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segunda-feira, 1 de março de 2021

Enésima ‘praga do Egito’

 


Com alguma regularidade se ouve a alusão às ‘pragas do Egito’ para falar de algo complicado, de difícil interpretação e mesmo de estar sob suspeita de quem é a culpa ou se será castigo.

Muitos e diversos factos e acontecimentos foram acrescentados às ‘dez pragas do Egito’. Como não podia deixar de ser também esta pandemia do ‘coronavírus sars-cov-2’ – ‘covid19’ entra na já longa lista de ‘pragas’ continuadoras das ‘dez do Egito’.

Antes de mais façamos uma apresentação das ‘dez pragas do Egito’ suas causas e implicações e quais serão os sinais de leitura religiosa subjacentes.

 = As dez pragas: castigo ou modo de Deus se revelar?

Na Sagrada Escritura encontramos as pragas no livro do Êxodo capítulos 7 a 12, como sinais de Deus para a libertação do seu povo. Segundo alguns autores as ‘pragas’ podem ser um encadeado de fenómenos naturais que foram entendidos pelos israelitas como formas de Deus se revelar, ou dito por outras palavras e servindo-nos de uma linguagem usada no Concílio Vaticano II, os ‘sinais dos tempos’ (Constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ sobre a Igreja no mundo atual, n.º 4) em contínua atualização.

Vejamos, então, as ‘pragas’, seu encadeado e, possível, julgamento dos deuses egípcios:

1) águas do Nilo convertem-se em sangue (cf. Ex 7,14-25) – será resultado de um fenómeno da mudança de clima e do aumento de temperatura em que se deu uma proliferação de algas e toxinas, avermelhando o rio; seria uma forma de colocar em causa o deus ‘hápi’, aquele que protegia o Nilo, como sinal de vida;

2) rãs cobrem a terra (cf. Ex 7,26 - 8,11) – em resultado da falta de oxigenação das águas do grande rio, as rãs subiram às margens e espalharam-se pela terra; seria uma forma de questionar a deusa ‘heqet’, símbolo da fertilidade;

3) piolhos (ou mosquitos) atormentam homens e animais (cf. Ex 8, 12-15) – em resultado da possível seca e das más condições das águas do rio e com as insuficientes condições de higiene surgem os piolhos e os mosquitos; seria uma forma de denunciar a incapacidade do deus ‘tot’, o inventor da escrita;

4) moscas escurecem o ar (cf. Ex 8, 16-28) – estas surgem em razão da morte das rãs que as comeriam, tendo ainda a ver com a falta de higiene devida a escassez de água do Nilo, que tinham sido contaminada; seria este fenómeno uma espécie de humilhação do deus ‘ptah’, criador do universo, aqui incapaz de suster a estabilidade:

5) morte dos animais (cf. Ex  9, 1-7) – dada a quantidade de mosquitos e moscas, bem como as alterações das águas do Nilo, os animais começaram a ficar doentes, sendo as primeiras vítimas do complexo estado infetocontagioso; vários deuses são questionados, pois não protegem aqueles a quem lhes seria devido: ‘hator’, deusa da beleza e da felicidade e ‘nut’, deusa-céu, criadora do universo;

6) pústulas cobrem homens e animais (cf. Ex 9,8-12) – essas erupções cutâneas poderiam ser resultado das infeções transmitidas pelos piolhos e as moscas; era colocada em causa ‘nete’, deusa da caça e da guerra;

7) chuva de granizo e fogo (cf. Ex 9,13-35) – as plantações são destruídas, em resultado da erupção do vulcão Thera (ilha no mar Egeu – de que há notícias em meados do segundo milénio antes de Cristo), misturando-se fortes chuvas com a lava incandescente; os deuses que controlam os elementos da natureza (água – ‘íris’ e fogo – ‘osíris’) são postos em causa;

8) gafanhotos (cf. Ex 10,1-20) – em razão das alterações climáticas (chuva de granizo e erupção vulcânica), com o solo húmido criou-se um ambiente propício para aparecerem milhares de gafanhotos, que atacaram as culturas; o deus do ar – ‘xu’ e o deus-crocodilo, protetor do Nilo – ‘sobek’ são questionados por não salvaguardem as plantações;

9) as trevas (cf. Ex 10, 21-29) – uma tempestade de areia ou as cinzas da erupção vulcânica, que encobriram o sol, podem explicar as densas e palpáveis trevas de três dias; o deus principal do Egito – ‘Rá – deus sol’ é colocado em causa e à prova;

10) morte dos primogénitos (cf. Ex 12,29-32) – seguindo uma tradição os filhos primogénitos eram os primeiros a comer, quando a comida era escassa, estes terão ingeridos alimentos contaminados com fezes de gafanhotos e morreram durante o sono; todos os deuses claudicaram, dado que não conseguiram livrá-los como ‘filhos dos deuses’, na designação dos egípcios sobre si mesmos.

Que lições podemos colher destas dez pragas? É uma forma de manifestar a grandeza e o poder do Deus de Israel, que foi derrotando e destruindo os deuses em quem os egípcios punham a sua confiança. Moisés e Aarão, como servos do Deus vivo, provam que Ele vence e está com o seu povo amado.

 = E, hoje, nós?

Quando algo se torna mais complexo de entender ou algum fenómeno da natureza questiona os entendidos (cientistas ou crentes) emerge a possibilidade de ser uma ‘praga do Egito’, nesse caso a 11.ª ou mais…As alterações climatéricas, em especial a poluição, os terramotos ou os tsunamis, questões relacionadas com a vida… poderão ser, hoje, sinais de ‘pragas do Egito’ atualizadas…

Que dizer ainda desta pandemia que tem varrido a Humanidade. Não será ela uma versão muito refinada do espírito das ‘pragas do Egito’? Os nossos deuses não estarão a ser submetidos à prova nesta enésima praga?

Para quem tenha um mínimo de fé, algo tem de nos questionar, inquirindo o nosso Deus…

           

António Sílvio Couto

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