Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

?!...

 

Raramente acontece que o assunto de um ano seja o mesmo no início e no final…do ano seguinte. A sombra funesta da pandemia – do covid-19 – abriu e está a fechar a ambiência socio-cultural-económica dos nossos dias.
Se em dezembro de 2020 vivíamos sob a apreensão do que viria a verificar-se, em dezembro de 2021 continuamos na ansiedade do que virá ainda. Se naquela data contávamos às centenas os infetados, agora – decorrido um ano – vemos que são aos milhares… Ao tempo estávamos em campanha eleitoral para a presidência da República, agora vemos titubeantes candidatos ao Parlamento a quererem dizer-nos que votemos neles. Apesar da bolha em que nos quisemos fechar – por razões higiene-sanitárias – continuamos a refugiar-nos em ilhas que aprendemos a dissimular…

1. Quando pensávamos que tínhamos evoluído em qualidade humanitária, vemos crescer atitudes e comportamentos cada vez mais egoístas e interesseiros, colocando os fatores individuais à frente da busca comum. Quando percebemos que as pessoas arranjam mais desculpas do que razões para esse fechamento aos outros. Quando, de tantas e tão variadas formas, se acentua mais o que divide do que aquilo que une… Então, temos de considerar que estamos numa crise de civilização, um colapso cultural ou mesmo uma rutura ético/moral…gravíssima.

2. Em muitos destes momentos fomos perdendo a racionalidade, deixando que aflorem mais as razões emocionais e não os motivos de âmbito intelectual. Por vezes até os aspetos afetivo-sentimentais correm o risco de serem ofuscados pelos comportamentos de ocasião. De tantas e tão variadas formas vemos pessoas a pensarem mais como vivem do que a viverem como pensam, nesse hedonismo difuso em muitos dos aspetos da nossa sociedade. Com que subtileza se arranja argumentos para exaltar a ‘minha’ autoestima, mesmo que isso colida com as vivências dos outros.

3. Embora o tema da saúde seja hoje transversal a todas as questões da vida, nunca como agora fomos atingidos no cerne da nossa (pessoal ou coletiva) identidade, da nossa vulnerabilidade e mesmo na fragilização a que estamos expostos. Bastará um sopro de nada ou um espirro de qualquer coisa para nos colocarem em confinamento, sob suspeita de contaminação e, por que não dizê-lo, na marginalização de sermos focos de transmissão da doença…

4. Um ano acaba, outro se avizinha. Queira Deus que possamos aprender com humildade e verdade a sermos sinceros, leais e humanos porque mais cristãos. Assim o desejamos para todos!

Nota
Ao longo deste ano de 2021 contabilizamos 169 textos (artigos) publicados neste blogue. Isto dá mais de um texto de dois em dois dias. Não sei se isto ajudou alguém. A mim fez-me pensar e escrever…quanto ao resto deixo à consideração aquilo que acharem mais adequado. O título está aí: interrogação (?) e admiração (!), reticências (…) para cada qual se acrescentar.

António Sílvio Couto

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Sinais inquietantes...nos cuidados de saúde


 Durante a pandemia a linha poderá estar muito ocupada, pedimos que não desligue... a sua chamada encontra-se em espera e pedimos que não desligue. Obrigada’.

Esta gravação foi a resposta da ‘saúde 2424’ a quem pretendia fornecer dados – e receber indicações – sobre as suas condições de saúde em contexto do ‘covid-19’... Depois de um inquérito (sim-não) em sistema audio, foi aquela resposta horas a fio do número ‘808242424’.

 1. Já se sabia, pelas notícias, que o estado da questão era o que agora reportei. Mas ter de passar pela purga da paciênica foi algo que não considerava ter de viver. Depois de um simples teste rápido que deu positivo e tomadas todas as (ditas e recomendadas) medidas de confinamento, tentei receber indicações daquele serviço de saúde de âmbito geral, anónimo e gratuito. Duas tentativas, com mais de uma hora em cada uma delas, levou-me a desistir, continuando com a prevenção de não-contacto com ninguém...que pode ir, dizem outras fontes, até dez dias... Por semelhança com outros casos assim procederei! 

 2. Notou-se, nas últimas duas semanas, uma afluência aos testes – rápidos ou outros – sobre o estado de cada um na relação com o vírus fatal. Múltiplas razões fizeram crescer os dados, chegando a haver cerca de trezentos mil testes diários, em locais destinados ao assunto.  Talvez por haver mais testagem o número dos infetados disparou, tendo atingido, a 28 de dezembro, 17.172 novos casos...com o prognóstico da tutilar da pasta da saúde a dizer que, na primeira semana de janeiro, atingiremos cerca de 35 mil novas situações...

 3. Em paralelo com todo este processo fomos vendo milhares de pessoas a serem vacinadas, sobretudo com a terceira (de reforço) dose. Eu até já tinha data e hora marcada para rececionar tal inoculação, mas a súbita detectação de um teste rápido positivo, fez-me tomar todas as medidas mínimas e desmarcar tal oportunidade de salvaguarda. Se tivéssemos em conta o número de infetados, mas sem as vacinas, isto estaria a ser uma mortandade séria, mas como boa parte da população, incluindo já crianças, tem, pelo menos duas doses, as coisas não se têm complicado com tanta gravidade...pelo menos assim parece!

 4. Talvez o mais preocupante na leitura que podemos/devemos fazer desta fase de pandemia é a facilidade com que as pessoas aligeiram as regras, fazendo com que pareça que vivemos num comportamento social ‘ió-ió’ – sobe-e-desce; desce-e-sobe – quase sem rumo nem nexo, mais ao sabor das circunstâncias do que das razões... As questões de teor económico como que se suplantam às motivações de saúde ou de segurança. Os resultados económicos condicionam a melhor e mais consistente vivência daquilo que deveria guiar os comportamentos. Assim não conseguiremos ultrapassar esta fase de provação da nossa cultura/civilização.

 5. Apesar da insistência ideológica de alguma ‘esquerda’ em querer fazer do ‘sns’ só um ‘serviço nacional de saúde’, é importante essencial tornar o ‘sns’ um ‘sistema nacional de saúde’, onde todos os setores intervenientes e não só o dito ‘Estado’ tenha prepronderância senão mesmo exclusividade. A ação do setor social, os designados ‘privados’ e o Estado devem articular-se para que tenhamos algo que sirva as pessoas nesta maré de fragilização, mas também sejam colocados ao serviço das populações infra-estruturas, equipamentos e valências, que, por não serem estatais têm tanta ou mais qualidade do que estas...  

 6. Na sua sabedoria diz o povo: em tempo de guerra não se limpam armas. Ora, parece chegada a hora de articularmos todas as forças possíveis e quase imagináveis para que esta pandemia deixe lições de cooperação e não de exclusão, de articulação entre todos e não de partidarite pouco abonatória de quem a defende e põe em prática.

Dizem que se vai agravar o panorama, em breve. Unidos poderemos servir mais e, sobretudo, melhor!

.

António Silvio Couto

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Todos seremos (mais cedo ou mais tarde) contagiados…


 Decorridos quase dois anos de pandemia pelo surto de covid-19 os números são assustadores e reveladores desta ‘guerra’ sem quartel nem trincheiras, mas com vítimas crescentes ao segundo.

Eis uma breve resenha dos dados em Portugal…até ao momento: infetados (global):  1.286.119; recuperados: 1.161.615; óbitos: 18.890. A evolução desta matéria e mesmo as formas de enfrentar este vírus foi algo que teve uma aprendizagem muito específica: fomos passando da confusão dos números até à testagem mais ou menos em massa, passando pela vacinação – para já em três doses – dos mais velhos para os mais novos da população, à mistura com as recomendações das autoridades de saúde quanto à higienização, o distanciamento entre as pessoas e o uso obrigatório de máscara sanitária…

 1. Passado algum tempo de enfrentamento do problema do ‘coronavírus’ foi lançado para o ar uma suposição algo abstrata: de uma forma ou de outra, mas cedo ou mais tarde, seja qual for a idade ou mesmo a condição social, todos seremos contagiados ou contaminados, mesmo que isso implique uma forma diferente de ver, sentir ou tratar o problema… Depois das diversas variantes do vírus – alfa (identificada no Reino Unido), beta (identificada na África do Sul), gama (identificada no Brasil), delta (identificada na Índia) – e a mais recente – ómicron – tem feito vítimas com fartura…na qual se sinto, por estes dias, incluído. Depois de ter suplantado as etapas anteriores, num instante bateu-me à porta a necessidade de confinamento e de vigilância, mesmo que já estivesse com data marcada para rececionar a terceira dose de vacinação…

 2. Quem se queira interrogar sobre o modo ultrarrápido de difusão deste vírus terá de procurar múltiplas cambiantes, embora haja uma que se destaca: a mobilidade dos nossos dias tem sido uma das modalidades mais simples para que este assunto ganhe foros de universalidade, com as implicações inerentes aos cuidados que nos têm sido exigidos. Parece que nada nem ninguém está a salvo desta praga. Parece que estamos todos no mesmo barco – como nos disse o Papa Francisco, no simbólico dia 27 de março do ano passado.

 3. Continuo a não compreender que ainda haja pessoas que negam isto que nos está a acontecer e com tão gravosos resultados. Sejam quais forem as razões para tais negacionistas, dá a impressão que fazem tal papel para se exibirem na sua douta ignorância. É verdade que não sabemos quais as consequências a médio e a longo prazo da vacinação. Para já o efeito tem sido preventivo e, em muitos casos, tem salvado da morte grande número de pessoas. Não fosse o grande investimento no processo crescente de vacinação e estaríamos a enfrentar resultados ainda mais trágicos.

 4. Todo este complexo momento da Humanidade veio colocar-nos diante de algo simples e imediato: somos uma grande família, que sofre com quem sofre e que cuida de quem precisa, sobretudo na sua vulnerabilidade e fraqueza. Esta globalização na doença trouxe à consciencialização de todos que precisamos uns dos outros e que só pela união de esforços venceremos para bem de um maior número de pessoas. Na medida em que formos acreditando que a vitória sobre este vírus não se consegue senão pela unidade, mais e melhor seremos humanizados nas razões e nas consequências.

 5. Isto a que o Papa Francisco tem apelidado de ‘ecologia integral’ tem agora novas expressões na moral/ética de todos e de cada um. Na sua mensagem para o 55.º dia mundial da paz diz-nos: «é necessário (…) um pacto que promova a educação para a ecologia integral, segundo um modelo cultural de paz, desenvolvimento e sustentabilidade, centrado na fraternidade e na aliança entre os seres humanos e o meio ambiente».

Já aprendemos as lições desta pandemia? Para além do contágio/contaminação já percebemos que somos parte de um todo e global? Se nunca fomos ilhas, agora somos mais do que continentes na expetativa do bem comum pela fraternidade emergente do nascimento de Jesus na nossa carne humana. Efetivamente a doença humaniza-nos e faz-nos mais irmãos de todos porque frágeis e necessitados de cuidado.

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Critérios de paz: diálogo, educação e trabalho

 


Na mensagem para o 55.º dia mundial da paz, o Papa Francisco traça três linhas-forças para que a paz possa ser feita, vivida e, sobretudo, tornada ação humana: diálogo, educação e trabalho.

Respigamos alguns excertos da mensagem, colocando pequenas observações de ordem mais pragmática.

«Quero propor três caminhos para a construção duma paz duradoura. Primeiro, o diálogo entre as gerações, como base para a realização de projetos compartilhados. Depois, a educação, como fator de liberdade, responsabilidade e desenvolvimento. E, por fim, o trabalho, para uma plena realização da dignidade humana. São três elementos imprescindíveis para tornar «possível a criação dum pacto social», sem o qual se revela inconsistente todo o projeto de paz».

 1. Dialogar entre gerações para construir a paz

«Todo o diálogo sincero, mesmo sem excluir uma justa e positiva dialética, exige sempre uma confiança de base entre os interlocutores. Devemos voltar a recuperar esta confiança recíproca. A crise sanitária atual fez crescer, em todos, o sentido da solidão e o isolar-se em si mesmos.
Dialogar significa ouvir-se um ao outro, confrontar posições, pôr-se de acordo e caminhar juntos. Favorecer tudo isto entre as gerações significa amanhar o terreno duro e estéril do conflito e do descarte para nele se cultivar as sementes duma paz duradoura e compartilhada
».  

Os jovens com as suas ousadias tecnológicas precisam da sabedoria dos mais velhos, também eles já fascinados por tais inovações no seu tempo. A consonância entre os ‘guardiães da memória’ – como se refere o Papa Francisco aos idosos – e os jovens fará com que avancemos com respeito, serenidade e criatividade.

Precisamos de saber acolher estes desafios, até pela sabedoria da idade do próprio Papa…

 2. A instrução e a educação como motores da paz

«O investimento na educação seja acompanhado por um empenho mais consistente na promoção da cultura do cuidado. Perante a fragmentação da sociedade e a inércia das instituições, esta cultura do cuidado pode-se tornar a linguagem comum que abate as barreiras e constrói pontes. (...). É necessário, portanto, forjar um novo paradigma cultural, através de «um pacto educativo global para e com as gerações jovens, que empenhe as famílias, as comunidades, as escolas e universidades, as instituições, as religiões, os governantes, a humanidade inteira na formação de pessoas maduras». Um pacto que promova a educação para a ecologia integral, segundo um modelo cultural de paz, desenvolvimento e sustentabilidade, centrado na fraternidade e na aliança entre os seres humanos e o meio ambiente».

Perante a diminuição de investimento na educação – em detrimento das despesas militares e dos armamentos, em concreto – podemos já perceber algumas das consequências nas lacunas dos países e das nações. As prioridades têm de ser repostas ou poderemos entrar em colapso mais depresssa do que julgávamos.  

3. Promover e assegurar o trabalho constrói a paz
«O trabalho é um fator indispensável para construir e preservar a paz. Aquele constitui expressão da pessoa e dos seus dotes, mas também compromisso, esforço, colaboração com outros, porque se trabalha sempre com ou para alguém. Nesta perspetiva acentuadamente social, o trabalho é o lugar onde aprendemos a dar a nossa contribuição para um mundo mais habitável e belo».

Na linha de outras intervenções papais podemos considerer que o trabalho é a base sobre a qual se há de construir a justiça e a solidariedade em cada comunidade humana, tanto politica como ecclesial

= Cada item deste tríptico – diálogo, educação e trabalho – pode e deve funcionar como atitude de contínua referência à mensagem cristã, atualizada em cada ano pela partilha, visão e proposta do Papa. Se formos consultar os temas e os desafios dos Papas – de Paulo VI a Francisco – em cada ano conseguimos captar o que mais aflija cada época e nos diversos lugares da História. Caminhemos juntos, em sínodo, nestas três estradas do diálogo, pela educação e no trabalho…

 

António Sílvio Couto

domingo, 26 de dezembro de 2021

Não Andamos Todos Algo Lerdos?

 


Da composição desta frase podemos colher a palavra – ‘natal’. Ora, estando a vivenciar esta realidade socio-religiosa, poder-nos-á ser útil refletir sobre implicações desta tonalidade cultural mais ou menos abrangente de conceitos, valores e critérios com sabor cristão.
Por vezes falar ou escutar questões sobre o Natal, atendendo à idade dos envolvidos, como que desencadeia uma torrente de nostalgia, deixando a impressão de que, no passado, tudo era mais genuíno, um tanto mais sincero e, porque não dizê-lo: quase-verdadeiro… Efetivamente assim seremos condicionados no presente, sobretudo, se houver boas memórias disso a que nos referimos com afeição.

1. Dos termos usados na frase deste título talvez valha a pena explicar o que é ‘lerdo’. Significa: ser lento, pesado, vagaroso…estúpido, parvo, tonto. Diante destas asserções poderemos considerar que, nestas coisas do Natal, todos nos andamos a enganar (ativa ou passivamente), pois aquilo que dizemos crer nem sempre é aquilo que nos motiva a colocar as exigências cristãs do Natal na vida. Somos tantas vezes mais cultivadores da fachada do Natal do que da essência humano-espiritual do mesmo. Somos, por razões muito díspares, mais usufrutuários daquilo que o Natal nos trouxe do que participantes na sua real vivência.

2. De facto, os conceitos de Natal têm-se vindo a aferir mais às coisas materiais e materialistas do que às razões verdadeiramente de índole espiritual e de teor cristão. Com que facilidade fomos trocando os conceitos de fraternidade por prendas e presentes. Como se difundiu a figura do ‘pai-natal’, mesmo que distorcendo a ação benfazeja do bispo São Nicolau. Com que habilidade se transferiu o Natal de Jesus para uma pseudo festa da família, reunida mais em comezainas do que em partilha. Como cresceu a sensibilidade à ‘árvore de Natal’ sem a fazer ser essencialmente a ‘árvore da vida’ ou um tanto genealógica. Como se tem trocado O festejado pelos festejos em proveito individualista. De verdade, ‘não andamos todos algo lerdos’ de ignorância e de oportunismo?

3. A pandemia em curso veio colocar mais à luz do dia que tantos dos convívios natalícios não passavam de artefactos de fachada e como que possibilidades pouco abonatórias para as festanças de ocasião: durante o ano mordem-se e criticam-se, mas nos ‘jantares’ disfarçam as contendas com trocas de prendas, que mais não são do que a revelação inconsciente daquilo que desejam para si mesmos… De muitas e variadas formas precisamos de estar de atalaia para sermos mais coerentes e consequentes em cada tempo e em cada lugar. ‘Não andamos todos algo lerdos’ em assumirmos o que tão habilmente ainda escondemos?

4. Embora os conceitos, pelos quais nos regemos possam ainda ser de alguma matriz cristã, na maior parte das vezes estamos a quilómetros de distância do verdadeiro significado das coisas. Quem alia a compreensão dos presentes às dádivas que os magos trouxeram/levaram ao Menino? Quem lhe dá o conteúdo sem se fixar na forma? Quem pensa, de verdade, mais no significado do que na interpretação? Mesmo que ofereçamos presentes e não meramente prendas – aqueles dão-se em função de quem recebe, estes em razão de quem dá, pois vai preso – ‘não andaremos todos algo lerdos’ com o fascínio do consumismo, que entulha, cada vez mais, a nossa vidinha?

5. Enquanto é tempo, precisamos de acordar desta letargia que confunde o crer com o querer e que conjuga os tempos com os momentos, tornando-os suposições de vontades rebeldes, inconstantes e subjetivas. É tempo de parar diante da rudeza do presépio, não na mera ruralidade das coisas, mas na subtileza da entrega de um Deus feito homem por nós em amor e que continua agora a necessitar de nós – enquanto cristãos – para encarnar na vida de tantos outros, que Ele coloca no nosso caminho. ‘Não andemos todos algo lerdos’, adiando a assunção desta missão, onde quer que nos encontremos, sejam quais forem os ambientes e situações que Deus nos proporciona que vivamos.

António Sílvio Couto

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Beneficiado ou prejudicado?

 


Recorrentemente emergem notícias sobre situações de alguma tensão entre os intervenientes do setor da Igreja católica e certas autoridades socio-políticas. Por vezes os casos já são ‘velhos’, a novidade estará na forma algo acintosa como aparecem...ao público. Noutros momentos assemelham-se mais a ‘tricas’ de relacionamento humano do que do âmbito institucional. Fosforescências regionais ou localizadas ganham projeção mais ampla porque surgem nas notícias nacionais.

Atendendo a questiúnculas que deambulam por aí, talvez seja um tanto conveniente fazermos um percurso sobre a autonomização (feita e/ou desejada) das realidades temporais para com as forças religiosas e também das de condição religiosa para com os serviços públicos/politicos/autárquicos.

 1. O tempo de cristandade já passou. A sociedade não é mais cristã e os valores desta quase roçam a provocação quanto àquilo que era a influência da Igreja católica na condução de setores como a cultura e a educaçao/ensino, a saúde e a assistência social... que foram supletivamente assumidas pela Igreja como ações em favor dos mais necessitados, tendo sido vertidas em promoções do dito ‘estado social’, nos tempos subsequentes à segunda guerra mundial. O que ainda subsiste realizado pela Igreja quase é visto como atentado ao ‘estado-providência’, que algumas esquerdas querem impor a todo o custo e negligenciando a complementaridade mais correta, simples e articulada.

 2. Na década de 50 do século passado surgiu a expressão ‘cristandade profana’, numa tentativa de articular o que ainda vinha da Igreja-sociedade. Alguns dos mentores, fautores e executores da vida política como que foram abjurando dos valores e critérios de índole cristã, tentando substitui-los por outros mais transversais, crepitando das lojas transnacionais e assaltando o poder mais ou menos democrático. Nalguns casos a Igreja é como que tolerada se estiver nas atividades (ditas) sociais – nos bairros problemáticos, nas situações de fronteira, numa espécie de interposto de distribuição de comida, de roupa ou gerindo casos mais ou menos marginais... com marginalizados, mal-cheirosos e quase sem solução.  

 3. Como estamos ainda longe de cumprir aquela máxima do Padre Américo de que cada paróquia (freguesia) cuide dos seus pobres! Estes, por vezes, são terreno propício para certos momentos politicos de aliciamento ou de promessas demasiado repetidas e sem cumprimento. Tirem os pobres de alguns trabalhos sociais e de assistencialismo e crescerá o desemprego sem qualificação... dos executores empregados. Como seria útil para todos e conveniente para com quem trabalha nestes setores que houvesse diálogo e não concorrência, cooperação e não preferências pelos da sua cor partidária, serviço desinteressado a quem precisa e não manipulação de quem é beneficiado.

 4. Por uma questão de maior autonomia seria conveniente acabar com a presença de ‘autoridades civis’ em celebrações religiosas. Quem beneficia com tal exposição? Normalmente quem vem de fora, até pelo lugar de destaque que lhe atribuem. Na maior parte dos casos, pela não prárica religiosa, os ‘convidados’ ficam em má impressão diante dos outros. Do mesmo modo que não se justifica que alguém do setor religioso tenha qualquer destaque no atos de naturreza política, que esteja lá como cidadão na normalidade da sua participação. A distinção das águas traria mais automonia a todos e daria mais espaço de verdade nos relacionamentos instituicionais.

 5. Quando houver clareza nas intenções e lealdade nas vivências – político (autarca ou que ocupe outro lugar de escolha) ou religioso (padre ou bispo) – não seremos confrontados com beneficiados nem prejudicados, pois cada qual só é aquilo que é, fazendo-se respeitar e respeitando. Por mim não quero nem pretendo ser beneficiado por ser quem sou ou pelo lugar que ocupo e tão pouco negligenciado por ninguém.

 

António Silvio Couto

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Dos ‘Evangelhos da infância’… para hoje

 


Explicando o que se entende por ‘evangelhos da infância’ situamo-nos nos capítulos 1 e 2 dos evangelhos segundo São Mateus (1,1-2,23) e de São Lucas (1, 5-2,52). Nestes quatro capítulos, colocados numa espécie de ‘introdução’ aos respetivos evangelhos, encontramos em sumário os grandes temas que serão desenvolvidos no corpo do texto por cada um destes evangelistas.

Nos ‘evangelhos da infância’ encontramos várias figuras/pessoas relevantes na revelação de Deus: Zacarias e Isabel, João Batista, José e Maria, pastores, Herodes e magos, Simeão e Ana… em cada um podemos perceber como Deus se lhes revelou e como continua, hoje, a interpelar-nos na nossa caminhada pessoal, em família e de forma eclesial. 

 * O ‘evangelho da infância de Mateus’ tem um caráter fortemente apologético. O capítulo primeiro mostra que a messianidade é garantida pela sua origem – vide a ‘genealogia de Jesus’ – cf. Mt 1, 1-17: Jesus Cristo. filho de David, filho de Abraão numa espécie de artificialidade de conexão entre Jesus e ‘os principais depositários das promessas messiânicas (Abraão e David)’, evidenciando o evangelista que ‘nele encontra sentido toda a História de Israel’. Diferentemente é a ‘genealogia de Jesus’ no evangelho de São Lucas, colocada já fora dos ‘evangelhos da infância’ – Lc 3,22-38 – e destinada para os cristãos provenientes do mundo pagão e onde se faz a conexão entre Jesus Cristo até Adão ‘para acentuar a sua ligação com toda a humanidade’.

O evangelho de São Mateus prossegue com o ‘anúncio do nascimento de Jesus’ a José – Mt 1, 18-25: José, descendente de David cumpre as profecias messiânicas de Is 7, 14. O capítulo 2 divide-se em duas secções: 2, 1-12 e 13-23. Na primeira, como narrativa edificante, acentua-se a dignidade real de Jesus, nascido em Belém (cf. Mq 5, 1), reconhecida, indiretamente, pelo sinédrio e aceite pelo mundo dos gentios, representado pelos magos. Na segunda secção torna-se patente como Jeus, o chefe do novo povo de Deus, viveu na sua pessoa, e de modo mais eminente, as grandes experiências espirituais do Israel antigo – libertação do Egito e cativeiro (cf. Os 11,1; Jr 31, 15), dando ainda a São Mateus a possibilidade de responder à tipificação de Jesus como o ‘narazeno’ (cf. Mt 2,19-23)... 

 * O ‘evangelho da infância de Lucas’ é uma composição literária com recortes literários de fina textura: duas séries de quadros se entrecruzam entre si: uma sobre a vida de João Batista e outra sobre Jesus, naquilo que se poderia considerar de dois dípticos: os das anunciações –1, 5-25 a de João Batista e 1, 26-38 a de Jesus; as dos nascimentos – o de João: 1, 57-80; o de Jesus: 2, 1-21.

Digamos que os dípticos são pintados com o recurso à mesma técnica: o mesmo mensageiro (Arcanjo Gabriel) especializado dos mistérios dos tempos messiânicos; fórmulas análogas de saudação, reação da pessoa agraciada (Zacarias e Maria) e ulteriores detalhes da mensagem... nos dois casos, o primeiro quadro é preparação do segundo, isto é, no primeiro o prometido nascimento será ‘ex sterili’, enquanto no segundo o nascimento acontece ‘ex virgine’...o precursor e o próprio Cristo. As caraterísticas dos dois personagens – João e Jesus – são realçadas de forma clara.
Podemos ainda encontrar dois painéis suplementares: a visitação – Lc 1, 39-56 – onde se dá o primeiro encontro entre o Antigo e o Novo Testamento, pois as duas agraciadas reúnem-se numa atmosfera de alegria messiânica , reconhecendo a ‘velha’ Isabel a superioridade da ‘jovem’ Maria. Outro quadro – Lc 2, 21-40 – situa-nos no templo, numa espécie de apoteose, em que as figuras proféticas de Simeão e Ana aplicam a Jesus a essência de toda a esperança da salvação, anunciada no Antigo Testamento.

Em resumo: no ‘evangelho da infância de Mateus’ a figura principal é José, enquanto, no ‘evangelho da infância de Lucas’, depois de Jesus, a figura principal é Maria... sem esquecer ainda o tema da alegria, o papel importante das mulheres, sendo Jesus apresentado como o Salvador, sobretudo, dos pobres.
Diz-nos o Papa Bento XVI/Joseph Ratzinger, em ‘Jesus de Nazaré – a infância de Jesus’ – «Mateus e Lucas - cada um à sua maneira - queriam não tanto narrar ‘histórias’, mas escrever história: história real, sucedida, embora certamente interpretada e compreendida com base na Palavra de Deus. Isto significa também que não havia a intenção de narrar de modo completo, mas de escrever aquilo que, à luz da Palavra e para a comunidade nascente da fé, se revelava importante. As narrativas da infância são história interpretada e, a partir da interpretação, escrita e condensada.
Entre a palavra de Deus e a história interpretada há uma relação recíproca: a Palavra de Deus ensina que os eventos contêm ‘história da salvação’, que diz respeito a todos. Mas os próprios eventos desvendam, por sua vez, a Palavra de Deus e levam a reconhecer a realidade concreta que se esconde nos diversos textos
» (p. 21).

 Que este breve e conciso percurso pelos ‘evangelhos da infância’ nos possa ajudar a vivenciar melhor este tempo de proximidade ao Natal de Jesus.

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Habitação: casa, morada ou lugar?


 Segundo dados dos ‘Censos 2021’, em Portugal, há um certo desfasamento entre os edifícios destinados à habitação (cerca de 3,5 milhões) e o alojamento (quase 6 milhões de situações). Comparativamente com os censos de há uma década o crescimento do parque habitacional é bastante inferior ao do início do século.

Atendendo a estes números podemos captar que há diferença entre os locais de alojamento e as possibilidades de ter casa própria (proprietário ou arrendatário); de esta pode ser de maior ou de menor dimensão ou ainda de localizar-se no litoral ou no interior do país; ser de primeira habitação ou residência secundária ou sazonal… Nestes diversos itens os resultados dos ‘Censos 2021’ dizem-nos que a tipologia de arrendamento de casa tem vindo a ganhar espaço (22%) ao regime de proprietários (cerca de 70%); que as residências secundárias têm vindo a crescer, sobretudo em regiões de veraneio, no Algarve são cerca de 40% dos alojamentos…

 1. Estamos na época do Natal e, nos textos bíblicos que escutamos alusivos aos momentos socio-religiosos do tempo, lemos: ‘e, quando ali [Belém] se encontravam, completaram-se os dias de ela [Maria] dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria’ (Lc 2, 6-7).  Para além das considerações religiosas desta passagem fica a nota de que Jesus – aquele que foi dado à luz – teve de nascer num curral, sem condições higiene-sanitárias mínimas e onde a privacidade ou mesmo a qualidade da habitação seria do menos capaz. Digamos ainda que a falta de espaço na tal ‘hospedaria’ – coisa de acrescento redaccional e talvez de incidência posterior ao texto original – não passaria de um certo espaço de acolhimento de viajantes, no caso de pessoas que se teriam ido recensear a Belém em cumprimento do édito de César Augusto como se refere em Lc 2,1-2…

A nota de ‘não haver lugar na hospedaria’ pode envolver outras leituras, desde as meramente estruturais – não estavam preparados para ser ‘invadidos’ por tantos deslocados – até às de índole mais espiritual, isto é, podemos não ter espaço para receber Jesus por estarmos cheios ou entulhados de outras coisas… e as pessoas já não cabem…

 2. Quem esteja à disposição do atendimento de pessoas ou quem acolha solicitações de pessoas algo carenciadas receberá – recorrentemente, mas de forma mais acentuada em marés de crise – pedidos para ajudar a pagar a renda da casa e nos gastos – nalguns casos bastante atrasados – de eletricidade, de água, de gás… e até de comunicações… sem esquecer coisas de alimentação.

Recentemente a ‘Caritas’ nacional fez-se eco das dificuldades e das complicações de largos milhares de pessoas que solicitam ajuda nas rendas de casa: entre março de 2020 e fevereiro de 2021, mais de dez mil pessoas (acima de três mil famílias) procuraram ajuda, perfazendo mais de duzentos mil euros…

 3. Este tema da habitação trouxe-me a cogitação pequenos aspetos que poderiam ser úteis incluir na reflexão deste tempo de Natal: o que significa ter casa? Como interpretar viver numa determinada morada? Qual o alcance de dizer que vivo num certo lugar?

* Ter casa – é antes de tudo um espaço onde a pessoa se deve sentir bem, com privacidade e num ambiente que seja acolhedor, sereno e pacífico. Através da casa onde vivemos, mostramos muito daquilo que somos. A nossa casa revela-nos muito para além daquilo que julgamos…

* Viver numa determinada morada – dizer onde se tem a morada chegou a ser um dos itens identificativos da apresentação de uma pessoa perante os outros: quem é, o que faz e onde mora... A rua, o bairro, a zona, a região onde se habita também diz muito daquilo que, em cada um de nós, é feito pelo ambiente e pela cultura circundante… Mais do que uma bolha social, onde moro manifesta-me aos outros.

* Situar-se num certo lugar – sou aquilo onde nasci, fui educado pelos espaços por onde andei e manifesto, sem me dar conta, a envolvência onde estou…Sem outros filtros revelo-me onde vivo, com quem me relaciono e mesmo pelo faço (ou não). Não sou neutro, mesmo que disso pretendesse disfarçar.

Efetivamente a habitação é a minha melhor identidade, que me faz ser o que sou ou estar onde estou!     

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Luz terna, suave, leva-me mais longe…

 


Rezamos no ofício de completas da quinta-feira do tempo comum: ‘Luz terna, suave, no meio da noite, leva-me mais longe… Não tenho aqui morada permanente: leva-me mais longe’.
Foi esta a sensação prática que vi retratada, depois de uma visita a uma professora aposentada de teologia e que, segundo as suas próprias palavras, está nos derradeiros momentos da sua vida em condição terrena. Ela que ensinara sobre essas questões escatológicas confessava, agora, estar prestes a ver aquilo que ensinara aos outros…

1. Percorremos mais de duzentos quilómetros, por entre trancos e barrancos, para podermos meditar na prática a vivência do ‘eschaton’ balthasariano não só da visitada como da nossa condição e conduta em tempo da história. Embora doente, a visitada estava consciente e de fina leitura da vida, mesmo que, como referiu por diversas vezes, prestes a terminar. Apesar de breves, foram intensos momentos que nos dão referência, mesmo neste tempo de Advento rumo ao Natal.

2. Deixei passar alguns dias sobre esta experiência recente para agora trazer à partilha/reflexão algo que me fez pensar ainda mais na forma como a maior parte das pessoas vai vivendo estes dias que antecedem a celebração desse encontro de Deus com a história humana pelo nascimento de Jesus, o Verbo encarnado e redentor. Mais do que rotular de futilidade a forma como uma boa parte das pessoas se preenche com coisas materiais, talvez seja de considerar o que é que ocupa e preocupa essa gente; mais do que lançar dúvidas sobre as suas razões, talvez seja útil ver as minhas razões; mais do que olhar isso de um pedestal religioso, talvez seja preferível vê-lo a partir das bases ético-morais, isto é, dos critérios e valores que são a razão profunda de ser das pessoas e dos seus comportamentos.

3. A correria às compras que necessidade preenche, a consumista-materialista ou a de índole psicológica? Se for a primeira talvez baste mudar o chip das necessidades, se for a segunda será bem mais complexo, pois demonstrará que as pessoas precisam de coisas para se afirmarem, se alimentarem e mesmo para sobreviverem. Dizia o Papa Francisco, recentemente, neste tempo de pandemia: «o consumismo, irmãos e irmãs, sequestrou o Natal. O consumismo não está na manjedoura de Belém, ali está a realidade, a pobreza, o amor... Não nos deixemos levar pelo consumismo. ‘Ah, tenho de comprar os presentes, tenho de fazer isto’, o frenesim de fazer coisas, coisas, coisas… O importante é Jesus».

4. Haverá alguma diferença palpável entre os cristãos e os que o não são, por escolha e conduta? Nota-se algum esforço e luta para contradizer as tendências dos nossos dias? Percebe-se que os cristãos – mais ou menos praticantes – atendem a estas advertências do Papa? Não andaremos mais na corrente do consumo do que na linha da contenção cristã e fraterna? Não faremos a mesma figura de culto do consumismo, quando pretendemos partilhar com quem possa precisar?
Por vezes a tendência da partilha, sobretudo nesta época do Natal, parece servir mais para esvaziar o guarda-roupa daquilo de que já não se gosta do que para abrir o coração às necessidades alheias. Roupa e mais roupa saem da circulação pela simples moda de substituir o que nos incomoda do que aquilo que devia fazer amolecer o coração para com quem possa beneficiar com o nosso esbanjamento egoísta e sedutor.

5. ‘Luz terna, suave, leva-me mais longe: basta-me um passo para a Ti chegar’. Esta súplica com que termina este hino, pode servir-nos como desejo de vivência do Natal deste ano, mais uma vez ritmado pela contenção social, pelos estados psicológicos gerados pela pandemia, aferido aos medos de contaminação e, sobretudo, acrisolado pela sensação quase-espiritual de que ainda não conseguimos discernir as verdadeiras razões de tudo quanto nos tem estado a acontecer desde há quase dois anos…
É, de facto, uma luz ténue, essa que nos guia. Deixemo-nos conduzir por ela com humildade, com carinho e em dinâmica de verdadeira conversão a Jesus, o Menino-Deus.

António Sílvio Couto

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Nada (nem ninguém) deve ser levado a sério?


 Seguindo um princípio básico da comunicação – social e não só – ‘aquilo que não é mostrado não existiu’. Ora, será que aquilo que é noticiado é o mais necessário e conveniente? O que é escrito é, de facto, verdade? Quanto aparece na televisão é válido para a vida – social, económica, política ou religiosa – mais essencial? Até onde podemos levar a sério aquilo que nos mostram? Não haverá muita efabulação – no sentido de exagero ou mesmo de quase-mentira – naquilo que aparece nas redes sociais? Até onde irá o resguardo das pessoas quanto àquilo que são ou que pretendem fazer os outros crer?  

 1. Não sou consumidor de telenovelas e tão pouco acho que possam fazer algo de válido pela ‘educação’ do povo, mas que podem fazer-nos correr alguns riscos, estou minimamente consciente. Poderemos inserir isso a que pretendem chamar de ‘entretenimento’ nalgumas linhas-força para uma possível reflexão: retratam a sociedade ou influenciam-na? Servem os interesses ideológicos ou veiculam ideias subliminares posteriores? Criam dependências ou fazem pensar? São emocionais ou do âmbito intelectual?

Por ser um retrato algo burlesco de algumas figuras da vida social, que dizer de ‘Festa é festa’…antes ou agora? Os políticos serão todos como os que por lá deambulam, num misto de parvo e quase-mentecapto? Os padres são aquilo que ali mostram, numa espécie de bonacheirão sem coluna? Os médicos reveem-se naqueles ali apresentados, sem qualidade nem mérito? As famílias serão todas tão ignóbeis e insanas? Os jovens não mereciam outro tratamento menos anódino? Os comerciantes ou vendedores usarão todos dos mesmos artifícios? Os velhos e anciãos serão dignificados com tais figuras rasteiras e oportunistas?

Dá a impressão que nada nem ninguém é sério (honesto ou leal) nem pode ser levado a sério (vive numa representação), mas a vida normal não é aquilo…nem será.

 2. Neste tempo assaz caraterizado pelo ‘faz-de-conta’ e ainda pelo espreitar pela fechadura nas redes sociais da vida alheia, podemos e devemos questionar os valores e os critérios com que tantas pessoas se conduzem. - Aquilo que os jornais regionais e de âmbito local faziam, está, hoje, como que posto em causa pelos ‘repórteres’ populares, enxameando de populismo pequenos episódios, alguns acontecimentos e quase-ridículos atores…

- Aquilo que era feito pelos jornais regionais, há trinta ou quarenta anos atrás, como que tem sido varrido para debaixo do tapete da informação avalizada como suspeitas, conjeturas e acusações, lançando o labéu sobre quem não alinha em tais artimanhas.

- Com que facilidade vemos emergirem certos ‘patos-bravos’, que de microfone em riste, tentam que lhes digam aquilo que foi encomendado – até para manter o share – ou que lhes foi soprado por algum mais ressabiado que pode colocar de atalaia outros incautos. Certos temas cheiramo-los a quilómetros como matéria suscetível de flutuar durante uns dias, sem honra nem glória… De ‘nação valente’ temos ali muito pouco e de ‘imortal’ mesmo nada.

 3. Decorridos mais de seiscentos dias (igual ou superior a vinte meses) de vigência da pandemia nota-se uma conglomeração de fatores que fazem deste tempo algo apreensivo, inquietante ou à procura de paz.

- Parece que o ‘covid-19, afetou a moleirinha de uma parte significativa das pessoas, tornando-as apreensivas sobre o seu teor de saúde e um pouco não-recomendável sobre a apreciação das situações pessoais e coletivas…simples ou mais complexas.

- Quem ontem parecia equilibrado, hoje precisa de consulta urgente no psicólogo. Quem há meses entendia os problemas, hoje fá-los tão graves ou quase-irresolúveis. Quem ontem nos dava segurança, hoje precisa de se sentir seguro ou, pelo menos, segurado.

- Como sempre em maré de crise é preciso que surjam pessoas capazes de saberem transmitir a paz, não como questiúncula de equilíbrio dos medos, mas como participação na confiança de todos para com todos, sem discriminações nem abandonos ou fugas.

Levar a sério os outros poderá ser a melhor forma de sermos construtores de um tempo mais cristão, já.

 

António Sílvio Couto      

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Ó céus do alto rociai

 


Escutei, há dias, este cântico:

Ó céus do alto rociai. / O justo, ó nuvens chovei.

Germine a terra o seu Deus. / O Adonai, nascei, nascei’.

 Embora seja apresentado, nos meios da internet, como de autor desconhecido e com sabor popular, recordo-me de escutar este cântico em contexto litúrgico e sendo atribuído a um autor bracarense.

Como expressão orante do tempo do Advento pode servirnos para reparar nalguns aspetos nesta preparação em ordem ao Natal.

Desde logo o que significa: ‘rociai’? É uma palavra de origem latina (roscidare, roscidus) e significa: cair orvalho, orvalhar...numa súplica voltada para o Alto e em atitude de abertura à condução divina...na terra.

 1. Por vezes ouve-se de algumas pessoas uma observação que tem tanto de interessante quanto de esquisita: vou ao menos à ‘missa da galo’... no resto do ano não tenho tempo e nem sempre me apetece. Quem tal refere poderá ter as suas convicções religiosas, mas talvez não assentem em alicerces cristãos. Quem tal se considere ‘praticante’ poder-se-á iludir com rituais, mas sem fundamentação cristã. Quem tal faz será crente ou meramente religioso, à sua maneira?

 2. Por outra perspetiva vou constatando que alguns dos nossos fregueses – no sentido etimológico do termo, da procedência do latim: ‘filius ecclesiae’ (filho da igreja) – frequentam as celebrações do Natal, mas não fizeram com os outros a preparação do mesmo, pela caminhada do tempo do Advento, esse mesmo colocado na dinâmica liturgico-eclesial para ser preparação da ‘vinda do Senhor’. Efetivamente muitos dos nossos ritos, ainda sociais de cristandade, parecem ter pouco a ver com aquilo que se poderá designar de compromisso, isto é, cada um vai ou não, conforme lhe dá jeito; cada um vai aqui ou ali à missa (de domingo ou outra) mais em conformidade com os seus interesses do que com o vínculo que sente e que vive com aqueles com quem celebra a fé; cada um – e são tantos – usa das coisas da Igreja mais em função da sua conveniência do que em razão de uma caminhada comprometida...

3. Os ecos e repercussões deste tempo de pandemia como que vieram agravar o razoável descompromisso de uma boa parte dos nossos fregueses. Estamos a pagar a fatura de termos andado a dar sacramentos a pessoas não-evangelizadas. Muitas das celebrações do batismo são realizadas mais em razão da festa do que em consonância com a fé mínima e suficiente. A maior parte dos casamentos são feitos na igreja, mas muito pouco em sintonia com a Igreja. Uma percentagem dos crismados são aceites mais no termo de um tempo de ‘catequese’ do que pela catequização desenvolvida... o sinal vê-se nos dias seguintes à cerimónia – quando devia ter sido celebração – na ausência à assembleia celebrante...

 4. De que adianta haver uns tantos que se dão ao cuidado de denunciar, de esgrimirem razões ou de se empenharem em soluções, senão houver um plano diocesano no qual todos se comprometam? Está em desenvolvimento o processo sinodal em toda  a Igreja e nas igrejas particulares (dioceses e paróquias), mas quem leu os textos de preparação emanados da Santa Sé? Quem quis refletir sobre as dez questões preparatórias do Sínodo? Quem já designou os dinamizadores dos grupos sinodais?

5. Por estes dias soube do estado de saúde de duas pessoas que muito estimo: o Padre Francisco de Jesus Graça e a Professora doutora Manuela Carvalho. Por interposto amigo escutei o desprendimento de ambos desta face da vida: um e outra sentem-se a ir para o Natal eterno da ressurreição. Não será isto o orvalho de Deus a espargir-se sobre a Terra?

 

António Silvio Couto

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Estará o Natal em risco?

 


Soube-se, há dias, que circulava nos meandros burocráticos da União Europeia (Bruxelas e Estrasburgo) uma proposta de linguagem de onde seriam retirados os termos alusivos ao Natal e àquilo que isso representava. Sabido tal intento, o Secretário de Estado do Vaticano fez saber da reprovação de tais desejos e – ao que parece – o ‘documento de trabalho’ foi retirado de circulação.
Este mais do que episódio fez emergir a consciencialização de que há forças – pretensamente democráticas – que não sabem lidar com a história e tão pouco a memória da Europa com raízes cristãs fundadas no cristianismo, sem esquecer o contributo de outras ‘religiões’, embora mais recentes e menos representativas.
Apesar de ser incomodamente unitivo da identidade deste continente é recorrente surgirem ‘iluminados’ que pretendem ignorar tudo isso, augurando fazerem-se capazes de construir ‘uma’ nova história, reescrita com os seus critérios e ao sabor dos seus intentos subterrâneos.
Partindo da palavra ‘Natal’ construímos uma frase com as iniciais dessa mesma palavra –‘Nasceu aqui tanta aprendizagem da liberdade’ – que desenvolveremos nalgumas ideias simples e algo básicas:

* Nasceu – celebramos por excelência no Natal a manifestação da vida, esse valor de tantas formas questionado na letra e na forma por instâncias europeias e por muitos dos seus cidadãos. Com efeito, o Natal denuncia o aborto, a eutanásia e tantas outras formas atentatórias da vida, o principal valor e critério de conduta humana e civilizacional. Por que será que custa a tanta gente aceitar a vida como dom? Se retirarmos a vida que nos ficará de essencial? Certos gestos de fechamento à vida não denunciam a ética de tantos sem moral?

* Aqui – é nesta parte do planeta Terra, de entre os seis continentes, que se tem construído uma civilização tão antiga quão questionável e necessitada de ser revista. A Europa como continente tem as seguintes caraterísticas: área de 10.480.000 Kms2; população: 762,1 milhões; 49 países, dos quais 27 fazem parte da União Europeia e destes 19 têm o euro como moeda única. É neste continente, ‘aqui’, que se continua a fazer civilização, com o confronto de ideias, onde muitos usufruem das regalias da UE, embora a contestem!

* Tanta – perante os sucessos nos diversos campos da atividade, os europeus devem, hoje, saber respeitar também os valores dos povos de outros continentes. Embora se note uma certa estagnação espiritual e religiosa na Europa, precisamos de aprender a revalorizar as expressões culturais de outros povos, onde também o cristianismo tem força de fé e de vida. Efetivamente vemos, de tantos modos e vivências, que o anúncio do Evangelho tem ganho nova expressão cultural com que ardor e motivação.

* Aprendizagem – ao longo dos séculos, podemos constatar como o Natal foi sendo vivido sem se descentrar. Sobretudo após a refontalização de S. Francisco de Assis, no século XIII, o Natal passou a ser ainda mais cristão: o presépio fez ganhar nova vivência o mistério da encarnação do Verbo, pois é Jesus-Menino o centro da festa, isto é, o festejado. Com o consumismo em crescendo, Ele foi quase sendo obnubilado pelas coisas, chegando-se, agora, à sobreposição das prendas sobre o verdadeiro presente, que é Ele. Esta aprendizagem faz-nos caminhar para não perdermos o essencial com adereços de circunstância…

* Liberdade – como valor inestimável sempre norteou o comportamento, sobretudo, na Europa. Percorridos tantos séculos de história podemos compreender um tanto melhor que a liberdade de pensamento, de ação ou de expressão foram cultivados por boa parte dos europeus e, mesmo quando isso não aconteceu, sempre surgiram vozes e personalidades a reclamarem dessa ausência. Não podemos excluir dos nossos dias a possibilidade de termos de fazer com que a liberdade seja sempre um valor que nos trazido pelo mistério do nascimento de Jesus, no tempo e na história.
Hoje como ontem, é em Jesus, por Jesus e com Jesus – senhor da vida e da morte – que poderemos viver em fraternidade, pela igualdade e com liberdade… o resto soará a falso e/ou a manipulação ideológica.

António Sílvio Couto

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

‘Memórias do rio’


 Decorreu, no passado dia 1 de dezembro, na biblioteca municipal da Moita, um colóquio intitulado – ‘Memórias do rio’ – sobre vivências de antanho em ligação ao Rio Tejo. Escutaram-se testemunhos de homens com larga e longa história de vida e ainda ressonâncias de uma delegação dos avieiros de Santa Iria da Azóia, bem como leituras e interpelações do pároco da Moita.

Foram intensos momentos de partilha e onde se notou mais do que laivos de revivalismo, sendo, no caso dos avieiro, destacado o papel da mulher no contexto das atividades ligadas ao rio e à gestão da família.

O quadro evolutivo de um dos participantes, hoje com mais de noventa anos, na relação com o trabalho no rio, a depuração das ostras ou a ‘emigração’ dos avieiros para a zona norte do Tejo bem como a arte de construção das velas para os barcos típicos do rio, foram aspetos escutados por algumas dezenas de interessados, sobretudo procedentes das freguesias do Gaio-Rosário, Moita ou Sarilhos Pequenos.

Foi abordada ainda a ‘religiosidade com sabor a sal’, na linha do ‘Stella maris’ ao nível internacional e nacional. Nesse contexto foi feita uma observação sobre o brasão do município da Moita, onde não consta nada alusivo à relação concelhia com o Tejo (só aparecem referências ao mundo rural: sobreiro e uvas), enquanto as ‘armas’ das três freguesias da paróquia da Moita realçam esse aspeto de forma clara (barcos, utensílios marítimos e alusão à água)... Afinal, como se diz numa inscrição na zona do cais da Moita: ‘nesta terra quem não cava, já cavou; quem não rema, já remou’!

Como conciliar mentalidades?

A realidade socio-cultural da Moita talvez não tenha apreciado, valorizado nem favorecido devidamente a sua relação com o rio. Se em tempos foi factor de trabalho e de sobrevivência para alguns setores – diga-se, os mais pobres – nas últimas décadas o desfasamento parece mais acentuado. Se bem que aquela frase epiteto supra citada como que conglomera as duas vertentes socio-económicas – o campo (cavar) ou o rio (remar) – não foi tido o cuidado necessário e suficiente para com a dimensão marítima. Talvez seja digno de registo – atendendo às pessoas presentes no colóquio efetuado – e deva ser dito que se nota um razoável hiato geracional: bastante velhos e gerações na barreira de menos de vinte anos, sem esquecer os filhos daqueles que viveram das coisas do rio.

É neste sentido de recolocar o rio como ponto de referência na cultura da Moita que o emergente grupo do ‘Stella maris’ pretende acolher, motivar e dinamizar as pessoas para com este amigo nem sempre bem tratado, que é o Rio Tejo.

Como se dizia num panfleto difundido por ocasião deste colóquio que «são âmbitos de ação do Stella Maris – Moita do Ribatejo as pessoas e organizações ligadas ao mar e aos rios, seja ao nível profissional (marinha mercante ou pesca) bem como às atividades desportivas, lúdicas e de lazer e ainda as agremiações de defesa e conservação do mar e dos rios, ajudando a promovendo uma maior sensibilidade ecológica. O atendimento às famílias das pessoas envolvidas nestes sectores. A promoção e o acompanhamento das atividades com aplicações culturais e religiosas de índole marítimo e fluvial».

Este primeiro colóquio promovido pelo ‘Stella maris’ da Moita prosseguirá em breve com outros temas ligados ao rio, onde a ecologia, o ambiente e os desportos náuticos e de recreio poderão estar em análise.

De referir que o grupo do ‘Stella maris’ da Moita tem por patrono São Pedro Gonçalves Telmo (São Telmo), protetor dos navegantes.



António Silvio Couto

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Competência e lealdade

 


Recentemente ouvi de um político a conjugação destes dois termos numa tentativa de definir quais seriam, na sua perspetiva, os critérios de escolha dos candidatos a deputados.

Tentando, na medida possível, despojar de incidência ideológica o assunto, aceito tomar estas duas palavras para fazer um percurso humano-cultural onde estes dois fatores podem e devem estar (mais) presentes do que aquilo que parece ter acontecido.

 1. Definição de termos. ‘Competência’ significa ‘capacidade decorrente do profundo conhecimento que alguém tem sobre um assunto’… essa capacidade advém-lhe da conjugação dos seus conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, que lhe permitem desempenhar eficazmente, no desenvolvimento de várias situações, numa área específica… ‘Lealdade’  é um ‘valor humano relacionado com a capacidade de uma pessoa ser plenamente confiável, manter a sua retidão moral, honestidade e honrar os seus compromissos’… manifestando-se na plena confiança entre os intervenientes e no cumprimento do compromisso assumido…

 2. Atendendo a estas definições descritivas poderemos abordar aspetos mais práticos, onde a teoria não poderá ser esquecida e onde a prática possa ser a melhor prova de competência e de lealdade. Seria quase trágico que tivéssemos pessoas que são competentes mas não leais ou que se dissessem leais mas não são competentes. Com efeito, dos ‘competentes, mas não leais’ poderíamos esperar a qualquer momento um golpe de habilidade que romperia a confiança entre as pessoas que seriam enganadas, mas que só o descobririam tarde de mais. Por outro lado, os ‘leais não competentes’ poder-se-ão tornar lacaios e aduladores que mais tarde ou mais cedo poderão tornar-se traidores e até incapazes de desempenhar alguma função para a qual não estariam preparados, mas a que acederam por mera simpatia a gosto…

3. Por que será, então, que vemos tantos incompetentes a ocupar lugares para os quais não estavam, minimamente, preparados? Por que temos de aturar o clientelismo e não a meritocracia? Por que andamos a encobrir os incompetentes, quando os devíamos denunciar e de lhes tirar as regalias dos seus postos? Não haverá deslealdade ao pactuarmos, em silêncio, com certas tropelias de quem nos governa, antes governando-se? Por que será que a incompetência é tão atrevida e se faz pagar com benesses e prebendas?

 4. Parece que estamos num tempo onde (quase) tudo é escrutinado, desde as coisas mais mesquinhas até às ações mais hediondas. Dá a impressão que nada escapa, à exceção da incompetência. Por isso, como que somos tentados a pensar que esta letargia de incompetência em quem a cuide e deseje prolongar, pois talvez possa beneficiar com tais desgovernos. Na política de trazer por casa podemos ver a situação da (pretensa) transportadora aérea nacional: é o exemplo máximo de incompetência e até de deslealdade, pois nela têm sido enterrados rios de dinheiro e nada muda, pelo contrário mais se afunda. Para quando uma solução radical como a encontrada para os estaleiros navais de Viana do Castelo: fecha e dá lucro! Talvez falte vontade de solucionar o problema a sério…

 5. Agora que caminhamos a passos lestos para o próximo ato eleitoral será de questionar seriamente se vamos ter de votar nos mesmos, que já deambulam pelo Parlamento à sombra dos direitos adquiridos, se nos vão apresentar novas figuras – competentes e leais mais ao país do que ao partido… isto já para não referir, se será ao lóbi, à tendência ou à ideologia. Haverá inda quem se queira sujeitar ao escrutínio nem sempre respeitador da pessoa e mesmo da família? Não teremos muita gente competente que não está para ser confundida com algum chafurdar obscuro e menos leal?

Seja qual for o campo de atividade em que nos poderemos colocar, talvez se possa resumir a consonância entre estes dois valores: competência sem lealdade pode gerar proselitismo… Lealdade sem competência pode fomentar adulação.

  

António Sílvio Couto      

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Quem quis eutanasiar a eutanásia?

 


Em cerca de oito meses o Presidente da República devolveu, vetando, duas versões da lei sobre a despenalização da eutanásia, politicamente dita de ‘decreto-lei sobre a morte medicamente assistida’.

Desta vez o PR solicita que seja aferida alguma terminologia, isto é, que seja explicada e usada de forma uniforme. Diz a carta-mensagem enviada ao Parlamento: «O legislador tem de escolher entre exigir para a eutanásia e o suicídio medicamente assistido – que são as duas formas da morte medicamente assistida que prevê, entre a “doença só grave”, a “doença grave e incurável” e a “doença incurável e fatal”.
Isto, porque, no novo texto do diploma ora usa “doença grave ou incurável”, o que quer dizer uma ou outra, ora define aquela como grave e incurável, o que quer dizer, além de grave, também incurável, ora usa “doença grave e fatal”, o que quer dizer que, além de grave e incurável, determina a morte. Não apenas é grave, incurável, progressiva e irreversível, como acontece com doenças crónicas sem cura e irreversíveis. É fatal
».

A 15 de março passado, o PR tinha já vetado o anterior decreto do Parlamento sobre esta matéria tendo em conta que o Tribunal Constitucional, ao qual enviara o diploma para fiscalização preventiva, e que o considerara inconstitucional por ‘insuficiente densidade normativa’ do artigo 2.º, n.º 1, que estabelecia os termos da morte medicamente assistida deixar de ser punível.  

 1. Vinte e seis anos de discussão sobre a eutanásia tiveram – sobretudo neste tempo de pandemia – uma verdadeira saga de falta de senso, senão mesmo de hipocrisia. Quando morriam por dia centenas de pessoas de ‘covid-19’, a 29 de janeiro, o Parlamento aprovou a primeira versão da lei…que foi vetada a 15 de março… Agora, depois de terem sido marcadas eleições para janeiro do próximo ano, no dia 5 de novembro, foi aprovada a nova versão, ao que parece mal corrigida e muito menos aumentada… Os trabalhos da ’25.ª hora’ foram atabalhoados, ineficazes e inconsequentes… Basta ler carta-mensagem do PR e ficaremos a saber a sua leitura, impressão e conclusão.

 2. Para quem deseja fazer passar a ideia de que este tema da eutanásia configura uma vertente algo humanista e não ideológica, tem-lhe sido difícil conjugar as ideias e muito menos de ser capaz de parecer sério, pois sereno nunca foi e convincente tão pouco… Não têm lá nas assessorias quem reveja os textos e anote as incongruências? Não conseguem dizer ao que vem, metendo os pés pelos cotovelos e criando a certeza de que a eutanásia é um razoável ‘fait divers’ quando as coisas estão a correr mal para as parcerias de conveniência. As pessoas normais não merecem mais respeito do que terem de aturar as manias de certos políticos para os quais a vida, para além de parecer descartável, se torna enfadonha quando vivida com valores mais do que materialistas?

3. Apesar de circularem baixos-assinados na internet ou de certas forças mais conotadas com a linha da vida – em especial ligadas ao cristianismo – não foi preciso recorrer a esse expediente de sabor populista, pois a verdade emerge mesmo quando menos se espera. Com efeito, neste como noutros problemas, vem-me à lembrança essa frase evangélica: os filhos das trevas são mais espertos do que os filhos da luz… só que o texto não explicita que os filhos da luz são (ou podem ser) mais inteligentes do que os das trevas. É isso mesmo que reporto neste tema: tantas espertezas, mas sempre deixam alguma ponta solta para desfazer o novelo com que tentam enredar-se.

4. Agora que já sentimos os sons, as memórias e as vivências do Natal, à mistura com os cuidados no ‘estado de calamidade’, podemos e devemos refletir com mais serenidade sobre o que leva algumas pessoas – que até reputo de capazes de refletir minimamente – a insistirem nesta matéria da eutanásia? De pouco valerá a vida se ela só for para ser consumida com trejeitos de imediatismo, de epicurismo ou de mera contingência egoísta. Precisamos de algo mais do que experiências fugazes. O Natal é do festejado, Jesus, feito homem por nosso amor e para nossa glorificação.  

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Preconceitos darão votos?

 
Por estes dias – e desde há cerca de um mês – fomos confrontados com uma tendência de boa parte da comunicação social em ‘vender’ – diria antes impingir sob manipulação acintosa – um certo modelo de presença na vida política. Os ‘astros’ alinharam-se com ‘naturalidade’ para que tal se pudesse concretizar. Vimos forças quase antagónicas a exaltarem a nova proposta. Horas e horas foram gastas a esmiuçar os benefícios pretendidos. Até as ‘cúpulas’ embarcaram no engodo… Só que o povo – esse de quem se servem para tentar legitimar as decisões de gabinete – foi noutra linha e poucos (quase ninguém) saíram a ler o que aconteceu nessa resposta simples, clara e sensata sobre o modo de estar nestas coisas da vida pública (política)…sem que as questões ético-morais não façam parte da análise, da avaliação e da decisão.

1. Fique claro: sou daqueles que ainda acreditam que ‘Deus escreve direito por linhas tortas’, isto é, aquilo que poderia ser considerado menos bom ou até negativo pode ter outra interpretação, assim o consigamos ver e discernir. Há acontecimentos que podem ser sinais de algo mais do que aquilo que vemos em primeiro plano. Com efeito, precisamos de ultrapassar alguma da banalidade do imediatismo para descobrirmos algo mais profundo ou mais alto, isto é, temos de saber mergulhar nas raízes e de levantar os olhos do chão.

2. Nota-se que muitos dos agentes d
a comunicação social – nos diversos aspetos, tendências ou configurações – querem ter uma agenda à sua maneira, onde certas questões sejam apresentadas, vistas e lidas com os seus clichés…muitos deles preconceituosos e não-independentes. Por vezes afirmam de forma peremptória que não se deve trazer para a vida pública questões do foro privado, mas quando assuntos deste espaço interessam como temática para a sua agenda, não têm pejo de o fazer, mesmo que se possa fulanizar o problema… A transversalidade da ‘ideologia de género’ é disso um sinal mais do que evidente!

3. Confunde-me que se use o ‘povo’ – entidade ou figuração, personalidade corporativa ou mito mais ou menos idealizado – como sujeito de ação e se destrate o mesmo, quando parece não seguir aquilo que gostaríamos que nos favorece-se. Fique claro: o povo é soberano em todas as questões, mesmo que possa estar sob manipulação e que quase sempre fala, embora não lhe compreendamos, logo, as lições. Há momentos – sobretudo de crise – em que se nota quase uma simbologia da ‘voz divina’, quando o povo nos adverte, avisa e dá sinais para onde seguir…

4. Custa-me a crer que ainda não se tenha percebido essa espécie de plano subterrâneo onde certas forças mais do que construírem a sociedade na base da verdade preferem congeminar processos alicerçados nalguma ‘fidelidade’ a princípios obscuros, muitos deles que percorrem os partidos e associações na sua diversidade e, teoricamente, em complementaridade. Quantas vezes invocam a ‘ética republicana’ para terem cobertura das suas ideias. Quantas vezes temas como ‘a vida e a sua defesa’ têm mais detratores do que defensores. Quantas vezes os argumentos apresentados em debates – públicos/políticos, televisionados/nas redes sociais – se nota que há um devocionário por onde se guiam os intervenientes. Em que loja (ou armazém) recebem tal instrução? Com que instrumentos e truques serão educados?

5. Por último exprimo com tristeza uma constatação…com alguns factos: quando vejo cristãos mais empenhados em defenderem as ideias de tais ‘escolas’ do que a pronunciarem-se a partir da doutrina católica – no Catecismo em vigor ou nas intervenções do magistério – sinto-me confuso, baralhado e quase revoltado. A quem interessa apresentar como católicas figuras que ‘enfeitam’ também intervenções de partidos ‘que maquinam contra a Igreja’, nessa expressão consagrada e não substituída? Por que teremos de tolerar figurões, que defendem, mesmo no parlamento, mais temas fraturantes anti-vida do que a ética cristã?
Em breve seremos chamados a votar. Será útil e necessário ter memória e teremos de agir em conformidade… refutando, visceralmente, as propostas de certos trogloditas de serviço…e tão efabulados pelas sondagens.

António Sílvio Couto