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domingo, 24 de janeiro de 2021

Alugar cães para desconfinar

 


A notícia foi dada pelo autarca de Barcelos, que deu nota de que havia naquela cidade quem alugasse cães para permitirem que os ‘donos’ possam sair de casa, por ocasião do confinamento mais recente.

O edil deu ainda referência a que alguns dos animais davam a entender, pelo cansaço manifestado, que seriam obrigados a irem à rua mais do que uma vez por dia…

Numa avaliação desta esperteza – costuma apelidar-se de ‘saloia’, mas aqui foi praticada por minhotos – daqueles concidadãos, o autarca não deixou de estranhar a habilidade, condenando mesmo tais expedientes.

 = Aquando do confinamento do ano passado escrevi (28 de março de 2020):

«De entre as exceções à condição de emergência, em que estamos a viver, sobressai a possibilidade de levar a passear o cãozinho (ou canzarrão) à rua. Essa poderá ser uma razão ou até uma desculpa para infringir o dever de recolhimento para muitas pessoas e uma boa parte de insatisfeitos com aquilo que se está a vivenciar.

Que dizer, então, da confluência de arejamento, quando duas ou três ‘vizinhas’ (ou vizinhos) se encontram à esquina da rua e, colocando os ‘lulus’ (de estima, de companhia ou de substituição) à distância de segurança (pelo menos dois metros), se colocam na conversa – a tal treta – sustida pela trela dos seus argumentos para saírem de casa? Será esta mais uma das habilidades, à portuguesa, para tornear as regras e fazer-de-conta que está tudo normal? Quantas vezes e por quanto tempo se pode usufruir (usar ou abusar) deste regime de exceção por dia? Não andaremos a explorar os animais com os ‘nossos’ descuidos e subterfúgios de ocasião?».

 = Efetivamente somos suficientemente ‘inventivos’ para levarmos a bom termo os nossos intentos, desde os básicos até aos mais complexos, procurando qualquer nesga da regra (lei ou normativa) para por aí exprimirmos a nossa habilidade mais subtil. Isto será uma forma de estar e/ou de desenrascar-se? Será o modo de ser ou uma forma de estar?

Por muito ou pouco cumpridores que nos consideremos, parece que há um quê de rebeldia em cada um de nós…português/portuguesa: subverter a lei emerge com muita facilidade ou com mais regularidade do que seria desejável. É de razoável riqueza o nosso léxico, manifestando este património imaterial da cultura popular. Vejamos algumas dessas expressões mais significativas: esperteza saloia, chico-espertismo, desenrascanço, espírito de improviso, saber safar-se, viver de expedientes…realçando mais as nossas capacidades encobertas do que as possibilidades explícitas dos outros, sejam simples cidadãos ou mesmo autoridades.

Qual o alcance de cada uma destas ‘expressões’ ou palavras? Que revelam elas da nossa identidade pessoal ou nacional? Que manifesta isto da nossa esperteza individual sem menosprezar a inteligência alheia? Até que ponto sabemos tornear as questões sem deixar (quase) nada que nos possa comprometer?

‘Esperteza saloia’ tem a ver com a necessidade de defesa de uns tantos, os saloios – cultivadores da terra e sem grande instrução – perante os outros (‘alfacinhas’) ; aqueles usavam de esperteza para vencer a argúcia destes…antecipando-se por habilidade, isto é, enganando antes de virem a ser enganados. O pior é quando os ‘saloios’ (no sentido pejorativo) se multiplicam noutras latitudes…  

‘Chico-espertismo’ configura idêntica capacidade de não deixar a descoberto as suas (naturais) debilidades, enfatizando mais aquilo que lhe dá proveito do que é (possível) prejuízo… Segundo alguns momentos de dificuldade, o chico-esperto tenta subverter o que outros aceitam como regra, que ele faz exceção para ser a ‘sua’ regra…até que se venha a descobrir.

 Desenrascanço/improviso/safar-se – coisas em que o português médio é mais ou menos perito, sobrevoando sobre a concorrência e saindo-se bem sem para isso estar preparado. Dizem que somos bons a safar-nos e nem sempre quando temos de prestar contas, isto é, se as coisas estão mais programadas… Isso era! Também temos capacidade de desenvolver ações previstas, mas temos, por excelência, uma habilidade que suplanta outros povos e até culturas… Até quando?     

 

António Sílvio Couto

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