O caso conta-se em breves palavras: em dia de Carnaval alguém foi confrontado com uma imagem de Cristo – um crucifixo, ainda sem ser possível detetar de onde era proveniente – no caixote do lixo… vulgar, quotidiano e doméstico. Aconteceu numa região onde a religião – ao menos socialmente – ainda tem bastante expressão, embora se notem laivos de descrença à mistura com certos tiques de religiosidade…paganizada.
Perante
a surpresa, o achador questionou-se: poder-se-á considerar uma brincadeira
carnavalesca ou reveste-se de assunto mais sério, como a abjuração do
catolicismo, o desfazer-se de objetos religiosos ou ainda o manifestar a opção
por outra forma de crença?
Em
tempos não muito recuados – duas ou três décadas atrás – verificou-se uma onda
que varreu muitas imagens religiosas da casa de alguns cidadãos. Impregnados
por uma mentalidade iconoclasta assanha por ‘movimentos fundamentalistas’, uns
tantos católicos deitaram foram imagens (estátuas) e até peças de grande valor
artístico e sentimental. Isso foi influenciado por setores mais exagerados,
embora de suspeita consistência e alvos fáceis de ignorantes na fé e na Igreja.
Passados uns certos eflúvios inconsistentes e ludibriados pela sanha das verbas
pedinchadas dos obreiros, muitos dos medianos católicos saíram mais desiludidos
e magoados consigo mesmos, retornando à comunidade da fé com outras disposições
e necessidades…
Agora
isto que aconteceu no caso relatado pode envolver outros aspetos e alguma
complexidade. Com efeito, o achador do Cristo no lixo, recolheu-O e deu-lhe um
lugar de não-rejeição, embora questionando-se e, porque me falou do caso,
tentando procurar resposta para o sucedido… É isso que vou tentar.
– Ao
escutar aquela história veio-me à lembrança o livro de um autor jesuíta
espanhol, Ramón Cué, O meu Cristo partido,
com a primeira edição em 1977…posteriormente passado a filme e continuado numa
outra publicação – ‘O meu Cristo partido de casa em casa’. Naquele simbólico
escrito – presença de meditação de tantos formandos no último quartel do século
vinte – se dá conta de uma história de vida e de uma vida com estórias. "O meu Cristo partido» é a história de
um padre – o autor – que compra uma imagem de Cristo muito mutilada [na feira
de velharias ou do Rastro, em Madrid]: sem rosto, sem um braço, sem uma perna,
sem … cruz. Pretendendo mandá-la restaurar, Cristo opõe-se-lhe radicalmente,
pois é assim partido, mutilado, que Ele se identifica com os que sofrem: “Quero
que, vendo-me partido, te lembres de tantos irmãos que convivem contigo e que
estão, como Eu, partidos, esmagados, oprimidos, doentes, mutilados… Sem braços,
porque estão desempregados ou ainda não conseguiram o primeiro emprego; sem
pés, porque lhes bloquearam os caminhos da vida; sem cara, porque lhes roubaram
a fama, o mérito, o prestígio…”.
– Agora
ponho-me daquele Cristo achado no caixote do lixo e questiono-me sobre o
possível significado desta mensagem. O que é que isto me quer dizer? Para onde
mandamos Cristo? Quisemos tirá-lo das nossas vidas, aligeirando a mensagem que
nos traz cada dia? Não andaremos a envergonhar-nos de Cristo, evitando dizermos
que somos dos ‘seus’, se é que somos? A limpeza das imagens do Crucificado –
sobretudo nos espaços públicos – não revela algo mais do que a perseguição orquestrada
da mentalidade agnóstica, de laicidade e ateia? O nosso silêncio – muitas vezes
cúmplice e cobarde – não revela que já perdemos o sal e já não somos fermento?
Ainda teremos tempo para nos interrogarmos?
Agora
que estamos em confinamento, precisamos de ter espaços e de dar tempo a Cristo
na nossa casa, na nossa família e na nossa vida. Estando a viver a Quaresma e temos
um tempo favorável para que isto possa ter maior expressão e conjugação, isto
é, de vivermos mais esta dinâmica e de favorecermos a expressão de Cristo inclusivo,
próximo e comprometido.
Seria um
desperdício de oportunidade que não tentássemos ter mais vivências de formação,
usando os meios técnicos e tecnológicos atuais, para aprofundarmos a fé, para
crescermos na esperança e para alimentarmos, verdadeiramente, a caridade
fraterna e solidária.
O Cristo
no caixote do lixo olhamos na expetativa de O recebermos… Deixemo-nos cuidar
por Ele!
António Sílvio Couto
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