Por estes dias ouvi esta observação: perguntaram a um esquimó porque é que os poemas daquele povo falavam mais de ‘peixe’ do que de outras coisas; ao que o interpelado terá dito: falámos mais daquilo que não temos… assim como os vossos textos poéticos falam tanto de ‘amor’…
Embora
possa parece algo de jocoso, nem por isso deveria deixar de interpelar-nos,
sobretudo, no contraste colocado pelo dito esquimó para connosco, quanto ao que
se refere à abundante alusão poética tendo em conta o tema aduzido: o ‘amor’,
seja qual for o alcance que lhe quisermos dar…ou a necessidade a atribuir-lhe.
Na
riqueza da nossa sabedoria popular encontramos frases-pensamento que resumem
bem, por outras palavras, o que está contido nisto de que quisemos servir-nos e
ocupar-nos neste texto.
Vejamos
um desses adágios bastante citado, sobretudo quando as coisas ou situações
correm menos bem: ‘casa onde não há pão,
todos ralham e ninguém tem razão’.
– Desde
logo temos de interpretar o âmbito de ‘casa’, que pode ir desde a simples
residência ou morada (pessoal ou familiar) até ao espaço de um país, de uma
empresa, de uma associação ou instituição privada ou pública, sem esquecer
ainda as situações de alcance mais transversal, como os lugares de intervenção
política, cultural ou intelectual/moral/ética… Não parece ser verdade que à
força de tanto se insistir em certos temas e assuntos – alguns com ritmo
cíclico, como democracia ou liberdade, responsabilidade ou participação, trabalho
ou emprego, direitos ou deveres, etc. – como que denunciam (ou somos
denunciados) a necessidade de serem muito mais aprofundados? De facto, falar de
tais assuntos deixa a manifesto que estamos muito longe de já os termos
compreendidos e de vivenciarmos segundo os critérios mais básicos… Com efeito,
há terminologias que exigem que seja explicado o que entendemos por esses
conceitos, dado que podemos estar a usar as mesmas palavras, mas, cada um,
dá-lhe o significado que lhe convém ou lhe interessa. Por vezes assistimos a
discussões de ‘lana-caprina’ (isto é, se a cabra tem lã ou se o pelo desta tem
algum valor), que se tornam tão inflamadas pela simples razão de que não se
usou o nível mais básico de uma conversa como é esse de cada qual explicar o
que entende com aquilo que está a dizer ou a pretender comunicar… Se houvesse
mais humildade e verdade, poderíamos construir em vez de derrubar!
–
Ousemos explicitar o que significa ‘onde não há pão’, pois, em muitos
casos, se reduz este elemento essencial da alimentação humana – o pão – a
coisas meramente materiais, tornando os problemas afunilados em dialéticas
marxizantes. Efetivamente nem tudo se poderá tornar esse alvo que faz correr
tanta gente: as necessidades básicas, que mais do que suprimidas deverão ser
satisfeitas. As primeiras vítimas em tempo de crise ou de colapso são os mais
frágeis, muitas vezes rotulados de pobres e que alimentam tantos outros nas
ações que tentam promover. Com efeito, se tirarem os ‘pobres’ aos políticos,
aos sindicalistas, aos voluntários (mesmo em questões de Igreja), aos
vendedores de feira ou aos promotores dos descontos nas grandes superfícies,
que lhes restará? Os explorados em razão do pão – particularmente da falta dele
– parece que sobrevivem enquanto os ‘pobres’ se reproduzem. Quanta gente está
presa pela boca, qual anzol psicológico, para manter a flutuar tantos outros
nem sempre sinceros para com aqueles que dizem servir!
– ‘Todos
ralham’ – este ambiente de conflitualidade em que parecemos viver à
flor-da-pele convém a muita comunicação social, que vai esticando as mazelas
alheias para tirar proveito em maré de poucos assuntos. A crispação tem-se
vindo a tornar um recurso alienatório, pois, enquanto, se discutem questões
menores, outros – como os governos ditos populares, mas com alma de populistas
– vão impondo as suas regras, por vezes, ditas democráticas, só pela simples
razão de que foram, um dia, votadas.
– ‘Ninguém
tem razão’, verdadeiramente, os problemas hodiernos são mais emocionais
do que razoáveis. Querer impor a sua ‘razão’, disfarçada de opinião, parece ser
hoje mais comum do que noutras épocas. Pior: pretende-se impor aos outros
aquilo que não consentimos que não tenham para connosco. Precisamos, com
urgência, de aprendermos a respeitar os outros, colaborando com eles para a
construção de um mundo mais fraterno e solidário, mais humano e mais
verdadeiro.
Afinal,
quando se fala de ‘amor’ não significará que, acima de tudo, necessitamos de
amar e de ser amados, de compreender e de sermos compreendidos, de cuidar e de
sermos cuidados?
António
Sílvio Couto
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