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quinta-feira, 22 de abril de 2021

Venderam (ainda mais) o futebol


 Foi um furacão que percorreu a Europa do futebol em breves dias: pela noite de domingo, 18 de abril, surgiu a notícia de que doze clubes endinheirados do continente europeu tinham lançado a autodesignada ‘superliga europeia’. Nos ‘fundadores’ apareceram seis clubes ingleses, três espanhóis e outros tantos italianos, ficando de fora emblemas alemães e franceses, mas também holandeses, belgas, polacos e, claro, portugueses.

Menos de quarenta e oito horas decorridas o projeto colapsou...com estrondo, muita contestação e algum bom senso.  Uns após outros, ingleses e italianos e por último espanhóis, foram deixando cair a pretensão de fazer dos ricos do futebol mais enriquecidos e dos pobres cada vez mais encalhados, excluídos ou postos de parte... no dinheiro como na competição.

A propósito desta questão algo simbólico-paradigmática do mundo do desporto e do futebol em particular, ouso apresentar questões que se podem concatenar nesta reflexão:

1. Neo-esclavagismo. Embora aprecie o futebol como arte e entretenimento desportivo, considero da mais asquerosa fundamentação que se compre-e-venda homens para executar este jogo. Da mesma forma como agora condenamos – e muito bem – toda a forma de escravatura perpetrada contra povos indígenas de África e das Américas, não podemos silenciar que se faça negócio com as habilidades – por sinal com intérpertes da mesma tez desses de antanho – de uns tantos para serem mais-valia de uns poucos...mercadores a soldo de quem pague melhor ou que rendam mais. Lá por terem habilidade nos pés não podem ser tratados como mercadoria e como quase não-pessoas...

 2. Tempo gasto. Não deixa de ser revelador do estado cultural do país a quantidade de meios gastos pela comunicação social a discutir questiúnculas desportivas, mas em especial na área do futebol. Temos três jornais desportivos diários com mais de um milhão de leitores quotidianos. Por vezes há, pelo menos cinco ou seis canais – particularmente em sistema pago – que gastam o horário nobre (das 21 às 24 horas) a discutirem coisas, artefatos ou intrigas dos maiores clubes...em disputas, onde roça tanta malcriadez, a ofensa e mesmo o que há de mais subterrâneo do nosso mundo....

 3. Linguagem degradante. Agora que não há público nos estádios ouvem-se os mais diversos impropérios por parte dos diferentes intervenientes, desde os jogadores, passando pelos treinadores (e adjuntos), com outros dirigentes à mistura. Quantas vezes se ouvem vernáculos – dir-se-ia antes palavrões e calões de baixa educação – e insultos à mãe dos outros e até às acusações ao progenitor... Em certas ocasiões emergiram expressões de teor racista – esquisito é serem sempre da mesma tez e não caucasianos a serem ultrajados – com lampejos de manipulação bem urdida, quando interessa disfarçar os insucessos... Há questões que dizem não deverem passar do âmbito político para o campo desportivo, mas torna-se indisfarçável não perceber isso sempre... que se perde ou não se verificam conquistas e sucessos.

 4. Futebol – ópio do povo, hoje. Não tivesse sido o estado de exceção concedido ao futebol – sobretudo televisionado – e as etapas de confinamento e de emergência ter-se-iam tornado barris de explosão social. No entanto, tornou-se confrangedor o ambiente dos estádios vazios e nem a subtileza de músicas de fundo, imitando os ‘urros’ – o termo é duro e pode ser ofensivo – dos adeptos e de adversários colmatou a frieza dos espaços. Será que isto é profético daquilo que advirá a curto prazo? Talvez sim, na medida em que hoje também visitamos os teatros romanos – com belíssimos e amplos anfiteatros – em ruínas e nos questionámos sobre o verdadeiro sentido daqueles emblemáricos lugares. Da mesma forma nos acusarão, daqui a séculos, de sermos incapazes de denunciar aquilo em que estávamos envolvidos e talvez enleados de manipulação.

 5. O futebol sempre esteve à venda, só que o preço que agora pagamos é mais cultural do que económico, embora nos digam que é mais este do que, verdadeiramente, aquele! ‘Pão-e-jogos’, hoje como ontem...               

 

António Sílvio Couto

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