Uma das reintroduções, após o tempo de confinamento de mais de cinquenta dias de vigência, é a de possibilitar vendas ‘ao postigo’…como uma espécie de tábua de salvação para quem vive da atividade comercial, antes de porta aberta e por estes dias ora encerrada, ora entreaberta…para conhecidos ou frequentadores mais assíduos.
Qual o
significado, então, de ‘postigo’? Isso pode ajudar-nos a perceber esta
modalidade de comércio…em tempo de pandemia e crise de valores.
‘Postigo’
significa: pequena abertura (em porta, janela, balcão de
atendimento, etc,) pela qual é possível a comunicação entre o público e os
funcionários de um estabelecimento, bilheteira, etc.; pequena porta; pequena
porta secundária em muralha ou fortificação; pequena abertura ou pequena janela
em porta grande ou janela; fresta.
Diante
desta descrição como podemos ou devemos entender a venda ao postigo? Com tantas
desconfianças e defesas quanto aos intervenientes será saudável acreditarmos
naquilo que desejam desconfinar? Onde podemos encontrar algumas reminiscências
desse ‘vender ao postigo’, que agora querem reintroduzir?
Consta
que, em tempos de alguma convulsão socio-religiosa, noutras paragens europeias,
uma vertente cristã mais rigorista quis impor a proibição de vender álcool aos
fregueses… ao que os vendedores, usando de artimanha, não abrindo totalmente a
porta faziam passar o produto desejado pelo postigo, isto é, essa brecha,
fresta ou porta pequena incluída na porta grande…
Sem se
darem conta ou talvez porque conheciam a história, os nossos governantes
permitem agora que sejam vendidas bebidas – no confinamento nem água era
permitido – ao postigo, obrigando os clientes de cafés, bares e mesmo lojas de
outros artigos a adquirirem os produtos na rua, faça-sol-ou-faça-chuva,
aglomerando a clientela e fazendo parecer que vivemos em estado de
racionamento, sob controlo das forças policiais e de segurança.
Agora
que estão a chegar as vacinas – tendo presente os vários fabricantes e
interesses envolvidos – ir-se-á agravar a discrepância entre pobres e ricos,
entre os estatais e os do privado, os do litoral e os do interior, os que têm
compadrios e os que não conseguem proteção de nuvem superior…
Sim
estamos ao postigo da desilusão, mendigando favores, que deveriam ser direitos;
reclamando da eficácia, quando todos somos cidadãos, mas – à semelhança da
revolução de George Orwell – há animais que são mais diferentes (não devia ser
iguais?) do que outros, que me movem na mesma pocilga…
Pior do
que tudo isto, é a sensação de que os vendedores ao postigo estão-nos a
enganar, pois impingem-nos produtos contrafeitos, aliciam-nos com propagandas
mal-amanhadas e servem-nos bebidas (é uma imagem) fora de prazo de validade.
Com este tempo de fechamento muita coisa caducou, sobretudo aquilo que nos
podia aliviar a dor e reconfortar a alma. Não, esta está entorpecida e carente
de algo mais do que coisas materiais: precisa de um alimento que não se compra,
mas que se cultiva diariamente. Podemos sair de casa, mas vamos andar à deriva,
até porque as lamúrias não se curam com alimento vendido ao postigo. Se já
éramos tristes, esta dificuldade não nos revigorou, antes nos enfermou de uma
tristeza de morte…a prazo.
António Sílvio Couto
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