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quarta-feira, 31 de março de 2021

Habilidades e espertezas

 


Por decisão governamental das zero horas de 6.ª feira (26 de março) até às vinte e quatro horas de 5 de abril (2.ª feira) está proibida a circulação entre concelhos. Desta forma se pretende condicionar, por ocasião das celebrações (religiosas ou sociais, económicas ou turísticas, tradicionais ou de neo-veraneio) do tempo da Páscoa, a deslocação das pessoas e com isso atalhar à não-propagação do vírus, que tem dado origem a esta pandemia.

Atendidos os casos previstos de exceção, sobretudo em razão de trabalho ou de prestação de auxílio a terceiros de forma justificada e por escrito, logo emergiram ‘soluções’ para tornear as regras gerais...Como bons portugueses, uns tantos mais espertos puseram a funcionar a sua capacidade habilidosa de subverter a ‘lei’ e com isso não cumprirem o que estava estipulado para todos. Dizem alguns dados que, até à hora estipulada para a restrição, ter-se-ão deslocado para mais de cem quilómetros da sua residência habitual, cerca de onze por cento dos portugueses... naquilo que daria quase um milhão de ‘deslocados’... Se atendermos , por outro lado, aos dados de deslocação dos portugueses por ocasião do Natal de 2020 – os mesmos cem quilómetros fora da residência habitual – pode verificar que só oito por cento o fizeram... com as consequências suportadas nos meses de janeiro e de fevereiro passados...

Nisso a que pretenderam designar de ‘confinamento a conta-gotas’ vimos nestes dados sobre os onze dias antes e depois da Páscoa como uma espécie de enxurrada quase sem-controlo e ainda roçando os laivos da provocação à cidadania, pois uns tantos acharam-se no direito de não cumprirem essas regras e disso fazem alarde ao aparecerem acintosamente nas televisões ou ao se ufanarem nas redes sociais... Daqui já se infere um aviso simples e linear: uma quarta vaga da pandemia se adensa no horizonte para o mês de maio com resultados ainda mais gravosos, à mistura com o processo de vacinação... titubeante em curso.

 = Confesso que há coisas que me confundem e baralham: haver quem se julgue mais esperto do que os outros, enquanto se apresenta – pública e notoriamente – como transgressor do mínimo respeito pelos demais. De facto, a convivência cívica é, antes de tudo, uma forma educada de ser respeitador das regras comuns de civismo, nada fazendo nem tão pouco povocando a exceção, mas a igualdade de comportamentos, pois estes ajudam a sermos corretos no querer e no agir. Ora, certas figuras – mais parecem figurões – gostam de aparecer como fora do comum, não se dando conta que podem estar a ofender a normalidade. Com efeito, os que sairam de casa para ‘gozarem as férias de páscoa’ terão assim tantos rendimentos para irem de bagagens para as praias algarvias? Os rendimentos auferidos permitem programar tão rapidamente férias, iludindo as regras de confinamento? Serão todos tão fartos de economias que suplantam o normal, fazendo-o excecional? Ainda haverá cristãos – católicos sociológicos – que trocam a vivência das coisas essenciais da fé pela transgressão mínima da legalidade?

 = Em ligação com este clima de resistência às regras da cidadania sinto alguma tristeza e mau-estar essa publicidade a ‘comida para animais’, quando, minutos antes ou depois, vemos na mesma tela, filas de pessoas a mendigarem algo para colmatar a fome pessoal e da família. Isto não lhes dá repugnância? A mim revolta-me as entranhas. Não é que os animais não mereçam o melhor (ou o possível) cuidado, mas trocar as pessoas, isso faz-me confusão e baralha-me as ideias.  Vivemos, efetivamente, numa convulsão ética de grande expressão, dando-se a possibilidade de os critérios de valoração estarem confundidos. Seria razoável que estivessem invertidos, pois bastava voltá-los ao contrário e ficariam na posição desejada como natural e normal, mas não esta forma caleidoscópica em que se encontram os valores torna-se muito difícil colocar tudo na ordem, isto é, segundo critérios onde pessoa humana seja o centro e não mais uma peça no puzzle de entretenimento...

Os episódios de esperteza e as habilidades de contornar as regras nestes dias da Páscoa, manifestam o egoísmo, a falsidade e o oportunismo com que vivem tantos dos portugueses. Que falta para os corrigir?      

 

António Sílvio Couto

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