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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Esculpir sobre material rijo

 


Por estes dias tenho recordado essa pequena estória da visita de um grupo de alunos a um atelier de escultor, onde um dos visitantes questionou o artista pela forma como ele ia fazendo as peças que tinha ali expostas, ao que o mestre-escultor respondeu: eu só tiro da pedra aquilo que está a encobrir a estátua…

Vem isto a propósito da forma como, muitas vezes, vamos entendendo as pessoas, que se vão manifestando, isto é, revelando naquilo que há de mais encoberto ou não antes percebido, mas se põe a manifesto quando menos contamos.

Por estes dias acompanhei, telefonicamente – bem gostaria que tivesse sido mais de forma presencial, mas o confinamento não o tem permitido – um padre amigo, que, no espaço de quinze dias, perdeu a mãe e o pai, tendo, no intervalo, estado em quarentena devido ao ‘covid-19’. Tanto que me pediu para celebrar a missa do funeral. Foi interessante escutar aquilo que estes pais viveram, a forma como educaram os filhos e, sobretudo, os valores transmitidos.

Recolhendo da partilha ficou-me que, se a mãe tinha e estava em espírito cristão, o pai vivenciou, em tempos recuados de há quatro décadas, os fervores revolucionários dialético-marxistas, mesmo nas terras latino-americanas. Com o caminhar para o poente da vida, estes pais foram-se apegando mutuamente com um casamento de mais de meio século. A prova de afinidade está, claramente, manifesta na curta distância de falecimento entre ambos.

Se sobre a mãe o padre não tinha dúvidas da sua intrínseca fé, quanto ao pai, apesar de tudo, sempre o viu algo remitente nas questões religiosas. No entanto, a surpresa emergiu após o passamento da esposa. Os tempos últimos – cerca de quinze dias apenas – foram de apelo ao divino, tendo sido – como se dizia dos cristãos mais tradicionais em terras de cristandade – reconciliado e ‘confortado com os sacramentos da Santa Madre Igreja’…

A avaliação deste filho-padre, feito seminarista à revelia do pai há cerca de quarenta anos, foi simples: ele era duro, mas Deus tinha-o tocado lá no fundo e agora emergiu a semente lançada…

 

= Perante esta lição de vida considero que posso colocar algumas questões bem mais simples e exigentes do que considerações piedosas ou lamentos de circunstância:

* Do material rijo e duro se faz algo de significativo – de facto, não é de coisa mole, inerte ou fácil que se constrói seja o quer for, muito menos a personalidade de alguém. Efetivamente nos tempos que correm onde tudo parece mais melífero do que virtuoso (no sentido etimológico do termo: ‘vir, viris’, homem, força), torna-se essencial olhar para quem soube acrisolar-se na escola da vida, aprendendo com as dificuldades e ensinando mais com os gestos do que com palavras… e, estas se tiverem de ser usadas, que o sejam para explicar o que se vive…

 * Educar pelo testemunho – numa época em que se ouvem em excesso tantos ‘mestres’ de pedagogia – mesmo ao nível da fé – escasseiam aqueles que dão espaço e preferência ao seguimento pessoal. Parece que tornamos certos aspetos da vida – mesmo a fé e a sua prática – numa espécie de ideologia, que se usa ou manipula conforme convém, se é útil ou se compromete no mínimo.

 * Confiar nas pessoas – quando, de tantas e tão díspares formas, se manifesta a descrença nos outros, torna-se essencial acreditar que todos e cada um merece, ao menos, o benefício da dúvida, pois, se a semente – como se diz nas Sagradas Escrituras – é boa, só precisamos de cuidar do terreno, esse sim, nem sempre de boa qualidade.

* Saber investir mais do recolher resultados – neste tempo em que vivemos nessa ‘cultura’ da máquina de coca-cola (passe a publicidade), onde se coloca a moeda e sai o produto, torna-se fundamental saber que o melhor dos patrimónios não se confina às coisas materiais, mas naquilo em que se investe: as pessoas e essas continuam a ser dignas da todas as apostas e quanto pode cada ser capaz de capacitar os outros para serem sem meramente parecerem.

Esculpir sobre material rijo implica conhecer quem se quer educar, saber quem o vai fazer e quais os resultados que se deseja atingir. Estaremos conscientes deste percurso sem querermos queimar etapas?

 

António Sílvio Couto

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