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segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Concursos enganosos de culinária

 

Parece que não há canal de televisão que se preze que não inclua na sua programação algo que tenha a ver com culinária – essa arte de bem cozinhar com engenho, argúcia e astúcia. Seja qual for a hora sempre surge no écran alguma coisa que possa entreter, divertir e, porque não, ensinar.
Se isto era já recorrente, torna-se significativo que surjam, sobretudo, nos programas de concurso, as mais díspares profissões em confronto, como se a capacidade de se desenrascar na cozinha seja mais do que para quem disso faz atividade profissional.

1. O que leva estudantes ou padeiros, desempregados ou gestores de património, agente imobiliário ou gerente de loja, doméstica ou criador de conteúdos, educadora de infância ou bailarina…a entrarem num concurso desta natureza? O que leva a exporem-se, sendo apreciados, criticados e excluídos, por aquilo que tentaram fazer o melhor que conseguiam? Pretendem mostrar o que sabem fazer (cozinhar) ou correm o risco de serem cilindrados pelo insucesso? Querem mostrar as suas habilidades culinárias ou desejam mudar de ramo de atividade, para algo que lhes dê mais prazer do que trabalhar? Quem julga – nalguns casos figuras de sucesso no mundo da restauração – não estará a expor a sua profissão à apreciação de outros que não quiseram entrar naquele ‘jogo’? Os juízos sobre os cozinhados podem suscitar lembranças para os seus restaurantes e modos de vida?

2. A ver pela anuência a este tipo de concursos parece que estamos perante uma espécie de dilema: ou há muito talento encoberto ou algo leva a sair do anonimato para uma exposição tão pública. Apesar de quaisquer outras interpretações, dá a impressão que se tem vindo a gerar uma tendência de querer aparecer, seja qual for a questão e a vertente da comida leva a palma a outros campos e setores. Os diferentes ‘concursos’ dão a impressão que tentaram cativar público para os canais difusores, mesmo que isso possa tornar-se fastidioso, pois quase todos exploram o mesmo formato.

Ouvi dizer que as ‘comidas’ levadas a concurso só servem para fazer vista, pois, quando precisam – os concorrentes e os jurados – de se alimentarem recorrem a outros que cozinham coisa que se coma… A ser verdade estaremos, mais uma vez, diante de criadores televisivos de patranhas para bacoco ver!

3. Agora que a luta pela sobrevivência está mais explicita – veja-se a enfâse dada ao cabaz de bens essenciais sempre a aumentar nos custos – estes programas alusivos aos temas de culinária, podem servir de lenitivo no ensino sobre o modo de confecionar a comida, com as melhores receitas e mesmo a forma de aproveitar o mínimo para tirar o máximo, sobretudo a baixo gasto… Está na hora de deixarmos de andar a fazer-de-conta que somos ricos, quando não passamos de uns pelintras que nem se assumem, quando precisam de ajuda. Com efeito, urge saber como poupar – nisto da comida, mais do que nunca – na medida em que certos desperdícios, para além de não serem compreensíveis, são ofensivos de quem passa dificuldades e, se levados a sério, podem ser considerados ‘pecados’ contra quem passa fome ou não tem o suficiente para se alimentar.

4. Ora, estes programas de culinária mais parecem incentivos ao novo-riquismo do que à assunção da nossa triste e concreta realidade. Para além da publicidade a empresas e produtos, pouco mais ficará do que a sensação de que desejamos nivelar-nos pelos países ricos – veja-se a importação de programas de outros países mais favorecidos e descontextualizados – em vez de sermos o que somos: os mais pobres da Europa, onde meio milhão de pessoas se socorre de ajudas habituais ou ocasionais para equilibrar a alimentação pessoal e familiar. Com este panorama de fundo, seria mais correto ensinar a aproveitar o que não se gastou numa refeição em ordem a não deitar fora nada ou o menos possível do que fazermos crer que temos posses capazes de comprar aqueles produtos desfilados nos concursos.

5. Para além do engano, aqueles programas pouco têm de culinária, pois mais parecem um desfile de vaidades em maré sucesso, coisa que não acontece por estes dias nem a curto prazo. Haja verdade, sempre!



António Sílvio Couto

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