Foi notícia por estes dias: um homem paraplégico
morreu carbonizado na sua própria casa. O facto é de per si trágico e
confrangedor. Por entre os destroços daquilo que foi uma habitação sobressai –
dizem as reportagens – um cão que não abandona o local, farejando e esperando o
regresso do dono falecido. Houve quem se oferecesse para adotar o animal,
levando-lhe comida e bebida, mas nem assim o fiel cão sai de estar ao pé do
lugar onde viveu, tanto quanto se pode perceber, com o dono…
Embora haja a expetativa de que, com o passar do
tempo, possa trocar aquilo que foi uma casa por outro lugar mais confortável,
podendo haver quem cuide dele, este episódio faz-nos – ou deve fazer-nos –
refletir sobre vários aspetos, desde o relacionamento entre as pessoas e os
animais, passando pelo trato que lhes damos e até àquilo que pode distinguir os
sentimentos humanos – por estes tempos algo confusos e baralhados – e os
nítidos sentimentos dos animais na sua base mais significativa.
= Já há dias se ouviu relatar que alguns cães
percorreram quilómetros atrás da ambulância que levou um sem-abrigo para o
hospital. Foi no Brasil: o homem teve um colapso cardíaco e os seus seis cães –
devidamente vacinados e tratados – estiveram à porta do hospital até que ele
saiu passados uns dias, voltando à rua onde vive há vinte anos.
Quando se fala tanto da proteção aos animais, estes
exemplos podem tornar-se reveladores do que há (ou pode haver) de vinculativo
entre os humanos e os outros animais, seja qual for o porte ou mesmo a sua
expressão mais ou menos doméstica.
= Não estamos nessa onda de aparente superiorização
dos animais sobre os humanos, que certas forças andam por aí a fomentar, a
divulgar e a promoverem-se... Os animais têm a sua caraterística no processo da
obra da criação divina, continuando os humanos a serem aqueles que, segundo as
Sagradas Escrituras, foram criados ‘à imagem e semelhança de Deus’, portanto
como os interlocutores essenciais e privilegiados para com Deus.
= Se os maus tratos perpetrados contra os animais
denunciavam uma fase mais ou menos desumanizante dos humanos, não será que este
excesso de dedicação para com eles reproduz uma outra fase não menos desumana
para com os humanos? Não será que certas dedicações aos animais (de companhia e
não só) revelam que estaremos a entrar numa etapa desafetiva para com os
humanos e carinhosa para com os animais?
De facto, não alinho nessa tendência, um tanto
crescente, de substituição dos filhos pelos animais, e com tais cuidados que
algo parece revelar qualquer outra dimensão que tem a ver com uma menos boa ou não-razoável
integração psicológica e/ou emocional. Certas manifestações exteriores de
carinho e de afeto para com os animais poderão significar que algo se perverteu
na ordem natural das coisas, na medida em que os filhos parecem não-ser mais do
que meros adornos e/ou acidentes de percurso.
Faz-me lembrar, na linha dum certo anedótico, essa
situação em que, uma família tendo ido ao restaurante, sobejou comida no final.
Ora, não querendo desperdiçar o que não foi consumido, o pai pediu ao empregado
se podia colocar isso numa caixa para levar para casa ‘para o cão’…Ouvindo
isto, a filha mais nova, sabendo que não tinham cão algum, regozijou-se,
dizendo: vamos ter um cão, vamos ter um cão!
Não precisando os cães (e outros animais do círculo
familiar) das sobras, fica-nos desta estória que não se pode mentir às
crianças, mesmo que não se tenha ideia de vir a ter um cão ou, pior, os
animais, que circulam pela casa, têm, hoje, quase melhor estatuto do que as
crianças.
= Inseridos na complexidade do ambiente familiar
torna-se, cada vez mais importante, saber que lugar ocupam (ou devem ocupar) os
animais no tecido da família, pois, se não nos acautelarmos, teremos animais
tratados de forma principesca e os humanos de forma tendencialmente descartável,
como tão sabiamente nos vem prevenindo o Papa Francisco, para dentro e para
fora do espaço eclesial…
António Sílvio Couto
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