Foi
um furacão que percorreu a Europa do futebol em breves dias: pela noite de
domingo, 18 de abril, surgiu a notícia de que doze clubes endinheirados do
continente europeu tinham lançado a autodesignada ‘superliga europeia’. Nos
‘fundadores’ apareceram seis clubes ingleses, três espanhóis e outros tantos
italianos, ficando de fora emblemas alemães e franceses, mas também holandeses,
belgas, polacos e, claro, portugueses.
Menos
de quarenta e oito horas decorridas o projeto colapsou...com estrondo, muita
contestação e algum bom senso. Uns após
outros, ingleses e italianos e por último espanhóis, foram deixando cair a
pretensão de fazer dos ricos do futebol mais enriquecidos e dos pobres cada vez
mais encalhados, excluídos ou postos de parte... no dinheiro como na
competição.
A
propósito desta questão algo simbólico-paradigmática do mundo do desporto e do
futebol em particular, ouso apresentar questões que se podem concatenar nesta
reflexão:
1.
Neo-esclavagismo. Embora aprecie o futebol como arte e entretenimento
desportivo, considero da mais asquerosa fundamentação que se compre-e-venda
homens para executar este jogo. Da mesma forma como agora condenamos – e muito
bem – toda a forma de escravatura perpetrada contra povos indígenas de África e
das Américas, não podemos silenciar que se faça negócio com as habilidades –
por sinal com intérpertes da mesma tez desses de antanho – de uns tantos para
serem mais-valia de uns poucos...mercadores a soldo de quem pague melhor ou que
rendam mais. Lá por terem habilidade nos pés não podem ser tratados como
mercadoria e como quase não-pessoas...
2. Tempo gasto. Não deixa
de ser revelador do estado cultural do país a quantidade de meios gastos pela
comunicação social a discutir questiúnculas desportivas, mas em especial na
área do futebol. Temos três jornais desportivos diários com mais de um milhão
de leitores quotidianos. Por vezes há, pelo menos cinco ou seis canais –
particularmente em sistema pago – que gastam o horário nobre (das 21 às 24
horas) a discutirem coisas, artefatos ou intrigas dos maiores clubes...em
disputas, onde roça tanta malcriadez, a ofensa e mesmo o que há de mais
subterrâneo do nosso mundo....
3. Linguagem
degradante.
Agora que não há público nos estádios ouvem-se os mais diversos impropérios por
parte dos diferentes intervenientes, desde os jogadores, passando pelos
treinadores (e adjuntos), com outros dirigentes à mistura. Quantas vezes se
ouvem vernáculos – dir-se-ia antes palavrões e calões de baixa educação – e insultos
à mãe dos outros e até às acusações ao progenitor... Em certas ocasiões
emergiram expressões de teor racista – esquisito é serem sempre da mesma tez e
não caucasianos a serem ultrajados – com lampejos de manipulação bem urdida,
quando interessa disfarçar os insucessos... Há questões que dizem não deverem
passar do âmbito político para o campo desportivo, mas torna-se indisfarçável
não perceber isso sempre... que se perde ou não se verificam conquistas e
sucessos.
4. Futebol – ópio
do povo, hoje. Não tivesse sido o estado de exceção concedido ao
futebol – sobretudo televisionado – e as etapas de confinamento e de emergência
ter-se-iam tornado barris de explosão social. No entanto, tornou-se
confrangedor o ambiente dos estádios vazios e nem a subtileza de músicas de
fundo, imitando os ‘urros’ – o termo é duro e pode ser ofensivo – dos adeptos e
de adversários colmatou a frieza dos espaços. Será que isto é profético daquilo
que advirá a curto prazo? Talvez sim, na medida em que hoje também visitamos os
teatros romanos – com belíssimos e amplos anfiteatros – em ruínas e nos
questionámos sobre o verdadeiro sentido daqueles emblemáricos lugares. Da mesma
forma nos acusarão, daqui a séculos, de sermos incapazes de denunciar aquilo em
que estávamos envolvidos e talvez enleados de manipulação.
5. O futebol
sempre esteve à venda, só que o preço que agora pagamos é mais cultural do que
económico, embora nos digam que é mais este do que, verdadeiramente, aquele!
‘Pão-e-jogos’, hoje como ontem...
António Sílvio Couto
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