Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

De mão estendida – até quando?

 


Há dias um responsável de uma ‘Caritas’ diocesana referia: «somos, orgulhosamente uma instituição de mãos estendidas. Estendidas para pedir ajuda em nome dos que mais precisam; estendidas para partilhar o que somos e temos com os mais desfavorecidos das nossas comunidades; estendidas para acolher e cuidar de todos os que depositam na nossa ajuda a esperança de dias mais risonhos; estendidas para prestar contas com transparência e construir caminhos em rede e comunidade».

1. De facto, esta entidade da Igreja católica, que é a ‘Caritas’, precisa da ajuda de todos, ainda mais quando as notícias nos avisam que o risco de pobreza é cinco vezes maior entre os desempregados. Segundo um estudo recentemente publicado o desemprego, a doença e o divórcio são fatores que contribuem para a entrada numa situação de pobreza ou que impedem que se saia dessa condição. Seguindo ainda os dados desse mesmo estudo foram identificados "quatro perfis de pobreza em Portugal": os reformados (27,5%), os precários (26,6%), os desempregados (13%) e os trabalhadores (32,9%)".

2. Quando vemos os vendedores de sonhos em campanha eleitoral sentimos que alguém não vive nem conhece o país real, antes vê e/ou lhes mostram o que pode deixar-nos a triste sensação de mentira contumaz de tantos/as dos políticos profissionais… Como se pode entender que muitos políticos encham a boca com referências aos pobres, quando não fazem nada por dignificá-los, antes os exploram de forma vergonhosa.

3. Já o referimos diversas vezes: os pobres alimentam muita gente em Portugal, pois, se retirarem os pobres da conversa dos politicos, dos sindicalistas e de outros lutadores afins pouco mais ficará do que discursos vazios e, na maior parte dos casos, sem nexo. Outros, fora do circuito do faz-de-conta em que se tornou a nossa vida coletiva, vivem também à custa dos pobres, seja qual for a instância ou a etapa de dependência. Quantas instituições – até no âmbito cristão – se dizem defensoras dos pobres, mas continuam a tê-los presos pela boca. Quantos arautos da igualdade de oportunidades, mas que não promovem convenientemente aqueles/as que lhes dão visibilidade nem mesmo meios de sobrevivência em profissão.

4. Como é possível que quase cinquenta anos depois da ‘revolução de abril’ ainda se fomente, se cultive ou se difunda uma visão acentuada entre ricos e pobres, numa diatribe quase-marxista de luta de classes à semelhança das questões de meados do século passado…dos blocos beligerantes na ‘guerra fria’. Como é triste e lamentável que haja ainda pessoas que continuam a considerar os outros como subalternos e quase objetos e não sendo aceites como pessoas com direitos e deveres iguais…

5. Atendendo a que estamos na designada ‘semana Caritas’ (entre 25 de fevereiro e 3 de março), retomamos as palavras citadas a abrir este texto sobre o significado das mãos estendidas:

- para pedir ajuda em nome dos que mais precisam – onde todos dão o seu contributo poderemos fazer mais e melhor;

- para partilhar o que somos e temos com os mais desfavorecidos das nossas comunidades – as mãos abertas geram partilha, enquanto os punhos cerrados podem fomentam conflitos, tensão e mal estar;

- para acolher e cuidar de todos os que depositam na nossa ajuda a esperança de dias mais risonhos – só quem tem as mãos para dar pode receber gratuita e gratificadamente;

- para prestar contas com transparência e construir caminhos em rede e comunidade – a circulação de quem dá deve chegar a quem se dirige, sem nunca se desviar em nada da intenção essencial.

6. Todos somos precisos, embora ninguém seja indispensável. Em matéria de caridade devemos rivalizar uns com os outros na consideração, no empenho e na simplicidade…sempre.



António Sílvio Couto

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Confundidos pelos rateres

Por estes dias surgiu na linguagem político-cultural a palavra ‘rateres’. O que é e como se verifica estes fenómeno da área da mecânica automóvel ou mesmo de combustão em motores... classificando os estampidos violentos de alguns tubos de escape. Esse barulho anormal poderá ser devido ao mau funcionamento de um motor de explosão...
Ora, numa apreciação algo anormal, uma agremiação política terá confundido esses rateres com o som de armas de fogo. gerando-se, assim, alguma apreensão, tendo em conta o local (final de uma feira semanal), as coincidências (passagem de uma caravana em propaganda) e uma espécie de conflitualidade das forças em apreço com certas posições um tanto exageradas, tanto na forma como no conteúdo.

1. Assim sendo o que leva alguém a lançar uma espécie de labéu sobre sobre um fenómeno que, para além de possível e normal, nos veículos de combustão e cuja explosão poderá denunciar o menos bom ou mesmo mau estado do motor do veículo? Não deveria haver mais ponderação nas sensações emotivas de figuras que podem cair no ridículo ao confundirem as coisas? Não revelará este tipo de reações um outro mal-estar pessoal e de grupo e que, com facilidade, criam e difundem fantasmas?

2. Agora que estamos no olho do furacão para as eleições legislativas parece que se acentuam efervescências que deixarão, no futuro próximo (depois de 11 de março – data simbólica), a maior parte dos intervenientes mal colocados, senão mesmo podendo servir de tema para rábulas humorísticas... à saciedade. De facto, muitos dos intérpretes das propostas partidárias denotam algum desequilíbrio emocional, na medida em que gastam mais tempo a contestar os outros do que a apresentarem as suas propostas. Por este andar iremos ser guiados a escolher os menos maus do que os mais competentes, a votar em quem não queremos que venham a governar do que a dar-lhes assentimento e credibilidade.

3. Citamos a nota do conselho permanente da Conferência Episcopal Portuguesa, do passado dia 19 de fevereiro, intitulada: ‘Eleições Legislativas 2024: Restituir a esperança aos cidadãos’
«No tempo de debate e reflexão pré-eleitoral em que nos encontramos, exige-se um diálogo honesto e esclarecedor entre os partidos políticos, com a apresentação de programas exequíveis e conteúdos programáticos que não se escondam por detrás de manobras mediáticas e defraudem a esperança dos cidadãos (n.º 3).
(...)
A responsabilidade é de todos, dos políticos e de quem os elege, dos que definem projetos e de quem faz escolhas, daqueles que apresentam propostas e de quem se preocupa em delas ter conhecimento para votar conscientemente. Escolher quem nos representa no Parlamento é um dever de todos e ninguém deve excluir-se deste momento privilegiado para colaborar na construção do bem comum. A abstenção não pode ter a palavra maioritária nas eleições do próximo dia 10 de março» (n.º 5).

4. Muito honestamente: dispensamos os estalidos de rateres que ouvimos, que vemos ou que lemos nas ruas e nos meios de comunicação. Não é preciso ficar pela aparência, temos de nos comprometer com todos e para todos. Votar: um direito, um dever.



António Sílvio Couto

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Custos da atualização do ‘salário mínimo’

 

De entre as propostas eleitoralistas dos diversos partidos políticos emerge uma que tem tanto de interessante quanto de demagógica e acentuadamente populista: ao aumento - alguns dizem atualização - do salário mínimo nacional, num crescimento que atingirá a capacidade de sobrevivência de boa parte das empresas nacionais, sobretudo daquelas que tratam com pessoas sem que estas possam ser entendidas e tratadas como mero produto económico. O setor da ‘economia social’ vive num sufoco para conseguir suportar os encargos decorrentes da (dita) atualização do salário mínimo e honrar os compromissos para com os fornecedores, os encargos para com o Estado e tentar aferrolhar algo para emergências constantes...

1. Designado como: remuneração mínima mensal garantida, o tal ‘salário mínimo’ teve a seguinte evolução desde 2015: 505 €; 2016: 530 €; 2017: 557 €; 2018: 580 €; 2019: 600 €; 2020: 635 €; 2021: 665 €; 2022: 705 €; 2023: 760 €; 2024: 820 €... Isto é, em dez anos cresceu 315 euros numa percentagem galopante.

2. Atendendo a certas propostas de aumento da dita RMMG veiculadas no fervor da campanha eleitoral poderemos considerar que muitos dos proponentes têm desta matéria uma visão ultra economicista, mesmo que se julguem defensores da justiça social. Desculpando a minha ignorância e pouca capacidade de perceção de gestão, mas parece-me que quem trata com pessoas - a tal economia social - com dificuldade fará verter na prestação de serviços os sucessivos aumentos da RMMG. Com efeito, será mais ou menos subtil repercutir a dita atualização em meios de produção primários e de serviços, mas com extrema complexidade se pedirá que, nos contratos celebrados, normalmente de modo anual, se acrescente algo que equilibre as despesas com os salários...

3. Vivemos num afã de lançar dinheiro para gastar e com isso se julga movimentar a economia. Perpassa por algumas propostas de algumas forças ideológicas uma certa mentalidade marxista de taxar as mais-valias, embora nem todas sejam resultado da exploração dos trabalhadores nem possam ser vistas como capitalização dos investidores. Por alguma razão campeiam por aí visões ultramontanas no que se refere à relação de empregador e de assalariado, fazendo o Estado ser aquele que tudo manda e nada nem ninguém ousa contrariá-lo... até porque tem em seu poder a chave de sobrevivência da maioria das instituições particulares de solidariedade social.

4. Desgraçadamente a Igreja católica, em Portugal, deixou-se ir na cantiga de criar, manter e administrar ‘centros sociais’, onde tem de seguir os mui estreitos ditâmes do Estado. Aquilo que, na década de cinquenta do século passado, fez surgirem casas de acolhimento e de caridade em localidades mais desfavorecidas social e economicamente, têm agora de enfrentar problemas quase insolúveis para cumprir as exigências estatais e governamentais, em muitos casos ao sabor do coloração reinante ao nível geral e autárquico. O pretenso PRR (plano de recuperação e resiliência) é o mais lídimo exemplo: pode-se ser contemplado num concurso com algum dinheiro, mas, entre a aprovação do projeto e a sua implementação, os custos podem quadruplicar... e o melhor é evitar hipotecar o presente e o futuro.

5. As perspetivas não são nada animadoras: é tempo de deixar ao Estado fazer o que lhe compete, pois, na maior parte dos casos, os funcionários dessas instituições não passam disso mesmo, de assalariados reivindicativos, de cristãos tem muito pouco, e de praticantes da fé estão longe de o realizarem.
É hora de acordar!



António Sílvio Couto

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Querem desvendar a justiça?

 

É simbolizada como sendo uma jovem de olhos vendados, com uma espada na mão direita e uma balança na mão esquerda... eis a ‘justiça’. Os olhos estão vedados, mas não é cega; as mãos estão ocupadas, com sinais de decisão e não capazes de receber nada, a postura é de teor feminino como se fosse capaz de ser justa com compaixão para com réus e vítimas...

Tem sido assunto controverso nos tempo mais recentes, sendo necessário explicitar alguns aspetos, que têm servido mais de armas de arremesso do que de proposta de solução entre os mais díspares intervenientes.
Repare-se que a ‘justiça’ tem os olhos vendados, mas não tem tapados os ouvidos, pois, deve ouvir concerteza e decidir sem olhar a quem...

1. Há perguntas a colocar: qual o significado numa sociedade (dita) democrática do poder judicial? Sendo, como dizem, que é o terceiro pilar da sociedade, que relação tem com os outros poderes, legislativo e executivo? Será tão independente, na prática, como pretendem fazer crer? As leis pelas quais se rege o poder judicial, quem as faz e como as pode condicionar? Será verdade que há gabinetes de advogados que intervêm na feitura de leis, posteriormente, aprovadas no parlamento? O (dito) legislador será mais preventivo ou dissuasor do já feito? Há, na prática, diversos áreas do exercício de justiça? Se não for bem cumprida - no tempo, na qualidade, nos custos ou na repercussão social - a justiça não corre o risco de se tornar injusta? O que pode haver de verdadeiro na observação: há uma justiça para ricos e outra justiça para pobres?

2. A implementação de uma lei passa por diversas fases: começa pela proposta, é depois discutida, aprovada, promulgada ou vetada, envolvendo a Assembleia da República, o Governo e mesmo o Presidente da República. Por isso, quando tantos andam a clamar pelo mau ou deficiente funcionamento da justiça terão de chamar à responsabilidade estas várias entidades e não só da atualidade...
A Constituição de República Portuguesa prevê tipologias legislativas diferentes entre leis, decretos-lei e decretos legislativos regionais. A construção das leis e dos decretos-lei seguem uma tramitação própria, prevista nos termos da Constituição, e com etapas distintas de debate, apreciação e aprovação. O seu valor em termos de hierarquia é, no entanto, equiparável. Com esferas e áreas de intervenção diferenciada, as leis provêm da Assembleia da República e os decretos-leis advém do Governo. A tramitação de uma Lei começa com um projeto de Lei – quando é apresentado por um grupo parlamentar ou de deputados -, ou com uma proposta de Lei – quando é avançada pelo Governo (ou ainda pelas assembleias legislativas das regiões autónomas ou mesmo por um grupo alargada de cidadãos).

3. Os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. A sua função é garantir a defesa dos direitos e dos interesses dos cidadãos, protegidos por lei, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

Em Portugal, existem várias ordens de tribunais. A Constituição Portuguesa prevê que, além do Tribunal Constitucional, que é o órgão superior da justiça constitucional e do Tribunal de Contas, que é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas, a Organização Judiciária Portuguesa integra a ordem dos Tribunais Judiciais e a ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Além disso, a Constituição Portuguesa consagra também a possibilidade de serem criados tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz.

4. Pelo que podemos entender e apreciar de forma correta e consequente, a mudança da justiça é algo que deve envolver toda a sociedade, onde os políticos têm maior responsabilidade, mas também os outros cidadãos, pelo que mais não seja pela forma como escolhe ou não - isto é, vota ou se ausenta da decisão - quem há de fazer acertada e devidamente as leis pelas quais se regerá o poder judicial.

É chegado o tempo de passar da mera crítica para a oportunidade de mudar segundo as regras de bem de todos e para todos.



António Sílvio Couto

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Cem dias depois - entrevista com o Cardeal

 


Decorridos mais de cem dias sobre a sua presença na Diocese de Setúbal, como bispo titular, D. Américo Aguiar prestou-se para dar uma ‘grande entrevista’ – é título da rubrica na televisão estatal – precisamente na ‘quarta-feira de cinzas’.

Passou por vários temas - vida política (que não meramente partidária), situação geral e genérica da diocese, questões sociais (pobreza, prisões, mobilidade, emprego) que já viu nas suas visitas, as razões da sua escolha pelo Papa para ser bispo de Setúbal, a avaliação das JMJ, pronunciamento sobre a temática dos abusos sexuais e as bênçãos a ‘todos, todos, todos’, acenando com algumas perspetivas futuras...tanto sociais como eclesiais.
Falou muito de fora (e para fora) e pouco de casa, isto é, da Igreja (instituição e espaço) e para casa. Até respondeu à situação de ter sido noticiada a sua consulta médica de exame à próstata, com sendo um incentivo a que outros homens enfrentem a questão sem medo, pois ele o fez como ‘prova superada’.
Atendendo a que não estamos habituados a ver um bispo – no caso até um cardeal – a falar com tanta franqueza sobre assuntos que alguns podem considerar tabus, ficou-me a sensação de que D. Américo quer imprimir um novo ritmo na intervenção da Igreja na vida política. Falou longamente sobre a necessidade de que os cristãos tenham intervenção na vida cívica, não só falando, mas sobretudo intervindo e, primeiramente, votando. Disso deu o seu exemplo com as reuniões que já teve com os dezassete cabeças de lista dos partidos políticos concorrem no círculo eleitoral de Setúbal. Chegou - creio que bem - a dizer que não votar é pecado!
Quando lhe foi perguntado sobre a sua participação partidária em tempo de jovem, explicou o enquadramento e alicerçou as razões na formação escutista, que o leva, ainda hoje, a fazer algo pelos outros...
Sobre as Jornadas Mundiais da juventude deixou escapar – pois as contas da auditoria ainda não estão fechadas – que o evento terá um lucro de mais de vinte milhões de euros, que serão aplicados em iniciativas ligadas aos jovens, como por exemplo residências universitárias.
Notou-se – mesmo pelas questões colocadas pelo entrevistador – que D. Américo estava ali para falar mais para fora do que para dentro, pois ele contactou (visitando e dando disso nota nas fotos que vai publicando regularmente) mais com as estruturas sociais do que que as paróquias e as realidades eclesiais. Vimos um bispo que fala e comunica com a sociedade civil e civilista mais do que em configuração eclesiástica. Não lhe foi perguntado sobre as modificações feitas nos serviços diocesanos ou em perspetiva, nem sequer se pronunciou sobre os cinquenta anos da Diocese, em 2025, e tão pouco sobre os seus antecessores, se bem que se pretenda herdeiro do primeiro bispo, seu conterrâneo.
Agora que se falou para fora não estará na hora de ir ao encontro dos de dentro? São poucos, é verdade, cerca de cinco por cento dos habitantes no território entre o Tejo e o Sado, mas precisam de ser cuidados com atenção. Que os próximos cem dias possam ter esta marca de procura das ovelhas ainda no redil!

Ousando parafrasear o lema episcopal de D. Américo Aguiar, diria a Deus e aos humanos: ‘nas tuas mãos’, agora e no futuro!



António Sílvio Couto

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Como viver deserto na cidade?

A Quaresma é um grande desafio à vida dos cristãos/católicos de hoje. Seguindo as palavras da mensagem do Papa Francisco para a Quaresma deste ano e tomando como incentivo o título do livro de Carlos Carretto (dos finais da década de 70 do século passado): ‘Deserto na cidade’, desejo apresentar uma singela proposta de vivência da Quaresma que não seja nem rotineira (repetindo tradições e devoções) nem tão pouco ronçosa (deixando correr o tempo) no conteúdo nem na forma.

1. O título da mensagem papal da Quaresma deste ano é: ‘Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade’.
- A Quaresma é o tempo de graça em que o deserto volta a ser o lugar do primeiro amor (cf. Os 2, 16-17). Deus educa o seu povo, para que saia das suas escravidões e experimente a passagem da morte à vida.
- Acolhamos a Quaresma como o tempo forte em que a sua Palavra nos é novamente dirigida (...). É tempo de conversão, tempo de liberdade. O próprio Jesus, como recordamos anualmente no primeiro domingo da Quaresma, foi impelido pelo Espírito para o deserto a fim de ser posto à prova na sua liberdade.
(...) O deserto é o espaço onde a nossa liberdade pode amadurecer numa decisão pessoal de não voltar a cair na escravidão. Na Quaresma, encontramos novos critérios de juízo e uma comunidade com a qual avançar por um caminho nunca percorrido.
- Mais temíveis que o faraó são os ídolos: poderíamos considerá-los como a voz do inimigo dentro de nós. Poder tudo, ser louvado por todos, levar a melhor sobre todos: todo o ser humano sente dentro de si a sedução desta mentira. É uma velha estrada. Assim podemos apegar-nos ao dinheiro, a certos projetos, ideias, objetivos, à nossa posição, a uma tradição, até mesmo a algumas pessoas.
- É tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido. O amor de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na presença de Deus, junto da carne do próximo.
- A forma sinodal da Igreja, que estamos a redescobrir e cultivar nestes anos, sugere que a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias, de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é visto ou é desprezado.

2. Recorremos à ‘oração coleta’ dos cinco domingos da Quaresma para perscrutar alguns dos lampejos de Deus nos desafios de cada uma destas orações comunitárias, em atenção à escuta da Palavra de Deus:
- 1.º domingo: Concedei-nos, Deus omnipotente, que, pela observância quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo e a nossa vida seja dele um digno testemunho.
- 2.º domingo: Deus de infinita bondade, que nos mandais ouvir o vosso amado Filho, fortalecei-nos com o alimento interior da vossa palavra, de modo que, purificado o nosso olhar espiritual, possamos alegrar-nos um dia na visão da vossa glória.
- 3.º domingo: Deus, Pai de misericórdia e fonte de toda a bondade, que nos fizestes encontrar no jejum,
na oração e no amor fraterno os remédios do pecado, olhai benigno para a confissão da nossa humildade, de modo que, abatidos pela consciência da culpa, sejamos confortados pela vossa misericórdia.
- 4.º domingo: Deus de misericórdia, que, pelo vosso Filho, realizais admiravelmente a reconciliação do género humano, concedei ao povo cristão fé viva e espírito generoso, a fim de caminhar alegremente para as próximas solenidades pascais.
- 5.º domingo: Senhor nosso Deus, concedei-nos a graça de viver com alegria o mesmo espírito de caridade que levou o vosso Filho a entregar-Se à morte pela salvação dos homens.

3. A Quaresma não nos pode deixar indiferentes, tem, antes, de incomodar-nos interiormente, pelo constante apelo à conversão a Deus e aos outros, na linha das palavras do Papa: «oração, esmola e jejum não são três exercícios independentes, mas um único movimento de abertura, de esvaziamento», de deserto na cidade.



António Sílvio Couto

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Na esgrima das palavras... falha a mensagem

 

Estamos a cerca de um mês do ato eleitoral nacional. Por estes dias temos assistido a lutas de esgrima dos diversos concorrentes na apresentação das desejadas várias propostas...na sua maioria mais recauchutadas do que inovadoras à mistura com alguns tiques de quem já não sabe nem é capaz de fazer melhor!

André, Inês, Luís, Mariana, Paulo, Pedro, Rui e Rui - por ordem alfabética, sem apelido nem quaisquer preferências - tais são os intervenientes nessa esgrima de palavreado quase numa desconstrução da comunicação da mensagem do antes, agora e para depois...

1. No circo de outras épocas (campanhas e debates, comícios e manifestações, arruadas e comezainas) os figurantes eram mais credíveis, não só pela idade como pela consistência das propostas. Os que agora competem são quase todos novos - a maioria ainda não tinha nascido aquando da revolução do ‘25 de abril’ - e a credibilidade não foi ainda posta à prova. Os meios envolvidos - de comunicação e mesmo de envolvimento social - são diferentes daqueles a que estávamos habituados. Tudo é mais rápido e, por vezes, menos amadurecido no conteúdo e na forma.

2. Goste-se ou não, mas as eleições nos Açores, a 4 de fevereiro passado, foram como que as primárias das legislativas de 10 de março. Seria um erro crasso negligenciar o significado e a repercussão que os resultados nas ilhas tiveram e têm no futuro do resto do país. Para quem perdeu convém dar a entender que o que lá aconteceu foi distração dos organizadores da refrega. Os que ganharam ainda não perscrutaram o alcance das consequências daí advindas. Para muitos do comentadeiros seria reconhecer que aquilo que dizem não é levado a sério e tão pouco sabem ler os sinais das populações, isto é, são desacreditados sem apelo-nem-agravo... Se há quem se deixe ir na onda de certos papagaios, outros pensam pela sua cabeça e reduzem à insignificância quem se julga influenciador das escolhas dos outros... Até as sondagens andam aos papéis para tentarem acertar o menos mal possível.

3. Mais uma vez será escusado insistir na dramaticidade destas eleições, pois, quando tal quiseram impor como que isso serviu antes para desmobilizar os votantes. Nada acabará de ser como era, nem sequer o famigerado ‘sns’ (serviço nacional de saúde’), que todos proclamam defunto, mas que renasce qual ‘fénix’ de entre as pedras do caminho e as mazelas da vida. Os temas de campanha andam, desta vez à volta da saúde, da educação, da habitação e pouco mais, notando-se que se tenta varrer para fora da vista questões como a segurança (pública/polícias e social), a justiça (morosa e quase injusta), os temas da vida (eutanásia aprovada, mas não regulamentada e, por isso, sem efeito prático algum), a sobrevivência do setor primário (com a agricultura e as pescas à deriva, por entre medos e contestações)... A migração tem sido mais arma-de-arremesso do que objeto de reflexão séria, serena e com compromissos de todos, dado o envelhecimento da população e os consequentes resultados.

4. A radicalização - direita esquerda - custou a chegar, mas está cada vez mais acintosa para qualquer dos lados, podendo vir a criar-se uma fratura entre as partes, sobretudo, se todos se considerarem o centro das razões, embora com falaciosas decisões. Será que já se percebeu o que define ser fiel em ‘esquerda’ ou ‘direita’? Se for o pendor de intervenção do Estado na vida dos cidadãos talvez caminhemos para novas ditaduras democráticas! Há pessoas que não sabem lidar com a diferença...

5. A título de exemplo andei a escogitar dados quanto ao círculo eleitoral de Setúbal. Este tem pouco pouco mais de 750 mil eleitores, que escolherão dezanove deputados. Uma nota digna de registo pela quase inusitada coincidência: seis dos partidos, que costumam eleger deputados neste círculo, as cabeças-de-lista são mulheres... O bispo diocesano disse, recentemente, que queria reunir com os/as cabeças de lista concorrentes no próximo ato eleitoral. Talvez haja surpresas!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Festejar na data efemérides e eventos

Por estes dias surgiu uma hipótese algo bizarra – na minha interpretação – que, prevendo-se a hipótese de chuva um tanto intensa no dia aprazado, deveria ser adiado o desfile de carnaval das crianças, podendo ser feito na semana seguinte, já em época de quaresma... Deste modo se agradaria, se o tempo atmosférico o permitisse, aos intentos de festejos fora do dia e aliando os dias de ‘férias’ escolares com a dedicação das escolas.

1. Este breve episódio trouxe-me à lembrança uma outra aferição de datas – neste caso no setor religioso – em que o dia litúrgico por ter caído numa sexta-feira foi transferido para o domingo seguinte. Nesta situação veio-me à conjetura a hipótese: se o Natal calhar à 6.ª feira só será celebrado no domingo seguinte ou se a passagem de ano for dois (ou três) dias antes do domingo será mudada para este dia do calendário?

2. Desgraçadamente vivemos cada vez mais ao sabor e no ritmo da sociedade de consumo, cunhando e divulgando datas e expressões que não passam de servilismo ao valor consumista que nos invade e torna seguidores quase acríticos. Veja-se o que dizemos quase sem pensar: ‘bom-fim-de-semana’, onde se inclui o domingo como se fosse um dia de fim, quando, afinal, é o primeiro ‘dia da semana’, ou como explicaremos que o dia seguinte ao domingo se diga: ‘segunda-feira’? É verdade que esta designação só se encontra na língua portuguesa, pois no resto das línguas os dias da semana continuam a dar tributo aos deuses pagãos ou aos seres mitológicos: lua (lunes, lundi, monday), marte (martes, mardi, tuesday), mercúrio (miércoles, mercredi, wednesday), júpiter (jueves, jeudi, thursday), vénus (viernes, vendredi, friday) ... com a exceção do sábado (saturday) e nalgus casos indo fundar-se no judaísmo e o domingo com incidência nitidamente cristã, mesmo com as exceções de sunday (dia do sol)...
A designação de ‘féria’ do português dada aos dias da semana é do tempo de S. Martinho de Dume, um arcebispo de Braga do século VI, que cristianizou os dias da semana e colocou o domingo como o ‘primeiro dia’ e não como o último à boa maneira da cultura anglo-saxónica reinante...nas questões económicas e laborais.

3. Colocando as questões neste enquadramento podemos e devemos ser mais exigentes na linguagem e, sobretudo, não será avisado culturalmente continuarmos a falar e a comportarmo-nos como seres que vivem sem colocar questões ou andaremos manipulados por quem nos faz ser aquilo que não queremos ou que nos leva a viver na rotina da vulgaridade.
Reparemos no leque de ‘feriados religiosos’ que ainda usufruimos em Portugal – Ano Novo (1 de janeiro), 6.ª feira santa (anterior ao domingo de Páscoa), Corpo de Deus (60 dias depois da Páscoa), Assunção (15 de agosto), Todos os Santos (1 de novembro), Imaculada Conceição (8 de dezembro) e Natal (25 de dezembro) – muitos deles não passam de camuflagem para que sejam usados por quem não os usa para a finalidade com que foram propostos, antes servem para uma manipulação das questões religiosas por quem delas se renegue ou afaste. Mesmo que de forma exagerada sugiro que sejam supridos os ‘feriados religiosos’, sobretudo para que não permitam usar da festa quem dela não participa minimamente. Trabalhe quem não honra os que lhe dão a faculdade de feriar...

4. Numa visão algo essencial: nunca por nunca se deverá fazer arranjos (mais ou menos interesseiros e ao sabor materialista) de datas para que efemérides e eventos sejam deslocados da data correta, pois o ‘dia preciso’ faz com que tenha mais significado e possa ser a razão de ser daquilo que queremos festejar e celebrar... Se não foi (ou é) possível fazê-lo no tempo adequado fica para outra vez mais apropriada...



António Sílvio Couto

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Reivindicações de polícias e de agricultores

 

O país tem vindo a ser sacudido por reivindicações de vários setores socio-profissionais: das forças de segurança (guarda nacional republicana e polícia de segurança pública, a que foi acrescentado o vetor das prisões), de agricultores e outros mais ou menos difundidos e noticiados. Se as forças de segurança andam nisto há semanas, os procedentes com ligação à agricultura surgiram em dois dias e logo sairam de circulação. Os primeiros organizaram manifestações com milhares de participantes (dizem: dez mil em Lisboa e quinze mil no Porto), enquanto os segundos com uns tantos tratores bloquearam nalgumas horas estradas... Estes receberam promessas e foram atendidos com milhões de euros de imediato, os primeiros pretendem igualdade com as forças de investigação naquilo que denominam de ‘suplemento de missão’, mas ainda não foram atendidos.

Estamos em época de campanha eleitoral para as eleições antecipadas de 10 de março. As várias formações partidárias andam, por aí, a vender o seu produto com maior ou menor convicção à mistura com a propaganda orquestrada por alguma comunicação social adstrita ao poder.

Neste contexto assaz confuso e um tanto nebuloso, ouso colocar algumas questões, embora se sinta que as respostas pelo silêncio soarão altissonantes:
- Não será confuso que se tente condicionar quem serve o Estado, só porque destoa quando era previsto colaborar?
- Por que querem comprar pela boca quem não alinha na versão oficial da governança?
- Onde está a liberdade de expressão, se os contestários são advertidos com processos e inquéritos?
- Por que há dinheiro para calar os agricultores e se inventam desculpas para nivelar as forças de segurança sem distinção?
- Não comportará algo de menos claro que as forças abrangidas pelo subsídio implementado pareçam uma espécie guarda pretoriana de quem está no poder, mesmo que em forma de gestão?
- Que dizer das fugas de informação - ao menos para certos órgãos de comunicação social - quando a força premiada está em ação?
- Que dizer ainda de alguma surpresa - e com uma certa eficiência - por parte de outras forças contra quem não ocupa o poder ou deambula por espaços afins?
- Até onde irá a mescla (subtil, insinuosa e bacoca) do poder judicial com tendências políticas?

Talvez já ninguém acredite no chavão - à política o que é da política e à justiça o que é da justiça - pois aquela, quando o jogo não lhe convém, muda as regras para que possa dar a impressão de que ganha, embora se perceba o ridículo e venha a perder...
Estamos a bater no fundo. Ainda não viram? Quem nos salvará dignamente do atoleiro para onde caminhamos?

António Sílvio Couto