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sábado, 2 de janeiro de 2021

Virá, de verdade, a esperança?

 


Depois da vaga de desânimo que se abateu, inapelavelmente, sobre a Humanidade pela pandemia do vírus, quando a economia quase colapsou e socialmente tivemos de estar confinados, agora as pessoas começaram a ser vacinadas contra o ‘covid-19’, ouve-se falar de esperança, num misto de anseio e de expetativa, à mistura com uma visão algo transcendente…mesmo que de forma tácita.

Mas o que é a esperança? Que cor do cardápio da paleta terá a dita esperança? Onde e como podemos viver essa tal esperança? Haverá níveis de esperança para quem tem ou não tem fé? Como se pode ou deve testemunhar a esperança, se esta for vista como virtude cristã?

= Se recorrermos às línguas clássicas – grego e latim – encontraremos os seguintes vocábulos de ‘esperança’: ‘elpis’, em grego, significa ‘atitude de quem espera ou aguarda algo’; ‘spes’ em latim, significa ‘confiar em algo positivo’… Em hebraico ‘hatikvah’ (a esperança) é o tema do hino nacional de Israel…

No contexto judaico-cristão, a esperança aponta-nos para uma perspetiva teísta, onde Deus é a origem e o termo da própria esperança. Se recorrermos às fontes bíblicas podemos encontrar 142 vezes a referência à esperança, tanto no Antigo Testamento (sobretudo nos Salmos) como no Novo Testamento com particular incidência na literatura paulina.

Atendendo ao contexto da nossa referência cultural, o conceito de ‘esperança’ tendo ainda em conta uma simbologia habitual: a âncora, que assegura a estabilidade do barco, tanto no cais como em alto-mar…Em Hb 6,18-19 encontramos referência a essa vertente simples e fundamental – ‘agarrando-nos à esperança proposta. Nessa esperança temos como que uma âncora segura e firme da alma’ – reportando a Jesus, porto inabalável.

= No ambiente algo confuso de pandemia em que temos mergulhados, será avisado trazer o tema da esperança para a dimensão pública, tanto social como política e até cultural? Não correremos o risco de nos tornarmos alvo de riso, se incluirmos a questão da esperança nas conversas e nos debates? Por que razão se fala tão pouco de esperança, será por que ela já existe ou por que não existindo nos custa colocá-la na prática do nosso dia-a-dia? Será a esperança uma miragem sem nexo nem compromisso?

Em 1 Pd 3,15 lemos: «no íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça». É significativo escutarmos, nos textos bíblicos este desafio de sermos capazes de explicar aquilo que somos e vivemos. Ora, pelos sinais que vimos, nestes meses de acentuado confinamento, talvez esta explicação ‘das razões da nossa esperança’ tenha andado um tanto arredia das palavras e das vivências da maioria dos nossos cristãos e de nós todos, como cristãos. Tantos medos e preconceitos; tantas ansiedades e precauções; tantos e tão diversos assentimentos higiene-sanitários deixaram a manifesto que a esperança foi trocada por gestos, palavras e sentimentos de culpa mais do que ousadia de fé, de fraternidade e de caridade. Deste modo a esperança virou conformidade e não virtude e muito menos forma de estar cristãmente.

Muitos dos responsáveis eclesiais e uma boa parte dos eclesiásticos obedeceram mais aos mentores político-partidários do que àquilo que deveria ser a exigência testemunhal do amor cristão. Um certo servilismo seguidista das ordens sanitárias tornaram-se mais acutilantes do que a dedicação aos outros, como lemos na vida de tantos santos e santas em maré de epidemias similares àquela que temos estado a viver. O encerramento dos templos e a escusa do preceito dominical tão generalizado foi sinal de quem acredita e se sente presença de esperança? O acentuado confinamento da maioria das atividades pastorais não revelou mais medo do que confiança, tanto em si mesmos como em Deus? O mal feito à dimensão comunitária da vivência em Igreja será recuperado da mesma forma como foi desbaratado nestes dez meses e meio de pandemia?

 

= Sugerimos, por fim, breves propostas para que a esperança, que se vislumbra no dealbar de 2021, se possa tornar algo mais do que utópico: conhecer-se a si mesmo e respeitar os outros poderá ser um bom projeto de vida; ser semeador de boas notícias e filtrador da maledicência seria uma outra nota de comportamento; viver mais em referência à verdade do que no cultivo da vaidade, tanto pessoal como social, eis um desafio a seguir…humilde e sinceramente.      

 

António Sílvio Couto

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