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terça-feira, 16 de março de 2021

Direito à vida sem dever de viver?

 

Num hábil trocadilho o tribunal constitucional decidiu (a 15 de março) por sete votos contra e cinco a favor chumbar a lei que pretendia despenalizar a morte medicamente assistida, isto é, a eutanásia.

Ato sequente a esta decisão, o presidente da república vetou a dita lei e fê-la voltar ao posto de saída, o parlamento, que agora terá de expurgar as inconstitucionalidades detetadas…

Ora, na explicitação da votação do tribunal constitucional (TC), o presidente do dito referiu que “o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”. Deste modo o TC considera que “a conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico, que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe, legitima que a tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento possa ser resolvida por via de opções político-legislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa”.

= Por momentos caí na tentação de ir vir o que dizia o tal acórdão do TC. São dezenas e dezenas de páginas, milhares de palavras numa leitura só tolerável para quem tenha de usar tais argumentações ou de se ‘entreter’ com posições nitidamente ideológicas, que não simplesmente políticas ou racionais.

Numa avaliação algo apreensiva ficamos a vislumbrar que os tais juízes do TC podem vir a considerar possível uma lei que regulamente a morte assistida em vista de vir a ser constitucional.
Talvez, se forem explicados e justificados certos conceitos – esses mesmos que fez com que o presidente da república tivesse enviado o assunto ao TC – a lei poderá passar. Os conceitos são: ‘sofrimento intolerável’ e ainda ‘lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico’.
 

Desde logo onde está o aparelho de medida do ‘sofrimento intolerável’? Haverá um mecanismo capaz de aferir até onde vai e daí não passa a capacidade de resistência ao sofrimento?

As dúvidas dos juízes continuam ainda perante o tal conceito de ‘gravidade extrema’ e como é que esta pode ser aferida pelo pretenso ‘consenso científico’…

 = Como alguém dizia ao apreciar esta votação do TC, o tema da eutanásia joga-se em casos concretos e para resolver situações em presença. Não será que, perante as deambulações da lei, quando esta entrar em vigor – sim, à semelhança do aborto, as forças proponentes só descansam quando atingirem os famigerados objetivos – já não será solução para os casos que fizeram gastar tanto tempo, exacerbar tantas posições e, sobretudo, azedar mentalidades mais ou menos de pendor materialista e algo dialético… Como fato talhado à medida, a lei da eutanásia tem tudo para se tornar alvo de risota geral, pois muitos dos velhos já estarão defuntos e tantos dos ‘doentes’ necessitados de serem eutanasiados já serão falecidos, não ‘gozando’ da decisão que outros lhes facultariam.

 = De entre os argumentos do TC há um que me cria engulhos: ‘o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância’. Qual o alcance desta provocação – não encontro outra palavra – para definir esta subtil distinção, entre ‘direito à vida’ – que a tal constituição consagra no artigo 24 – e a não transfiguração ‘num dever de viver’? Não está aqui enunciado uma pretensão de legalizar a eutanásia, sugerida pelo próprio TC, que deveria ser isento e não tão ideológico? O mais grave é a referência a que isso se possa dar ‘em qualquer circunstância’, isto é, pode haver, na subtileza do legislador, situações e casos onde o direito é subjugado ao ‘dever’ de reduzir o tempo de viver.

Já percebemos que o lóbi pró-morte é cada vez mais forte. Não me refiro às agências funerárias nem aos apetrechos que lhe estão adstritos, como a proliferação de crematórios e outros produtos comerciais. Tenho na minha mente que um número crescente de pessoas joga a sua vida pelos critérios de morte. Foi assim na legislação do aborto, passou pelos critérios de conduta em matéria de casamento e vai a passos largos nisto da eutanásia. Queriam constituir-se em donos da vida e eis que um sopro de pandemia pôs a nu as pretensões: não somos donos da vida, mas meros administradores… Se querem morrem, tenham coragem de optar pela morte, mas não levem todos na enxurrada, sobretudo os mais frágeis… respeitem-nos, ainda! 

 

António Sílvio Couto

 

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