‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?’
Esta
frase – grito, oração, súplica ou pedido – perpassa a liturgia do Domingo de
Ramos na paixão do Senhor.
Extraída
do Salmo 22,2 esta citação aparece-nos na leitura do Evangelho segundo São Marcos
15,34.
Seguindo
a língua aramaica – talvez a expressão linguística materna de Jesus: Eloí,
Eloí, lemá sabachtáni? – encontrámos nas reações a esta súplica algo que nos
pode confundir: Jesus clama pelo Senhor seu Deus (Elohim) e os que O escutam
julgam que Ele está a chamar por Elias… uma cacofonia que seria jocosa, se o
momento não fosse grave e sério… Até na cruz – vivência suprema de Jesus – não
O compreenderam nem na linguagem e tão pouco na sua expressão orante…intemporal
e dos nossos dias.
Neste
tempo de pandemia tornou-se algo atroz ver a referência mais incisiva aos
‘animais abandonados’ do que às pessoas em abandono. Neste tempo pandémico
emergiram tantas situações de pessoas mais velhas votadas ao abandono, tanto de
familiares como das estruturas do Estado – autoapelidado – de ‘social, em que
os mais frágeis e fragilizados se tornaram quase um empecilho para o designado
‘serviço nacional de saúde’. Neste tempo de pandemia surgiram questões,
problemas e casos onde o abandono capcioso estrutural deixou de ser escondido
nem os atropelos puderam mais ser encobertos.
Dá a
impressão que abandono rima com ‘sem dono’, isto é, quase ninguém assume a sua responsabilidade,
num primeiro aspeto tendo em conta a dimensão pessoal, pois, embora não sejamos
controladores uns dos outros, podemos e devemos ser cuidadores atentos,
próximos e vigilantes. Noutra instância de relacionamento poderemos considerar
o potencial abandono numa perspetiva mais egoísta, na medida em que saberemos
mais de quem está longe do que do nosso vizinho…até da porta do andar ao lado…
Este ‘sem dono’ parece crescer, nisso a que agora chamam ‘distância sanitária’,
pois o outro é (ou pode ser) um potencial contagiado e, por isso, contagiador
do vírus para comigo…Vai levar bastante tempo a recuperarmos a confiança mútua…
até não deixarmos o outro abandonado à sua sorte!
Um tanto
à deriva ou sem nexo de causalidade, os responsáveis eclesiais antecipavam-se
às autoridades a fecharem os templos e a confinar os crentes às celebrações em
rede virtual. Quase nos ajudávamos a gerir o abandono da prática da fé e da
presença à eucaristia dominical. Por diversas formas era percetível que se
palpava o abandono por medo, mas também por negligência e até por cobardia.
Casos houve em que os funerais eram feitos sem acompanhamento religioso, pois
os clérigos hibernaram senão na teoria ao menos na prática…pelo refúgio e
salvaguarda da pele.
Tornou-se
visível o abandono para com quem estava de luto. De formas algo subtis as
famílias eram deixadas a um abandono que se vai pagar caro, tanto na celebração
da fé (quem sufragará os seus defuntos se não houve coragem de estar na hora do
funeral) como na vivência da esperança (deixada à deriva e sem conteúdo), pois
a caridade tornou-se mais de esmolas para comer do que como virtude em ato
contínuo de compromisso cristão.
Agora
que celebramos o mistério pascal da paixão-morte-ressurreição de Jesus
atendamos ao Seu grito de abandono, na Cruz e vejamos os abandonados que
precisam da nossa (comunitária) atenção!
António Sílvio Couto
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