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sábado, 27 de março de 2021

Abandono

 


Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?

Esta frase – grito, oração, súplica ou pedido – perpassa a liturgia do Domingo de Ramos na paixão do Senhor.

Extraída do Salmo 22,2 esta citação aparece-nos na leitura do Evangelho segundo São Marcos 15,34.

Seguindo a língua aramaica – talvez a expressão linguística materna de Jesus: Eloí, Eloí, lemá sabachtáni? – encontrámos nas reações a esta súplica algo que nos pode confundir: Jesus clama pelo Senhor seu Deus (Elohim) e os que O escutam julgam que Ele está a chamar por Elias… uma cacofonia que seria jocosa, se o momento não fosse grave e sério… Até na cruz – vivência suprema de Jesus – não O compreenderam nem na linguagem e tão pouco na sua expressão orante…intemporal e dos nossos dias. 

 = Perante as várias situações – pessoais, familiares, sociais, eclesiais ou mesmo culturais – de ‘abandono’ vamos encetar uma breve reflexão sobre este tema… naquilo que ele tem de psicológico, de físico, de espiritual, de existencial, tanto na dimensão percebida quanto nos aspetos mais recônditos e nem sempre percetíveis ou verbalizáveis.

Neste tempo de pandemia tornou-se algo atroz ver a referência mais incisiva aos ‘animais abandonados’ do que às pessoas em abandono. Neste tempo pandémico emergiram tantas situações de pessoas mais velhas votadas ao abandono, tanto de familiares como das estruturas do Estado – autoapelidado – de ‘social, em que os mais frágeis e fragilizados se tornaram quase um empecilho para o designado ‘serviço nacional de saúde’. Neste tempo de pandemia surgiram questões, problemas e casos onde o abandono capcioso estrutural deixou de ser escondido nem os atropelos puderam mais ser encobertos.

Dá a impressão que abandono rima com ‘sem dono’, isto é, quase ninguém assume a sua responsabilidade, num primeiro aspeto tendo em conta a dimensão pessoal, pois, embora não sejamos controladores uns dos outros, podemos e devemos ser cuidadores atentos, próximos e vigilantes. Noutra instância de relacionamento poderemos considerar o potencial abandono numa perspetiva mais egoísta, na medida em que saberemos mais de quem está longe do que do nosso vizinho…até da porta do andar ao lado… Este ‘sem dono’ parece crescer, nisso a que agora chamam ‘distância sanitária’, pois o outro é (ou pode ser) um potencial contagiado e, por isso, contagiador do vírus para comigo…Vai levar bastante tempo a recuperarmos a confiança mútua… até não deixarmos o outro abandonado à sua sorte!

 = Confesso que em meados de janeiro passado tive a sensação de um abandono trucidante: parece que Deus nos tinha abandonado à nossa irremediável sorte… as filas de ambulâncias às portas das urgências – esse era o facto, gerador de pânico e medo – 303 mortos num só dia e ainda com dez mil infetados no penúltimo dia de janeiro… Por onde andava Deus? Como líamos estes dados dramáticos? Quem nos guiava na sua interpretação? Ainda haveria capacidade de se interrogar ou só de se defender?

Um tanto à deriva ou sem nexo de causalidade, os responsáveis eclesiais antecipavam-se às autoridades a fecharem os templos e a confinar os crentes às celebrações em rede virtual. Quase nos ajudávamos a gerir o abandono da prática da fé e da presença à eucaristia dominical. Por diversas formas era percetível que se palpava o abandono por medo, mas também por negligência e até por cobardia. Casos houve em que os funerais eram feitos sem acompanhamento religioso, pois os clérigos hibernaram senão na teoria ao menos na prática…pelo refúgio e salvaguarda da pele.

Tornou-se visível o abandono para com quem estava de luto. De formas algo subtis as famílias eram deixadas a um abandono que se vai pagar caro, tanto na celebração da fé (quem sufragará os seus defuntos se não houve coragem de estar na hora do funeral) como na vivência da esperança (deixada à deriva e sem conteúdo), pois a caridade tornou-se mais de esmolas para comer do que como virtude em ato contínuo de compromisso cristão.

Agora que celebramos o mistério pascal da paixão-morte-ressurreição de Jesus atendamos ao Seu grito de abandono, na Cruz e vejamos os abandonados que precisam da nossa (comunitária) atenção!       

 

António Sílvio Couto

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