Dir-se-á que as coisas se adaptam às necessidades ou que procuram ter em conta os desafios, propondo novos produtos e enfrentando diferentes respostas.
O tema
que agora trago é algo funesto e talvez tenebroso, mas temos de ter capacidade
de refletir sobre assuntos que não nos sejam tão agradáveis quanto
desejaríamos.
Por
estes dias fui confrontado com uma nova forma de proposta visual de caixão:
dado que se foi tornando difícil, senão impossível, de abrir a urna na fase
final do enterro, agora ‘inventaram’ um modelo em que se vê somente a parte da
face, mantendo ocultação sobre o resto do cadáver…
Esta
‘inovação’ agora difundida torna-se mais importante dadas as condicionantes
deste tempo de ‘covid’. Se bem que noutros locais e, segundo as circunstâncias,
como o transporte de falecidos por via aérea, tal já era praticado. As novas
vivências decorrentes da pandemia, como que obrigam a atenuar a capacidade de
luto e a sua expressão em maré de ocorrência de casos fora-do-normal.
Dada a
complexidade dos tempos mais recentes, onde este tema do post-mortem tem andado,
na minha perspetiva, a ser um tanto mal tratado e em que certas questões mais
do que resolvidas têm sido empurradas para fora do nosso ângulo de visão/compreensão,
deixamos breves aspetos, entretanto, aflorados.
Se
compararmos os números veremos a aberração daquilo que aconteceu no último ano
– março de 2020 a março de 2021 – morreram, em Portugal, afetados (real ou
simbolicamente) pelo ‘covid-19’: 16.617 (à data em que escrevo). Se compararmos
com dados de outras circunstâncias, veremos como tudo isto é aterrador. Por
exemplo, a guerra colonial portuguesa – de 15 de março de 1961 a 24 de abril de
1974 – deixou 8.831 militares mortos, em combate, vítimas de acidentes ou por
doença… para além dos efeitos colaterais em feridos e traumatizados de guerra. Por
seu turno, os mortos em acidentes de viação, na última década, no nosso país, totalizaram:
6.880 em resultado direto da sinistralidade…
Atendendo
a estes dois esporádicos dados, teremos de considerar que a morte por
‘covid-19’ deixou um manto apocalítico atroz e com consequências quase
inexplicáveis. Talvez não haja ninguém que não tenha tido alguém falecido –
familiar, amigo ou simples conhecido – por esta doença. Quais os resultados
práticos para a nossa vida? Já nos apercebemos da fragilidade em que nos
movemos e existimos?
Com
tanta velocidade com que se difundiu este vírus deixou-nos a todos algo
aparvalhados, senão intelectual ao menos emocionalmente ou até nas duas
dimensões. Depois da estupefação, veio o medo e deste surgir a incapacidade de
gerir novos factos e piores situações. Com o devido respeito poderemos
considerar que as pilhas de mortos deixaram pouca normalidade para chorar quem
partia, tal era a avalanche de funerais – chegou a haver cremações com duas
semanas de atraso – acrescentando uma certa paranoia higienista que foi
assoberbando, pela negativa, tudo e todos. Quanto luto que ficou por fazer.
Quantas lágrimas encalhadas. Quantas despedidas nunca realizadas…E nem a
subtileza da fé era lenitivo para os mais crentes ou emocionais.
Em todo
este contexto humano e social fui vendo pessoas a quebrarem a sua arrogância
diante do assalto do vírus e isso ajudou-me a perceber que a melhor forma de
sermos mais humanos é a de passarmos pelo crivo da dor e do sofrimento. Mesmo
que espreitando para o caixão pela vitrina a descoberto, continuo a considerar
que nos falta um razoável percurso para estarmos mais atentos às fragilidades
alheias e com isso podermos ser melhor compreendidos nas nossas.
Há
coisas que só a experiência de vida nos ensina e o ‘covid-19’ tem sido uma boa escola
de humanismo. Assim nos deixemos educar!
António Sílvio Couto
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