando são suportados por forças que vivem (efetivamente) ancoradas naquilo que dizem combater?

2. Mais uma vez temos de pronunciar-nos sobre propostas políticas que já deram provas de incompetência reiterada. Se assim não fosse por que faliram em menos de anos de serem escolhidos, votados e empossados como responsáveis do país? Estamos num tempo em que a memória das pessoas é curta, seletiva e, por vezes, incongruente. A julgar – de forma simples, sincera e sem preconceitos – pelos resultados da governação, somos tentados em considerar que falta quem seja capaz de assumir com responsabilidade as ‘funções que lhe são confiadas’ – como dizem no ato de posse e sob juramento. Terá havido erro de casting nas escolhas? Não será já difícil pescar para que haja diferentes na qualidade e na competência? A avaliar pela redundância das personagens vistas nota-se que são poucos os que se sujeitam a terem a vida pessoal e familiar devassada.

3. Há questões do pretenso cardápio do ‘estado social’, como a saúde ou a educação que não se resolvem com o afunilamento estatal, pois a morosidade, a incerteza e até a falta de qualidade são colmatadas por outras entidades ostracizadas pela ideologia reinante. Segundo números publicitados – a fonte não é irrelevante – haverá 3,5 milhões de portugueses (ou aqui residentes) que têm complemento de seguro de saúde. Por que se terá de ignorar estes dados? A culpa não será só da falta de profissionais de saúde nos meios estatais...

4. Certos slogans – o que é público é de todos, o que é privado é de alguns; em defesa da escola pública; justiça cara para os pobres – podem encobrir algo mais do que disfarces de circunstância, na medida em que tudo depende de quem quer impingir uma pretensa ideia. Com efeito, alguns dos promotores daqueles slogans são os primeiros a desmentir o que dizem, pois, se a (dita) escola pública não responde às necessidades dos que dela necessitam, então só servirá para desmotivar quem nela ainda participa.

5. Mais do que banalidades e de ataques pessoais - muitas vezes funcionando como assassinato de caráter - precisamos nas propostas para as eleições que se avizinham de conteúdos com clareza, de sabermos qual é o caminho a seguir e de termos opção e não coação. Não acabará nada e muito menos será o final de ninguém. Saibamos ver as lições do passado e saberemos entender o presente e o futuro...



António Sílvio Couto

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Parvoíce vence, reina e desespera

 

Deu-me a volta à capacidade de saber entender as coisas, de perceber o significado das pessoas e de interpretar o sentido das massas o pouco que vi e de relance de um tal programa intitulado ‘isto é gozar com quem trabalha’. Dito com sendo o último deste ano, decorreu no Fundão e as verbas auferidas revertiam para os bombeiros locais. O ‘centro de negócios’ estava cheio, com bilhetes entre três e dez euros.

1. Do comediante-apresentador parece que já lhe conhecemos o estilo, mangando com tudo e com todos, como se fosse a última bolacha do pacote do humorismo nacional. Como não podia deixar de ser esforçou-se por impingir umas piadas sobre temas lisboetas - o caso das gémeas brasileiras e afins, a construção plausível de um novo aeroporto, certas obras na capital e alfinetadas aos políticos. O humorista de serviço tentou justificar o programa em direto com centenas de pessoas numa espécie de delírio coletivo não justificado, a não ser por terem uns momentos de visibilidade televisiva como figurantes que tiveram de pagar a participação... Aqueles beirões das fraldas da Serra da Estrela aplaudiam, rindo de forma um tanto desabriada e quase desconcertante. Sabe-se lá por quê?

2. Mais do que olhar para as tiradas insonsas do humorista ficou-me essa espécie de parvoíce generalizada daquele público. Não entendi as reações daquela gente: riam por tudo ou quase nada, aplaudiam comentários nalguns casos sem nexo e onde as matérias seriam mais graves do que brejeiras para servirem de pasto para o jocoso. Ao ver a diversidade de pessoas naquele espetro de público perpassou-me pela mente que já batemos mesmo no fundo. Aliás, o humorista começou o dito programa por fazer trocadilho com ‘fundão’ e o estado do país a caminho do fundo.

3. Perante este programa nota-se com alguma clareza o roçar da falência na criatividade do humor no nosso país. Como se não bastasse a falta de matéria para continuar a ganhar a vida a mofar com os outros, ainda temos de ser confrontados com públicos que, de forma acrítica, aplaudem tudo e o resto do que saia da boca de quem tem fama, mas dá a impressão que se lhe fechou o sentido da oportunidade... Talvez tenha de mudar de ramo!

4. Inquietou-me seriamente observar um certo contentamento das pessoas que assistiam numa espécie de festa pré-natalícia à la carte, isto é, um acontecimento que levou à cidade figuras da televisão e colocou na pantalha figurinhas esquecidas no recôndito do interior. Efetivamente estamos muito mal de massa crítica no nosso país. A manipulação é nitidamente o melhor retrato daquilo que nos tem sido impingido: vinga quem não pensa e faz da anedótico algo que serve para entreter os incautos. O sucesso de certos programas televisivos - com as telenovelas a arrastarem-se meses a fio sem nexo nem conteúdo - que ainda ocupam as pessoas, continuam a tratá-las como desprovidas de capacidade crítica...

5. Ignorância a quanto obrigas. Portugal merece mais e melhor, tanto no litoral como no interior, ao norte como no sul, no continente e nas ilhas...



António Sílvio Couto

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

A última bolacha do pacote...

 

Ouvi, por estes dias, a expressão: sente-se a última bolacha do pacote... Tentei esclarecer-me sobre o conteúdo desta pequena frase e descobri aspetos interessantes para a conduta pessoal e para o relacionamento com os outros, tanto em aspetos positivos como em referências (possivelmente) negativas.

1. Tentando uma explicação descritiva da frase - a última bolacha do pacote. Desde logo entendendo que assim se considera ou quem tal deseja que o/a tenham nessa conta, significando: sentir-se o máximo, o maior dos maiores, ser o centro das atenções, como supra-sumo, numa espécie de insubstituível, a quem todos (que, afinal, poderão ser muito poucos) colocam nos píncaros, pretendendo ter a última (e derradeira) palavra...

2. Quem vive desta forma como ‘a última bolacha do pacote’ será uma pessoa equilibrada ou sofrerá de algum defeito menos claro? Como conviver com pessoas que possam ter este síndrome de ‘última bolacha do pacote’? Serão pessoas - ou seremos pessoas - de fácil trato ou que apresentam complexos de difícil gestão? Não haverá - mais do que se pensa - pessoas que se comportam e que constroem a sua vida à luz dessa incapacidade de insubstituição e/ou de gestão da diferença? Certos conflitos - tácitos ou explícitos - no relacionamento das pessoas de umas com as outras terá explicação nesta frase aparentemente simples, mas algo complexa? Não haverá quem use de prepotência sob a forma de ter a última palavra, quando não aprendeu sequer a gaguejar o mínimo para comunicar com os outros, correta e dignamente?

3. É difícil ser equilibrado no processo de auto-conhecimento e no relacionamento com os outros, que são mais do que ‘lobos uns dos outros’, como nos disseram certos autores. A visão equilibrada de si mesmo e dos outros devem fazer-nos conhecer a nós mesmos e reconhecermos as qualidades e os defeitos pessoais, as qualidades e dons dos outros, assim como as virtudes e os pecados pessoais e alheios. Estamos num tempo em que não é fácil lidar com a verdade, que é mais do que um conceito ético, mas deve ser critério de valor para nos aceitarmos e para vivermos no trato com os outros, desde os que pensamos conhecer até aos desconhecidos e ocasionais nos meandros da vida.

4. «Assim, em virtude da graça que me foi dada, digo a todos e a cada um de vós que não se sinta acima do que deve sentir-se; mas sinta-se preocupado em ser sensato, de acordo com a medida de fé que Deus distribuiu a cada um» (Rm 12,3). Esta recomendação de São Paulo é, além, de útil, um incisivo critério de vida, na medida em que ninguém é tão bom como se julga nem tão insignificante como se possa considerar. Neste caleidoscópio da vida, urge cultivar mais o bem senso do que exibir petulâncias egoístas e que viram facilmente rejeição. De muitas e variadas formas podemos e devemos atender às nossas mazelas, vendo e discernindo aquilo que os outros nos permitem auto-julgar.

5. Usando a interpretação da ‘última bolacha do pacote’, não a deixemos perder o sabor nem que se esfarele por já não ser apreciada convenientemente.



António Sílvio Couto

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Banco alimentado pela fome?

 

Pelo menos duas vezes ao ano (nas campanhas públicas de recolha de géneros, sobretudo, de natureza alimentar) ouvimos falar do ‘banco alimentar contra a fome’ (BA), uma iniciativa de solidariedade social, que, desde 1991, tenta dar ajuda a quase quatrocentas mil pessoas, que os vinte e um ‘bancos’, espalhados por todo o país recebem e distribuem meios de subsistência mínima. A última recolha decorreu, como habitualmente, no primeiro fim-de-semana de dezembro junto das grandes superfícies comerciais aderentes, tendo coletado cerca de 2.300 toneladas de géneros que serão distribuídos, posteriormente, pelas mais de 2.600 instituições de solidariedade social suportadas...

1. Desde 2001 que a federação nacional dos ‘bancos alimentares contra a fome’ (BA) é gerida pela mesma figura, visualizada por ocasião de cada campanha. Os mais de quarenta mil voluntários dão corpo a uma iniciativa que, nestes mais de trinta anos, tentam atenuar as ‘fomes’ de milhares de pessoas (dizem que quase meio milhão), direta ou indiretamente, assistidos pelo ‘banco alimentar’... sob a forma de cabazes ou através de refeições confecionadas. Atendendo aos dados sobre a pobreza no nosso país são cada vez os que recorrem aos serviços do BA, numa espiral que tem tanto de complexa, quanto de questionante sobre este problema sócio-político-económico...

2. Deixo, antes de tudo, um tributo de reconhecimento aos milhares de participantes ativos nesta ação de benemerência em favor de quem consubstancia a fragilidade de pessoas, de famílias e de grupos. Este tema parece apresentar algumas pontas soltas e, nalguns casos, tentáculos mais profundos da natureza e da conduta humana. Deixamos questões, que, posteriormente, vamos abordar. Não haverá pessoas que estão há tempo demais em situação de dependência de terceiros para gerirem a sua condição de vida? Nos serviços de ajuda será feito tudo quanto se pode para tirar esses ‘pobres’ da sua fragilização? Não se dá, vezes em excesso, a sensação de que os ‘pobres’ sustentam muitas estruturas, estatais e não só? Por que se pretende ter preso pela boca quem podia (e devia) assumir a sua vida com mais coragem e rigor? Não andaremos a fazer dos ‘pobres’ promotores e beneficiados de setores sócio-políticos - partidos, sindicatos, associações de assistência, mesmo religiosa - que não os querem (inconscientemente) autónomos nem independentes?

3. Efetiva e desgraçadamente muita gente vive à custa dos pobres. Recordo a bizarra estória de umas senhoras bem conceituadas e com posses, que davam esmola aos seus pobres, de forma regular, desde gerações. Um dia reunirão de emergência, pois, era preciso pôr em ordem alguns atropelos: algumas andavam a tirar os pobres umas às outras... isso não era aceitável nem muito recomendável.
Em 2021, 1,7 milhões de pessoas encontravam-se em risco de pobreza, em Portugal. Isto significa que viviam com rendimentos inferiores a 551 euros mensais. Possivelmente os dados posteriores ao final da pandemia agravaram estas cifras, criando pessoas e famílias ainda mais endividadas e dependentes de ajuda exterior para conseguirem sustentar-se minimamente.

4. Os participantes nas campanhas de recolha de géneros deixam-nos a impressão que talvez não estejam totalmente bem instruídos sobre a matéria que servem, pois, ouvem-se destas frases: isto é para os pobrezinhos (como se nunca chegassem a poder ser como eles), ou ainda: hoje por eles amanhã por nós... Ora, talvez devessem ser revistas as datas de recolha mais intensiva - fim de maio e início de dezembro - na medida em que certos grupos participantes (escuteiros ou adolescentes da catequese) esquecem as suas obrigações para se entreterem com aquilo que pode funcionar como distração. Estes exemplos são do espaço onde me situo...

5. Nesta sociedade nitidamente de sobrevivência dá a impressão que continuamos a favorecer e a incentivar gestos, atitudes e comportamentos de alguma sobranceria e não a cultivar a convivência simples, leal e fraterna.



António Sílvio Couto

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Confrontos...sempre os teremos

 


Dizem certas informações que, desde o início da nossa identidade nacional, nascemos do confronto entre um filho (rebelde) e sua mãe. Em múltiplas circunstâncias históricas, sociais e mesmo culturais, o confronto entre grupos, facções e até visões diferentes tem sido a marca constante e quase identitária do nosso ‘eu coletivo’, manifestado em pequenos indícios mais individuais senão individualistas.

1. Não será, no entanto, abusivo querer fazer coincidir confrontos com contendas ou lutas com conflitos de interesses? As marcas (ditas) partidárias não serão confundidas com posicionamentos ideológicos? Certas facções intestinas dos partidos políticos não serão mais tentáculos de pretensões de grupo ou teor individual? Nas tentativas de conquistar o poder – interno e exterior – não haverá deslealdades que manifestam a (má) qualidade dos intervenientes? Certas guerrilhas não servem mais aos oportunistas do que aos que têm competência e preparação? Não deveríamos ter percebido já que alguns usam da estratégia de dividir para reinar, colocando sob suspeita tudo e todos, menos eles? Ainda não entendemos os truques dos manipuladores, iniciados na arte da dialética marxista, em que se servem de todos para atingirem os seus (mesquinhos) objetivos?

2. Recorrendo à memória dos ‘episódios’ históricos trazemos à lembrança essa façanha do tempo dos romanos. Com efeito, a invasão da Península Ibérica pelos romanos não foi pacífica. As tribos nativas desta região – denominadas, genericamente, por lusitanos – lutavam pelas suas terras e aplicavam ao exército romano várias derrotas. Foram tantos os revezes que os lusitanos, chefiados por Viriato, infligiram aos romanos, que estes pediram um acordo de paz. Para negociar a desejada paz, Viriato enviou três emissários que não eram lusitanos, os quais. em vez de negociarem o tratado de paz, o general romano subornou, prometendo-lhes uma avultada recompensa, se conseguissem assassinar Viriato. Na expectativa de tal recompensa romana, apunhalaram mortalmente Viriato, enquanto dormia.
Ora, para tentarem escapar à vingança dos lusitanos, os três traidores dirigiram-se para Roma, onde esperavam receber a recompensa pela traição. No entanto, o prémio que os romanos lhes ofereceram foi a sua execução em praça pública, onde os seus corpos ficaram expostos, com um cartaz que dizia: “Roma não paga a traidores”.

3. Muito daquilo que vivemos na nossa condição sócio-política não passa de uma orquestração habilidosa de certos proponentes, que, deambulando na sombra, conjeturam a criação de distrações de somenos, tornando-as casos de ‘grande’ importância e assim se ocupam horas e horas de discussão, comentários e diatribes, ameaças e suspeições, sem que nada disso signifique o que nos quiseram impingir... Um dos exemplos mais bizarros foi a discussão a propósito do IUC (imposto único de circulação): este ocupava apenas duas páginas no OE/2024 com mais de trezentas que o documento continha... e, de repente, caiu por inoperância de quem o propôs ou por negligência na sua prossecução.

4. É preciso que haja opções claras para a governação do nosso país. Em menos de dois anos uma maioria caiu de podre, desmembrou-se de interesses e deixou cair a máscara nos conluios ideológicos. Ver recauchutadas certas propostas parece que estamos, mais uma vez, a apostar no futuro errado ou, pelo menos, complicado. Para quem se guia pelo estatal, não estará na hora de perceber que isso não resulta sem a intervenção de quem não depende da esmola do poder? Coarctar a iniciativa privada é truncar a capacidade de investimento. Pendurar-se no Estado é favorecer a possibilidade de corrupção, onde todos pagam e só alguns – os funcionários e afins – beneficiam...

5. Os traidores terão a sua paga, mais cedo do que tarde. Votar é dar-lhes o prémio!



António Sílvio Couto