Por estes dias tenho recordado essa pequena estória da visita de um grupo de alunos a um atelier de escultor, onde um dos visitantes questionou o artista pela forma como ele ia fazendo as peças que tinha ali expostas, ao que o mestre-escultor respondeu: eu só tiro da pedra aquilo que está a encobrir a estátua…
Vem isto
a propósito da forma como, muitas vezes, vamos entendendo as pessoas, que se
vão manifestando, isto é, revelando naquilo que há de mais encoberto ou não
antes percebido, mas se põe a manifesto quando menos contamos.
Por
estes dias acompanhei, telefonicamente – bem gostaria que tivesse sido mais de
forma presencial, mas o confinamento não o tem permitido – um padre amigo, que,
no espaço de quinze dias, perdeu a mãe e o pai, tendo, no intervalo, estado em
quarentena devido ao ‘covid-19’. Tanto que me pediu para celebrar a missa do
funeral. Foi interessante escutar aquilo que estes pais viveram, a forma como
educaram os filhos e, sobretudo, os valores transmitidos.
Recolhendo
da partilha ficou-me que, se a mãe tinha e estava em espírito cristão, o pai
vivenciou, em tempos recuados de há quatro décadas, os fervores revolucionários
dialético-marxistas, mesmo nas terras latino-americanas. Com o caminhar para o
poente da vida, estes pais foram-se apegando mutuamente com um casamento de
mais de meio século. A prova de afinidade está, claramente, manifesta na curta
distância de falecimento entre ambos.
Se sobre
a mãe o padre não tinha dúvidas da sua intrínseca fé, quanto ao pai, apesar de
tudo, sempre o viu algo remitente nas questões religiosas. No entanto, a
surpresa emergiu após o passamento da esposa. Os tempos últimos – cerca de
quinze dias apenas – foram de apelo ao divino, tendo sido – como se dizia dos
cristãos mais tradicionais em terras de cristandade – reconciliado e ‘confortado
com os sacramentos da Santa Madre Igreja’…
A
avaliação deste filho-padre, feito seminarista à revelia do pai há cerca de
quarenta anos, foi simples: ele era duro, mas Deus tinha-o tocado lá no fundo e
agora emergiu a semente lançada…
=
Perante esta lição de vida considero que posso colocar algumas questões bem
mais simples e exigentes do que considerações piedosas ou lamentos de
circunstância:
* Do
material rijo e duro se faz algo de significativo – de facto, não é de coisa mole,
inerte ou fácil que se constrói seja o quer for, muito menos a personalidade de
alguém. Efetivamente nos tempos que correm onde tudo parece mais melífero do
que virtuoso (no sentido etimológico do termo: ‘vir, viris’, homem, força),
torna-se essencial olhar para quem soube acrisolar-se na escola da vida,
aprendendo com as dificuldades e ensinando mais com os gestos do que com
palavras… e, estas se tiverem de ser usadas, que o sejam para explicar o que se
vive…
*
Educar pelo testemunho – numa época em que se ouvem em excesso tantos
‘mestres’ de pedagogia – mesmo ao nível da fé – escasseiam aqueles que dão
espaço e preferência ao seguimento pessoal. Parece que tornamos certos aspetos
da vida – mesmo a fé e a sua prática – numa espécie de ideologia, que se usa ou
manipula conforme convém, se é útil ou se compromete no mínimo.
*
Confiar nas pessoas – quando, de tantas e tão díspares formas, se manifesta
a descrença nos outros, torna-se essencial acreditar que todos e cada um
merece, ao menos, o benefício da dúvida, pois, se a semente – como se diz nas
Sagradas Escrituras – é boa, só precisamos de cuidar do terreno, esse sim, nem
sempre de boa qualidade.
* Saber investir mais do recolher
resultados –
neste tempo em que vivemos nessa ‘cultura’ da máquina de coca-cola (passe a
publicidade), onde se coloca a moeda e sai o produto, torna-se fundamental
saber que o melhor dos patrimónios não se confina às coisas materiais, mas
naquilo em que se investe: as pessoas e essas continuam a ser dignas da todas
as apostas e quanto pode cada ser capaz de capacitar os outros para serem sem
meramente parecerem.
Esculpir
sobre material rijo implica conhecer quem se quer educar, saber quem o vai
fazer e quais os resultados que se deseja atingir. Estaremos conscientes deste
percurso sem querermos queimar etapas?
António Sílvio Couto
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