Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sábado, 29 de outubro de 2011

Aprender a educar em tempos de crise... rumo ao Natal

É gratificante ver o desenvolvimento de uma criança, sobretudo, se ela manifesta alguma ‘diferença’ no seu comportamento: como se torna importante ajudar a fazer crescer alguém na sua fragilidade -- muito mais do que em mera debilidade! -- assumindo a sua autonomia e identidade. Tendo em conta a personalidade de cada pessoa -- muito mais a de cada criança -- todos somos poucos para fazermos crescer a sua maturidade. Com efeito, cada gesto, cada palavra (mais ou menos serena ou até agressiva), cada sinal... tudo concorre para o crescimento de uma criança, sobretudo, em certas idades e circunstâncias.
Se atendermos às lições da psicologia poderemos considerar que os primeiros cinco anos de vida de uma pessoa -- logo na idade da primeira infância -- são marcantes para o seu desenvolvimento equilibrado. Sabemos que nem sempre é fácil nem se colhem resultados imediatos, mas é fundamental saber que, nas nossas mãos e, sobretudo, no nosso coração, estão depositados muitos desígnios de futuro e de nobre condição. 
Todos -- pais (mãe e pai), educadores, Igreja e comunidade social -- somos poucos para esta tarefa, mas temos de estar coordenados, para conseguirmos construir nos nossos mais pequenos homens e mulheres de amanhã com sentido de amor e com consciência de bem-fazer.

= Nas dificuldades (até) nos podemos transcender
Os tempos históricos e económicos, em Portugal, na Europa e no mundo, não são fáceis. Por isso, também na educação dos filhos algo está (ou pode estar) em crise.
- Como se pode educar, quando se aperta o cerco ao ter tudo e do melhor?
- Como se pode educar um filho/a a não ter, se antes, tudo era mais abundante?
- Como se poderá ensinar o não esbanjamento – desde a comida até ao custo da eletricidade -- quando os ordenados encolhem e os impostos apertam cada vez mais?
Somos, de fato, devedores de uma geração (ou até já duas!) que não teve de conviver com guerras e conflitos bélicos.  Com efeito, quem tiver, hoje, pelo menos, cinquenta anos, não passou fome, não teve de sofrer perseguição política e habituou-se a receber muito mais do que a dar.
Diante deste panorama muitos dos filhos -- e até netos -- foram criados sem as restrições que muitos dos avós sofreram. Por vezes, até os brinquedos perderam o fascínio da novidade, pois podem ter sido dados sem custo e oferecido sem serem recompensa por algo conseguido na escola ou na vida de esforço.
- Agora que muito se aperta o cerco ao esbanjamento de outrora, como poderão pais e avós educar na dificuldade e talvez na contenção do menos mau?
- Estaremos capazes de apresentar às nossas crianças sugestões de boa conduta sem pretendermos disfarçar que está tudo a correr sem dificuldade?
- Será possível gerar, para o futuro, uma educação sincera e onde se fale verdade, sem ter medo das consequências?
Antes de mais é preciso:
- responsabilizar os mais novos nas pequenas renúncias do dia a dia: antes podíamos, agora estamos sem certos meios de luxo;
- fazer participar na contenção de gastos, com pequenos gestos de poupança, desde a eletricidade até à conversa ao telefone, passando mesmo pelas guloseimas e brinquedos;
- tentar promover a dignificação do trabalho e não favorecendo a preguiça ou a reclamação constante;
- apresentar o esforço sincero dos mais velhos na recuperação de Portugal como cidadãos que amam o seu país e não como pessoas que dizem mal de tudo e de todos;
- fazer crer que já houve tempos de carência e que foi possível vencer essas dificuldades com trabalho, com unidade de todos e com harmonia social.

= Pelo testemunho se ganha... o filho/educando
Agora que se aproxima um tempo de exaltação do consumismo, pelo Natal, talvez seja importante apresentar às crianças algo mais do que um mal-estar por não ter ou ainda por desejar ter, ficando azedo e com raiva de quem tem ou possa comprar.
Pode ter chegado a ocasião:
- de ir gerando nas nossas crianças uma abertura ao essencial, que é mais do que coisas;
- aprendendo a valorizar aquilo que é simples e não aquilo que é da moda;
- ajudando a conhecer o esforço de quem nos presenteia e não quem nos tenta comprar com prendas de fachada;
- tentando olhar as pessoas pelo que elas valem e menos por aquilo que nos oferecem.

Temos de sacudir, já neste Natal, o papel de embrulho com que nos temos andado a enganar e, talvez, a querer ludibriar as nossas crianças. Tentemos dar-lhes mais amor, carinho e atenção e Jesus nascerá em nós e à nossa volta.

António Sílvio Couto

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Na provocação do «Último segredo»

Fé pessoal com implicações políticas

«Sucede, não poucas vezes, que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária» - diz o motu próprio ‘Porta fidei’ do Papa Bento XVI de convocação do ‘Ano da fé’, que vai decorrer, na Igreja católica, de Outubro de 2012 a Outubro de 2013.
Sobre  aquele pressuposto de fé, que, na grande parte das pessoas, já não existe, o Papa refere: «Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje, parece que já não é assim em grandes setores da sociedade, devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas».

= Provocações à fé... de encomenda para vendas
Sobre esta quase disfunção cultural cabe-nos salientar, no contexto sócio-cultural português, a publicação de um livro que tenta questionar a fé dos cristãos, partindo de críticas sensacionais e, nalguns casos, quase irracionais, embora fazendo algum barulho na comunicação social.
Trata-se do «Último segredo» de José Rodrigues dos Santos – jornalista e escritor – que, agora num afã de protagonismo, veio – nas suas palavras eloquentemente dogmáticas – denunciar ‘fraudes’ sobre Jesus e os escritos do Novo Testamento.
Embora ainda nos fiquemos pelo teor das entrevistas deste recente guru anti-cristão da saga lusitana – outros tem havido quase sempre em vésperas da celebração do Natal, em coincidência para as vendas! – o Secretariado nacional da pastoral da cultura (SNPC) emitiu uma nota sobre esta publicação onde se refere: «O romance de José Rodrigues dos Santos, intitulado “O último segredo”, é formalmente uma obra literária. Nesse sentido, a discussão sobre a sua qualidade literária cabe à crítica especializada e aos leitores. Mas como este romance do autor tem a pretensão de entrar, com um tom de intolerância desabrida, numa outra área, a história da formação da Bíblia por um lado, e a fiabilidade das verdades de Fé em que os católicos acreditam por outro, pensamos que pode ser útil aos leitores exigentes (sejam eles crentes ou não) esclarecer alguns pontos de arbitrariedade em que o dito romance incorre».
Tal como salienta esta nota do SNPC, o autor parece confundir a sua verdade romanceada com a fé na Pessoa de Jesus e mesmo a vivência dos cristãos. «É impensável, por exemplo, para qualquer estudioso da Bíblia atrever-se a falar dela, como José Rodrigues dos Santos o faz, recorrendo a uma simples tradução. A quantidade de incorrecções produzidas em apenas três linhas, que o autor dedica a falar da tradução que usa, são esclarecedoras quanto à indigência do seu estado de arte. Confunde datas e factos, promete o que não tem, fala do que não sabe».
No passado, já outros tentaram explorar este (pretenso) filão do ‘descrédito’ em questões que envolvem a fé na Pessoa de Jesus e nas posteriores elaborações teológicas das comunidades primitivas – no sentido de primeiras, tanto no ardor como no testemunho – e, desgraçadamente, acabaram por serem vítimas da sua própria auréola... rapidamente chamuscada.
Quem não se lembra de um outro José (de cognome erva amarga) que fez furor porque promovido pelos seus parceiros de ideologia! Quem não se lembra de tantos que vaticinaram o fim do cristianismo, na I República, e que foram engolidos pela peçonha da sua malícia! Por isso, ousamos perguntar: quem vai promover – comprando, talvez dizendo que leu, confundindo os mais iludidos – este outro José de sonhos? Será, assim, tão  difícil de identificar a ideologia transversal – preferencialmente anti-católica – que o vai apoiar?

= Implicações políticas da fé cristã
Na sequência da convocação do Papa para vivermos, em Igreja católica, um ‘Ano da fé’, torna-se urgente encontramos sinais de compromisso com a fé traduzida na vida e não simplesmente no reduto da liturgia. Esta deverá manifestar dignidade e beleza e não sendo uma mera rotina de gestos gastos, repetitivos  e vazios.
Na medida em que, no mundo, vivermos em atitude de missão, assim a Missa será força de fé viva e vivida com novos métodos, novo ardor e novas expressões, isto é, em atitude de nova evangelização.
Precisamos de incluir, no nosso roteiro da fé celebrada, novos apontamentos de fé culturalmente amadurecida, que não se deixa confundir com diatribes jornalísticas de baixo teor nem com romances de valor duvidoso, embora rentáveis para os seus autores e editores.
Numa época (dita) de crise seria de propor um novo imposto para recuperar da dívida pública nacional, se este livro agora publicado esgotasse ou fosse um sucesso de vendas, pois teríamaos de concluir que, afinal, ainda há quem gaste dinheiro com coisas supérfluas, embora resmungando por lhe ter sido retirado um montante do subsídio de Natal... em favor dos outros.
Fé cristã – esclarecida, amadurecida e comprometida – a quanto obrigas, agora e no futuro!

António Sílvio Couto

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Manifestações/greves não afundam o nosso futuro?

Foi nítido e objetivo, um espanhol a trabalhar em Portugal, participante nas manifestações dos ‘indignados’, denunciou a manipulação dos protestos mais recentes contra as medidas do governo: há muitos membros das esquerdas – conceito anacrónico em era de globalização, tendo em conta a história após 1989! – infiltrados nas pretensas ‘populares’ concentrações...  Seja qual for o número apresentado – há muitas pernas e poucas cabeças ou muitos braços levantados e poucos com desejo de trabalhar – nota-se um razoável aproveitamento do ‘estar contra...’, pois, ao menos, parece haver, momentaneamente, ocupação para desempregados e sindicalistas, para arregimentados e militantes, para oportunistas e outros/as ‘istas’ do faz-de-conta... com cobertura noticiosa e (aparentemente) informativa... do ‘quanto pior, melhor’.

= Medidas duras: necessárias, urgentes ou irremediáveis?
Depois de termos, sobretudo nos últimos dez anos, vivido – mesmo sob a batuta de governos de cores diferentes – numa espécie de mentalidade de gastanço, endividamento, consumismo sem olhar a meios nem às consequências a curto prazo, descobrimos, de repente, que estamos na falência e sem meios de continuarmos a viver nessa falsidade de vida e dum certo forrobodó... pessoal, familiar, social e coletivo.
Foi preciso que viessem do estrangeiro – a dita troika: FMI, BCE e UE – traçarem-nos um plano de austeridade, que tem tanto de simples, quanto de amesquinhador da nossa inteligência: somos incapazes de nos sabermos governar e de nos governarmos corretamente.
Àqueles que nos colocaram nesta situação de insustentabilidade, urge levá-los a tribunal para pagarem pelos erros e más opções. As eleições, de fato, foram juízos de avaliação, mas não serviram para momentos de criminalização. Não basta sacudir o capote, deixando a outros a responsabilidade das consequências das más opções e de funestas decisões... políticas e partidárias.
Até os que foram acicatando a vontade de consumo – o povo deixa-se manipular por habilidosos e bem-falantes! – devem ser culpabilizados, pois tanto é ladrão quem rouba como quem instrui para a usurpação da fraude mesmo que capciosa, subtil e encoberta.
Infelizmente, se não forem tomadas medidas de contenção, de correção dos erros e de moderação nos gastos, muito em breve, seremos um país sem credibilidade... mesmo para nos darem ajuda e dinheiro a crédito.
Desgraçadamente, em certas posições alguns sindicalistas, parece que estão desfasados da vida real, pois talvez nem conheçam os preços das coisas nos mercados e até continuem a viver na jaula dourada das suas regalias, fomentando azedume em vez de concórdia, reivindicação em vez de diálogo e preguiça em vez de trabalho... honesto, participativo e comprometido.

= Justiça e boa fé: condições ou exigências?
Neste momento conturbado da nossa identidade coletiva parece ter chegado a hora de unirmos esforços de todos e para tudo quanto nos possa recriar com identidade nacional. Falar de nacionalismo não pode continuar a ser uma espécie de heresia e muito menos num rótulo ideológico: em tempos era (quase) prerrogativa dos setores conotados com a direita, agora são outros (ditos) de esquerda que se tentam apropiar de tudo quanto possa acirrar os ânimos mais derrotados.
Certas manifestações e greves deixam-nos um tanto confusos sobre qual deve ser a leitura de tais ‘direitos’, pois estes podem colidir com os mais elementares deveres de boa fé na defesa dos fragilizados da nossa sociedade. Na medida em que formos inteligentes de forma suficiente saberemos quem nos fala verdade ou quem nos tenta usar em ordem a conseguirem os seus objetivos, andando na crista da onda em vez de navegarem com rumo e enfrentando as marés mais adversas.
Por vezes certo barulho tenta confundir os incautos e serve para disfarçar as mais tenebrosas intenções. É de justiça que nos esforcemos por contribuir para a boa harmonia entre todos, dando cada um de nós o nosso contributo mais sincero e audaz... começando pelo seu círculo de convivência e de trabalho.

António Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A história da menina abandonada... descrente

Num destes domingos – onde nem futebol havia na televisão e das notícias se destacava o rescaldo da disputa eleitoral na Madeira – vi, ouvi e fez-me pensar a história de uma tal concorrente, na ‘casa dos segredos 2’, que tinha sido abandonada pela mãe aos seis anos, com um pai alcoólico e mais uns tantos irmãos... que, numa tal manhã de sábado, ficaram sem mãe (fugira sem deixar rasto) e passaram fome durante dias, subsistiu com a ajuda de uns padrinhos, que com o pão lhe davam pancada...
Ela dizia que tinha dificuldade em  manifestar carinho para com as outras pessoas e que não acreditava – talvez quisesse dizer que ‘não era capaz de acreditar’ – em Deus, que assim tratara quem precisava de aconchego.
Diante deste quadro pessoal e emocional, familiar e social surgiu-me alguma necessidade de tentar compreender esta – como tantas outras vidas, mais jovens ou mais velhas – pessoa, descortinar mais as suas razões do que em pretender dar lições nem tão pouco formular juízos de valor.

= Carências afetivas... assumidas ou compensadas?
A consciência desta jovem era clara: não era capaz de dar afeto porque não o tinha recebido, na hora devida e pelas pessoas que lho deviam dar ou de quem esperava esse carinho, que alimenta mais do que o pão para a boca. Esta explicitação pode ser entendida ainda melhor na medida em que a interveniente fez/faz estudos universitários e pode, com mais propriedade, interpretar aquilo que lhe aconteceu... embora sofrendo e manifestando feridas e cicatrizes na sua personalidade.
De fato, há imensas pessoas que, quando com elas nos cruzamos ou até conversamos, nos fazem pensar: ninguém é como é – tem um rosto triste ou alegre, é simpática ou agressiva, se torna acolhedora ou é de arrepiar – sem razões (mínimas) de assim ser. Cada um veja por si mesmo e poderá compreender um tanto melhor as reações e atitudes dos outros!
Aquela jovem defendia-se não exprimindo os seus sentimentos/emoções recalcados/as pela deficiente vivência na hora apropriada... enquanto criança e talvez como adolescente, em família e noutros círculos do seu relacionamento.
Por outro lado, ao vermos a exploração de certos sentimentos em maré de maturidade – psicológica e emocional – como que sentimos uma maior dor e agreste sofrimento para com pessoas traumatizadas e/ou imaturas... na dimensão afetivo/psicológica, pois vão criando mal-estar à sua volta sem culpa, embora culpabilizando os outros, sobretudo, os mais próximos.

= Descrente em si, nos outros e em Deus?
Que pode Deus ter a ver com a experiência de não-carinho daquela jovem? Que sinais são emitidos para que Deus seja culpado da sua desgraça? Onde pode ser exigida a presença de Deus, se os culpados são os humanos? Será Deus uma projeção das lacunas humanas e das deficiências familiares? Que Deus será capaz de absolver quem nos fere, magoa e traumatiza?
A ‘Teresa’ – é o nome, mas poderia ser outro qualquer – desta história tem dificuldade em ver que haja um Deus que permite alguém ser abandonado: esse Deus é como que culpado da sua desgraça, mesmo que não acredite n’Ele. Aquele deus é uma espécie de demiurgo que teria de favorecer os mais fragilizados, em vez de dar cobertura aos mais fortes e adultos... ou será o contrário: os mais fortes deveriam tutelar os mais frágeis à luz dos sinais de inquietação próprios e alheios?
Por vezes, na nossa experiência de relação com Deus, como que inventamos desculpas para que andemos de rédea solta pelo simples fato de que os humanos – homens ou mulheres, em Igreja ou fora dela – nos podem impedir de aceder a Deus... tal como precisávamos de dialogar com Ele. Efetivamente os meios que nos são dados, muitas vezes, criam obstáculos à presença de Deus connosco e de nós com Deus: pequenos problemas fazem grande confusão, na medida em que o rosto de Deus, na nossa vida quotidiana, é, muitas vezes, abstrato, difuso e (quase) impessoal.
Pela mais viva compaixão para com aquela jovem do concurso da ‘casa dos segredos 2’, acho que deveríamos rezar por ela para que possa encontrar alguém que lhe revele dignamente o rosto de Deus feito carinho em Jesus... ontem, hoje e para sempre.

António Sílvio Couto

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Fim das ilusões... chegou a austeridade

“Acabaram os tempos de ilusões. Temos um longo e árduo caminho a percorrer, para o qual quero alertar os portugueses de uma forma muito directa: a disciplina orçamental será dura e inevitável, mas se não existirem, a curto prazo, sinais de recuperação económica, poder-se-á perder a oportunidade criada pelo programa de assistência financeira que subscrevemos”, afirmou Cavaco Silva nas comemorações do 101.º aniversário da implantação da República.
Vindo de quem vem e na data que lhe é apropriada, temos de levar muito a sério esta prevenção... não aconteça de ontem já ter sido tarde começarmos a viver na contenção e sob a regra da temperança pessoal, familiar, social e política.
Respigando alguns excertos do discurso presidencial, tentaremos abordar aspetos de provocação cristã à nossa quase inconsciência de gastadores sem crédito.

= Letargia do consumo fácil
 “Durante alguns anos foi possível iludir o que era óbvio... Perdemos muitos anos na letargia do consumo fácil e na ilusão do despesismo público e privado. Acomodámo-nos em excesso”, salientou o Presidente da República.
Agora é mais difícil aferirmos os nossos comportamentos, pois nos habituámos – depressa demais no tempo e excessivamente na mentalidade – a viver como se fôssemos ricos, embora só éramos subsidiados para que não invadissemos os países do norte da Europa. De fato, quisemos equiparar-nos na bastança com quem nos deu a mão para entrarmos na Comunidade Europeia, mas esquecemo-nos de viver na dinâmica de trabalho que esses países e culturas viviam e continuam a viver... para gerarem riqueza.
Ainda estamos a tempo de evitar a bagunça que vamos percebendo na Grécia. Por isso, precisamos que nos falem verdade e que vivamos na coerência sem falsos profetas da contestação a troco de maior miséria... a curto prazo. Nem a ditas ditas greves – a Grécia já vai em onze greves gerais só este ano! – ou as manifestações setoriais nos podem fazer esquecer do caminho a percorrer em ordem a sermos – novamente – um país de sucesso, de paz e de trabalho digno e dignificador.

= Austeridade digna
“A crise que atravessamos é uma oportunidade para que os portugueses abandonem hábitos instalados de despesa supérflua, para que redescubram o valor republicano da austeridade digna, para que cultivem estilos de vida baseados na poupança”, referiu ainda o chefe de Estado.
- Para quantos se reclamam do espírito republicano de igualdade e sem mordomias é chegada a hora de deixarem cair as máscaras de benesses e de regalias... de regime instalado.
- Para quantos se dizem cristãos – onde o espírito de pobreza, que é muito mais do que a pobreza de espírito! – é chegado o momento de procurarem viver em conformidade com o essencial e sem coisas supérfluas.
- Para quantos se tentam afirmar pelo ter, é chegada a ocasião propícia de centrarem a sua vida no ser... autêntico e verdadeiro.

Nós que já fomos pobres e honrados podemos e devemos ser honrados embora um tanto mais pobres, temos de saber interpretar a redução de coisas materiais, reaqualificando a nossa vida à luz do essencial, abrindo-nos à partilha e à (verdadeira) caridade.

António Sílvio Couto

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Festas religiosas como espaço do ‘átrio dos gentios’ (*)

Sem pretendermos dar quaisquer lições, importa situar as ‘festas populares’ na sua componente religiosa como atos de cultura, incluindo vários aspetos da nossa linguagem mais ou menos inteletualizada, com recurso a certos tiques de mito e/ou inseridas na vertente ritual.
Num tempo como este que estamos a viver, designado de ‘crise’, as épocas de festa tornam-se como que catalisadores ou escapes da nossa vida pessoal e mesmo coletiva. O recurso à descontração gera, em nós e à nossa volta, novos comportamentos, nem sempre perceptíveis na sua singularidade.
De fato, é na dificuldade que se reúnem todas as forças para que sejamos capazes de refontalizar a nossa ‘personalidade coletiva’… mais abrangente e profunda.

= Manifestações da religiosidade popular
Partindo daquilo que se diz no Catecismo da Igreja Católica (n.º 1674 a 1676) como que podemos alicerçar a nossa convicção de que as festas religiosas manifestam «o sentimento religioso do povo cristão», tendo várias expressões desse sentimento – note-se que não se diz da racionalidade nem da emotividade – desde as mais comuns, como as visitas aos santuários, as peregrinações e as procissões até às mais populares, como as danças religiosas – veja-se a expressão do folclore e das suas letras – incluindo-se mesmo os momentos de via-sacra e as recordações trazidas/levadas dos lugares visitados ou outros objetos religiosos… normalmente benzidos.
Citando o Concílio Vaticano II, na constituição sobre a Liturgia Sacrosantum Concilium (n.º 13), o Catecismo refere que as festas religiosas ou manifestações da religiosidade popular «são um prolongamento da vida litúrgica da Igreja, mas não a substituem. ‘Devem ser organizadas, tendo em conta os tempos litúrgicos e de modo a harmonizarem-se com a liturgia, a dimanarem dela de algum modo e a nela introduzirem o povo; porque, por sua natureza, a liturgia lhes é, de longe, superior’».
Por seu turno, no Directório sobre a Piedade popular e liturgia (n.os 245 a 247), falando das procissões, refere-se: «na procissão, expressão cultual de carácter universal e de múltiplos valores religiosos e sociais, a relação entre a liturgia e a piedade popular reveste-se de particular relevo».
Será que temos tido para com as várias manifestações da religiosidade popular uma atenção ou uma desculpa? Não será que, muitas vezes, deixamos correr as coisas para não termos problemas, embora saibamos que nem tudo está correto? Até onde poderá ir a nossa intervenção delicada, serena e cuidadosa para que, em particular, as procissões possam ser manifestações de fé e não de mero folclore com cobertura religiosa, mas não cristã?
Tal como se diz no Catecismo, «para manter e apoiar a religiosidade popular, é necessário um discernimento pastoral», seja para purificar ou para corrigir «o sentimento religioso subjacente a essas devoções e para fazer progredir no conhecimento do mistério de Cristo».
Por outro lado, o Directório diz: «Nas suas formas genuínas, as procissões são manifestações da fé do povo e têm frequentemente conotações culturais capazes de despertar o sentimento religioso dos fiéis. Porém, do ponto de vista da fé cristã, as ‘procissões votivas dos santos’ [levando processionalmente as relíquias ou uma estátua ou uma efégie dos santos pelas ruas da cidade], tal como outros exercícios de piedade, estão expostas a alguns riscos e perigos», tal como serem preteridas aos sacramentos, sobrepondo-as como manifestações exteriores e confundindo-as com um mero espectáculo ou num acto folclórico...
Não basta trazer para a rua as imagens e deixar correr, pois muitos dos que participam e, por maior razão daqueles que assistem, nem conhecem os santos ou santas em desfile!
Citando novamente o Directório é urgente reconhecer, aceitar e aprender, pois «para que a procissão conserve o seu carácter genuíno de manifestação de fé, é necessário que os fiéis sejam instruídos sobre a sua natureza, do ponto de vista teológico, litúrgico e antropológico».

= Saber ‘por que vêm’ ou perceber ‘como vão’?
Esta frase como que pode resumir, numa breve avaliação, sobre as razões que fazem tantas pessoas – mais ou menos conscientemente – irem à procissão. Neste ‘irem’ tanto pode estar a participação ativa como o simples ato de ficar a ver a procissão.
É digno de ser questionado quem compõe a procissão. De fato, muitas vezes os intervenientes pode ser do foro interno da Igreja, que a sair para a rua se faz exterior ou ainda da instância não estritamente religiosa. Aqui poderá começar-se um diálogo com os ‘gentios’. Com efeito, as (ditas) ‘forças vivas’ da terra podem e devem participar na procissão como expressão da vida humana, social, psicológica e espiritual de um povo... para além da expressão religiosa... católica.
Cremos que todos quantos representem associações de valor humano, desportivo, cultural, de setores sociais relevantes (reformados ou jovens)...deviam ser abordados para integrarem a procissão, como espaço de fé, consciente ou difusa, mais ou menos cristã.
Poderiam até vestir as suas roupas mais significativas e/ou seus estandartes…Bastará reparar nos ranchos etnográficos, folclóricos… que tinham as vestes de festa, normalmente para participarem na missa e nas procissões de festa.
Este diálogo é urgente ser feito para que não nos escapem para outras ‘procissões’ políticas, sindicais e/ou partidárias!

 = Desafios ao diálogo Igreja/mundo
O diálogo feito ou a fazer tem de primar pelo respeito mútuo e aberto. Ninguém gostará de ser chamado para servir de enfeite a uma iniciativa – seja da Igreja católica ou outra – só por deferência mais ou menos tolerada. Por outro lado, a presença num ato público de uma procissão não poderá ser como se pretendesse ir ou estar, mas antes tendo dignidade para o ato e para a função daquilo que é representado…
Apresentamos, seguidamente, breves propostas para um diálogo Igreja/mundo:
- Diálogo sincero – cada parte não deverá usar de subterfúgios para vencer o outro, pois quem for vencido fica inferiorizado e a perder... podendo, com isso, ser impedida a prossecução do diálogo e da proximidade encetados.
- Diálogo construtivo – cada um dá o que tem, esperando receber do outro em abertura e em simplicidade. Com efeito, há ‘sementes do Reino’ em tanta gente e em muitas associações… de bem-fazer, de benemerência e com valores cristãos… mais ou menos difusos.
- Diálogo evangelizador – ir ter com os outros, estendendo-lhes a mão há-de ser para anunciar, no tempo oportuno e sem medos, a Pessoa de Jesus. Não interessa fazer proselitismo, mas antes abrir caminhos de verdade. Com pouco se pode fazer muito e com muito menos se pode estragar o pouco iniciado. Talvez aqui se possa incluir essa atitude de São Paulo: ‘fiz tudo para todos para conquistar alguns a todo o custo’.
- Diálogo cultural – da conjugação entre contexto social, referências à tradição e dimensão espiritual (particularmente imbuída dos valores cristãos) há-de poder surgir a possibilidade de cada um respeitar o outro, fazendo de cada momento de festa uma etapa de crescimento à luz da Palavra do Evangelho.

Será, no ‘átrio dos gentios’, que se poderá perceber um tanto melhor quem está disponível para aprender, respeitando e para crescer, aprendendo... uns com os outros.

(*) Texto apresentado no ‘plenário do clero’ da diocese de Setúbal, no dia 4 de Outubro, no Seminário de Almada e num tempo de formação do ‘Apostolado do mar’, no dia 5 de Outubro, no Seminário do Verbo Divino, em Fátima.

António Sílvio Couto