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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Fala-se mais daquilo que não há?

 


Por estes dias ouvi esta observação: perguntaram a um esquimó porque é que os poemas daquele povo falavam mais de ‘peixe’ do que de outras coisas; ao que o interpelado terá dito: falámos mais daquilo que não temos… assim como os vossos textos poéticos falam tanto de ‘amor’…

Embora possa parece algo de jocoso, nem por isso deveria deixar de interpelar-nos, sobretudo, no contraste colocado pelo dito esquimó para connosco, quanto ao que se refere à abundante alusão poética tendo em conta o tema aduzido: o ‘amor’, seja qual for o alcance que lhe quisermos dar…ou a necessidade a atribuir-lhe.

Na riqueza da nossa sabedoria popular encontramos frases-pensamento que resumem bem, por outras palavras, o que está contido nisto de que quisemos servir-nos e ocupar-nos neste texto.

Vejamos um desses adágios bastante citado, sobretudo quando as coisas ou situações correm menos bem: ‘casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão’.

– Desde logo temos de interpretar o âmbito de ‘casa’, que pode ir desde a simples residência ou morada (pessoal ou familiar) até ao espaço de um país, de uma empresa, de uma associação ou instituição privada ou pública, sem esquecer ainda as situações de alcance mais transversal, como os lugares de intervenção política, cultural ou intelectual/moral/ética… Não parece ser verdade que à força de tanto se insistir em certos temas e assuntos – alguns com ritmo cíclico, como democracia ou liberdade, responsabilidade ou participação, trabalho ou emprego, direitos ou deveres, etc. – como que denunciam (ou somos denunciados) a necessidade de serem muito mais aprofundados? De facto, falar de tais assuntos deixa a manifesto que estamos muito longe de já os termos compreendidos e de vivenciarmos segundo os critérios mais básicos… Com efeito, há terminologias que exigem que seja explicado o que entendemos por esses conceitos, dado que podemos estar a usar as mesmas palavras, mas, cada um, dá-lhe o significado que lhe convém ou lhe interessa. Por vezes assistimos a discussões de ‘lana-caprina’ (isto é, se a cabra tem lã ou se o pelo desta tem algum valor), que se tornam tão inflamadas pela simples razão de que não se usou o nível mais básico de uma conversa como é esse de cada qual explicar o que entende com aquilo que está a dizer ou a pretender comunicar… Se houvesse mais humildade e verdade, poderíamos construir em vez de derrubar!

– Ousemos explicitar o que significa ‘onde não há pão’, pois, em muitos casos, se reduz este elemento essencial da alimentação humana – o pão – a coisas meramente materiais, tornando os problemas afunilados em dialéticas marxizantes. Efetivamente nem tudo se poderá tornar esse alvo que faz correr tanta gente: as necessidades básicas, que mais do que suprimidas deverão ser satisfeitas. As primeiras vítimas em tempo de crise ou de colapso são os mais frágeis, muitas vezes rotulados de pobres e que alimentam tantos outros nas ações que tentam promover. Com efeito, se tirarem os ‘pobres’ aos políticos, aos sindicalistas, aos voluntários (mesmo em questões de Igreja), aos vendedores de feira ou aos promotores dos descontos nas grandes superfícies, que lhes restará? Os explorados em razão do pão – particularmente da falta dele – parece que sobrevivem enquanto os ‘pobres’ se reproduzem. Quanta gente está presa pela boca, qual anzol psicológico, para manter a flutuar tantos outros nem sempre sinceros para com aqueles que dizem servir!

– ‘Todos ralham’ – este ambiente de conflitualidade em que parecemos viver à flor-da-pele convém a muita comunicação social, que vai esticando as mazelas alheias para tirar proveito em maré de poucos assuntos. A crispação tem-se vindo a tornar um recurso alienatório, pois, enquanto, se discutem questões menores, outros – como os governos ditos populares, mas com alma de populistas – vão impondo as suas regras, por vezes, ditas democráticas, só pela simples razão de que foram, um dia, votadas.

– ‘Ninguém tem razão’, verdadeiramente, os problemas hodiernos são mais emocionais do que razoáveis. Querer impor a sua ‘razão’, disfarçada de opinião, parece ser hoje mais comum do que noutras épocas. Pior: pretende-se impor aos outros aquilo que não consentimos que não tenham para connosco. Precisamos, com urgência, de aprendermos a respeitar os outros, colaborando com eles para a construção de um mundo mais fraterno e solidário, mais humano e mais verdadeiro.

Afinal, quando se fala de ‘amor’ não significará que, acima de tudo, necessitamos de amar e de ser amados, de compreender e de sermos compreendidos, de cuidar e de sermos cuidados?     

 

António Sílvio Couto

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