Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



terça-feira, 31 de outubro de 2023

Sê quem tu quiseres’ – qual o significado?

 


Quando li esta frase – ‘sê quem tu quiseres’ – andei a cogitar por várias horas. Ela pode proporcionar aspetos positivos, mas também criar confusões ou suscitar dimensões menos boas, senão mesmos negativas. Ela pode ser um slogan, mas também poderá comportar desafios e envolver mistérios pessoais e sociais. Ela pode referir-nos coisas de bem e, porque não, insinuar comportamentos desviantes...

1. Fui em busca da origem mais recente desta frase – ‘sê quem tu quiseres’ – e encontrei a referência à nova insígnia com o lema do triénio 2023-2026 do corpo nacional de escutas em Portugal, onde cada escuteiro é desafiado a definir o que quer ser, para onde quer seguir e que caminho quer percorrer. Aqui se acentua, em sumário, a componente do ‘querer’, certamente essencial, mas que pode não ser o mais importante numa etapa pedagógica e em fases de crescimento e maturidade da pessoa.

2. Coloquemos (hipotéticas ou reais) situações em que esta frase – ‘sê quem tu quiseres’ – pode conter, em primeiro plano, aspetos positivos na vida das pessoas, isto é, casos em que o querer pode e deve ser alicerce e força de conduta na hora da afirmação da vontade: quando alguém deseja atingir um objetivo de melhorar a sua vida (seja em que nível for); quando se tenta ultrapassar questões de limitação humana e social; quando para atingir os fins se procura desenvolver os meios adequados, corretos e proporcionais; quando mais do que tropeçar nas dificuldades (interiores ou exteriores) se procura construir algo de benéfico e salutar...

3. Ao nível religioso (e de algum modo filosófico) podemos encontrar uma expressão que, de certa maneira, consubstancia a ideia subjacente àquela frase – ‘sê quem tu quiseres’ – que se designa de ‘livre-arbítrio’. Este consiste na capacidade que cada pessoa tem de escolher as ações e qual o caminho que quer seguir, na liberdade de opção de cada um.

Diz-nos o Catecismo da Igreja Católica: «A liberdade é o poder, radicado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, praticando assim, por si mesmo, acções deliberadas. Pelo livre arbítrio, cada qual dispõe de si. A liberdade é, no homem, uma força de crescimento e de maturação na verdade e na bondade. E atinge a sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa bem-aventurança» (n.º 1731). Será que agimos de forma livre, segundo Deus? Será que de Deus acolhemos a sua liberdade para sermos livres n’Ele? Não será que, na maior parte das vezes, não somos livres na linguagem de Deus e do seu Espírito santo em nós?

4. No entanto, esta frase – ‘sê quem tu quiseres’ – não poderá induzir em erro quem pretenda ‘impingir’ a pretensa ideia de que a dimensão afetivo-sexual teria uma possibilidade de cada querer ser o que lhe convenha? Isso não afetaria a linguagem e os comportamentos a contento do freguês ou à la carte? Não teremos neste âmbito ético/moral algo que está a resvalar para uma certa libertinagem, que terá, em breve, consequências mais graves do que as que advertimos? Não seria avisado que tais propostas devessem ser escrutinadas, atendendo às mais díspares insinuações, com boa-fé?

5. Ñum tempo de razoável relativismo ético como que se torna urgente ser sagaz – outra forma de dizer prudente – para que frases como a que temos vindo a analisar não tenham (nem possam ter) interpretações menos adequadas ou até subliminares. Mesmo que tentando uma explicação e um enquadramento mais ou menos aceitável, será preciso que os projetos de pessoas e de associações contribuam para a informação-formação-maturidade de todos e de cada um. Não sei se foi totalmente o caso em apreço...

6. «’Tudo é permitido’ mas nem tudo é conveniente. ‘Tudo é permitido’, mas nem tudo edifica. Ninguém procure o seu próprio interesse mas o dos outros» ( 1 Cor 10,23-24).



António Sílvio Couto

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Humoristas: entre o bobo e o trocista?

Fiquei algo estupefato, quando, há dias, ouvi um indivíduo dizer: prefiro a minha profissão de humorista e logo discorreu sobre as suas façanhas de fazer rir com piadas ou de ganhar o pão-de-cada-dia a gozar com as situações... Daí me veio a pretensão de querer perceber melhor o que é isso de ser humorista, com que linhas se cose e quais poderão ser os elementos constitutivos dessa profissão.

1. Parece ser recorrente que vejamos muitos e algumas a fazerem humor, usando palavras que pretendem fazer rir ou, pelo menos, sorrir. Depois de uma certa vaga de ‘stand up comedy’ (humor/comédia em pé) há cerca de uma década, foram ficando uns tantos/as a quem acham piada e que entretêm o público com graçolas, muitas delas com gosto duvidoso ou usando termos que podem ser ofensivos para com os visados... se estes se derem por ofendidos. Acertar na pretensão dos fazedores de humor torna-se algo que pode entender-se na circunscrição de quem gosta de tal e que compreende a linguagem, a mensagem e o estilo. Confesso que a minha inteligência não consegue captar as pretensões de boa parte dos humoristas de serviço à nossa indigente democracia. Algum desse humor faz parte da tal cultura de esquerda em moda, que alinha com aquilo que possa estar na retranca seja lá do que for. Certos casos (ditos) de sucesso percebem-se pelo suporte ideológico que têm à mistura com os espaços que lhes são facultados como expressão cultural de conveniência. Por vezes há figuras que cairam em certa graça, embora não tenham graça alguma...até que caiam na desgraça total. Então verão a falácia que criaram e o logro em que viveram!

2. Quais as balizas para fazer humor? Que há de sério no humor? É humorista quem quer ou quem pode e sabe ser? Será que o humorista tem humor suficiente sobre si mesmo? Será que conhece as suas limitações ou só vê as dos outros?
Usamos, neste contexto, a palavra ‘humor’ no significado de atividade cómica e naquilo que pode ter de artística. A palavra ‘humor’ vem do latim ‘humore’ e significa a disposição do ânimo de uma pessoa ou a sua veia cómica. A expressão humorística está presente nas artes através da caricatura, de pinturas de crítica social, política ou religiosa... Uma pessoa que utiliza a sua veia cómica para fazer com que outras pessoas riam é conhecido como humorista.
Os artifícios para fazer humor podem variar, podendo passar pelas palavras ditas e entendidas, pela atitude de quem quer ser humorista ou mesmo pela repercussão do que é dito ou dado a entender. As duas figurações que apresentamos no título deste texto - bobo e trocista - poderão ser expressões extremas das possibilidades de humor: o bobo faz rir, mesmo sem falar e o trocista precisa de verbalizar para que se entenda aquilo com que pretende fazer rir. Ora, no quadro do humor em ato talvez não tenhamos atingido nenhum destes estádios, pois os que andam nestas tarefas humorísticas enfermam da falta de qualidade cultural e, na maior parte dos casos, são humoristas de bolha e nitidamente ao serviço e sabor de quem lhes paga.

3. ‘Ridendo castigat mores’ (a rir se corrigem os costumes) é uma frase consagrada para falar dos fins do humor, pois, por vezes, é mais fácil aceitar de forma suave, rindo, do que de modo duro que se seja corrigido. Há quem encontre aqui a fundamentação da ironia e da sátira, mas podemos alargar o entendimento ao que se refere como humor, na medida em que através deste se pode motivar a mudança dos costumes (‘mores’). Esta arte de aferir os costumes às boas práticas morais deverá ter em mente os princípios éticos/morais pelos quais a pessoa se rege. E esses princípios e valores situamo-los no quadro da tradição judeo-cristã. Infelizmente boa parte dos humoristas de serviço já mandaram às malvas tais valores e como que nivelam a sua jocosidade pelo mais rasca, quase ofendendo quem se afirme defensor dos valores dos Evangelho. Por isso, considero que os humoristas em voga nada têm de bobo e tão pouco de trocistas, andam mais parece a venderem-se a si mesmos como bitola da maledicência. Basta de baixeza! Assim, não, obrigado!


António Sílvio Couto

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Um em cada dez residentes é imigrante

Segundo um relatório da OCDE, intitulado ‘Perspetiva da migração internacional 2023’, um em cada dez cidadãos residentes em Portugal, no ano passado, nasceu no estrangeiro… num total de 1,1 milhões, isto é, 10,7% da população geral. Este dado acentua que, desde 2012, se verificou um acréscimo de 24 % de imigrantes no nosso país.

Por ordem decrescente a população imigrada é: brasileiros (um quarto do total), angolanos (14%), franceses (9%), seguindo-se depois indianos (e da região), alemães, belgas e ucranianos…

1. Há dados, no âmbito europeu, que vale a pena reter: no ano passado o número de migrantes que chegou aos países da OCDE (38 membros) foi de mais de seis milhões, excluindo os refugiados ucranianos. Esta cifra representa um aumento de 26% em relação a 2021 e de 14% quanto a 2019.

2. Perante estes dados temos de fazer uma séria reflexão, pois a chegada de tantos migrantes coloca-nos vários problemas, que se entrecruzam na origem e se complicam no terreno. A diversidade de procedências obriga a questionar as razões de terem escolhido o nosso país para se estabelecerem: vieram por que razão e com que objetivo? O leque de povos e de culturas que aqui chegaram terão o devido acolhimento e enquadramento social? Por que será que a maioria dos imigrantes obtém mais depressa o cartão de identificação fiscal e não o cartão de cidadão com residência? Não será que muitos dos imigrantes são mais carne de trabalho do que pessoas com direitos e deveres? A qualidade da nossa boa hospitalidade não terá sido substituída pela exploração sem pejo nem vergonha da maioria desses imigrantes? Trabalho, habitação, saúde e demais direitos serão bem geridos com justiça e de boa fé?

3. Num tempo de mobilidade temos de ser capazes de discernir este fenómeno de sermos cada vez mais procurados por povos e culturas tão diferentes. Parece que estamos, hoje, numa movimentação inversa do tempo das ‘descobertas’ do século XVI. Vejamos: a lista inclui povos que fomos à descoberta – brasileiros, angolanos, indianos… à mistura com a procura de gentes vindas da velha Europa – franceses, alemães e belgas – numa simbiose de culturas e de desafios a quem recebe. Temos a boa experiência da miscigenação de outras épocas, no entanto, as condições atuais são cada vez exigentes e teremos de ser capazes de ser e de estar sem perdermos a nossa identidade de nação.

4. Sobretudo quanto aos europeus – na lista aqui apresentada – fomos em antanho servi-los e ganhar dinheiro para conseguirmos melhores condições de vida há cerca de cinco décadas; agora são eles que nos procuram para usufruirem das regalias da reforma e de tempos de descanso…mandaram no passado e continuam a fazê-lo no presente. Os das ‘antigas descobertas’ vieram em busca de conseguirem suportar as famílias lá, de onde são procedentes. Estamos diante de um complexo processo do qual ainda não temos os dados bem assimilados.

5. Um dos aspetos mais relevantes para com os nossos emigrantes pelo mundo foi a capacidade da Igreja católica em destacar padres para acompanharem os nossos compatriotas. Muitas das vezes eram mesmo pagos pelo serviço prestado pelos Estados que os receberam. Esta forma de fazer foi aglutinando os nossos emigrantes em volta da religião e dando-lhes forma de estarem unidos lá fora.

Quanto aos imigrados aqui recebidos, tanto quanto se sabe, só os ucranianos é que têm tido algum suporte dado por padres da mesma língua e do seu rito, sendo da responsabilidade dos fiéis-leigos a sustentação dos seus ministros. As outras expressões linguísticas ou se integram nos espaços de linguajar português ou não há nada especificamente…

6. Dez por cento da população merece mais atenção do que tolerância e cobrança pelo trabalho feito! Mais de um milhão de imigrantes precisa de mais cuidado… cultural, ético e social.



António Sílvio Couto

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Quem é atingido pela atualização do ‘iuc’?


 «As taxas de IUC [imposto único de circulação] para todas as categorias [de veículos] sofrerão atualizações em 2024 à taxa de inflação prevista. Além desse efeito, a estimativa de crescimento da receita de IUC em 98,2 milhões de euros (+20,1%) reflete também as medidas de política para o presente Orçamento de Estado, como a criação da componente ambiental para os veículos de categorias A e E de IUC, no quadro de instrumentos de fiscalidade verde».

Lê-se na página 130 do Orçamento de Estado para 2024.
De seguida o mesmo texto do OE 202 explica o que é o IUC e quais as implicações na vida social e ambiental:
«O Imposto Único de Circulação (IUC) procura onerar os proprietários de veículos na medida do custo ambiental e viário que estes provocam pela sua utilização na via pública. Os veículos ligeiros de passageiros com matrícula posterior a 2007 (categoria B do IUC) são tributados com base na cilindrada e nas emissões de CO2 (componente ambiental). No entanto, os veículos ligeiros de passageiros de matrícula anterior a 2007 (categoria A do IUC) são, até à presente proposta de Lei de Orçamento do Estado, tributados exclusivamente com base na cilindrada. Não sendo considerada a componente ambiental, a poluição causada por estes veículos não tem relevância fiscal.
No ano de 2022, foi liquidado IUC a cerca de 6 milhões de veículos ligeiros de passageiros. Deste universo, aproximadamente metade são veículos com matrícula anterior a 1 de julho de 2007».
Sendo algo que atinge tantas pessoas tem vindo a criar algum alarme social e, porque não, alarido entre os que, sendo mais pobres e não conseguindo trocar de carro, serão prejudicados ainda mais fortemente nas suas frágeis economias.

1. Há questões que devem ser bem explicadas... para serem compreendidas e aceites. A sua implementação necessita de ser vista num enquadramento mais global e não numa perspetiva imediatista... de lucro e recolha de fundos. Se a medida se repercute na vida de mais de metade da população – o próprio texto do OE diz que são três milhões de veículos – isto não deveria ser objeto de maior atenção pelos responsáveis? Dizem que são dois euros por mês de agravamento, no próximo ano, num total de vinte e cinco euros, isso não pode ser visto como mera nota de rodapé... Esta pretensão poderá ser considerada como impopular, mas se é necessária para o equilíbrio ambiental, encontrem forma de não ser tão brusca e cega.

2. A sensibilidade à ecologia é hoje um fator de sobrevivência de todos. Depois da exploração desenfreada da Natureza estamos a chegar ao ponto de viragem obrigatória, para que não seja tarde. Aqui vale citar um certo chavão: Deus perdoa sempre, nós perdoamos às vezes, a natureza nunca perdoa! Sim, interferimos no curso dos rios e eles voltam ao seu leito em maré de cheias. Mudamos as regras da natureza por conveniência individualista e em tempos de crise tudo volta à versão inicial. Andamos a deixar-nos guiar pelo consumismo e a facilitação e pagámos a fatura com juros bem acrescidos. Queremos ar condicionado, velocidade e pressa e esbarramo-nos contra aquilo que a Natureza nos corrige com valor acrescentado. Ainda só estamos na fase exterior, veremos como serão os resultados quando formos atingidos na dimensão ética/moral... Certos assomos de pandemias foram laivos de correção, mas esta virá com força e algo trágica...

3. Não deixa de ser mais uma vez manipulação que os pretensos defensores da ‘natureza’ se arroguem de esquerda, quando muitos deles são herdeiros dos planos quinquenais da ditadura soviética, essa que não olhava a meios para conseguir os objetivos capitalistas de estado. Não deixa de ser quase vergonhoso que tentem excluir o cristianismo dos planos ecologistas, quando temos tantos exemplos de homens e de mulheres da ciência em defesa da natureza. Não foram religiosos os que descobriram leis e investigações que fizeram avançar a ciência? Ser honesto custa tanto a quem tem preconceitos e difunde mentiras científicas!


António Sílvio Couto

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

270 medidas de combate à pobreza – ilusão ou propaganda?

O ‘nosso’ governo acabou de aprovar e de divulgar uma estratégia nacional de combate à pobreza. São 270 ‘medidas’a concretizar em dois horizontes temporais: 2022-2025 e 2026-2030. Se o primeiro já vai atrasado na calendarização, o segundo estará para fora da legislatura desta governança. Apesar de audacioso tentemos esmiúçar o conteúdo, ao menos, do mais próximo no tempo.

1. O Plano de Ação está organizado por seis eixos estratégicos: reduzir a pobreza nas crianças e jovens e nas suas famílias; promover a integração plena dos jovens adultos na sociedade e a redução sistémica do seu risco de pobreza; potenciar o emprego e a qualificação como fatores de eliminação da pobreza; reforçar as políticas públicas de inclusão social e promover e melhorar a integração societal e a proteção social de pessoas e grupos mais desfavorecidos; assegurar a coesão territorial e o desenvolvimento local e, por último, fazer do combate à pobreza um desígnio nacional.

Note-se os verbos empregados para apresentar estas medidas: reduzir, potenciar, reforçar, promover e melhorar, assegurar, combater... Apesar de serem verbos fortes não sabemos – desde visto em iniciativas anteriores – se serão empenhativos e capazes de passarem de propostas de papel, portanto, de mera propaganda de entreter...

2. Segundo dados mais ou menos fiáveis, à data deste ano, haverá, em Portugal, 1,7 milhões em risco de pobreza ou de exclusão, correspondendo a 20% da população, isto é, um em cada cinco corre este perigo. Mais dados: cerca de dois em cada dez portugueses estão ou em situação de risco de pobreza (com um rendimento inferior a 551€ mensais) ou em privação material e social severa ou vivem em agregados onde se trabalhou em média menos de 20% do tempo de trabalho potencial (intensidade laboral muito reduzida). De salientar ainda que, desde 2015, o perfil dos grupos mais vulneráveis ao risco de pobreza ou exclusão social pouco ou nada se alterou. Em 2022, permaneciam como grupos mais vulneráveis os desempregados (60.1%), seguidos de outras pessoas fora do mercado de trabalho. As mulheres e as famílias com filhos, sobretudo as famílias monoparentais e as numerosas, são as que acumulam um maior risco de pobreza ou exclusão social e maior risco de pobreza monetária.
Olhando para trás – os dados são do início (2015) da governança atual – podemos recolher estes dados, por isso, que garantias nos serão dadas de que as boas intenções, por estes dias anunciadas, não continuarão o flop político-social dejá vu? Como bons vendedores de ilusões vamo-nos entretendo com dados para encher a propaganda...mas outros não fariam (ou farão) melhor!

3. É algo de extremamente complexo querer resolver o problema da pobreza e da exclusão social com medidas de gabinete... e muitas das que foram, por estes dias, apresentadas não passam disso mesmo: medidas de quem não conhece a realidade e que tenta produzir soluções inexequíveis. Neste como noutros campos de atividade social não basta elencar soluções sem conhecer a fundo os problemas e, sobretudo, as pessoas que os vivem, nalguns casos de forma atroz.
Quando se propõe que haja gratuidade de creches e que sejam aumentadas as vagas no pré-escolar à mistura a realização de locais de atendimento e de intervenção social estar-se-á a respeitar a proteção de dados? O plano – ultra determinista – para as várias etapas de idade – crianças, jovens, idosos e trabalhadores – não será um cardápio de meras intenções, que nunca terão qualquer aplicação a curto e médio prazo?

Aqui, como noutros campos de atividade, cabe bem a sugestão de intenções: pouco, prático e possível!

4. Que dizer à pretensão governamental de onerar o imposto único de circulação aos veículos automóveis com matrícula anterior a 2007? Não será isso castigar uma fatia da população mais empobrecida, mesmo que tal compense os cofres estatais? Não será mais uma incongruência de quem diz defender os mais pobres com medidas trovão (muito estrondo e pouco resultado), mas os pisa com impostos diretos e indiretos cegos e anónimos?



António Sílvio Couto

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Igreja sinodalmente missionária

 

Na linguagem eclesial o mês de outubro é considerado o ‘mês missionário’, celebrando-se, normalmente, no penúltimo domingo o ‘dia mundial das missões’, este ano no dia 22. Por estes dias tem estado a decorrer, em Roma, mais uma sessão do Sínodo dos Bispos, numa procura de refontalização e de dinâmica (atual e futura) para a Igreja católica. Entretanto, ainda neste mês – no último domingo – a diocese de Setúbal recebe o seu quarto bispo residencial. Olhemos para cada uma das facetas deste sumário...

1. Para o Dia mundial das missões, o Papa Francisco escreveu, como de costume, uma mensagem, de onde respigamos as seguintes palavras: «este ano escolhi um tema que se inspira na história dos discípulos de Emaús, narrada por Lucas no seu Evangelho (cf. 24, 13-35): «Corações ardentes, pés ao caminho». Aqueles dois discípulos estavam confusos e desiludidos, mas o encontro com Cristo na Palavra e no Pão partido acendeu neles o entusiasmo para pôr os pés ao caminho rumo a Jerusalém e anunciar que o Senhor tinha verdadeiramente ressuscitado. Na narração evangélica, apreendemos a transformação dos discípulos a partir de algumas imagens sugestivas: corações ardentes pelas Escrituras explicadas por Jesus, olhos abertos para O reconhecer e, como ponto culminante, pés ao caminho. Meditando sobre estes três aspetos, que traçam o itinerário dos discípulos missionários, podemos renovar o nosso zelo pela evangelização no mundo de hoje».

O Papa apresenta a mensagem em três pontos:
- Corações ardentes, «quando nos explicava as Escrituras». A Palavra de Deus ilumina e transforma o coração na missão.
- Olhos que «se abriram e O reconheceram» ao partir o pão. Jesus na Eucaristia é ápice e fonte da missão.
- Pés ao caminho, com a alegria de proclamar Cristo Ressuscitado. A eterna juventude duma Igreja sempre em saída.
A terminar Francisco exorta-nos: «Assim como aqueles dois discípulos narraram aos outros o que lhes tinha acontecido pelo caminho (cf. Lc 24, 35), assim também o nosso anúncio há de ser uma jubilosa narração de Cristo Senhor, da sua vida, da sua paixão, morte e ressurreição, das maravilhas que o seu amor realizou na nossa vida. Saiamos com corações ardentes, olhos abertos, pés ao caminho, para fazer arder outros corações com a Palavra de Deus, abrir outros olhos para Jesus Eucaristia, e convidar todos a caminharem juntos pelo caminho da paz e da salvação que Deus, em Cristo, deu à humanidade».

2. De 4 a 29 de outubro tem estado a decorrer o Síndo dos Bispos, no Vaticano, sob o tema da sinodalidade. Programado para funciona em cinco módulos principais está subdividido em trinta e cinco grupos segundo cinco línguas, entre as quais o português. Atendendo à complexidade do tema o Papa decidiu desdobrar a assembleia sinodal, depois do que aconteceu em 2022, em mais dois anos: em 2023 e prolongar a reflexão para 2024. A título de exemplo sobre a reflexão necessária quanto à sinodalidade bastará referir que no Catecismo da Igreja Católica, publicado ao tempo do pontificado do Papa João Paulo II, a apalvra ‘síndo’ aparece duas vezes (n.º 887 e 911) e no ‘Diretório para a catequese’, de 2020, sob o pontificado do Papa Francisco, surge também duas vezes: n.º 289 e 321. Quantas vezes se tem falado deste assunto nestes anos mais recentes, no entanto, ainda estamos muito longe do espírito de caminharmos juntos, todos como fiéis. Qual o segredo de tanta resistência, senão mesmo desistência? E os mais contra serão os mais velhos ou os mais novos?

3. Depois de um longo tempo de sé vacante - janeiro de 2022 a setembro de 2023: tempo de provação e de resiliência - eis que chega o quarto bispo para Setúbal. D. Manuel Martins chegou a Setúbal com quarenta e oito anos... sendo aqui bispo durante vinte e três anos. D. Gilberto Canavarro dos Reis tinha cinquenta e oito anos quando chegou a Setúbal e foi prelado sadino durante dezassete anos. D. José Ornelas Carvalho chegou com sessenta e um anos de idade e exerceu o ministério episcopal em Setúbal durante menos de sete anos. D. Américo Aguiar tem quarenta e nove anos e toma posse na data efeméride da ordenação do primeiro Bispo. Estive sob a condução dos três anteriores. Estou há trinta e seis anos na diocese de Setúbal e já vi muitos aspetos semelhantes nos finais e nos começos dos pontificados dos bispos anteriores. Acima de tudo é a Igreja que está em causa, sendo cada prelado somente um instrumento temporal da visibilidade desta Igreja particular. Queira Deus consolidar esta diocese, que, dentro de um ano e pouco, celebrará meio século de configuração autónoma...



António Sílvio Couto

sábado, 14 de outubro de 2023

Recordando as JMJ – ‘Não tenhais medo’... ‘Todos, todos, todos’

 


Decorridos mais de dois meses sobre as JMJ e a avaliar pela quase ausência de nos reportarmos aos textos do Papa, temo que algo não tenha passado de efervescência do passado...não muito longínquo.

Das várias intervenções papais à data de 2 a 6 de agosto ficou-me inistências em dois aspetos: ‘não tenhais medo’ ou repetida sonoridade do ‘Todos, todos, todos’.
A primeira frase aparece-nos 18 vezes, enquanto a redundância plural de ‘todos, todos, todos’ encontrámo-la 21 vezes.
Vejamos em síntese as diversas vezes em que ‘não tenhais medo’ ou ‘não temais’ lemos nos seguintes momentos de comunicação do Papa:
- aos bispos, sacerdotes, diáconos, consagrados/as, seminaristas e agentes pastorais (mosteiro dos Jerónimos, 2 de agosto): cinco vezes;
- cerimónia de acolhimento (parque Eduardo VII, 3 de agosto): uma vez;
- Via-sacra com os jovens (parque Eduardo VII, 4 de agosto): uma vez;
- vigília com os jovens (parque Tejo, 5 de agosto): uma vez;
- Missa final (parque Tejo): 9 vezes;
- encontro com os voluntários (passeio marítimo de Algés, 6 de agosto): uma vez.
Por seu turno, a pleonástica expressão - ‘todos, todos, todos’ podemos meditá-la nos seguintes momentos de encontro e de comunicação do Papa Francisco:
- aos bispos, sacerdotes, diáconos, consagrados/as, seminaristas e agentes pastorais (mosteiro dos Jerónimos, 2 de agosto): sete vezes;
- cerimónia de acolhimento (parque Eduardo VII, 3 de agosto): 13 vezes;
- na recitação do terço com jovens doentes (capela das Aparições, Fátima, 5 de agosto): uma vez.

* Interpelação do ‘não tenhais medo’
«A vós, jovens, que sois o presente e o futuro… Sim, precisamente a vós, jovens, é que Jesus diz hoje: «Não tenhais medo», «não tenhais medo»! Num breve momento de silêncio, cada um repita para si mesmo, no próprio coração, estas palavras: «Não tenhais medo».
Queridos jovens, gostaria de poder fixar cada um de vós nos olhos e dizer: Não temas, não tenhas medo! Mais, tenho uma coisa belíssima para vos dizer: já não sou eu, mas é o próprio Jesus que vos fixa agora. Ele que vos conhece, conhece o coração de cada um de vós, conhece a vida de cada um de vós, conhece as alegrias, conhece as tristezas, os sucessos e os fracassos, conhece o vosso coração. E hoje aqui em Lisboa, nesta Jornada Mundial da Juventude, Ele diz-vos: «Não temais, não temais! Coragem, não tenhais medo!» (Homilia na missa final)
Foram as últimas palavras de Francisco a todos os jovens - presentes ou a escutá-lo pela comunicação social - ‘coragem, não tenhais medo’. Efetivamente, num mundo governado pelo medo - nas suas diversas formas e manifestações - urge deixar-se libertar do medo desde dentro de nós mesmos para que exorcizados possamos ser livres e libertados de todo o medo. Isso só Jeus, pelo seu Espírito, o faz plenamente.

* Desafio à envolvência de ‘todos, todos, todos’
«Amigos, quero ser claro convosco, que sois alérgicos à falsidade e às palavras vazias: na Igreja há espaço para todos. Para todos. Na Igreja, ninguém é de sobra. Nenhum está a mais. Há espaço para todos. Assim como somos. Todos. Jesus di-lo claramente. Quando manda os apóstolos chamar para o banquete daquele senhor que o preparara, diz: «Ide e trazei todos», jovens e idosos, sãos, doentes, justos e pecadores. Todos, todos, todos! Na Igreja, há lugar para todos. «Padre, mas para mim que sou um desgraçado, que sou uma desgraçada, também há lugar?» Há espaço para todos! Todos juntos… Peço a cada um que, na própria língua, repita comigo: «Todos, todos, todos». Não se ouve; outra vez! «Todos, todos, todos». E esta é a Igreja, a Mãe de todos. Há lugar para todos. O Senhor não aponta o dedo, mas abre os braços. É curioso! O Senhor não sabe fazer isto [aponta com o dedo em riste], mas isto sim [faz o gesto de abraçar]. Abraça a todos. No-lo mostra Jesus na cruz, onde abriu completamente os braços para ser crucificado e morrer por nós» (Nas palavras de acolhimento à multidão de jovens, no parque da graça).
Este excerto como que resume as várias incidências de abertura a todos na Igreja. Precisamos de entender, verdadeiramente, quem são estes ‘todos’, sem subterfúgios nem apropriações indevidas. Será que esses ‘todos’ querem aceitar o ‘tudo’ que é Jesus? Ou será que só querem aceitar o que lhes convém ou satisfaz?

O Papa Francisco falou: escutemo-lo como voz de Deus, hoje.

António Sílvio Couto

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Em contra-mão… no lado errado da História

Mais uma vez fomos confrontados com a posição do ‘pcp’: a favor de quem invade, provoca morte, destabiliza e faz correr rios de sangue, muito dele inocente… Foi agora na Palestina, tinha sido na Ucrânia em fevereiro de 2022, já antes noutras paragens e quase segundo o mesmo guião: velhos arquétipos ideológicos ofuscam as posições à mistura com arqui-inimigos de outras batalhas e guerras… O discurso continua a ser de cassete, mesmo que mude o intérprete. Mais uma vez me vem à lembrança a estória de alguém a quem a mulher telefonou a alertar para um carro que andava em contra-mão na autoestrada, ao que o avisado (que era, afinal, o visado) respondia: e são tantos!

1. Efetivamente fica-me sempre uma suspeita: estas pessoas que até são minimamente dotadas de capacidade de inteligência – repare-se nos intelectuais de serviço e nos seus promotores de cultura (ou da sua) – afunilam as ideias e posições quando esbarram com factos nem sempre novos e tão pouco diferentes de outras épocas. Mesmo que de forma despretenciosa podemos considerar que as mais recentes guerras – Palestina/Israel e Rússia/Ucrânia – parecem ter um fator (e porque não dizê-lo: fautor) idêntico: uma visão dialética, onde a tese é a mesma e a antítese diverge, até que se crie uma nova tese, onde a (velha) luta de classes há de fazer o seu caminho pela pretensa libertação dos povos, dizem eles…Com efeito, há fidelizações internacionalistas que se movimentam de forma clara e ostensiva!

2. Mais uma vez emergiram os sinais de militarismo, sob a influência do belicismo e espalhando perigosos tentáculos de guerra. Parece que surgiu uma oportunidade de ‘limpar’ dos stocks armas que estariam a ocupar espaço. Com que destreza vimos surgirem novas e mais sofisticadas formas de guerrear. Em breves instantes podemos perceber que só faltava uma oportunidade para saírem dos atóis tantos instrumentos de morte. Embora quase todos se afirmem contra a guerra (na teoria), veja-se com que rapidez, os sinais de matança ultrapassaram assuntos humanos e de cidadania. As televisões passaram a dar em direto, horas a fio, imagens de combate, numa programação contínua e atualizada. De facto, a morte tomou foros de notícia e parangonas de abertura e de vulgaridade de todos os noticiários…

3. Novamente fomos confrontados com aquilo que há de mais baixo da nossa condição humana, onde a miséria mais reles se sobrepõe ao pouco que ainda subsiste da dignidade que não foi aniquilada. Em tempos de guerra manifestam-se os mais díspares sentimentos e emoções até os mais animalescos. Nota-se que estes problemas como que vão insensibilizando as pessoas, lidando com questões de rutura, mas dificilmente perpassando a carapaça da indiferença da maioria…

4. Vimos e registamos, no nosso país e fora dele, manifestações populares em favor de Israel e concomitantemente em defesa dos direitos dos palestinianos. Para muita gente ser por uns como que significa estar contra os outros e estes tornam-se sujeitos do outro lado da barricada. É isto que confunde os mais incautos, pois, as forças progressistas desta banda tentam confundir os erros com os projetos reivindicativos e fazem dos velhos clichés temas de militância. Desde o final da segunda guerra mundial que os conflitos israelo-palestinianos preenchem lutas e contendas…ao perto e ao longe, dependendo da perspetiva de leitura e de análise.

5. O que é mais preocupante, na configuração analítica do mundo ocidental, é que continuemos a ser sistematicamente intoxicados por alguns dos mentores da visão marxista, na medida em que sobrelevam as pretensões palestinianas e como que amesquinhem os direitos dos outros contendores como se fossem irreconciliáveis quando a origem bíblica os faz da mesma raiz, embora seguindo destinos específicos: Abel e Caim, Isaac e Ismael…e tantos outros duos de povos e de culturas, que estão condenados a entenderem-se nem que seja à força, hoje como ontem e, sobretudo, amanhã!

Esta nova guerra pode deixar muitos mortos e o problema não se resolverá…



António Sílvio Couto

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Obrigadar-se em excesso


 De uma forma um tanto recente temos visto crescer uma tendência em certos setores – onde se inclui a dimensão religiosa – de estar num contínuo ato de agradecer: a presença das pessoas, a participação, algo mais específico ou mesmo pela simples razão de que fazerem aquilo que, simplesmente, lhes competia... Por estes dias fui confrontado com a observação de que deveria ter agradecido algo que as pessoas fizeram por direta obrigação ou dever, mas não usam de idêntica atitude de retribuir, agradecendo, o que lhes foi facultado em razão de um serviço livre e direto...

1. Intitula este texto a palavra ‘obrigadar’, numa espécie de neologismo composto a partir da palavra ‘obrigado’ e numa tentativa de querer acentuar que, quem recorre ao ato de dizer obrigado, se estará a obrigadar, no sentido reflexo do mesmo. Assim ‘obrigadar’ será a insistência em dizer obrigado de uma forma exagerada, excessiva ou talvez inoportuna. Dizem que a expressão ‘muito obrigado’ será a abreviação de uma frase mais completa: ‘sinto-me muito obrigado a agradecer’... exprimindo gratidão para com alguém por algum favor ou atenção que teve para com quem agradece...

2. Dizer ‘obrigado’ faz – ou devia – parte de um trato de convivência social e mesmo cívica. Ora, uma coisa é ser educado, outra bem diferente será o exagero – conheço alguns casos – que podem constituir uma forma de estar sem nexo e quase desconexo. Com efeito, muitas coisas e atos que são aparentemente agradecidos não passam de que, cada um, cumpra o seu dever e este é bem mais sério do que a bajulice de certos agradecimentos. Por vezes a longa lista de agradecimentos pode deixar de fora alguém que se sentiria no direito em ser agradecido. Nisto como em tantas outras coisas o correto condimento é saber não exagerar, pois, se de menos faz mal e a mais pode ser ainda pior.

3. Cristamente, nesta matéria, escuto, muitas e muitas vezes, essa frase bíblica - «assim, também vós, quando tiverdes feito tudo o que voi foi ordenado, dizei: ‘somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer’» (Lc 17,10). Eis o critério máximo de tudo quanto possamos fazer. Por isso, fico confundido com certas observações e penachos de agradecimento. Cumprir o dever é o melhor reconhecimento de quanto foi realizado. Comendas e medalhas, aplausos e destaques, títulos e agraciamentos... podem ser cultivados pelas forças do mundo, mas não deveriam ter espaço nem lugar para um cristão minimamente com fé amadurecida...

4. Em linha de conta com o desenvolvimento dos dons e qualidades de cada pessoa assim deveríamos situar-nos nas instâncias de vida cristã. Se tal acontecesse esfumar-se-iam as invejas e contendas, as maledicências e as conversas nas costas - quantas vezes associadas ao elogio em presença, mas à ruindade na ausência... As imagens do corpo – apresentada por São Paulo em 1 Cor 12 – ou da orquestra – aduzida pelo Papa Francisco, por estes dias para falar do espírito do Sínodo - fazem-nos refletir sobre a consonâmcia e articulação de todos e de cada um no espetro social e eclesial. Se cada um souber o espaço que lhe compete e o respeitar, deixará aos outros o seu devido lugar e tudo correrá em harmonia... Os exageros em agradecer podem deitar estas intenções a perder.



António Sílvio Couto

terça-feira, 10 de outubro de 2023

Da pasta à mochila…estilo ou mentalidade?

 

Num destes dias as imagens de entrada dos membros do governo para uma reunião de trabalho era, em todos, idêntica: cada um levava a tiracolo uma mochila para o convénio. Em tempos recuados era costume ver os senhores ministros transportarem os documentos ‘em pastas’, num arranjo e arrumação dos assuntos de modo visível. Agora os dignitários governativos mais parecem alunos a irem para a escola com as suas coloridas mochilas, sabe-se lá se carregadas de sonhos ou maceradas pelos insucessos… Isto será moda (estilo) de ‘eterna juventude’ ou mudança de mentalidade?

1. As ditas ‘malas’ à maneira diplomática foram, por agora, substituídas por mochilas onde não caberá mais do que um computador portátil (ou outro apetrecho eletrónico), de uso continuado. Foi-se vulgarizando esta imagem de vermos várias figuras – desde bispos até outras personagens do foro mais plebeu – de mochila às costas a caminharem para as reuniões ou saindo delas com a destreza de quem quase se considera mais juvenil do que no papel que representa e/ou simboliza.

2. Embora seja compreensível esta mudança de simplificação, ela corre o risco de vulgarizar o modo de algumas pessoas de estarem em certas funções. Com efeito, como que estamos a viver numa espécie de neo-adolescência quase coletiva, onde boa parte das pessoas quer passar por mais nova na aparência, embora certos adereços não enganem os menos atentos ou distraídos. Se bem que a umas tantas pessoas isso não seja desconsiderável, a outras isso fá-las parecerem algo ridículas, pois os anos passam e a idade tem atributos que necessitam de serem assumidos com verdade e sem disfarce.

3. Talvez seja útil trazer a este tema a expressão: ‘noblesse oblige’, explicando-a e dando-lhe uma leitura adequada ao nosso tempo. Literalmente significa: a nobreza obriga (ou obrigação nobre), isto é, pelo facto de pertencer à nobreza (classe social dos tempos medievais) há um comportamento que lhe é devido ou correspondente… Agora em sentido denotativo significará que, a uma determinada posição social, há um comportamento – desde o ser ao estar – que se deve ter ou que se espera que tenha a condizer com esse estatuto…

4. Mesmo que ‘pasta’ ou ‘mala’ possa estar associado a algo mais conservador e com interpretação de poder, envolvendo um quê de simbólico e de retrógrado, ‘mochila’ não quererá dizer que é algo de progressista e com perspetivas de avanço. Podemos entender estas duas formas de estar como sensibilidades perante as questões da vida à mistura com os diversos intervenientes na mesma ‘fita do tempo’, onde cada um faz parte da construção da vida, mas não esgota o que dela podemos colher, tendo em conta o que semeámos…

5. Cada qual saberá o seu estilo de ser e de estar, numa vivência de autoconhecimento e perante uma leitura que os outros farão dele.



António Sílvio Couto

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Celebrar o ‘25 de novembro’, sempre

 

«Aproveito para anunciar que para além da data histórica do 25 de Abril festejaremos também com uma grande iniciativa o 25 de Novembro. Porque todas as datas contam».

Foi desta forma simples e quase provocante que o presidente Câmara Municipal de Lisbo falou por ocasião do 113.º aniversário da implantação da república em Portugal.
Deste modo se ficou, desde já a saber, pelo edil lisboeta, que o cinquentenário do ‘25 de abril’, em 2024, terá uma subsequente celebração do ‘25 de novembro’ de 1975, no ano seguinte.

1. Só quem não viveu essa data trágica e convulsa – eu tinha dezasseis anos e morava a quilómetros do olho do furacão – não sentirá que o ‘25 de novembro’ veio repor na verdade o país que tinha andado à deriva no ‘verão quente de 75’. Por muito que custe – ou isso pese, minimamente, na consciência – a certos setores marxistas-leninistas-trotskistas a data de ‘25 de novembro’ evitou um banho de sangue e um descalabro para que o país não se tornasse uma ‘cuba’ na Europa ou que tenhamos sido esmagados por forças revolucionárias mais ou menos ao serviço dos poderes soviéticos e afins. Evitar, hoje, a referência a essa data é ofender quem sofreu na pele nos constrangimentos de não fazer parte de uma caterva de vendidos às forças estrangeiras, como muitos dos altos dirigentes socialistas da época (Mário Soares e não só) e outros amordaçados durante anos a fio...

2. Por que há medo de dizer a verdade sobre esse tempo? A quem interessa encobrir as malfeitorias de ‘heróis’ dessa época? Não será que alguns dirigentes de certos partidos de hoje temem que se descubram que são filhos e filhas dos bandidos – fazedores de atentados e de mortes sangrentas – desse tempo revolucionário? Se os democratas convertidos não temem associarem-se aos sinais de festa do ‘25 de abril’ por que há tanto pejo de quem foi perdoado das suas tropelias, por ocasião do ‘25 de novembro’? Os pesos de tolerância estarão viciados pela miopia ideológica de ontem como na atualidade? Mesmo que de forma abusiva não será de saber que ninguém é dono da verdade, quase meio século decorrido?

3. O panorama político do nosso país contínua enfermo de ideias e falacioso no comportamento. Muitos daqueles que são os atores de hoje não conseguiram ainda fazer um simples ‘reset’ do passado: desgraçadamente continuam a viver em bolhas virtuais, onde só entendem os seus e são incapazes de se colocar no lugar do outro, que não seja da sua cor ideológica.

4. A ver pela reação – ou será manipulação? – sobre episódios atuais, como a contestação à falta de habitação e não só, ainda há quem se arroje possuidor de todos os direitos que não sejam os seus pretensamente usurpados. Cheira a novo obscurantismo do ‘prec’ que só quem seja de certos partidos pode ser visto e manifestar-se em público… tudo o resto – e são milhões de outros cidadãos – encolhem-se com medo e com receio de serem maltratados até fisicamente.

5. Seja qual for o intento desta proposta do presidente da CML estou totalmente de acordo com a sugestão e questiono, democraticamente, os detratores para que sejam bem mais capazes de serem aquilo que dizem que são. Mais, se ao ’25 de abril’ quiseram associar um flor, o cravo vermelho, porque não tentar que o ’25 de novembro’ tenha por símbolo um ramo de oliveira, enquanto sinal da paz, isso que pretendeu fomentar na reconfiguração revolucionária um ano e meio depois?

Os heróis do ’25 de novembro’ continuam à espera do reconhecimento da democracia ou esta não passará de uma conveniência quando interessa e, sobretudo, por quem a tenta impingir.

6. Pelo ’25 de novembro’ sempre e mais!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Rezar (minimamente) para ‘pedir chuva’

 

É algo confrangedor e sintomático que, sentindo todos de forma persistente – esta maré de seca não se veja uma atitude mais cristã de intercessão ao Céu. As preces para pedir a chuva não têm estado a ser usadas e tão pouco divulgadas. Pela parte que me toca já fiz a ‘experiência’ em dois momentos – diferentes no tempo – no ano passado (2022) entre a Páscoa e o final de setembro e este ano (2023) durante a novena a Nossa Senhora da Boa Viagem entre finais de agosto e os primeiros dias de setembro. Nos dois desafios resultou, pois choveu e de forma num caso copiosa e noutro de forma significativa…

1. Para os devidos efeitos foi usada a oração que o Papa Paulo VI rezou em julho de 1976, numa época de extrema seca na Europa em especial. Respigamos, quase pela contemporaneidade, alguns aspetos aí referidos. «Temos consciência da nossa miséria e fraqueza:nada podemos fazer sem Ti. Tu, Pai bondoso, que sobre todos fazes brilhar o sol e fazes cair a chuva, tem compaixão de todos os que sofrem duramente pela seca que nos ameaça nestes dias.

(...) Faz cair do céu sobre a terra árida a chuva desejada a fim de que renasçam os frutos e sejam salvos homens e animais. Que a chuva seja para nós o sinal da Tua graça e da Tua bênção: assim, reconfortados pela Tua misericórdia, dar-te-emos graças por todos os dons da terra e do céu, com os quais o Teu Espírito satisfaz a nossa sede».

2. Num tempo de tanta autossuficiência – e porque não até de prosápia descrente – ousar voltar-se para Deus numa matéria tão simples e simbólica como que nos faz sentir que pouco ou nada valemos, se Deus não nos suportar e abençoar. Efetivamente este elemento de vida que é a água torna-se – desde longa data – além de escasso um fator de conflitos entre povos e culturas, entre nações e civilizações, na medida em que sem água tudo corre perigo e com ela e por ela se construíram cidades e empreendimentos humanos e religiosos. Como bem quase sagrado, a água continua a fazer história na história humana e quando ela falta o desaparece tudo se torna de difícil solução.

3. Fico com tristeza e algo confuso, quando ouço referir que, quando chove está mau tempo, como se este fenómeno não fosse uma bênção divina e uma motivação de alegria humana… Chuva fora de tempo e em excesso poderá ser de complicada gestão, mas na hora própria, doseada e em condições de receção torna-se um fator de abundância e de fecundidade. Porque os humanos se consideram ‘senhores’ de tudo e até da natureza, vão descartando a necessidade da chuva, embora seja esta o melhor acumulador de água no subsolo e nos sistemas de retenção de água para as atividades humanas (económicas ou outras) nas condições em que as exercemos até agora.

4. Apesar de todos os progressos da ciência e da tecnologia, continuamos a precisar de socorrer-nos de Deus para que venha em ajuda da nossa frágil condição noutros como neste aspeto de pedirmos a Deus que nos conceda a chuva como sinal da sua proteção e em atitude de bênção na nossa vida. Será importante estamos atentos a um certo racionalismo popular, que tudo sabe e explica fora de Deus à mistura com um outro misticismo pseudointelectual, que intenta recuperar exoterismos tendencialmente anticristãos. Neste tema da chuva – e por antonomásia da água – falta-nos humildade para fazermos o que devemos em consonância com a confiança em Deus, criador do Céu e da Terra.

5. Deus que faz cair a chuva sobre bons e maus e aparecer o sol sobre justos e injustos tenha compaixão de nós, neste tempo de seca que a todos põe à prova.



António Sílvio Couto

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Cães e/ou gatos em carrinho-de-bebé

 

Não é tão pouco habitual assim, vermos pessoas a passearem os seus ‘animais de estimação’ em carrinhos, que, em tempos não muito recuados, eram usados para transportar crianças. E, se não tivermos cuidado, somos ainda surpreendidos pelos nomes (de humanos) dados aos ocupantes dos ditos veículos de puericultura. A mudança foi rápida e, pasme-se, quase generalizada. Talvez seja, por isso, avisado reparar melhor nos ocupantes de carrinho de bebé, não vá alguém ser surpreendido pelo latir de um cão ou o miar de um gato, onde se esperava o choro de uma criança, em hora de acordar!

1. Esta encruzilhada cultural – e porque não mesmo civilizacional – pode e deve colocar-nos perguntas, questionamentos e desafios. Antes de mais: por que chegamos a este fenómeno de trocar o afeto (dado) aos filhos pelos dos animais? Que mudou tanto para que possamos sentir mais dedicação aos animais do que às pessoas? Esta tendência de exaltação dos animais não será mais do que meramente ideológica? A quem interessa defender os animais, se, na prática, fazem deles escravos presos à trela em vez de viverem livres sem peias nem atropelos de serventia dourada? Certas proteções a animais não encobrem tiques de instrumentalização aos ditos por parte dos malfadados donos? Os animais não servirão, mesmo que de forma inconsciente, para procurar outras compensações emocionais a muitos dos devotados donos? Não será mais complicado sustenta um animal – tenha a estatura que possa ter – do que alimentar e cuidar uma criança?

2. Estamos num tempo de viragem, na medida em que muitos dos comportamentos têm tanto de ‘normalizado’ na conduta das pessoas quanto parece ser uma onda que percorre famílias e regiões quase de forma acrítica. Em tempos não muito recuados constou que algumas pessoas mais idosas estavam dispostas a confiar o seu voto, nas eleições legislativas, a partidos que se apresentavam defensores dos direitos dos animais, pois, diziam na sua inocência, que esses defendiam quem lhes dava companhia… Efetivamente, essas formações partidárias souberam ir ao encontro das necessidades das pessoas mais fragilizadas, conferindo-lhes a expetativa de que algo seria feito…teoricamente. Decorrido algum tempo tudo se tornou bluff e a votação encurtou para esclarecimento de todos, mesmo dos vendedores de sonhos…

3. «Há dias, falei sobre o inverno demográfico que há atualmente: as pessoas não querem ter filhos, ou apenas um e nada mais. E muitos casais não têm filhos porque não querem, ou têm só um porque não querem outros, mas têm dois cães, dois gatos… Pois é, cães e gatos ocupam o lugar dos filhos. Sim, faz rir, entendo, mas é a realidade. E esta negação da paternidade e da maternidade diminui-nos, cancela a nossa humanidade. E assim a civilização torna-se mais velha e sem humanidade, porque se perde a riqueza da paternidade e da maternidade. E a Pátria que não tem filhos sofre e – como dizia alguém um pouco humoristicamente – “e agora quem pagará os impostos para a minha reforma, que não há filhos? Quem se ocupará de mim?”: ria, mas é a verdade».

Já foi há algum tempo (5 de janeiro de 2022) que o Papa Francisco disse as palavras que citamos, no entanto, elas continuam a fazer sentido não só na observação ao nosso comportamento coletivo como devendo questionar o mais básico da nossa conduta pessoal e moral/ética. Com efeito, enquanto nos espaços de compras as coisas para animais ocuparem mais terreno do que aquilo que se destina às crianças parece que estamos falados ou andaremos a tentar enganar-nos…conscientemente.

4. Que pais e mães teremos se substituem os filhos pelos animais, mesmo que sejam de estimação ou de companhia? Não andaremos a reboque de modas e de facilitações sonegando às gerações vindouras o futuro que mereciam? Ainda estamos em tempo de arrepiar caminho e de escolher segundo os valores cristãos mais essenciais…



António Sílvio Couto