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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

‘Dizer tudo’ – direito sem ponderação?

 Temos vindo a assistir a um exercício desabrido de cada um dizer - falando ou por escrito – o que lhe apetece, por vezes, sem medir nos termos e tão pouco na forma. Esta tendência andava pela populaça quase-anónima, mas agora também as cúpulas entraram na onda e deixam sair sem filtro o que talvez estivesse no pensamento ou andasse pelos comentários dos apaniguados…

Qualquer dia já só falta voltar ao desafio dos duelos para limpar a honra ou de ser criada uma polícia de costumes para aferir da legitimidade em proferir (averiguar, classificar e julgar) impropérios e onde se verifique qual o castigo para os infratores, com lesados e ofensores…

 1. As ditas redes sociais vieram trazer à luz do dia tantos desses macabros desejos de falar de tudo e de todos, maldizendo e conjugando a indisfarçável vontade tão lusitana ‘de enterrar vivos e desenterrar mortos’. Ai de quem caía sob a alçada das ‘redes sociais’, terá um longo e penoso caminho para se reabilitar, mesmo que seja tudo mentira e ninguém consiga comprovar seja o que for. Com que facilidade se levantam ‘famas-e-mentiras’, normalmente depreciando de quem se fala. Com que facilidade as pessoas entram em desgraça, só porque alguém, querendo-lhe menos bem ou até mal, se lembra de algo que a possa prejudicar, ofender ou difamar. E anteriormente o visado era dos últimos a saber, agora dá a impressão que querem que seja o primeiro, mesmo para o deitar mais abaixo do que seria expetável.

 2. Foi com surpresa – ou talvez não – que ouvimos de um responsável investido em poder e autoridade a referir-se a alguns dos seus opositores: ‘quando tentam guinchar os queques ficam ridículos’! Será admissível este tipo de conversa numa entrevista, mesmo que possa ser usada à mesa do café? Quem isso afirma está ciente do alcance de tal frase ou quis dar a entender que, em matéria de piadas, não tem muita habilidade? Como se poderá elevar o discurso, quando se não teme que possa ofender quem ouve ou quem discorde? Com estas e outras tiradas não andaremos a crispar mais a vida pública e política, já de per si pouco creditada?

Se fosse de um humorista aquela frase ainda seria admissível – e mesmo assim necessitaria de capacidade encaixe dos visados – mas vindo de quem veio, talvez possa denotar algum exagero na forma e, sobretudo, no conteúdo vazio e sobranceiro do exercício do poder…absoluto. Isto pode trazer dissabores na hora da avaliação final.

 3. Voltemos à democratização da maledicência, pois esta cria mais avarias do que as frases de alguém mal dormido ou cheio de reuniões prolongadas. O pretenso direito de ‘dizer o que penso’ deveria ser caldeado com o salutar princípio de ‘pensar bem o que digo’, pois o meu hipotético direito colide com os direitos dos outros e coloca-me obrigações ético/morais e de cidadania.  Não podemos considerar benéfico que, numa sociedade com valores e em respeito pelos outros, possa haver quem diga sem responsabilidade seja o que for sobre os demais.  De outra forma entraremos num descalabro de ilicitudes e sob a alçada de inconsequentes mentais, intelectuais e sociais.

 4. Numa espécie de voyeurismo noticioso vemos proliferar gravações, imagens, comentários e tanta outra coisa que vai servindo para criar ‘casos’, denúncias, problemas ou situações que chegam aos canais televisivos, aos jornais e às rádios. Por vezes certos noticiários são um desfilar de ‘fontes de informação’ duvidosa e suspeita, pois que alimentados por pseudoinformadores senão mesmo ressabiados competidores. Assim se vai cultivando esta desresponsabilização da tarefa de jornalista, passando a ser mais de jornaleiro, isto é, de vendedor de tiradas – muitas delas em bolha – não confirmadas, mas que entretêm quem vê, escuta ou lê.

Já pouco falta que nos darmos por contentes se escaparmos a esta onda de ‘notícias’ plantadas por quem nos possa desejar mal ou que descontextualize algo que possamos dizer ou parecer fazer. Precisamos, urgentemente, de encontrar meios para suster esta vaga de maledicência favorecida…     

 

António Sílvio Couto      

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