Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Pantufas ou sandálias?


Por ocasião do recente ‘dia mundial das missões’, o responsável dos ‘Institutos Missionários Ad gentes’ no nosso país usou duas simbologias para caraterizar a atitude de ‘estar em missão’: as pantufas e as sandálias.

“Podemos dizer que a missão é em qualquer lugar de modo que fico no meu país, na minha cultura, onde há tanto contacto com diferentes religiões, com diferentes culturas, não preciso de ir para outro país… Mas isso pode ser a tentação das pantufas: eu fico no meu sofá, continuo na minha casa, continuo no meu ambiente”. Quanto à dimensão internacional da missão referiu que “o sair para outros países, para outras culturas”, tem a “característica das sandálias” e exige um sair de si “de uma forma bastante mais intensa”. “A base de tudo isto é termos a coragem e sermos destemidos suficientemente para sairmos de nós próprios”.

 

= Efetivamente temo-nos vindo a apantufar – psicológica, mental e espiritualmente – em vários níveis, em díspares circunstâncias e até diversas idades. Como que em reação ao surto de pandemia houve atitudes – pessoais ou comunitárias – que nos foram enconchando no nosso ‘mundinho’ de autodefesa e talvez de isolamento para com os outros...

Por razões mais ou menos aceitáveis – sobretudo tendo em conta as diversas incidências do ‘covid-19’ – senão necessárias, fomos retraindo as naturais manifestações de afetividade de uns para com os outros: muitos dos gestos de saudação e de cumprimento entre as pessoas têm sido reduzidos ao mínimo...numa tentativa de não-difundir ainda mais os malefícios deste vírus fatal.

Se, durante algum tempo, certos gestos foram substituidos por outros até bizarros, fomos caindo mais na defesa da nossa saúde do que apresentando sinais de abertura aos outros. Pelo contrário, fomos criando mecanismos de desculpa para que os outros – sobretudo se desconhecidos – possam ser potenciais infetantes da nossa condição temerosa.

Pantufas e sofá tornaram-se como que símbolos da acomodação para além de meramente social também religiosa e cristã/católica. Depois de termos ficado sem a possibilidade de irmos à missa durante setenta e sete dias – de 15 de março a 31 de maio – recorrendo aos meios de comunicação social e às redes sociais para cumprirmos o ‘preceito de santificar os domingos’, fomos adquirindo hábitos de sedentarismo ou até de absentismo grave...no que toca à prática religiosa presencial.

Os mais velhos, que eram boa parte das nossas assembleias dominicais, têm medo de ir à missa, se bem que não se coibam de frequentar outros espaços públicos bem mais ameaçadores e perigosos... As crianças e adolescentes – da dita catequese e dos escuteiros – evaporaram-se dos espaços celebrativos, dando a entender que a sua presença era mais de obrigação/conveniência do que por convicção pessoal e dos pais.

Estes são alguns dos sinais mais visíveis do apantufamento da nossa pretensa religião. Daqui ao descompromisso e à crescente marginalização dos temas de fé e de vida cristã estamos em grave risco.

 

= Onde está o resultado do investimento em tantos anos (onze) de catequese, com catequistas e festas, com ideias e iniciativas, com programas e encontros? Que foi feito para que não fugíssemos tão depressa, quando era preciso encontrar soluções adequadas aos problemas surgidos? Adiantará alguma coisa programar a retoma da catequese, se não se refletir sobre as causas e em vez de remandar as consequências? Não continuaremos na etapa do entreter, quando deveríamos investir na revisão do deficientemente feito? Reinvestir na ‘catequese’ para crianças não será, mais uma vez, apostar na fase errada, em vez de nos empenharmos na qualidade de formação onde as famílias contem mais do que usufruam sem participarem?     

É significativo que neste intervalo de pandemia foi publicado, em finais de junho passado, o ‘Diretório para a catequese’, um documento longo (doze capítulos e 428 números) e profundo que nos deveria ocupar a todos os que em Igreja estão ao serviço a Palavra de Deus...

Precisamos de calçar as sandálias sem medo, pois muitos dos nossos espaços da fé – paróquias, movimentos, associações, congregações, dioceses – continuam a manifestar que não estão (estamos) suficientemente evangelizados, embora mais ou menos sacramentados...

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Confinados e convidados: da memória ao desafio


Confinados e convidados: da memória ao desafio



Por estes dias, no ritmo e sequência das estações do ano e pelas datas, estamos à porta de assistirmos à romagem anual de muitos dos nossos concidadãos aos cemitérios. Só que, pelas condicionantes sociais estamos confinados a não sairmos do concelho de residência em razão do recrudescimento de nova vaga do covid-19.


À palavra ‘finados’, acrescentamos o prefixo ‘con’, dando o termo ‘confinados’, que tanto pode significar com os finados (mortos, defuntos), como colocar-nos na situação de encerrado, encarcerado, trancado, delimitado… Por seu turno, ‘convidados’ tem na sua composição, essa palavra mais aterradora – de ouvir, de dizer e de enfrentar – que é ‘covid’. Esta pretensa palavra é abreviatura da expressão em inglês – coronavirus disease – isto é, doença do coronavírus.


Sem pretendermos fazer qualquer trocadilho menos bem-intencionado com as palavras e tão pouco com as vivências que lhes estão subjacentes, gostaríamos de centrar esta partilha/reflexão naquilo que os ‘finados’ têm a ver com a nossa memória e quanto o ‘covid-19’ é um implacável desafio ao nosso presente e para com o futuro.


 


= Como interpretar a restrição/condicionamento do ‘culto’ dos finados?


Num tempo ávido da pressa e movendo-se pela superficialidade, a ocorrência do ‘dia de finados’ – liturgicamente dito de Fiéis Defuntos – ainda é (ou pode ser) um tempo de paragem e de reflexão, de gratidão e de memória, de envolvência pessoal e comunitária.


«A comemoração dos finados, o cuidado pelos sepulcros e os sufrágios são testemunho de esperança confiante, radicada na certeza de que a morte não é a última palavra sobre o destino humano, porque o homem está destinado a uma vida sem limites, que encontra a sua raiz e o seu cumprimento em Deus» – dizia o Papa Francisco no ‘Angelus’ de 2 de novembro de 2014.


Ora, quando um governo lança a proibição de as pessoas não se puderem deslocar de um concelho para outro por ocasião desta data de comemoração do Fiéis Defuntos (ou finados) não estaremos a condicionar um certo culto, sobretudo, dos cidadãos católicos, que assim são coagidos a enfrentarem a desobediência civil ou o pagamento de alguma multa? Poderá um governo, tenha a cor ideológica que tiver, tornar-se senhor das tradições ancestrais daqueles para quem diz governar? Não andaremos a criar desculpas para não enfrentarmos com verdade e sabedoria a assunção da contingência e da fragilidade, que o dia de finados nos faz assumir? Seremos tão desmemoriados e ingratos que a saudade daqueles que partiram não nos fazem reconhecer que sem eles pouco ou nada seríamos?  Não haverá exagero desconforme ao transtorno social com o encerramento abusivo de muitos dos cemitérios?


Uma breve referência à educação da fé em ordem a uma reflexão séria e serena sobre a vivência do dia de finados, em ordem a um melhor conteúdo cristão: a paróquia deve ser o lugar onde se cultiva a memória, nem que seja disfarçada de saudade pelos que morreram. Diz-nos um documento recente da Congregação para o Clero: «tendo presente quanto a comunidade cristã seja ligada à própria história e aos próprios afetos, cada pastor não pode esquecer que a fé do Povo de Deus se relaciona com a memória familiar e com a comunitária. Muitas vezes, o lugar sagrado evoca momentos de vida significativos das gerações passadas, rostos e eventos que marcaram itinerários pessoais e familiares» – Instrução ‘A conversão pastoral’, n.º 36. Não basta mandar celebrar missas pelos defuntos, se elas não criarem ambiente mais cristão e se não cultivarmos um espírito católico…


 


= Desafios do ‘covid-19’ no presente e para o futuro


Esta pandemia, que se abateu sobre a Humanidade neste ano de 2020, precisa de ser assimilada naquilo que tem de denúncia da nossa fragilidade, nem sempre assumida. Nestas circunstâncias de interdependência na saúde e na doença fica mais claro que todos precisamos de todos e cada um é mais do que uma mera peça da engrenagem economicista em que nos temos vindo a tornar. Num instante passamos todos a precisar de cada um, fazendo com que a nossa história pessoal seja também permeável ao bem dos outros… Acordemos!


 


António Sílvio Couto



domingo, 25 de outubro de 2020

Homenagens


De vez em quando vemos notícias de pessoas que são homenageadas. As formas, os modos, as razões e as consequências dessas homenagens são tão diversas quantas as pessoas visadas, tanto por parte dos promotores como os promovidos, sem esquecer as motivações e até as ocasiões de tais homenagens.

Se há pessoas que se prestam – porque aceitam, senão mesmo procuram – para tais eventos, outras podemos encontrar que se furtam – sobretudo em vida – desses acontecimentos. O pior de tudo isto é se, quem é homenageado, seria o primeiro a não estar presente nisso a que o submetem…a contragosto.

As formas de homenagear revestem-se de diversos figurinos: sessões (ditas) solenes onde se tecem elogios às pessoas ‘ilustres’ em foco; descerramento de lápides – nalgumas situações também quadros fotográficos – quase simbólicas, ligando a ‘figura’ em relevo a esse lugar ou a algum feito relevante nele contido; colocação do nome de alguma artéria viária (rua, praça, praceta, avenida, beco ou viela) a alguém que possa ter-se destacado na localidade…funcionando a situação desse mesmo espaço como simbologia da sua relevância; colocação e inauguração de alguma estátua (ou algo semelhante), atendendo aos feitos praticados e retratando alguma faceta da personalidade de quem se quer fazer perdurar para os vindouros a memória e o reconhecimento.

Normalmente as homenagens cuidam de não sejam feitas em vida dos visados, como se houvesse algum pejo em reconhecer aquilo que as pessoas fizeram de diferente – pela dedicação, pelas virtudes humanas e/ou espirituais e mesmo pelos atos de relevo – do resto dos outros ou que se possam vir a envaidecer-se com aquilo que delas dizem ou que possam ainda, no resto de tempo de vida que vivam, contradizer aquilo que motivou a ser-lhes reconhecido algum mérito ou que se tenham destacado ‘do comum dos mortais’…

De entre as homenagens em que o ‘ilustre’ cidadão recebe o reconhecimento em vida costuma destacar-se a condecoração – nas suas mais variadas formas e concedida pelas mais díspares entidades – conferindo-se deste modo algo que não servirá somente para honrar a família, mas para também motivar os outros concidadãos.

Recordo a conversa com um prelado já falecido e a quem tinham sido dadas variadíssimas condecorações e medalhas ao longo do seu ministério e da vida em que ele dizia: nada disso vale grande coisa para mim, pois, a minha família cuidará de que não vão comigo para a sepultura…

 

= Sem pretender questionar quem presta homenagem e tão pouco a quem é dado algum reconhecimento, tenho para comigo, enquanto cristão uma frase me que incomoda – depois de fazerdes tudo o que vos foi pedido, dizei: somos servos inúteis, só fizemos o que devíamos fazer!

Fique claro que nunca recebi – nem espero receber – qualquer distinção e tão pouco homenagem de nada nem de ninguém. Também espero que não me levem a mal esse outro pensamento: ao ver tantas das homenagens, condecorações e outros reconhecimentos, preferiria dizer que recusei e que não aceitei algo que, a ver pelo role passado, nem sempre seria honroso constar da mesma listagem…

Em jeito de inquietação ouso colocar breves perguntas: o cumprimento do dever bem feito não será o melhor reconhecimento daquilo que fazemos? Será justo, cristãmente, que se relevem os factos de uma personalidade, se ela só foi um dom de Deus, com os outros, e que desenvolveu as faculdades que lhe foram concedidas pelo mesmo Deus? Não deambulará muito de mundano nas coisas da Igreja, usando estratégias e esquemas pouco cristãos?

 

= Presto homenagem e inclino-me a quantos/as viveram e vivem a vida não em busca de honrarias, mas desejando somente realizar em favor dos outros algo que os possa edificar e, se erraram/erram, sejam capazes de reconhecer os erros, de pedir perdão – a desculpa soa a pouco – a Deus, aos outros e a si mesmos…

Heróis e santos temo-los, no passado e até no presente. Assim os saibamos ver e honrar condignamente… com os olhos em Deus!    

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Golpes de restrição às coisas/datas católicas


Mais uma vez foram estabelecidas, pelo governo, restrições (proibição) de circulação entre os concelhos. Agora é de 30 de outubro a 3 de novembro, abrangendo as datas de memória, sobretudo, católica, que envolvem os fiéis defuntos…com o feriado de Todos-os-Santos incluído no domingo.

À semelhança do que aconteceu por ocasião da Páscoa, em abril passado, a proibição de circulação apresenta exceções quanto a motivos de saúde e de trabalho devidamente certificados e credenciados; a alguns grupos profissionais ligados à saúde, segurança, proteção civil e apoio social… devendo as exceções acontecerem se no exercício das respetivas funções… Aquando da Páscoa foi dada uma orientação mais específica para os ministros do culto, quando em trânsito entre os diversos (possíveis) concelhos onde exerçam as suas funções…

Pelo conjeturar da aragem veremos que uns dias antes e outros depois do Natal, no mínimo, voltaremos a viver idênticas restrições na circulação entre concelhos…aduzindo salvaguarda da pretensa saúde pública.

 

= Sem quer ver fantasmas nem inventar ‘perseguições’, há algo de coincidente entre as datas submetidas à proibição/condicionamento na circulação, tanto entre concelhos como, em certos casos, possivelmente mais gravosos, entre circuitos mais pequenos ou de proximidade. Páscoa e finados são datas de grande significado para alguma cultura de índole católica. Por isso, condicionar, restringir ou proibir a possibilidade de as pessoas poderem exercer o seu culto ou de exprimirem a sua fé parece-me que é algo senão acintoso, no mínimo, provocatório.

Temos devemos e podemos velar pela saúde pública e de cuidar das condições de cada um. Não estar em sintonia máxima com os responsáveis deste setor seria, antes de mais, falta de civismo e, possivelmente, incorreríamos em grave infração cívica ou, porque não, criminal.

É um facto que, por parte dos responsáveis da Igreja católica em Portugal – conferência episcopal e bispos – tem havido uma colaboração excessivamente estrita com as ordens de quem manda. Nalguns casos quase ficou a sensação de submissão escusada, por exemplo, no encerramento compulsivo das igrejas e da suspensão obrigatória das missas. Noutras situações os fiéis católicos foram equiparados a militantes partidários, como se fossem uma agremiação laica ao sabor dos humores partidários. As vozes de reclamação foram silenciadas por uma higienização quase doentia, se bem que os maiores focos de difusão e de contaminação não se tenham encontrado, regra geral, nos espaços celebrativos nem de culto.

À falta de exceções menos corretas, dá a impressão que se quis antecipar algo que o mais básico bom senso seria capaz de colher mais frutos do que as proibições, que, se forem excessivas, correrão o sério risco de não serem respeitadas… A desobediência civil também pode ser acionada em casos extremos, como se diz na Constituição da República Portuguesa: «todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública» (artigo n.º 21).

 

= Pelo que tem de próprio e de único a Igreja católica, em Portugal, não pode nem deve continuar a submeter-se tão acriticamente aos ditames de uma governação – dita republicana, laica e socialista – que se serve da faculdade espiritual para a aprisionar pelo condicionamento de ter a chave do segredo para a continuação de tantas instituições que dependem do estado/governo para prosseguirem os seus objetivos, que antes de serem ‘sociais’ deveriam configurar-se de evangelização, de solidariedade e de caridade verdadeira. Os vindouros cobrar-nos-ão, no futuro, tantos dos silêncios cúmplices senão comprometidos com jogadas nem sempre claras de governantes e autarcas habilidosos, simpáticos, mas talvez não-sinceros. A Igreja de amanhã terá grandes dificuldades em manter postos de trabalho – rotulado de social – mas cujos intervenientes nem sempre vestem a camisola da instituição que lhes suporta o ordenado mensal.

Com tantas louvaminhas ainda teremos capacidade profética para denunciar sem medo nem falta de coragem? Com tantas articulações entre poder civil (autárquico ou outro) e autoridade na Igreja católica fica-nos algum espaço para andar sem ter de fazer vénias…senão a Deus?   

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Traquinices de uma certa esquerda...


Nos tempos mais recentes temos assistido, num misto de perplexidade e de angústia, às diversas posições de certas formações (ditas) partidárias, que ora querem fazer parte da solução, ora do problema: umas vezes dizem que concordam com a proposta de orçamento de estado para 2021, outras vezes fazem-se de muito difíceis, como se tivessem a resposta mágica de se consideram imprescindíveis para o futuro de tudo e de todos...

‘Mutatis mutandis’ é como o rapaz lá do bairro/rua que trouxe a bola  para que os outros pudessem jogar – é o dono da bola: ele escolhe a equipa, traça as regras, tenta pôr os outros a jogar, mas ameaça acabar o jogo, se ele não for o vencedor... Ora, como os outros já lhe conhecem as manhas, acham que ele só ameaça e que regateia até que lhe deem o que ele quer: protagonismo, ter atenção, mas sem os outros o jogo pode acabar, sem vencidos nem vencedores, podendo ele ser o mais prejudicado, agora ou no futuro!

Quem não viu já isto no grande ‘jardim-de-infância’ em que o país se tornou? Não temos a sensação de que  se vê desmentir em público o que se terá dito em privado ou que se pretende desdizer em privado o que foi proferido em público? Alguns dos intervenientes não parecem ser mais servidores da ideologia, pela qual se norteiam do que pelo (dito) serviço público que adulam? Será justificável este clima de intriguismo, que a ser real, mais parece ter contornos de brincadeira em traquinice?

 

= Certamente que será dispensável acrescentar às crises sanitária e económica uma outra de pendor político-partidário. Nota-se que vai perpassando a expetativa de que haja responsabilidade para que não tenhamos de viver a curto prazo algo que viria a confundir ainda mais as questões sociais que a pandemia veio espoletar.

De facto, dá a impressão de que a fome tem (mesmo e mais) ideologia, pois uns tantos procuram explorar as fragilidades alheias – onde a falta de recursos económicos é das mais expressivas – tirando delas proveito político-eleitoral. Não haverá quem acorde para denunciar esta exploração recorrente dos ‘trabalhadores e do povo’? Porque não se levantam as vozes da justiça contra estes manipuladores,  em defesa da correta conduta dos recursos e não pela apropriação dos mesmos a médio prazo?

 

= Os múltiplos milhões que, em breve, virão da União Europeia correm o risco de mais uma vez caírem no saco dos da mesma pandilha. Nas diversas tranches procedentes da UE, desde a adesão em 1986, os beneficiários tem sido quase sempre da mesma latitude e nem mesmo as diversas anomalias – detatadas, denunciadas ou encapotadas – têm corrigido os critérios.

O setor do Estado continua a ser o maior sorvedouro dos milhões de Bruxelas. Os privados, que geram riqueza e pagam impostos, continuam a ser os postergados do sistema. Isto tem de mudar, pois não pode haver cidadãos de segunda – e são a maioria social, cultural e económica – suportando as bazófias de uma percentagem de beneficiados...à la carte.

Os vetores da educação e da saúde, da segurança e do trabalho, por exemplo, têm de saber conviver e articularem-se com os que são do Estado e os do setor privado e mesmo social. Veja-se o que está acontecer com o socorro desta pandemia de covid-19. Os estatais precisam dos que o não e estes terão toda a obrigação moral e cívica de serem complementares articulamente.  Basta de animosidade e de conflitos.

 

= A democracia – já dizia W. Churchill – é o pior dos regimes, à exceção dos outros. Perante esta afirmação algo nos deve levar a que tenhamos vontade e decisão para renovarmos o sistema com base na democracia, excluindo, legitimamente, os ditadores encapotados. Com efeito, em tantas das atitudes das traquinices à portuguesa fica-me a sensação de que há, por aí, muitas/os figuras e figurões para quem só conta a sua ‘democracia’; alguns dizem-se defensores das liberdades, mas têm de ser as suas; outros lançam loas às eleições, mas só quando as ganham; numa palavra: quem nos governa/dirige saberá que tem de respeitar os que não são da sua cor ideológica?

‘Há um tempo para tudo’ (Ecl 3,1-8) ...diz-nos a Sagrada Escritura!  

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Exéquias: com os vivos pelos defuntos


Com a aproximação à celebração litúrgica dos Fiéis Defuntos poderá ser útil refletir sobre a temática das exéquias católicas, sua envolvência e consequências na vida da fé crista.

Deixamos aqui um pequeno estudo sobre o assunto.

 

«As exéquias cristãs são uma celebração litúrgica da Igreja. O ministério da Igreja tem em vista, aqui, tanto exprimir a comunhão eficaz com o defunto, como fazer participar nela a comunidade reunida para o funeral e anunciar-lhe a vida eterna» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 1684).

Algumas perguntas se podem colocar sobre a celebração das exéquias: que sentido tem celebrar exéquias cristãs/católicas a quem não foi minimamente ‘praticante’? Haverá algum sentido dar a quem morreu algo que não quis em vida? Serão as exéquias cristãs para os defuntos ou para os vivos? Se atendermos à marca de índole social que percorre um funeral, será aceitável a sua realização – como momento de possível evangelização – ou deve recursar-se a participar em algo que pode exigir um mínimo de fé? As orações do ritual a quem têm por direta referência: aos vivos ou para com os defuntos? A evocação do defunto é razão ou oportunidade para que se celebrem as exéquias?

 

* Privatização/anonimato da morte…fora do contexto familiar

Se atendermos a todo um processo crescente da privatização – isto é, de fazermos deste momento da vida algo que atinja o foro privado e não incomode ou o faça no mínimo – do tema da morte podemos ver como certos rituais por ocasião da morte até de um cristão na nossa sociedade ocidental estão a ser esvaziados de conteúdo mínimo cristão. Repare-se na difusão do velório em espaços não-familiares, atirando para fora do convívio da família quem partiu. Isto vem sendo acompanhado com o processo de falecimento já não ao pé da família, mas no contexto hospitalar. Foi (ou é) com naturalidade que fomos enquadrando esta vivência, deixando de haver tanta proximidade ao ente querido que morreu. Certamente que os espaços hospitalares fazem o melhor que podem, mas a frieza na partida deixa marcas…Quantas vezes a assistência espiritual-religiosa não consegue colmatar o que o consolo da fé poderia proporcionar.

 

* Etapas das exéquias – casa, igreja, cemitério

«A liturgia romana propõe três tipos de celebração das exéquias, correspondentes aos três lugares em que se desenrolam (a casa, a igreja, o cemitério), e segundo a importância que lhes dão a família, os costumes locais, a cultura e a piedade popular» (CIC, n.º 1686). A isto podemos ainda acrescentar os quatro momentos nos quais se pode desenvolver esta celebração exequial, a saber: acolhimento na comunidade, celebração da Palavra de Deus, eucaristia exequial e encomendação/último ‘adeus’.

O Ritual das Exéquias apresenta alguns momentos de oração ‘no momento da morte’ – feitas por qualquer cristão presente ao ato, mesmo que não seja ministro ordenado – com indicações e sinalética (como traçar o sinal da cruz sobre a fronte do moribundo ou dando-lhe um crucifix a beijar), acompanhada de orações… Outra etapa sugerida pelo Ritual é para a ‘colocação do corpo no féretro’, que é muito mais do que o trabalho de uma ‘agência funeráriia’, associando momentos de oração pelo defunto. Por último, ainda nesta etapa pré-exequial, o Ritual, apresenta um ‘vigília de oração pelo defunto’, na casa do falecido ou na casa mortuária, sugerindo-se também a Liturgia das Horas do ‘ofício de defuntos’.

Ora, tendo em conta alguma experiência pastoral de quase quatro década de ministério sacerdotal, deixo as minhas impressões, atendendo às possibilidades e às condições dos vários casos, lugares e situações.

Desde já fique ressalvado: as exéquias são dos momentos mais propícios à evangelização até mais do que à catequese, tal a possibilidade de uma boa parte dos que nelas participam, pelas razões emocionais que envolvem, poderem aceitar uma palavra de anúncio da Pessoa e da mensagem de Jesus Cristo…atendendo ainda à razoável ignorância, apatia ou mesmo indiferença com que temos de enfrentar, em boa parte desses momentos. o que deveria ser de luto e não de mera convivência social.

Vejamos as três possibilidades – cumulativas ou autónomas – para a celebração das exéquias e qual o seu significado:

Acolhimento: «Uma saudação de fé dá início à celebração. Os parentes do defunto são acolhidos com uma palavra de «consolação» (no sentido do Novo Testamento: a fortaleza do Espírito Santo na esperança. Também a comunidade orante, que se junta, espera ouvir «as palavras da vida eterna». A morte dum membro da comunidade (ou o seu dia aniversário, sétimo ou trigésimo) é um acontecimento que deve levar a ultrapassar as perspetivas «deste mundo» e projetar os fiéis para as verdadeiras perspetivas da fé em Cristo Ressuscitado» (CIC, n.º 1687). Tanto pode haver o acolhimento do féretro na igreja, seguindo-se as exéquias, como se pode verificar esse acolhimento e, posteriormente, serem celebradas as exéquias. Em cada um dos casos estão propostos momentos de escuta da Palavra de Deus – repare-se como é fundamental incluir o que Deus nos quer dizer nesses momentos – bem como o recurso a vários salmos de índole penitencial e também orações onde se coloca quem parte diante de Deus e todos nós em processo de conversão. 

– Temos também a «liturgia da Palavra, aquando das exéquias, [que] exige uma preparação, tanto mais atenta quanto a assembleia presente pode incluir fiéis pouco frequentadores da liturgia e até amigos do defunto que não sejam cristãos. A homilia, de modo particular, deve «evitar o género literário do elogio fúnebre» e iluminar o mistério da morte cristã com a luz de Cristo ressuscitado» (CIC, n.º 1688). Efetivamente, sobretudo, em regiões onde a prática religiosa é menos acentuada esta é a forma mais usada de celebrar as exéquias – ‘exéquias sem missa’. Tal como se refere neste enunciado podemos encontrar nesses momentos oportunidades de evangelização, particularmente de tantos ditos ‘menos crentes’, senão mesmo de muitos outros que estão fora do contexto religioso básico. Por vezes uma palavra corretamente proferida pode atingir quem se disponha a ser tocado por Deus!

Que dizer, então, do desfile de coroas de flores e de salamaleques de circunstâncias por ocasião de tantos funerais? Não se quererão substituir as orações pelos arranjos florais à mistura com conversas sem nexo nem conteúdo? Até quando continuaremos mais ou menos a colaborar/tolerar neste disfarce não assumido? Nota-se uma grande falta de educação humana e cristã nesta etapa derradeira da vida…que ou se tem ou não se inventa!

Exéquias com missa: «Quando a celebração tem lugar na igreja, a Eucaristia é o coração da realidade pascal da morte cristã. É então que a Igreja manifesta a sua comunhão eficaz com o defunto: oferecendo ao Pai, no Espírito Santo, o sacrifício da morte e ressurreição de Cristo, pede-Lhe que o seu filho defunto seja purificado dos pecados e respectivas consequências, e admitido à plenitude pascal da mesa do Reino. É pela Eucaristia assim celebrada que a comunidade dos fiéis, especialmente a família do defunto, aprende a viver em comunhão com aquele que «adormeceu no Senhor», comungando o corpo de Cristo, de que ele é membro vivo, e depois rezando por ele e com ele» (CIC, n.º 1689). De facto, será natural que haja missa de sufrágio por quem viveu em comunhão de Igreja, mas seria algo quase aberrante que se faça ‘missa de corpo presente’ para quem pouco ou nada se fez presente à Igreja em vida. Em certas circunstâncias em regiões onde a prática religiosa é menos significativa seria algo a rever ao celebrar missa por quem não fez comunidade em vida… ou, então, como vai crescendo noutras regiões com mais religiosidade social, estaremos a conferir sacramentalidade sem evangelização. 

– Após a celebração das exéquias, com missa ou sem missa, segue-se a última encomendação e despedida, que consiste no ‘adeus («a Deus») ao defunto é a sua «encomendação a Deus» pela Igreja. É ‘a última saudação dirigida pela comunidade cristã a um dos seus membros, antes de o corpo ser levado para a sepultura’» (CIC, n.º 1690). Efetivamente podem ser usados ainda dois sinais religiosos de respeito pelo ‘corpo onde viveu um cristão’: a água benta, evocativa da água batismal e o incenso como símbolo da oferta das orações dos fiéis a Deus por aquele irmão falecido.

As propostas de oração apresentadas (sete no conjunto) pelo Ritual das exéquias procuram criar nos participantes no funeral uma expetativa de encontro daquele que partiu com Deus – chamado de ‘bom pastor’, Pai de misericórdia – na comunhão de irmãos fundada no batismo e manifestada na Igreja e pela Igreja pela comunhão dos santos… Isso mesmo se exprime no responsório breve: vinde em seu auxílio, santos de Deus. Vinde ao seu encontro, anjos do Senhor. Recebei a sua alma, levai-a à presença do Senhor… ressusscitado. A oração final de encomendação recolhe, em ação de graças tudo quanto Deus concedeu a quem morreu, suplicando a misericórdia infinita e o perdão de todas as fragilidades…

Fazendo-se agora o transporte do defunto para o cemitério ou local de cremação em meio automóvel as propostas para a ’procissão para o cemitério’ quase não têm viabilidade.   

 

* Sepultamento – em cemitério ou pela cremação

Embora esta etapa do sepultamento possa continuar ligada às exéquias, colocamos este tema noutro enquadramento pela razão de queremos abordar a questão da cremação, tentando responder à pergunta: se é lícito ou não um cristão recorrer a esta forma derradeira de tratamento do corpo humano falecido?

As rubricas sobre o sepultamento em cemitério são simples: acolhimento final dos participantes, profissão de fé (a meu ver, caso o defunto tenha sido praticante de fé comunitária), oração dos fiéis e oração final com a bênção e o envio ‘na paz’.

Por razões várias tem vindo a crescer, sobretudo em contextos urbanos, a tendência a optar pela cremação dos defuntos. Por isso, pode ser útil neste contexto de abordagem do sepultamento dos defuntos percorremos o que diz a doutrina da Igreja Católica, desde o Catecismo até a uma Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé, de 2016. 

Diz o Catecismo da Igreja Católico sobre o cuidado para com os defuntos: «Os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e esperança da ressurreição. Enterrar os mortos é uma obra de misericórdia corporal que honra os filhos de Deus, templos do Espírito Santo». Ora sobre a cremação diz o mesmo Catecismo: «A Igreja permite a cremação a não ser que esta ponha em causa a fé na ressurreição dos corpos» (CIC, n.os 2300-2301). Mais recentemente foram aprovados textos e orações para a celebração das exéquias com a possibilidade da cremação…Por vezes não bastará estar atento ao formato do caixão na hora da encomendação, serão precisos mais dados e melhores informações…até sociológicas, culturais e religiosas de tal opção pela cremação.

Com data de 15 de agosto de 2016, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou a Instrução ‘Ad resurgendum cum Christo’ a propósito da sepultura dos defuntos e da conservação das cinzas da cremação. Depois de algum enquadramento teológico à luz da ressurreição de Cristo, o documento lembra a antiga tradição cristã em que ‘a Igreja recomenda insistentemente que os corpos dos defuntos sejam sepultados no cemitério ou num lugar sagrado’.

É partindo desta teologia e práxis secular que a Congregação para a Doutrina da Fé procura atalhar alguns erros e abusos no que toca ao recurso, entretanto, muito difundido da cremação. A Igreja ‘não pode, por isso, permitir comportamentos e ritos que envolvam conceções erróneas sobre a morte: seja o aniquilamento definitivo da pessoa; seja o momento da sua fusão com a Mãe natureza ou com o universo; seja como uma etapa no processo da reincarnação; seja ainda, como a libertação definitiva da “prisão” do corpo’.

Do mesmo modo se insiste que a ‘sepultura nos cemitérios ou noutros lugares sagrados responde adequadamente à piedade e ao respeito devido aos corpos dos fiéis defuntos, que, mediante o Batismo, se tornaram templo do Espírito Santo e dos quais, “como instrumentos e vasos, se serviu santamente o Espírito Santo para realizar tantas boas obras’.

O documento da Congregação para a Doutrina da Fé salienta que ‘onde por razões de tipo higiénico, económico ou social se escolhe a cremação; [esta] escolha que não deve ser contrária à vontade explícita ou razoavelmente presumível do fiel defunto, a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis; uma vez que a cremação do cadáver não toca o espírito e não impede à omnipotência divina de ressuscitar o corpo. Por isso, tal facto, não implica uma razão objetiva que negue a doutrina cristã sobre a imortalidade da alma e da ressurreição dos corpos’.

Explicando depois o modo de proceder para com as cinzas, a Instrução refere que ‘as cinzas do defunto devem ser conservadas, por norma, num lugar sagrado, isto é, no cemitério ou, se for o caso, numa igreja ou num lugar especialmente dedicado a esse fim determinado pela autoridade eclesiástica’. Com efeito, ‘a conservação das cinzas num lugar sagrado pode contribuir para que não se corra o risco de afastar os defuntos da oração e da recordação dos parentes e da comunidade cristã. Por outro lado, deste modo, se evita a possibilidade de esquecimento ou falta de respeito que podem acontecer, sobretudo depois de passar a primeira geração, ou então cair em práticas inconvenientes ou supersticiosas’.

Sobre a conservação das cinzas e outros artefactos com elas praticados, a Congregação para a Doutrina da Fé salienta que ‘a conservação das cinzas em casa não é consentida... não podendo ainda as cinzas serem divididas entre os vários núcleos familiares e deve ser sempre assegurado o respeito e as adequadas condições de conservação das mesmas’.

Desejando corrigir certas visões e atuações menos respeitosas para com as cinzas dos defuntos, a Instrução diz que ‘para evitar qualquer tipo de equívoco panteísta, naturalista ou niilista, não seja permitida a dispersão das cinzas no ar, na terra ou na água ou, ainda, em qualquer outro lugar. Exclui-se, ainda a conservação das cinzas cremadas sob a forma de recordação comemorativa em peças de joalharia ou em outros objetos, tendo presente que para tal modo de proceder não podem ser adotadas razões de ordem higiénica, social ou económica a motivar a escolha da cremação’.

Ao longo da breve ‘Instrução’, faz-se ainda uma abordagem da correta celebração das exéquias pelo defunto e a posterior atitude de sufrágios...numa leitura e vivência sem oscilações nem fundamentalismos.

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Da ‘licença de isqueiro’…à ‘app stayaway covid’


Quem não for demasiado novo saberá que, no regime do ‘estado novo’, havia uma taxa sobre quem usasse isqueiro, era a chamada ‘licença de isqueiro’, na década de sessenta do século vinte: um papel timbrado, emitido pelo governo, com o custo de dez escudos, o qual devia acompanhar o dono do isqueiro; em caso de falta da licença estava estipulada uma multa no valor de duzentos e cinquenta escudos e, caso o infrator fosse funcionário do governo ou militar, a multa passava para o dobro. O dinheiro recolhido das multas, bem como da venda das licenças, revertia em favor da empresa nacional de fósforos. Dava-se ainda o caso de uma parte das multas ser destinado para o autuante e, na situação de delator (isto é, de alguém denunciar outrem) a percentagem da multa ser-lhe também favorável. O fisco dispunha de ‘fiscais do isqueiro’, quais zelosos cumpridores de uma lei da qual nos rimos de forma contida e embaraçosa… Isto vigorou, em Portugal, entre 1937 e 1970…De referir que a licença era de renovação obrigatória anual!

Trouxemos à colação este fenómeno do regime político anterior para o colocarmos em confronto – tal como outras invenções e taxas que ainda suportamos pela calada das faturas da eletricidade e não só – com essa invenção iluminada da aplicação ‘stayway covid’ apresentada por zelosos mentores em defesa da saúde pública e tentada implementar à força pelo atual governo como forma de conter a epidemia de ‘covid-19’, cada vez mais condicionador do tecido social e devastador de vidas…

Por que não foram os promotores e, sobretudo os legisladores, aos anais da história para verem que estavam a incorrer em algo de nefasto senão mesmo de ridículo? Por que lançaram para a chacota nacional algo que, mesmo à força, está condenado ao fracasso e ao insucesso? Por que quiseram – como noutras circunstâncias menos acintosas – apalpar as reações e não medir as consequências cívicas e políticas do episódio?

O pior de todo este processo da implementação/obrigação em descarregar a aplicação ‘stayway covid’ é a possibilidade de devassa da vida das pessoas mais inofensivas, pois ao trauma de ter passado pela doença – só depois de ‘curado’ lhe seria facultado um código para introduzir no dito sistema de alerta, por parte de um médico e sob a sua autorização – ainda teria de carregar com o medo de poder ser ostracizado pelo resto da população, que saberia estar perante um perigo social, como contagiado e contagioso. Isto não é digno de ser colocado como fardo sobre os ombros de quem já sofreu uma dura provação. Isto colide e ofende quem – e já são milhares de ‘curados’ e Deus queira que haja cada vez mais – esteve entre a vida e a morte.

Mesmo sem dados fiáveis há questões éticas que me incomodam e outras questiúnculas de natureza economicista que me revoltam. Será assim tão gratuito o processo, dado que os mentores precisaram de vir a terreiro reclamar do fiasco da coisa? Dos milhares que se colocaram na defesa dos seus interesses – dizem que mais de dois milhões que fizeram a descarga da ‘app’ – porque houve tão poucos a se submeterem à inquisição da tecnologia? Haveria alguma ‘recompensa’ na mira e os resultados não foram atingidos? Neste mundo de cifrões tudo pode estar subjacente e em causa…à socapa.

Por outro lado, ganha foros de ditadura obrigar todos a entrar na lógica da obrigação. Efetivamente é de muito duvidosa autoridade ameaçar com multas, com invasões da privacidade e até do domicílio. Será que o legislador considera o resto da população a partir das suas possibilidades económicas? Todos os portugueses são obrigados a ter telemóvel e, sobretudo, a ter um que seja capaz de rececionar aquela aplicação? Não andaremos a pensar mais com a soberba do que com os dados reais, que nos dizem que mais de um terço da população portuguesa (dois milhões e meio) vive no limiar da pobreza, isto é, com menos de dez mil euros anuais de irs? Terão todos, assim, capacidade de preencher os requisitos da ‘app stayway covid’?

 

= Se nos rimos da ‘licença de isqueiro’ do regime do estado novo, como não poderemos antes chorar com a prosápia do regime neocoletivista em vigor. Não basta atirar dinheiro para cima dos problemas, se não aprendermos a detetar as questões e não soubermos pensar sobre elas com inteligência e não mera emotividade. Porque defendo a pessoa, particularmente no seu estado de debilidade, sou contra a implementação desta vergonhosa aplicação, defendendo a objeção de consciência e a recusa em pagar qualquer multa…até porque não tenho nem quero ter nem ostentar um telemóvel que possa amesquinhar seja quem for, nesta etapa da nossa fragilização coletiva pelo covid-19…       

 

António Sílvio Couto

sábado, 17 de outubro de 2020

Máscara – antecâmara da mortalha?

 


É hoje adereço (mais do que indispensável, obrigatório) da indumentária de todos e de qualquer um: a máscara, que encobre o nariz e a boca, tentando, assim, evitar a transmissão/receção de possíveis vírus infetocontagiosos…sobretudo do sars-cov-2.

Temos hoje, regra geral, três tipos de máscaras: cirúrgicas, sociais (ou comunitárias) e respiradores. Cada uma delas faz a sua função, desde que proteja a saúde do utilizador e de quem com ele se cruze ou conviva.

Os números significativos de novos infetados, de falecidos e de internados fez com que as autoridades – de saúde, governativas e políticas – introduzissem uma nova etapa de resguardo de todos e de cada um: o estado de calamidade.

Em que consta e quais as medidas deste grau máximo de gravidade, que é a implementação do estado de calamidade? 

Atendendo ao agravamento da situação social da difusão do covid-19 foram postas em prática as seguintes medidas: na rua, em espaços comerciais e restaurantes, não poderão estar mais de cinco pessoas juntas; a partir de agora, meados de outubro, casamentos e batizados só poderão contar com 50 convidados; nos estabelecimentos de ensino, ficam proibidas festas e outros eventos que não tenham a ver com as aulas; os valores das multas para estabelecimentos que não cumpram as regras serão aumentados para um teto máximo de dez mil euros; a fiscalização (pelas forças de segurança e das atividades económicas) será reforçada, tanto para estabelecimentos como para pessoas individuais; será “vivamente recomendado” o uso obrigatório de máscaras na rua quando se justificar, assim como a instalação da aplicação Stayaway Covid em contexto laboral, escolar e académico, nas forças armadas e de segurança e na administração pública.

 

= Se há medidas que são consensuais, também as há menos corretas e quase ditatoriais. Se o uso de máscara parece normal e bem aceite, a tentativa de impor o descarregamento da ‘app stayaway covid’ tem vindo a ganhar foros de controvérsia e coloca-nos sob uma espécie de regime não-respeitador da intimidade das pessoas, tenham sido doentes ou potenciais…atingidos.

Já há mais de um mês me pronunciei contra esta coisa de ‘app’, considerando-a uma intromissão na vida privada das pessoas e fazendo dos ‘doentes registados’ uma espécie de leprosos da tecnologia.

Escrevi a 3 de setembro e está disponível no blogue: aquieagoraeu.blogspot.pt: «Esta ‘aplicação’ não poderá ir nessa onda de subverter os direitos pessoais com interesses coletivos – numa neo-coletivação assaz subtil – expondo as pessoas sem pejo, desde se possa cumprir o objetivo de mostrar que controlamos tudo e todos, à custa da invasão da privacidade e dos direitos mais fundamentais, como a reserva e a confidencialidade da própria doença?

E, se de repente, num aglomerado de pessoas (até pode ser numa missa) – resultado da confluência de várias ‘app’s – se der um afastamento de quem recebeu a informação sobre um infetado, isso será benéfico para a segurança pública?».

Dir-me-ão que é de gosto duvidoso autocitar-se. Sim, mas no princípio de setembro senti a mesma repulsa que agora me invade e se radicaliza: não podemos a todo o custo querer impor – mesmo sem saber se pode ser cumprido – algo que desrespeita as pessoas no mais básico da sua convivência social. De facto, o pior que nos pode acontecer é termos autoridades que não se fazem dignificar pela simples razão de que aquilo que pretendem impor é inexequível ou até mesmo ilegal…Não basta ter poder, é preciso saber exercê-lo!

 

= Estamos mais uma vez no fio da confusão e temos de assumir que o vírus é altamente contagioso e perigoso. Todos os cuidados são mínimos. Urge, por isso, consciencializarmo-nos de que devemos cuidar de nós mesmos e dos outros, não aconteça do não-uso, por exemplo da máscara, pode vir a tornar-se a antecâmara da mortalha. O mais pequeno descuido poderá ser irreversível para nós e para os outros. Efetivamente um pouco de humildade poderá valer vidas, isto é, se entrarmos numa convivência que saiba os limites até onde se pode ir, poderemos ajudar a não propagar a infeção, que, tanto quanto já se percebeu, passa pela autodefesa e pelo resguardo no trato social…máximo.     

  

António Sílvio Couto

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Igreja-paróquia: puzzle de quintaizinhos?


Sociológica, cultural e até eclesialmente a ‘paróquia’ foi uma realidade que mudou de forma abrupta no último meio século – desde 1970 até agora. Se houve razões exógenas, outras mais endógenas contribuíram para tal mudança.

As caraterísticas das pessoas e das populações, as modificações e movimentações mais recorrentes, a mobilidade e menor estabilidade familiar, social e profissional são alguns dos contributos para que as paróquias territoriais tenham começado a vacilar, tanto na sua composição como na possível continuidade. Por outro lado, vemos que foi crescendo algum do individualismo mais ou menos aceite, tolerado e – sobretudo nesta maré de pandemia – quase cultivado.

Vejamos três visões dos últimos Papas sobre a matéria, como nos é apresentada num documento deste ano da Congregação para o Clero, Instrução ‘A conversão pastoral da comunidade paroquial’ (n.º 12):

* João Paulo II (1978-2005): «a paróquia é aperfeiçoada e integrada em muitas outras formas, mas essa continua sendo um organismo indispensável de primária importância nas estruturas visíveis da Igreja», para «fazer da evangelização a base de toda a ação pastoral, com exigência prioritária, preeminente e privilegiada»;

* Bento XVI (2005-2013): «a paróquia é um farol que irradia a luz da fé e assim vem ao encontro aos desejos mais profundos e verdadeiros do coração do homem, dando significado e esperança à vida das pessoas e das famílias»;

* Francisco (desde 2013): «através de todas as suas atividades, a paróquia incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização».

Embora sejam perspetivas complementares cada um deixa-nos, no quadro destes cinquenta anos, algo em que nos devemos cuidar de entender. De facto, desde o pronunciamento de João Paulo II em 1984 até à ‘Evangelii gaudium’ do Papa Francisco, em 2013, decorreram na Europa e fora dela acontecimentos que fizeram mudar o mundo e, consequentemente, a Igreja católica: a queda do ‘muro de Berlim’ (1989), os atentados de 11 de setembro (2001), as modificações políticas sobretudo na Europa de Leste, alguns radicalismos provenientes do mundo islâmico, as alterações climáticas e as consequências geográfico-sociais, um razoável crescimento económico, nem sempre articulado entre todos os povos, nações e culturas, o surgimento, difusão e evolução da internet e do digital…eis alguns dos vetores que foram civilizando mais as pessoas, embora nem sempre socializando-as da forma mais correta e no relacionamento entre todos…

- A paróquia ‘tradicional’ católica foi sendo assaltada por tudo isto e mais o envelhecimento dos seus praticantes à medida ou à mistura com o fenómeno dos mais novos – primeiro os jovens, depois os adolescentes e agora até as crianças – que foram trocando por outras ou nenhumas práticas religiosas.

- Já há quem considere que a paróquia se foi tornando uma espécie de ‘loja de conveniência’, onde se vai quando é preciso, aproveitando as promoções de ocasião ou fazendo uso dos seus serviços tanto quanto convenha ou não haja outros que realizem idênticos objetivos…

- Até os sacramentos se foram tornando cada vez mais atos sociais e não celebração dos mistérios da fé – e já não é só o casamento na igreja (seria o matrimónio), mas também os batizados (substitutos de festas não realizáveis por razões de índole eclesial, como outro casamento depois de um religioso), as primeiras comunhões e – pasme-se! – até as missas pelos defuntos em datas comemorativas…

- Ainda recentemente pude ver e avaliar um trabalho feito por ocasião do ‘dia da paróquia’ em que foi solicitada uma reflexão/partilha sobre o documento supra citado sobre a paróquia… ‘ao serviço da missão evangelizadora da Igreja’. Dezena e meia de grupos – mais por organização do que por outras razões – foi chamada a pronunciar sobre vários aspetos do que é (ou deve ser) a paróquia hoje. Ora, as respostas andaram quase todas dentro daquilo que cada um era capaz de ver, de fazer ou de entender no seu grupo e não em abertura à dimensão da Igreja-paróquia. Deu para captar mais uma vez que andamos a cuidar do nosso ‘quintal’, indiferentes ao que os outros pensar, fazem ou vivem… Isto já para não referir tantos/as que desertam e nem participam minimamente… A pandemia parece que veio agravar ainda mais a situação!

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Humor...em decadência?


Quando se diz de alguém – aquele/a tem sentido de humor – estamos a falar a sério ou a brincar? Referimo-nos a alguém mais ou menos sério, sem laivos de ser só sisudo ou mais arejado de ideias? Porque será que nos rimos (ou sorrimos) das tiradas – vulgarmente ditas ‘piadas’ – de uns e não temos idêntica reação para com outros, que, por seu turno, podem provocar reações contrárias em outrém? Será o humor um dom ou uma arte? Como poderemos distinguir um comediante de alguém que cria boa disposição à sua volta? Será isso humor ou simplesmente uma maneira de ser?

Confesso a minha incapacidade de entender certos (ditos/apelidados) humoristas. Por vezes desconfio quase da minha inteligência, dado que outros se divertem tanto com as piadas, anedotas ou dichotes de muitos dos nossos humoristas de serviço. Até aqueles programas de ‘stand-up comedy’ (anedotas/humor em pé) escapam à minha compreensão, mas, ao ver salas cheias em aplauso, julgo que sou eu que não entendo a linguagem e tão pouco o seu alcance. Certas programações televisivas usam e abusam de figuras e figurinhas, que aparecem para entreter um tal púbico mais interessado em interpretar o que é dito em jeito conotativo (figurado) do que em ouvir de forma denotativa (literal) aquilo que é proferido. Quantos/as dos cançonetistas vivem em palco este jogo de palavras, podendo considerarem-se também ele/elas humorista da canção...

 

= Nestes dois parágrafos do texto já tentamos abordar duas questões: o tema – humor; e os seus intérpretes; mas ainda nos falta referir quais os assuntos do humor, se é que há ou não campos/setores da vida onde o humor não pode ter lugar ou ainda, se quem escreve ou quem diz os textos, tem a mesma responsabilidade, tanto cívica como até moral.

Quem não se lembra do alarido provocado pelos atentados ao jornal satírico francês – Charlie Hebdo: a 7 de janeiro de 2015, em Paris, foram mortos de rajada doze pessoas e feridas mais cinco gravemente. A razão dos ‘factos’ prende-se com a publicação, três anos antes, por aquele semanário (dito) satírico de desenhos ofensivos – na visão dos perpetrantes das ações terroristas – da figura de Maomé, em jeito de cartoon. Para aqueles cidadãos não havia espaço mínimo de humor, sobretudo se atingia ‘o profeta’. Diante deste episódio, que já foi por várias vezes replicado, surge-nos uma questão simples e significativa: os temas religiosos podem ou não ser objeto de humor? Ou será que, quando os humoristas se socorrem dos temas religiosos, a sua imaginaçõa já bateu no fundo e têm nesse campo algo que pode ainda entreter tantos dos seus ‘laicos’ ouvintes e/ou espetadores?

De facto, considero que há áreas do pretenso humor onde cair lá denuncia, de verdade, uma razoável decadência imaginativa, que é muito mais do que meramente imaginária. Como referi o campo das questões religiosas, tanto das ideias como das práticas, é propício para certos clichés que envolvem dichotes/piadas com linguagem conotativa de âmbito religioso – cristão ou não – e que quase nunca deixam de cair na asneira tácita ou explícita.

Outro setor de recurso do anedotismo, das piadas e do humor rasca é aquilo que envolve aspetos de cariz sexual. Da brejeirie à insinuação, das palavras maliciosas às intenções insidiosas, dos trejeitos às provocações, se vai fazendo algum do humor onde a temática do sexo entra ou pode deambular. Mais uma vez o pretenso humor pode roçar as raias até da má-criação. Quem tal usa pode desce suficientemente baixo e fazer rir quem ouça, mas com brevidade será atirado para a latrina social, cívica e cultural.

 

= Porque nos guiamos por valores de índole cristã, será conveniente que encontremos uma orientação sobre o tema do humor. Não será preciso entrarmos em qualquer pietismo nem na abjuração da boa-disposição, temos de perceber de onde provem o humor e quais as consequências que dá na vida.

Deixo em jeito de registo a nota 101, da exortação apostólica ‘Gaudete et exulstate’ do Papa Francisco, de 19 de março de 2018, numa oração atribuída a São Tomás Moro: «Dai-me, Senhor, uma boa digestão e também qualquer coisa para digerir. Dai-me a saúde do corpo, com o bom humor necessário para a conservar. Dai-me, Senhor, uma alma santa que saiba aproveitar o que é bom e puro, e não se assuste à vista do pecado, mas encontre a forma de colocar as coisas de novo em ordem. Dai-me uma alma que não conheça o tédio, as murmurações, os suspiros e os lamentos, e não permitais que sofra excessivamente por essa realidade tão dominadora que se chama “eu”. Dai-me, Senhor, o sentido do humor. Dai-me a graça de entender os gracejos, para que conheça na vida um pouco de alegria e possa comunicá-la aos outros. Assim seja».

‘Ridendo castigat mores’, isto é, a rir se corrigem os costumes!

 

António Sílvio Couto

 

sábado, 10 de outubro de 2020

Nova cultura


Na encíclica ‘Fratelli tutti’, o Papa Francisco refere-se a algo que designa de ‘nova cultura’. Já o temos abordado, tendo em conta a figura do poliedro…por contraste com a esfera.

Citamos o que o Papa nos diz e tentaremos continuar a refletir sobre esta temática, na medida em que possamos encontrar pistas de leitura, espaços de diálogo e mesmo propostas de saída neste tempo mais centrado cada um em si mesmo do que em abertura aos outros.

«A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida. Já várias vezes convidei a fazer crescer uma cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro. É um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes, porque «o todo é superior à parte». O poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo. Isto implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspetos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes» (n. º 215).

No mesmo documento pontifício aparece a referência ao mesmo tema do poliedro já nos números 144 e 145. «O universal não deve ser o domínio homogéneo, uniforme e padronizado duma única forma cultural imperante, que perderá as cores do poliedro e ficará enfadonha»… «Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspetiva mais ampla. (...) Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza». É o poliedro, onde ao mesmo tempo que cada um é respeitado no seu valor, «o todo é mais que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas».

 

Vejamos, então, algumas das linhas-força que o Papa realça, tendo mesmo em conta outras das suas intervenções sobre isto que aqui designa por ‘nova cultura’:

* ‘Fazer crescer uma cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro’ – eis uma forma simples de denunciar muitas das capciosas influências marxistas com que nos andamos a entreter, isto é, nas lutas, por vezes, hostis e inúteis, tanto de palavras como de intenções mal resolvidas.

 

* ‘O poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças’ – pela figura cultural do poliedro podemos e devemos aprender a conviver com as diferenças das pessoas, porventura não aceitando acriticamente as suas ideias, mas nunca por nunca abjurando as pessoas, pois essas merecem-nos respeito cada um como é, mesmo nos possíveis erros, falhanços e limitações.

 

* Efetiva e afetivamente ‘de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo ‘ – esta configuração de vida faz-nos humildes e verdadeiros para connosco mesmos e uns para com os outros, pois será nesta perspetiva de intercomunhão que haveremos de deixar-nos tocar pelos dons, qualidades e carismas alheios, mais do que pela prosápia da nossa (minha) factual leitura da vida.

Ultrapassado este subjetivismo – por diversas vezes o Papa chama-lhe idolatria do eu, que leva ao isolamento e ao descarte dos outros – poderemos restaurar aquilo que Francisco realça como sendo a ‘amabilidade’:

- ‘O individualismo consumista provoca muitos abusos. Os outros tornam-se meros obstáculos para a agradável tranquilidade própria e, assim, acaba-se por tratá-los como incómodos; e a agressividade aumenta’ (n.º 222);

- ‘De vez em quando verifica-se o milagre duma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença’ (n.º 224).

Façamos, por isso, surgir, cultivemos e ousemos viver numa nova cultura da amabilidade e vendo os outros em poliedro…de respeito, de desculpa e de partilha.

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Recuperar a amabilidade...humana e cristã


Na sua última carta encíclica – ‘Fratelii tutti’ (n. os 222 a 224) – o Papa Francisco traz para à liça um termo que poder-nos-á ser muito útil refletir: a amabilidade, atendendo às circunstâncias de alguma crispação em que o coronavírus nos tem vindo a confinar, em agressividade, senão explícita ao menos latente.  

«O individualismo consumista provoca muitos abusos. Os outros tornam-se meros obstáculos para a agradável tranquilidade própria e, assim, acaba-se por tratá-los como incómodos; e a agressividade aumenta. Isto acentua-se e atinge níveis exasperantes em períodos de crise, situações catastróficas, momentos difíceis, quando aflora o espírito do «salve-se quem puder». Contudo, ainda é possível optar pelo cultivo da amabilidade; há pessoas que o conseguem, tornando-se estrelas no meio da escuridão» (n.º 222).

Inserida no sexto capítulo daquele documento pontifício – diálogo e amizade social – esta abordagem do Papa sobre a amabilidade situa-nos num contexto cultural muito específico...avesso a tal vivência.

 

= O que é  a amabilidade?

Responde a encíclica: «São Paulo designa um fruto do Espírito Santo com a palavra grega ‘chrestotes’ (Gal 5, 22), que expressa um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta. A pessoa que possui esta qualidade ajuda os outros, para que a sua existência seja mais suportável, sobretudo quando sobrecarregados com o peso dos seus problemas, urgências e angústias. É um modo de tratar os outros, que se manifesta de diferentes formas: amabilidade no trato, cuidado para não magoar com as palavras ou os gestos, tentativa de aliviar o peso dos outros. Supõe «dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam», em vez de «palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam» (n.º 223).

De facto, não vivemos numa sociedade onde se cultiva  a amabilidade, pelo contrário, antes vivemos em azedume, más falas/palavras, em aspereza e conflitualidade. Precisamos de ser educados para a amabilidade, desde a família até ao trato social e mesmo eclesial...

 

= Como implementar, hoje, a amabilidade?

Esclarece a encíclica: «A amabilidade é uma libertação da crueldade que às vezes penetra nas relações humanas, da ansiedade que não nos deixa pensar nos outros, da urgência distraída que ignora que os outros também têm direito de ser felizes. Hoje raramente se encontram tempo e energias disponíveis para se demorar a tratar bem os outros, para dizer «com licença», «desculpe», «obrigado». Contudo de vez em quando verifica-se o milagre duma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença. Este esforço, vivido dia a dia, é capaz de criar aquela convivência sadia que vence as incompreensões e evita os conflitos. O exercício da amabilidade não é um detalhe insignificante nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes» (n. º 224).

Mais uma vez o Papa Francisco traz à colação das coisas do dia-a-dia a presença de três expressões que lhe são tão queridas: com licença, desculpe e obrigado... que manifestam a amabilidade de uns para com os outros.

Amabilidade precisa-se, já!

 

António Sílvio Couto