Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 15 de março de 2021

Ao postigo…da ‘nossa’ desilusão

 


Uma das reintroduções, após o tempo de confinamento de mais de cinquenta dias de vigência, é a de possibilitar vendas ‘ao postigo’…como uma espécie de tábua de salvação para quem vive da atividade comercial, antes de porta aberta e por estes dias ora encerrada, ora entreaberta…para conhecidos ou frequentadores mais assíduos.

Qual o significado, então, de ‘postigo’? Isso pode ajudar-nos a perceber esta modalidade de comércio…em tempo de pandemia e crise de valores.

‘Postigo’ significa: pequena abertura (em porta, janela, balcão de atendimento, etc,) pela qual é possível a comunicação entre o público e os funcionários de um estabelecimento, bilheteira, etc.; pequena porta; pequena porta secundária em muralha ou fortificação; pequena abertura ou pequena janela em porta grande ou janela; fresta.

Diante desta descrição como podemos ou devemos entender a venda ao postigo? Com tantas desconfianças e defesas quanto aos intervenientes será saudável acreditarmos naquilo que desejam desconfinar? Onde podemos encontrar algumas reminiscências desse ‘vender ao postigo’, que agora querem reintroduzir?

Consta que, em tempos de alguma convulsão socio-religiosa, noutras paragens europeias, uma vertente cristã mais rigorista quis impor a proibição de vender álcool aos fregueses… ao que os vendedores, usando de artimanha, não abrindo totalmente a porta faziam passar o produto desejado pelo postigo, isto é, essa brecha, fresta ou porta pequena incluída na porta grande…

Sem se darem conta ou talvez porque conheciam a história, os nossos governantes permitem agora que sejam vendidas bebidas – no confinamento nem água era permitido – ao postigo, obrigando os clientes de cafés, bares e mesmo lojas de outros artigos a adquirirem os produtos na rua, faça-sol-ou-faça-chuva, aglomerando a clientela e fazendo parecer que vivemos em estado de racionamento, sob controlo das forças policiais e de segurança.

 = Decorrido um ano de pandemia do coronavírus sars-cov-2 continuamos a tatear soluções, a regatear constrangimentos e a não-assumirmos que tudo isto veio introduzir uma nova e diferente forma de estar na vida e de uns com os outros: cada interlocutor continuará a ser um potencial infetador e cada um de nós um infetado não-assumido ou não declarado ainda… como se dizia, no início, com os resultados dos testes: ‘não-detetável’… As regras higiene-sanitárias vão prosseguir por muito e longo tempo. Os cuidados primários não poderão ser minimamente descurados, sabe-se lá por quantos meses ou anos.

Agora que estão a chegar as vacinas – tendo presente os vários fabricantes e interesses envolvidos – ir-se-á agravar a discrepância entre pobres e ricos, entre os estatais e os do privado, os do litoral e os do interior, os que têm compadrios e os que não conseguem proteção de nuvem superior…

Sim estamos ao postigo da desilusão, mendigando favores, que deveriam ser direitos; reclamando da eficácia, quando todos somos cidadãos, mas – à semelhança da revolução de George Orwell – há animais que são mais diferentes (não devia ser iguais?) do que outros, que me movem na mesma pocilga…

 = Depois do boom do turismo com toda a panóplia de atrativos e de resultados até final de 2019, vemos que restaurantes e cafés, alojamentos e hotéis, viagens e convívios, para além da seleção do que valia alguma coisa, vemos a catadupa de desempregados, a turba de subsidiodependentes pendurados nas malhas de quem governa, o crescimento de tantos que não aprenderam na crise de 2011-2015 a não esticar as possibilidades…

Pior do que tudo isto, é a sensação de que os vendedores ao postigo estão-nos a enganar, pois impingem-nos produtos contrafeitos, aliciam-nos com propagandas mal-amanhadas e servem-nos bebidas (é uma imagem) fora de prazo de validade. Com este tempo de fechamento muita coisa caducou, sobretudo aquilo que nos podia aliviar a dor e reconfortar a alma. Não, esta está entorpecida e carente de algo mais do que coisas materiais: precisa de um alimento que não se compra, mas que se cultiva diariamente. Podemos sair de casa, mas vamos andar à deriva, até porque as lamúrias não se curam com alimento vendido ao postigo. Se já éramos tristes, esta dificuldade não nos revigorou, antes nos enfermou de uma tristeza de morte…a prazo.     

 

António Sílvio Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário