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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

O ‘Cristo’ no caixote do lixo

 


O caso conta-se em breves palavras: em dia de Carnaval alguém foi confrontado com uma imagem de Cristo – um crucifixo, ainda sem ser possível detetar de onde era proveniente – no caixote do lixo… vulgar, quotidiano e doméstico. Aconteceu numa região onde a religião – ao menos socialmente – ainda tem bastante expressão, embora se notem laivos de descrença à mistura com certos tiques de religiosidade…paganizada.

Perante a surpresa, o achador questionou-se: poder-se-á considerar uma brincadeira carnavalesca ou reveste-se de assunto mais sério, como a abjuração do catolicismo, o desfazer-se de objetos religiosos ou ainda o manifestar a opção por outra forma de crença?

Em tempos não muito recuados – duas ou três décadas atrás – verificou-se uma onda que varreu muitas imagens religiosas da casa de alguns cidadãos. Impregnados por uma mentalidade iconoclasta assanha por ‘movimentos fundamentalistas’, uns tantos católicos deitaram foram imagens (estátuas) e até peças de grande valor artístico e sentimental. Isso foi influenciado por setores mais exagerados, embora de suspeita consistência e alvos fáceis de ignorantes na fé e na Igreja. Passados uns certos eflúvios inconsistentes e ludibriados pela sanha das verbas pedinchadas dos obreiros, muitos dos medianos católicos saíram mais desiludidos e magoados consigo mesmos, retornando à comunidade da fé com outras disposições e necessidades…

Agora isto que aconteceu no caso relatado pode envolver outros aspetos e alguma complexidade. Com efeito, o achador do Cristo no lixo, recolheu-O e deu-lhe um lugar de não-rejeição, embora questionando-se e, porque me falou do caso, tentando procurar resposta para o sucedido… É isso que vou tentar.

– Ao escutar aquela história veio-me à lembrança o livro de um autor jesuíta espanhol, Ramón Cué, O meu Cristo partido, com a primeira edição em 1977…posteriormente passado a filme e continuado numa outra publicação – ‘O meu Cristo partido de casa em casa’. Naquele simbólico escrito – presença de meditação de tantos formandos no último quartel do século vinte – se dá conta de uma história de vida e de uma vida com estórias. "O meu Cristo partido» é a história de um padre – o autor – que compra uma imagem de Cristo muito mutilada [na feira de velharias ou do Rastro, em Madrid]: sem rosto, sem um braço, sem uma perna, sem … cruz. Pretendendo mandá-la restaurar, Cristo opõe-se-lhe radicalmente, pois é assim partido, mutilado, que Ele se identifica com os que sofrem: “Quero que, vendo-me partido, te lembres de tantos irmãos que convivem contigo e que estão, como Eu, partidos, esmagados, oprimidos, doentes, mutilados… Sem braços, porque estão desempregados ou ainda não conseguiram o primeiro emprego; sem pés, porque lhes bloquearam os caminhos da vida; sem cara, porque lhes roubaram a fama, o mérito, o prestígio…”.

– Agora ponho-me daquele Cristo achado no caixote do lixo e questiono-me sobre o possível significado desta mensagem. O que é que isto me quer dizer? Para onde mandamos Cristo? Quisemos tirá-lo das nossas vidas, aligeirando a mensagem que nos traz cada dia? Não andaremos a envergonhar-nos de Cristo, evitando dizermos que somos dos ‘seus’, se é que somos? A limpeza das imagens do Crucificado – sobretudo nos espaços públicos – não revela algo mais do que a perseguição orquestrada da mentalidade agnóstica, de laicidade e ateia? O nosso silêncio – muitas vezes cúmplice e cobarde – não revela que já perdemos o sal e já não somos fermento? Ainda teremos tempo para nos interrogarmos?

Agora que estamos em confinamento, precisamos de ter espaços e de dar tempo a Cristo na nossa casa, na nossa família e na nossa vida. Estando a viver a Quaresma e temos um tempo favorável para que isto possa ter maior expressão e conjugação, isto é, de vivermos mais esta dinâmica e de favorecermos a expressão de Cristo inclusivo, próximo e comprometido. 

Seria um desperdício de oportunidade que não tentássemos ter mais vivências de formação, usando os meios técnicos e tecnológicos atuais, para aprofundarmos a fé, para crescermos na esperança e para alimentarmos, verdadeiramente, a caridade fraterna e solidária.

O Cristo no caixote do lixo olhamos na expetativa de O recebermos… Deixemo-nos cuidar por Ele!

 
Nota: a imagem de Cristo aqui apresentada tem uma história bem diferente da do texto aqui deixado. Deve ter mais de dois séculos. Foi-me dada como reserva e bom cuidado!     

 

António Sílvio Couto

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