Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sábado, 31 de outubro de 2015

‘Filho-único’ sem decreto…à portuguesa



Por estes dias o regime comunista da China – reinante desde 1949 – deu por terminado o decreto, que desde o final da década de 90 do século passado, exigia a cada casal que tivesse só um filho (preferencialmente rapaz), pondo, assim, termo a uma intromissão estatal na vida das famílias chinesas…com resultados que já se revelam catastróficos e difíceis de socialmente serem geridos…
Ora, se observarmos o que aconteceu, em Portugal, mais ou menos desde essa ocasião histórica, como que temos vivido uma espécie de ‘regime de filho-único’ não decretado, mas tacitamente assumido, promovido e desejado!
Vemos – enquanto nos queremos inserir numa visão cristã das questões – esta atitude por razões variadas, envolvendo motivações mais ou menos egoístas e de acentuado teor de bem-estar camuflado de cinismo nem sempre assumido.
Porque o assunto é demasiado sério e pode até envolver questões do foro moral, teremos de solicitar compreensão para com quem não teve a experiência de ter mais irmãos/ãs e de não saber o que é isso de ter de repartir o que não se tem em questões materiais, mas que são colmatadas com outras vivências de ter mais irmãos/ãs com quem se possa brincar e até se pode ter brigas de criança…mas que fazem crescer em tantos aspetos de partilha… sincera e genuína.

= Reizinhos, ditadores e protegidos
Não será necessário ter uma grande perspicácia psicológica – pois a formação na escola da vida dá sabedoria e competências – para percebermos, desde o jardim-de-infância, quem são as crianças ‘filhas-únicas’. Com efeito, há tiques de protagonismo que não conseguem disfarçar o berço de onde se vem. Nalguns casos se nota algum enfezamento de capacidade em saber repartir os meros brinquedos, quanto mais não será um certo centralismo em tentar chamar a atenção… consciente ou inconscientemente.
Se muitos pais e mães não souberem distinguir o essencial do secundário terão imensos problemas, pois o demasiado óbvio pode tornar-se um problema de enquadramento de questões até fúteis…mas, se empoladas, criarão dificuldades à socialização dos seus ‘reizinhos’ de pés de barro, isto é, que pensam ser importantes, mas que não o são, tanto quanto julgam… Com que facilidade vemos – mesmo nos espaços públicos – crianças a fazerem birras, a chorar e mesmo a gritar quando são contrariadas em situações mínimas. Se é esse o espetáculo na rua, o que não será em casa!... Deste modo vamos adulando pequenos ditadores que, mais tarde ou mais cedo, farão dos pais servidores dos seus amuos e lamentos.  
Será digno de registo que uma coisa é cuidar da proteção aos filhos/as, outra muito distinta é ser protecionista, não deixando as crianças sujarem-se nem magoarem-se porque podem correr perigo… Sim o perigo será não deixar que as crianças brinquem e façam as suas tropelias – segundo a sua idade – pois nunca aprenderão a autonomizar-se e a defenderem-se…
Com todo o devido respeito parece ridículo o protecionismo que vemos por parte de muitos pais/mães e outros tantos como avós, quando está na hora de sair da escola primária… Não é desta forma obsessiva que se consegue que as crianças cresçam… Elas não precisam que façam por tudo por elas… Há pequenas tarefas – como o simples carregar da mochila – que podem ser assumidas com responsabilidade… sem tanta infantilização!

= Agora que certos regimes autoritários vão deixando cair a máscara do protecionismo estatal, cremos que está na hora de fazermos algo mais do que reduzirmos a vida à renovação da espécie – para isso cada casal teria de ter, ao menos, dois filhos/as…o que nem sempre tem acontecido no nosso país – mas temos de criar condições para uma sociedade mais equilibrada e adulta, gerando novas etapas de valorização da convivência humana e de salvaguarda até da sobrevivência dos vindouros.
Aos cristãos está acometida uma tarefa de responsabilidade maior, pois se guiam pelos valores da vida, da ética e mesmo da paternidade/maternidade responsabilizada e responsabilizadora. Será que queremos deixar de ser (só) religiosos/as para sermos construtores duma sociedade justa, fraterna, solidária e com futuro?

António Sílvio Couto

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Todos os Santos e Fiéis Defuntos...desafios


A Igreja católica celebra, no dia 1 de novembro, numa só solenidade Todos os Santos, desde os mais conhecidos até aos anónimos...ou sobretudo estes.
A origem desta celebração, faz-nos recuar aos primeiros séculos do cristianismo e à dificuldade em celebrar a multidão de mártires que foram vítimas das perseguições.
Posteriormente podemos reporta-nos ao século VIII com a tentativa de cristianizar o ‘dia das bruxas’, vivido pelos celtas no dia 31 de outubro...e como dia de celebração do ‘deus da morte’...à volta de alguma fogueira em início do tempo do frio.
A vivência religiosa de Todos os Santos coloca-nos perante a proposta cristã de, numa única solenidade, sentirmos, agradecermos e nos deixarmos acompanhar por tantos santos e santas, que junto de Deus O glorificam e louvam eternamente...enquanto nós vivemos na condição terrena de configurados à santidade...mesmo que pecadora, aqui e agora!
No dia seguinte à solenidade de Todos os Santos, dia 2 de novembro, a Igreja católica sufraga todos os Fiéis Defuntos...esses que nos precederam na fé e na caminhada na vida e que morreram ‘antes de nós e dormem agora o sono da paz’, tal como rezamos na oração eucarística do cânone romano.
Em toda a oração da Igreja os defuntos — sobretudo os que tinham fé e a celebravam de forma habitual em Igreja — são lembrados como irmãos mais velhos e que junto de Deus — seja qual for o seu estado de presença ao próprio Deus, no purgatório ou no céu — vivem a visão beatífica ou para ela se preparam pela purificação...
A nossa oração por eles — como se diz habitualmente pelos sufrágios — pode ajudá-los a ‘estarem’ junto de Deus o mais breve possível.
Este dia de Fiéis Defuntos pode e deve compreender-se à luz dos artigos do Credo: creio na vida eterna e na comunhão dos santos, pois só acreditando nessa vida e nessa comunhão poderemos viver e sentir tal participação na vida de ressurreição em Jesus e por Jesus.

= Quais os desafios que estas celebrações nos colocam, hoje?

Desde logo há um desafio muito simples que é a conexão entre a santidade e a condição de fragilidade, esta vive-se e pode ser construída na prossecução daquela, isto é, somos chamados a ser santos a partir e na conjugação da nossa vivência terrena e humana…santos neste mundo e segundo cada tempo. Com efeito, só alicerçados numa fé muito bem esclarecida poderemos entender certos sinais de devoção popular ao (dito) ‘culto dos defuntos’, que é muito mas do que um certo culto dos mortos: os resquícios de veneração daqueles que nos precederam na vida – e os cristãos dizem também ‘na fé’ – poderão dar sentido à deposição de flores e de outras manifestações de carinho e amizade para com os ‘nossos’ defuntos. De facto, não os esquecemos, pois temos memória e gratidão, envolvemo-los e deixamo-nos envolver pelo contexto social e (quase) ritual…pois, o que seria da nossa identidade se já nem os lembrássemos!

Será, então, esta corrente de oração que nos despertará para sentirmos a necessidade de avivar a nossa contingência, pois aquilo que semearmos nos mais novos e nos virem fazer para com os nossos antepassados será essa cultura que perpetuará o nosso não-esquecimento por outros. Aos crentes cristãos/católicos está associada a participação na missa, lembrando os Santos e os Defuntos numa espécie de celebração conjunta e harmoniosa, pois uns e outros fazem parte da nossa família de sangue ou da fé.

Claro que não podemos esquecer as novas formas de sepultamento, que é a cremação. Também neste caso dependerá do local onde estão as cinzas, pois também estas podem e devem merecer idêntico respeito e, porque não, cuidado na atenção aos vindouros.

De todo será desejável que não continuemos a viver como se a morte não existisse e em que essa passagem única e irrepetível da vida não deva ser preparada na dignidade da condição terrena. Urge, por isso, tentarmos lutar contra a privatização da fé e dos momentos de morte, pois isso não passa duma alienação onde cada um se julga ‘imortal’ cheio de medos e fantasmas… não-assumidos. Basta de mitos e cobardias! ‘Saiba morrer, quem viver não soube’ – dizia Bocage!    

 

António Sílvio Couto

sábado, 24 de outubro de 2015

Deixa de ser Inácio!



Por estes ouvia-se na publicidade esta frase: ’deixa de ser Inácio’… e relatava-se uma situação em que alguém – será o tal ‘Inácio’ – que não conseguia ver um desafio de futebol porque os meios que estaria a usar seriam fraudulentos… em vez dum canal televisivo (pago) em que passava o dito jogo…
Nota-se que o assunto tem contornos clubísticos um tanto complexos e mesmo a exigir alguma racionalidade, o que nem sempre é fácil quando há paixões à mistura com coisas do futebol… dentro e fora do campo.

= O que parece, neste momento, ser transversal na sociedade portuguesa envolve quase situações de fraude, desde a dimensão político/partidária até ao enviesado com que estão a ser tratados certos problemas.
- Veja-se o clima de crispação que temos vivido, politicamente, desde as eleições de 4 de outubro. Parece que, de dia para dia, vai subindo a suspeita de que os atores políticos deixaram de falar a mesma linguagem, usando mais as suas grelhas ideológicas cada vez mais acirradas, quando o que era preciso era o diálogo.
- Vemos pessoas a quererem chegar depressa ao poder, quando não venceram nas urnas. Reclamam que os votos são todos iguais, mas, quando são os do seu lado da barricada, são mais iguais e valiosos que os que foram dados aos adversários.
- Acena-se com acordos entre forças, anteriormente, inimigas, mas ninguém viu até agora nada escrito… Dizem que é para não dar trunfos aos do outro lado, mas não se sabe o que nos espera, mesmo que estejamos apreensivos sobre o nosso futuro coletivo, dentro ou fora da União Europeia.
- Perante tantos episódios – nem sempre claros e tão pouco visto à luz do dia – tem-se a sensação de que, a muito curto prazo, teremos um novo resgate solicitado às forças que nos emprestaram, recentemente, dinheiro, pois quem não cumpre as suas obrigações mais tarde ou mais cedo vai entrar em incumprimento…
- Deste modo poderemos ter a sensação de que os sacrifícios pedidos aos portugueses serão deitados fora… e muito em breve voltaremos a ter de iniciar a caminhada do ‘mito Sísifo’ – a de carregar uma pedra até ao alto de um monte e chegados ao topo escorregamos (ou somos empurrados) para começar nova subida – do nosso coletivo nacional…

= Temos de ser capazes de ultrapassar este complexo nacional de fado com que nos vamos entretendo a chorar com saudade o tempo em que gostaríamos de ser todos ricos sem trabalhar e de gozarmos a vida sem fazer a nossa parte.
- Já é tempo de deitar fora os mesmos atores da vida política, pois sempre que entram não conseguem fazer outra coisa que aquilo que já estava no guião do filme anterior… e o final foi amargo, como agora voltará a ser irremediavelmente. Parece que não aprendemos as lições do passado e continuamos a fazer os mesmos erros e a tratar as coisas de forma superficial e (quase) a brincar.
- Temos de deixar de ser inácios da aldrabice e de julgarmos que a nossa esperteza há-de suplantar as distrações dos outros. Com efeito, precisamos de cultivar mais a inteligência, pois se continuarmos a adular os espertos – no poder ou com aspirações a ele – com facilidade seremos ludibriados mais depressa do que pensamos.
- Os tempos não estão para brincadeiras e, ou nos unimos segundo os valores éticos mais elementares, ou seremos tornados servos de ideologias que noutras paragens e noutras épocas já vimos os seus resultados. O posicionamento político sobre os contestatários ao regime de Angola, nos últimos tempos, é revelador dos interesses de certos setores da nossa vida social… Afinal, não são idênticos os valores que alimentam lá o poder e que por cá pretendem aceder ao posto de comando, surgindo na defesa dos contestatários?
- Há figuras que, de facto, não mudam. Podem hibernar ou acomodar-se, mas, quando as circunstâncias parecem ser favoráveis, logo ressurgem como se o filme tivesse estado parado ou o tempo não tenha passado por todos… Assim não vamos lá!
- Urge fazer com que em cada português se modifique desse que era denominado de ‘chico-espertismo’ – agora poderá ter outro nome, inácio ou qualquer outro – com que temos andado a enganar-nos… Já não pegam as artimanhas de antanho!

António Sílvio Couto

terça-feira, 20 de outubro de 2015

‘Boda’ para os sem-abrigo!



Aconteceu nos EUA, na semana passada, uma noiva, cujo casamento foi cancelado pelo noivo dias antes, ofereceu o conteúdo da refeição a mais de uma centena de sem-abrigo da cidade… de Sacramento. Os cerca de trinta e um mil euros já pagos de caução para a boda foram encaminhados para pessoas idosas e solitárias e ainda famílias que estavam a passar por dificuldades…

Interessante foi ler os comentários colocados na sequência da notícia. Houve quem agradecesse aquele gesto de solidariedade… quem desejasse que a noiva ‘suspensa’ possa encontrar quem a mereça… quem sentisse que uma derrota assim há de reverter em vitória!

= Não quero nem posso fazer qualquer julgamento sobre aquele ato de alguém, a menos de uma semana, ter deixado a noiva sem casamento. Quantos haveria que podiam (ou deviam) ter igual força, mas outros valores se elevam ou rebaixam!...

No entanto, neste nosso mundo, há tantas situações a exigir reflexão que certos factos só não nos comovem porque andamos demasiado ocupados com múltiplas futilidades, que nem conseguimos questionar a nossa negligência e falta de atenção aos outros… Vive-se numa razoável vulgaridade da espuma dos acontecimentos e os factos de verdade não deixam, facilmente, marca na consciência e no comportamento, seja no questionamento pessoal, seja na abrangência dos problemas sérios e não das distrações de insensibilidade aos outros.  

 = Como dizia, uma vez, um responsável pastoral: o casamento começa a preparar-se duas a três gerações antes… isto é, logo desde que os avós ou pais se venham a casar. De facto, o que estamos a colher, hoje, é resultado dalguma banalização com que temos vindo a enfrentar os problemas da família… uns vistos de forma mais tácita, outros de modo mais explícito e tantos outros com razões de preocupação…

Uma das vertentes mais claras do afundamento da família – como valor humano ou como realidade social – é o do abandono da presença de Deus na cultura familiar. Mesmo que iniciado através do matrimónio nem sempre é notório que Deus conte como Alguém de referência, seja nas palavras, seja nas vivências dos momentos comuns do contexto familiar. Isto para não falar da quase total ausência do tempo de oração da família. Poderá acontecer que cada um reze pela sua parte, mas poderá faltar a oração comum como expressão da mesma família. Note-se como a participação na missa dominical – sobretudo paroquial – nem sempre é cultivada como algo identitário da família e da sua manifestação comunitária.

= Outra frase que poderemos citar neste tema da família é a da relação, do compromisso e da estabilidade das pessoas. Lembramos aquele casal de velhos a quem perguntaram o segredo para se manterem casados tanto tempo, ao que um deles respondeu: ‘no nosso tempo, quando alguma coisa se partia, consertava-se e não se deitava logo fora, como hoje’. Com efeito, a fragilidade das relações emocionais/afetivas das pessoas é hoje notória, desde as questões mais complexas até às mais simples e quotidianas. Parece que as pessoas se tratam como se fossem elas mesmas algo de descartável: valem e gosta-se até quando se descobrem defeitos e se detetam falhas… custa muito ver e deixar-se aceitar nas fases de menor brilho e de menos boa atração… tanto ao nível humano como psicológico. E na dimensão espiritual algo haverá a que se atenda? Talvez não, pois não há tempo nem preparação para entender os outros para além do meramente visível…

Como nos vem, repetidas vezes, dizendo o Papa Francisco, vivemos numa cultura do descartável sem tempo nem espaço para atender aos cuidados que os outros possam necessitar… tudo corre bem até que não caía a máscara da boa figura e mesmo de ‘boa pessoa’, na medida em que não conseguiremos disfarçar sempre e com todos…

O Sínodo dos Bispos, em Roma, não terá tratado destas temáticas relacionadas com a família, mas nós podemos e devemos abordar estas simples questões, que nos ajudarão a compreender a doutrina e outros problemas mais complexos… Na base da família está a educação humana e cultural, cívica e espiritual, que se bebe desde o berço!

  

António Sílvio Couto

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Testemunho - Ao padre-formiga




Foi com estupefação que recebi – via mensagem da arquidiocese – a notícia do falecimento do Padre Manuel da Costa Amorim… ex-capelão militar da Armada, capelão-chefe do ramo, vigário geral da diocese da Forças Armadas e de segurança.

Sabia que estava doente – ainda esta semana lhe enviei uma mensagem escrita a desejar-lhe boa saúde…e não recebi resposta – desde a Páscoa, com implicações inesperadas e complexas… Ele um militar de carreira – mais de trinta anos de serviço, contra-almirante na reserva, mas a prestar serviço de capelão por vocação – teve, nos últimos tempos alguns achaques que lhe foram – sabemos agora – fatais.

É verdade que somos originários do mesmo concelho (Esposende), com alguma idade de diferença – ele tinha 63 e eu tenho 56 anos – e só nos aproximamos um pouco mais desde que há dezoito anos vim para a diocese de Setúbal.

O Amorim era – como diz o título deste breve testemunho – uma espécie de padre-formiga: trabalhava muito, de forma discreta e fazia os outros trabalhar também… desde bem cedo e até bastante tarde: era dos primeiros a passar a ponte e dos últimos a vir do lado de lá!

Encontramo-nos algumas vezes nestes anos por aqui passados, mas tenho a sensação de nem sempre ter aproveitado da sua sabedoria e experiência de vida…mesmo no trato com outras estruturas que não religiosas. O capelão Amorim era respeitado nas forças armadas, tornando-se uma espécie de referência da arquidiocese de Braga no meio castrense. Soube dirimir contendas, tanto no espaço castrense como no âmbito eclesial… onde a sua atitude de maior relevo – se bem que não muito publicitada – foi o ato de retirada pela reserva antecipada.

É duro perder um padre com esta idade e com condições de ser muito benéfico para a Igreja e para o meio militar.

A paróquia de Belinho perdeu em pouco mais de dois anos quatro padres… uns por idade e outros por doença. O Padre Amorim vai a sepultar no dia mundial das missões. Como gostaria de exprimir ao Céu o desejo de que a sua entrega possa frutificar em novas vocações naquela paróquia, em todo o arciprestado e na diocese inteira.

Padre Manuel, não conseguimos cumprir o desejo que tinhas de nos encontramos, quando estivesses melhor. Aí do Céu olha para a tua diocese de origem e para aquela em que trabalhaste tanto e pede a Nossa Senhora que nos dê a todos a tua capacidade de sermos padres mais formigas do que cigarras!

 

António Sílvio Couto da Silva

(natural de Forjães, Esposende e pároco da Moita, Setúbal)

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Então, como vai isso?


Cada vez que passava sob a janela, lá estava a senhora, a quem não via mais do que a cabeça, que perguntava: ‘Então, como vai isso’’… Respondendo-lhe quase invariavelmente: ‘vamos andando’… e seguia o caminho.

Recordando esta breve frase – sem ter ainda percebido o seu alcance – como que gostava de, através dela, deixar breves inquietações deste tempo e sobre este tempo que por agora vamos vivendo.

- Quando ouvimos certos políticos reclamarem da necessidade em criar empregos, perguntamos: então, como vai isso em matéria de fazerem surgir empregos? Já vimos algum partido ou sindicato a criar empregos ou terá sido antes a destrui-los?

- Quando vemos certos mentores da contestação a aparecerem como defensores dos mais desfavorecidos, perguntamos: então, como vai isso nas circunstâncias de empenhamento para que os pobres diminuam? Que seria do discurso duns tantos se lhes retirassem a fatia dos que passam mal, teriam conversa e programa?

- Quando assistimos à contestação de matérias no âmbito da UE, por certas forças partidárias, perguntamos: então, como vai isso de coerência, se depois se candidatam e usufruem dos benefícios que combatem? Chegamos, nos tempos mais recentes, a um caso em que, quem ganhou lá para fora, fez campanha por cá por outra força ideológica… Verdade a quanto obrigarias…a quem tenha vergonha e bom senso!

- Quando assistimos a certas manifestações de crença – sobretudo usufruindo desse anonimato de Fátima e afins – como que ousamos perguntar: então, como vai isso em matéria de compromisso de fé e no concreto da vida? Que é mais importante colaborar ou comprometer-se? Ao longe consegue-se disfarçar melhor?

- Quando passamos a perceber um tanto melhor que certas fés cuidam mais promoção dos seus fiéis do que lhes tentam dar razões de crescimento na humildade, perguntamos: então, como vai isso de ser cristão, é só quando convém ou certos assuntos não são (ou não podem) tratados na evangelização? Atendendo às questões da família, estas só interessam quando convêm?

- Quando parece vir a crescer um certo cristianismo egoísta, isto é, onde a minha crença se sobrepõe à vivência comunitária com outros, perguntamos: então, como vai isso de ser cristão, se os outros podem aparecer como adversários e não como irmãos? Que comunhão temos e vivemos, se, preferencialmente, recebemos ou, se damos, aquilo que nos sobra?

= Perante estas duas séries de questões – umas mais de âmbito político e outras de natureza eclesial – e tendo aquela pergunta – ‘então, como vai isso?’ – por inquietação, propomos algumas sugestões:

. Os políticos não podem dizer e fazer (quase) tudo e o seu contrário, ficando impunes e como se fossem imunes àquilo que possa estar em desconformidade com a prática mais simples e razoável. O uso da palavra não deverá ser uma forma de engano, desacreditando quem fala e colocando suspeitas em quem escuta… E nem odor a poder será desculpa para que se possa ser ilógico e inconsequente na forma e no conteúdo. O pior que nos podia acontecer era a sensação de termos políticos mentirosos e mais do que isso oportunistas e maquiavélicos.

. Como conciliar um certo cristianismo de consolação com a capacidade de compromisso e de caminhada contínua na fé e na comunidade? Até agora temos sentido que muito vêm no Papa Francisco uma espécie de mentor da primeira faceta, como irão reagir quando dele percebermos que é mais da segunda perspetiva?

O ano jubilar da Misericórdia pode e deve ser uma oportunidade para sairmos do nosso casulo de conveniência e fazermos a visualização do rosto de Jesus Cristo misericordioso e compassivo. Temos muito a aprender e o mundo espera de nós, cristãos/católicos, mais do que boas intenções e cerimónias de passa-culpas: se não vivermos a misericórdia na Igreja como poderemos apresentá-la aos outros!

Em resumo: ‘então, como vai isso’ em matéria de coerência e de bom senso? Sem verdade não conseguimos viver na lealdade de todos e de uns para com os outros…

  

António Sílvio Couto

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Humildade e bom senso, precisa-se!


Por estes dias ouvi uma avaliação-resumo da situação político-social: o que é preciso é humildade e bom senso…por forma a tentarmos que sejam resolvidos os problemas atuais e futuros.

No entanto, este desejo de que haja humidade e bom senso pode estender-se a muitos outros campos de ação e variados temas da nossa participação humana.

= Antes de tudo ‘humildade’ é uma virtude não de fracos, mas de fortes, pois, só quem não tem nada a temer se considera capaz de viver ao ritmo da normalidade de cada dia. Com efeito, os orgulhosos e ambiciosos têm muito a esconder, pois precisam de simular quem são para poderem enganar os demais. Quem vive na humildade pode andar de cabeça levantada, na medida em que sabe quem é e como se deve conduzir na vida. Por seu turno, os vaidosos precisam de esconder-se sob a capa daquilo com que pretendem aliciar os outros e disfarçar o que valem até que se descubra a falta de valor ou de valores…

= ‘Bom senso’ é outra das caraterísticas apontadas para que se possam resolver muitos dos problemas do nosso dia-a-dia. De facto, o bom senso não se vende na farmácia nem está em saldos em qualquer superfície comercial. Dir-se-á que o bom senso ou se tem ou não se inventa. Bom senso é outra virtude do equilíbrio no nosso trato humano, seja qual a instância em que nos possamos colocar. Com efeito, bom senso poderá entender-se pelo contraste com ‘sem senso’ ou ‘mau senso’, isto é, quando alguém trata e vive sem capacidade de assumir o que diz e aquilo que faz com todas as consequências dos seus atos. Esta atitude de vida é muito mais do que o resultado da instrução, mas antes é recebida da sabedoria da vida, em cuja escola aprendem aqueles que procuram ser sensatos e adultos…a sério.

= Verdade, a quanto obrigas!

Poderia ser deste modo que a humildade e o bom senso se poderão traduzir em conduta de comportamento. A ética/moral precisa de pessoas que vivam e sirvam sempre e só a verdade e a humildade é uma forma simples de traduzir o que nos fará viver em responsabilidade onde quer que nos encontremos. Quem se deixa guiar pela humildade não enfatiza só aquilo que faz e o que pensa, mas estará em permanente discernimento para com os outros, não para os julgar, mas para com eles aprender, dando-lhes razão quando a têm e olhando-nos olhos-nos-olhos podermos todos construir algo mais do que a banalidade e o oportunismo…

- Depois dum tempo de acentuação das diferenças, na campanha eleitoral mais recente, temos de construir pontes, onde cada um aprenda com os seus erros e não se afinque nos seus pontos de vista, mesmo que, segundo julga, possam ser (pretensamente) os melhores. Com efeito, não podemos fazer crer que quem perde ganha na secretaria, pois isso poderia ser um golpe de regime à revelia dos votos expressos. Quem ganha tem legitimidade, mas quem perde não pode só coligar-se negativamente para (tentar) fazer o que não merece…

- Noutros campos de ação, como o do Sínodo dos Bispos a decorrer em Roma, temos também de ver e pôr em caminhada a vivência da humildade e do bom senso. De facto, a família não é pode parecer um espaço de leilão de interesses ou, como disse o Papa, não podemos tentar fazer do ‘sínodo dos bispos um parlamento que negoceia decisões’…Com efeito, em certas questões relacionadas com a família falta um razoável bom senso e muita humildade…Todos estamos a aprender e pouco temos a ensinar. Será quando fizermos um caminho comum que descobriremos muito mais aquilo que, de verdade, nos une do que daquilo que pretensamente nos separa.

Se todos nós cultivássemos mais a humildade e o bom senso poderíamos ir construindo uma sociedade mais harmoniosa e civilizada. Se todos soubéssemos viver em humildade e bom senso haveria mais paz e serenidade. Se todos, afinal, nos sentíssemos mais necessitados de humildade, seríamos melhores sinais de bom senso. 

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Centralidade ativa da família


‘O Sínodo reforçará a centralidade ativa da família na comunidade cristã’. É assim que entende, D. Manuel Clemente aquilo que será feito no Sínodo dos Bispos em Roma, que decorrerá até 25 deste mês.

De facto, o que mais impressiona nos nossos dias é a vulgaridade com que se tratam temas tão fundamentais da dimensão humana e cultural, como é a família e imensos outros assuntos que estão presentes nesta abordagem à realidade familiar.

= Antes de tudo há os mais diversos ataques egoístas à família: cada um tenta valer pelo que é, sem atender àqueles com quem vive. O mito da ‘felicidade’ conquistou o primeiro lugar em cada membro da família. Esta, por vezes, vale pelo que me dá e não tanto pelo que eu dou e partilho. Será que cada elemento da família – marido/esposa, pais/filhos, irmãos/avós – cuida em que os outros sejam mais importantes do que o próprio? Até que ponto as circunstâncias de um ajudam e são ajudadas pelas dos outros? Como é o tempo e a qualidade de presença à família?

= Ouvi há dias que ‘a escuta é mais difícil que a fala’. Ora, na família, será que todos se escutam? Quem manda em casa não será, por vezes, o barulho da televisão ou a distração do computador ou mesmo a ocupação do sempre contatável telemóvel?

Quantas vezes vemos um grupo de pessoas – que se presume sejam da mesma família – à mesa, mas onde cada qual está no seu mundo, feito de virtualidade e não de diálogo! Quantas vezes a forma algo irritadiça como se falam nos faz perceber que a conversa não une, mas poderá ser facilmente alterosa e alterada! Quantas vezes na conjuntura da vida as pessoas do mesmo sangue se sentem menos afeiçoadas do que os do círculo de convívio e (pretensa) amizade!

= O tema sempre fundamental da vida pode e deve ocupar um espaço central em cada família. Com efeito, a abertura ao ‘dom dos filhos’ tem vindo a ser um dos desafios mais urgentes da nossa época. Pelas mais diferentes razões a opção pelo nascimento de um filho vai sendo adiada até ao limite da capacidade de fecundidade… tornando-se, nalguns casos, algo que será preocupante em razão das consequências de ser mãe ou pai mais tarde. Por vezes, este acontecimento da maternidade/paternidade condiciona a vida presente e atrapalha as aspirações para com o futuro. Parece que o filho/a é uma espécie de ‘objeto’ que traz incómodos em vez de satisfação e alegria. Em certas leituras do que vamos vendo nota-se mais uma atenção aos progenitores do que aos descendentes…

= Numa leitura mais habitual diríamos que todos fazemos parte de uma família onde aprendemos a ser o que somos, enraizados num espaço e num tempo… respondendo à pergunta: de onde é natural?...numa tentativa de identificação com as origens e suas implicações.

Ora, com a mobilidade hodierna poderemos, por vezes, vivenciar algo que nos pode exigir uma contínua aferição a novos espaços e diferentes formas de estar. Hoje já é difícil encontrar alguém que tenha nascido, crescido e morrido sempre no mesmo lugar. Neste sentido também a família está exposta às múltiplas influências…mais ou menos enriquecedoras e desafiadoras para todos. A grandeza duma família estará, assim, colocada na capacidade de integrar novos elementos culturais e sociais… sem se deixar baralhar pela novidade.

= Apesar dos mais atrozes ataques à família de índole cristã, temos de saber salvaguardá-la com espírito de ousadia, pois será quando a família cristã estiver saudável que poderemos ter uma Igreja mais centrada no essencial, que é Jesus Cristo e a sua mensagem do Evangelho. Precisamos de viver uma reconfiguração comunitária da vida eclesial e os alicerces estão na família…Tudo o resto serão distrações e fait-divers ocasionais ou intencionais!

 

António Sílvio Couto