Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



segunda-feira, 31 de julho de 2023

Quando o protegido lhe vier a acertar as contas…

Por mais do que uma vez, nos tempos recentes, fui confrontado, por ‘mãezinhas’, quando se chamava a atenção aos seus ‘filhinhos’: bastará que se diga para mudar de lugar porque sentados num espaço que perturba alguma celebração ou mesmo que condicione o decorrer de uma reunião e eis que as ‘ofendidas’ (mãezinhas) colocam as garras em defesa de uma certa má-criação dos seus rebentos… são intocáveis até na caraterização de ‘hiperativos’… Sem pretensão de julgar, mas com facilidade se percebe que roçam o serem filhos únicos ou pelo menos amimalhados…

1. A ver pelas atitudes captadas fora de casa, estes ‘filhinhos’ são reis e senhores quase sem contestação lá no espaço onde desenvolvem a sua criação. De uma forma algo atrevida podemos ver uma espécie de onda de crianças rebeldes com cobertura da complacência dos pais e/ou avós, dando azo a que não sejam contestados sem que possa haver conflitualidade. Aquilo que era visto como birra infantil vai-se prolongando por mais anos do que seria desejável. Que sociedade estaremos a construir? Depois iremos admirar-nos dos maus tratos aos mais velhos, onde o desprezo pontifica e marcará pontos sem-apelo-nem-agravo…

2. Dá a impressão que esta onda de insubordinação dos mais novos cresce sem que alguém se questione ou interrogue pedagogicamente. Com que facilidade vemos crianças obedecerem aos educadores (professores) e a repelirem a intervenção dos pais. Com efeito, fazendo jus à expressão vulgarizada, esses tais não passam de ‘progenitores’, mas não educadores, no sentido etimológico do termo, como aquele que conduz, que cria, que leva a saber estar no contexto do mundo… Quer, então, dizer, que há quem gere filhos mas não os saiba conduzir ou guiar na vida. De algum modo o processo de ensino – português e não só – como que consagra este sistema de uns gerarem e outros educarem…embora deve-se ser de forma diferente: quem gera deve saber educar nos valores e não deixar ao Estado tal tarefa, que pode ser manipuladora – na linha da sua ideologia – das crianças…como tantas vezes se vê!

3. O que nos diz, como doutrina da Igreja católica, o catecismo:

- «O «papel dos pais na educação é de tal importância que é impossível substituí-los». O direito e o dever da educação são primordiais e inalienáveis para os pais» (n.º 2221);
- «Os pais devem olhar para os seus filhos como filhos de Deus e respeitá-los como pessoas humanas. Educarão os seus filhos no cumprimento da lei de Deus, na medida em que eles próprios se mostrarem obedientes à vontade do Pai dos céus» (n.º 2222);
- «Os pais são os primeiros responsáveis pela educação dos filhos. Testemunham esta responsabilidade, primeiro pela criação dum lar onde são regra a ternura, o perdão, o respeito, a fidelidade e o serviço desinteressado. O lar é um lugar apropriado para a educação das virtudes, a qual requer a aprendizagem da abnegação, de sãos critérios, do autodomínio, condições da verdadeira liberdade. Os pais ensinarão os filhos a subordinar «as dimensões físicas e instintivas às dimensões interiores e espirituais». Os pais têm a grave responsabilidade de dar bons exemplos aos filhos. Sabendo reconhecer diante deles os próprios defeitos, serão mais capazes de os guiar e corrigir» (n.º 2223).

4. Tentemos, agora, interpretar o desenho que ilustra este texto:

* Antes de mais parece um balão, sim que se enche à medida daquilo que queremos, podemos ou desejamos;

* É um balão que pretende subir, deixando as amarras de quem o quis ou pretendeu encher com mais ou menos arte…mas também pode ser aprisionado, se não for deixado seguir o seu rumo;

* Será temerário considerar que o balão pode deixar o ponto de partida sem haver quem o guie – no sentido humano, o eduque ou até domestique – ou sucumbirá por andar à deriva.



5. Nessa boa lição dos mais antigos: colherás aquilo que tiveres semeado. Fazer todas (ou quase) as vontades aos mais novos poderá não ser a melhor educação para os tempos da velhice e da resignação.



António Sílvio Couto

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Pantominices à pala do Papa

 

Com a aproximação da vinda do Papa a Portugal, de 2 a 6 de agosto, para as jornadas mundiais da juventude (JMJ) vamos ser ‘agraciados’ com inúmeros ‘factos’ e personagens que se aproveitarão deste acontecimento para darem a conhecer as suas iniciativas, fait-divers e protestos… Alguns terão cobertura e servirão de propaganda aos fautores; outros roçarão a ofensa e, porque não, a provocação; outros ainda poderão não passar de publicidade a causas fraturantes; certos e anunciados não perderão a oportunidade de tentarem menosprezar o cristianismo e mesmo a dimensão religiosa da pessoa humana…

1. Começa a ser inquietante – nota-se no desconforto das reações – a projeção que envolve tantos jovens vindos dos mais diversos países e das mais diferentes culturas. Para um setor mais velho da nossa sociedade vê-se como que uma rufada de ar fresco com tantos jovens entusiasmados por Jesus Cristo e nem os lapsos de certos responsáveis ofuscaram a mobilização. Seja qual for o número final, desde já se percebeu que a força de acreditar em Jesus Cristo na Igreja católica não se extinguiu, embora possa estar sob cinzas crepitantes.

2. Uma nota de inquietação: parece que os jovens mais próximos ao local do encontro são os menos motivados em participarem ativamente. E nem a passagem dos símbolos pelas dioceses (ditas) de acolhimento – Lisboa, Santarém e Setúbal – fizeram crescer a motivação. Estarão a ficar à margem de um acontecimento histórico e da graça de Deus nesta grande comunhão de fé na diversidade que é e sempre foi a Igreja católica, isto é, universal.

3. As críticas a certos gastos manifestaram – como sempre – a falta de visão, de referências e de ousadia de tantos dos promotores e difusores de todo esse ambiente em que andamos enredados ao longo de semanas. E nem o pseudo epíteto do Papa Francisco na leitura do ‘papa dos pobres’ cobriu o terceiro-mundismo barato de certa esquerda que defenda o que não faz e nunca faz por si o que propagandeia para os outros. Certas lições cheiram a ideologia derrotada e em colapso crescente…

4. Os cerca de quinhentos eventos culturais previstos para a cidade de Lisboa durante os dias das JMJ deixam bem manifesta a força de cultura que o cristianismo tem e vive, fomenta e cultiva, faz e impulsiona. Não é preciso ser do contra-cristão para ser cultural, seja onde for e muito menos no nosso país. O tal complexo esquerdista que associa cultura a marxismo já foi campo que deu resultados. Pior: usar clichés religiosos, por parte de descrentes, para ‘criar’ cultura está prestes a falir por falta de argumentos e, sobretudo, pela negação dos resultados pretendidos…

5. É certo que as JMJ não são a solução para todos os problemas da Igreja católica – no mundo e em Portugal – mas podem servir para ganhar uma nova dinâmica dos jovens, insuflar novo espírito vocacional (ministerial e matrimonial) e mesmo para repensar a forma de estar na Igreja, onde podemos e devemos passar de consumidores de ritos e de sacramentos para sermos movidos por novo compromisso de ser e de estar como participantes atentos, sensíveis e ativos, sem mero ativismo…social compensador das tarefas do Estado!

6. Que as pantominices que vão surgir de quem quer ser – por breves instantes – ator, embora não passe de figurante, não distorçam o essencial: mais de vinte e um séculos depois o cristianismo tem força de interpelação, dá resposta aos problemas do nosso tempo e consegue ser chama e luz num mundo onde as coisas do materialismo fascinam mais do que os aspetos espirituais.



António Sílvio Couto

terça-feira, 25 de julho de 2023

Migração: problema ou solução?

 


Desde longa data, como país-nação somos um longo e largo espaço de migração, umas vezes saindo e, mais recentemente, recebendo pessoas das mais diversas procedências, desde europeias até aos vindos da Ásia, sem esquecer os que vieram de África e da América latina.

Embora seja um fenómeno muito antigo e tenha várias vertentes, a migração faz-se de fora para dentro e diz-se imigração ou de dentro para fora e é referida como emigração… numa deslocação de pessoas e bens em busca de melhores condições de vida ou por motivos de salvaguarda da vida da pessoa e de outros.

1. Vamos a números. Portugal tem mais de dois milhões de emigrantes, o que corresponde a 20% da população residente. Temos imigrados mais de setecentos e cinquenta mil… com os procedentes do Brasil e da Índia em maior número… de ano para ano.

2. Perante as diversas vagas de emigrantes temos de questionar as razões da saída. Os três países de maior emigração são a França, a Suíça e os EUA, apresentando como razões as condições que lhe garantem maior poder de compra, ou seja, salários mais elevados do que em Portugal. A melhoria das condições de vida são, normalmente, aquilo que mais faz abalar aqueles/as que partem, por entre aventuras e riscos, que só mais tarde serão compensados. Se isso foi válido para os nossos, que foram mundo-além em busca de uma vida melhorada, também isso mesmo pode e deve ser aceite para com aqueles que nos procuram.

3. Há, no entanto um sector para quem lhe custa ver os outros progredirem: os que ficaram acomodados e, tantas vezes, resignados com aquilo que têm. Na linguagem mitológica dos nossos poetas são os ‘velhos do restelo’, isto é, aqueles que nada fazem, não apreciam os valores dos outros e estão sempre prontos a desdenhar daquilo que eles (os que saíram) atingiram. Faz lembrar a estória do diálogo entre um neto e o avô, em que aquele dizia ao mais velho: avô, dizem que os portugueses fora pelo mundo em descobertas e deram ‘novos mundos ao mundo’. Por que será que agora isso não acontece? Sabes, neto, nós somos descendentes dos que ficaram…antes e hoje!

4. Confesso que foi com perplexidade que ouvi o atual presidente do Brasil dizer, entre o jocoso e um tanto ‘profético’ que, por este caminho, os brasileiros serão, muito em breve, mais do que os portugueses em Portugal. Talvez haja algo de exagero nesta provocação, mas que temos de estar mais atentos a quem chega, não com medo mas sob precaução. Aliás, está a verificar-se um processo sintomático: da mesma forma como os nossos emigrantes foram fazer certos trabalhos nos países de acolhimento que lá desdenhavam, assim nós já nos damos ao luxo de destratar nas tarefas aquilo com que não nos queremos ocupar. Certas sobrancerias denotam visão de subdesenvolvidos, lá como cá!

5. «As nações mais abastadas devem acolher, tanto quanto possível, o estrangeiro em busca da segurança e dos recursos vitais que não consegue encontrar no seu país de origem. Os poderes públicos devem velar pelo respeito do direito natural que coloca o hóspede sob a proteção daqueles que o recebem.

As autoridades políticas podem, em vista do bem comum de que têm a responsabilidade, subordinar o exercício do direito de imigração a diversas condições jurídicas, nomeadamente no respeitante aos deveres que os imigrantes contraem para com o país de adoção. O imigrado tem a obrigação de respeitar com reconhecimento o património material e espiritual do país que o acolheu, de obedecer às suas leis e de contribuir para o seu bem» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 2241).

Será que é assim que agimos: quem recebe ou quem é recebido? Não deveríamos sair do nosso casulo egoísta e fazermos aos outros aquilo que gostaríamos que nos fizessem a nós? Como seria benéfico que fizéssemos a experiência de estar fora de casa para apreciarmos a hospitalidade recebida… Hoje são eles, amanhã poderemos ser nós e vice-versa!

António Sílvio Couto

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Corrupção – mal, habilidade ou sucesso?

 

Embora seja assunto recorrente, ainda como que escalda a boca e a mente quando é falado ou pensado: a corrupção. Eis uma espécie de definição-descritiva de ‘corrupção’: genericamente fala-se em corrupção quando uma pessoa, que ocupa uma posição dominante, aceita receber uma vantagem indevida em troca da prestação de um serviço. O crime de corrupção implica a conjugação dos seguintes quatro elementos: uma ação ou omissão; a prática de um ato lícito ou ilícito; a contrapartida de uma vantagem indevida; para o próprio ou para terceiro.

1. Agora que vemos as autoridades judiciais a trazerem este assunto dos calabouços mais fundos, como que poderemos perceber aspetos atinentes ao tema: quais os tipos de corrupção; abrangência da corrupção (pequena, grande, sistémica); causas da corrupção; métodos de corrupção (suborno, peculato, tráfico de influências, nepotismo, clientelismo); combate à corrupção…Esta hidra sócio-cultural tem atingido todos os campos de atividade, embora nalguns deles isso se perceba com tanta acutilância.

2. Chegados a este ponto da situação como que somos todos desafiados a enfrentar este problema, na medida em que ele pode constituir para o futuro próximo a maior ameaça à estabilidade da nossa sociedade e – porque não – o bem-estar de todos. Sempre que alguém tira proveito de algo que era comum em seu favor está a prejudicar a harmonia mínima. Que fascínio seduz quem pensa viver acima das suas posses, em função do emprego que tem, sem que isso não se venha a descobrir? Não será que algo ofusca a capacidade de pensar a quem se julga superior aos outros e que nunca se descobrirá?

3. Qualquer coisa não corre bem – segundo um modelo de valores humanistas – quando um habilidoso tenta enganar os outros, enganando-se a si mesmo, pois, embora possa sobreviver por certo tempo às patranhas que o fizeram enriquecer, não conseguirá fazê-lo todo o tempo ou para sempre. Por que será que as pessoas não se colocam esta questão tão simples e, por vezes, suficientemente, rápida? Os ditos ‘sinais exteriores de riqueza’ – de tantos beneficiados pela corrupção – não deveriam alertar quem fiscaliza e investiga? Até onde irá a onda de chico-espertismo’ com que nos vamos entretendo, sem atalharmos as causas mais do que em combatermos as consequências?

4. Vejamos uma leitura que o Papa Francisco faz na exortação apostólica ‘Evangelii gaudium’ sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual: «Os mecanismos da economia actual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para o tecido social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança, como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que dar solução, criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa «educação» que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos vêem crescer este câncer social que é a corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos, empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos governantes» (n.º 60).

5. Está na hora de acordarmos da letargia em que nos têm embalado, pois, para muitos convém continuar neste silêncio cúmplice de olhar para o lado ou de dar a entender que o assunto diz respeito aos outros e não a todos nós. A vermos pelos dados mais recentes do nosso país há mais interessados – desde o governo até aos partidos políticos, passando pelas estruturas económicas e laborais – em disfarçar o problema do que em enfrentá-lo, questionando-nos a sério. Como dizia alguém entre o jocoso e o insinuante: todos têm um preço, bastará cobrir o lanço! A verdade é o melhor remédio…

António Sílvio Couto

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Dos vendedores de patranhas aos guias espirituais

 

Desde há algum tempo a esta parte temos vindo a assistir à denúncia de certas figuras tidas por mentoras – uma espécie de gurus recauchutados e atualizados às necessidades mais prementes – de proposta de sucesso na vida e nas coisas dos negócios. Como a subtileza dos projetos era bastante audaciosa e quase irrealizável, os ‘enganados’ vão surgindo à luz do dia com medo e alguma vergonha… quase se notando um complexo de culpa à mistura com algum arrependimento atroz. Para alimentar o folhetim nem faltam figuras (ditas) públicas do mundo do futebol e das áreas mais atreitas a fiarem-se em sugestões, que ignoram que só no dicionário é que aparece sucesso antes de trabalho.

1. No escarafunchar de casos temos visto a ser alimentado o role de situações onde a pretensão de sucesso rápido quis encurtar o tempo e a forma de o atingir. Cursos ao desbarato – não pelo preço, pois eram bem caros, mas sob a promessa de ser feito rapidamente – ou sob a condução de alguém tornada suspeita. Regra geral era explorada a faceta de que tudo parecia fácil, se atendessem aos exemplos evocados. Quase num toque de magia eram conseguidos os objetivos mais inquestionáveis, desde que os mentores não fossem colocados em causa. A atender aos métodos utilizados quase só os menos capazes não cumpririam as suas pretensões… O que mais era mostrado era a prossecução das façanhas económicas, essas que levaram a investir muito e, afinal, a colher tão pouco. É confrangedor ver o ar de estupefação de alguns dos vendedores de patranhas, tal a falta de convicção, mas ainda mais assustador constatar a vivência dos enganados, senão de facto ao menos de forma presumida! Feiticeiro, feitiço e enfeitiçados confundem-se…

2. Apesar de tudo estas notícias vieram trazer a público que muitas pessoas desejam enriquecer seja sob que forma for: desde que possa ser de forma rápida até parecem que estão dispostas a investir o certo e o inseguro. Qual a razão deste fascínio pela riqueza com que nos vão ludibriando? A quem interessa vender a pretensão de que se vai entrar na alta esfera do sucesso, quando ainda não se digeriu a incapacidade de enfrentar o erro? Esta onda de exaltação de ‘ser-rico-a-toda-a-prova’ não será mais uma artimanha deste mundo guiado pelo materialismo? Felizmente muitas pessoas não são nem podem ser ricas, pois, se na sua pobreza escondem tanta ambição, o que seria que tivessem poder para esmagar os outros!...

3. Perante muitas das patranhas de pessoas que tentam enganar as outras com competências que não têm ou com recursos inapropriados, torna-se essencial refletir sobre a necessidade de termos e de nos deixarmos conduzir por quem nos possa ajudar a discernir as questões – mais graves e/ou significativas – da nossa vida. A isto se costuma chamar ‘acompanhamento espiritual’, que o Papa Francisco descreve na exortação apostólica ‘Evangelii gaudium’, n.º 171: «Hoje mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que conheçam, a partir da sua experiência de acompanhamento, o modo de proceder onde reine a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de esperar, a docilidade ao Espírito, para no meio de todos defender as ovelhas a nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho. Precisamos de nos exercitar na arte de escutar, que é mais do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra oportunos que nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta escuta respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder plenamente ao amor de Deus e o anelo de desenvolver o melhor de quanto Deus semeou na nossa própria vida».

4. Quem faz este serviço em Igreja é servo dos seus irmãos, na linha de grandes fundamentais ‘diretores espirituais’ como Santa Teresa de Jesus e todo o seu método experimentado ao longo dos séculos. Deixem que testemunhe por vivência de graça de Deus aquilo que está em curso no Carmelo de São José, em Fátima, em encontros de padres de várias dioceses ao longo do ano pastoral. Aí se aprende e se partilha algo mais do que tricas pastoris, mas se faz a vivência na tradição carmelitana na Igreja católica. Esses são guias humildes!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 17 de julho de 2023

XL padre

 


Atingida a idade de 40 anos de padre pode ser útil olhar para trás, ver o feito, reconhecer os erros e corrigi-los; aceitar as etapas da caminhada com os avanços e recuos; perceber o essencial, mesmo o aparentemente menos relevante; por fim, atender ao breve futuro...

Vejamos:
- Olhar para trás e ver: nascido numa terra sem grande história, numa família nitidamente pobre e numa época socialmente triste...Cheguei a ir para escola descalço, sem rádio nem televisão em casa, viva-se com o que a terra dava e ao sabor do pouco que bastava, em família aprendi a conjugar os verbos na forma do condicional - se podes compras, se não tens meios, esperas...dívidas o menos possível.
Saído aos dez anos do meio familiar e rural cheguei ao seminário, em Braga, quando a cidade era pequena e ritmada pela clerizia. Entre 1969 e 1983 vivi nessa que marcou a sensibilidade eclesial e culturalmente. Num tempo de transição na Igreja, pelo Concílio Vaticano II, calhou-nos em sorte ser apanhados pela revolução de 1974... Desde essa época senti gosto pelas questões políticas, embora com certo desdém pelas de teor ideológico-partidário. Só a partir dos estudos teológicos comecei a manifestar melhor classificação. Vem desse tempo a iniciação na escrita, na revista Cenáculo, que da leitura exercitei-a, sobretudo, nas férias no remanso natal... não era de cafés e não havia dinheiro para diversões.
Perdi o pai aos dezassete anos e encontrei um movimento de espiritualidade pela mesma ocasião... este deu-me uma leitura da Igreja na linha da refontalização conciliar e na dinâmica pneumatológica emergente.

- Reconhecer e aceitar: ordenado padre nunca me pareceu ir seguir a tarefa de pároco, antes me reduzia a ser escrevinhador de notícias no jornal: foram quase quatro anos, embora me tenha ficado o cheio das rotativas nas narinas. Quase de repente caí em duas paróquias, embora auxiliado por um grupo de caminhada cristã onde estava inserido... por ali vivi até aos catorze anos de padre, quase no final do milénio.
Regressado ao serviço diocesano fui desafiado a prestar serviço fora da diocese... assim cheguei, em 1997, a Sesimbra, só e à procura... não tinha a sequer 40 anos e passei de um certo resguardo para uma espécie de confronto, com a família à distância.
Por sorte ou por graça divina: embora não fosse (nem sou) engraçado, caí em graça, num meio algo desconfiado e um tanto rude. Estava a chegar a ‘expo/98’ e entrei com o barco em andamento. Fui-me aferindo à linguagem marítima e ao espírito assim religioso. Três aspetos marcaram esses anos: o confronto e aprofundamento da cristologia do Senhor das Chagas, as conferências quaresmais em treze edições e, por último, a proposta do ‘curso alpha’. Da vivência do ‘jubileu do ano 2000’ ficaram os azulejos com as estações da via-sacra espalhados pela vila piscatória...

- Perceber o essencial: depois de quase treze anos em Sesimbra, chegou a vez de mudar para a Moita, em 2010. Cerca de três dezenas de quilómetros que fazem a diferença: lá nunca tinha na missa à semana menos de cem pessoas, aqui, se tiver quinze é porque algo aconteceu de diferente; lá bastava uma sugestão havia adesão, aqui, por muito que tente, não há razoável recetividade; lá aprendi com o senhor das Chagas, aqui fui fazendo uma reflexão (teológica e pastoral) com as várias Nossas Senhoras; lá escrevia em vários jornais, aqui tive de inventar um blogue – com cerca de mil trezentos e cinquenta artigos – para exprimir o que penso e desejo comunicar reflexivamente... Aqui há uma coisa que faz gastar tempo e energias: o centro social paroquial.
Como dizia quando aqui cheguei, em agosto de 2010, vim para aprender e tenho aprendido muito...
Tenho-me entretido a escrever, alguns até consideram um exagero, mas se, assim não fosse, talvez já tivesse flipado dos neurónios...

- Atender ao futuro (em breve): a celebração destes 40 anos de padre é como que a antecipação redonda de não saber se chegarei aos 50. Dizem – na linguagem do casamento – que serão as ‘bodas de esmeralda’... como pedra preciosa... numa alusão a algo duradouro, que precisa de estima, de unidade e de sabedoria... para continuar por mais alguns tempos.
Neste sentido gostaria de exprimir breves desejos: que possa continuar fiel a Deus e à Igreja, seja onde for, procurando colocar os dons de Deus a render sem desânimo; viver e levar a viver a entrega a Jesus... que a saúde possa ajudar a prosseguir tudo quanto Deus quiser de mim!



António Sílvio Couto

(17 de julho de 2023)

sábado, 15 de julho de 2023

Quem não rejubilaria por 27 mil euros?

Algo intrigante se passava nas comemorações de acesso das jogadoras portuguesas de futebol por terem conquistado o acesso ao próximo mundial da modalidade na Austrália e na Nova Zelândia. Muito para além da proeza nunca antes conseguida, havia um motivo bem mais prosaico e talvez materialista das designadas ‘conquistadoras’: cada uma recebeu pela ida a comparticipação, dada pelo organismo mundial que tutela o futebol, vinte e sete mil euros, pela façanha… Coisa pouca num país onde o salário é bem mais curto!

1. Diante desta substancial maquia quem não reagiria com tanto entusiasmo? Apesar da discrepância entre os valores pagos aos homens, as mulheres sentir-se-ão reconhecidas a condizer? Com a assunção das mulheres pela prática do futebol, haverá mais justiça ou crescerá a desigualdade? A divulgação do futebol feminino que significado trará para as gerações vindouras? Como explicar – a quem não saiba dos meandros do futebol – certas questões e problemas?

2. De registar que, do mundial de 2019 para agora, os prémios de presença do futebol no feminino em mundiais as verbas disponíveis triplicaram. Em relação ao montante atribuído aos praticantes masculinos o organismo mundial paga 350 mil euros a cada um… De facto, o fenómeno futebol conseguiu algo de extraordinário: de desporto popular passou a regime de elite, onde uns tantos conseguem serem reis e senhores do mundo só com a arte dos pés e, vá lá, de vez em quando com a cabeça. Esta distinção ‘pés-cabeça’ quer tão-somente realçar que a razão nem sempre anda pelas bandas do futebolês. Este continua a primar pelo básico, que são os ‘artistas’ explorados, vendidos e subornados pelos mais díspares interesses…

3. Efetivamente estamos a chegar ao cúmulo da insensatez: os números envolvidos nas transferências deste verão são disso um exemplo – as contratações dos países árabes de jogadores em final de carreira por milhões revelam que algo está, para além de podre, em vias de cavar o seu fim. Os petrodólares usados para comprar clubes na Europa, agora servem para financiar os intentos de sheiks e quejandos. Ora como o que move este mundo é o dinheiro, quase todos se calam pois não querem perder o espaço e os proventos que tais negociatas envolvem. A par com a droga/contrabando e a guerra, o futebol pode ser entendido como um eixo mobilizador dos povos e culturas, mas também poderá não passar de mais uma alienação sorvida por incautos.

4. O futebol-desporto deu lugar ao futebol-indústria de compra e venda de pessoas. Veja-se a cadeia de interesses à volta de um clube desportivo, onde o futebol seja a força mais representativa. Repare-se na forma acrítica como se fala de venda de homens/mulheres só porque tem habilidade para tratar com a bola. Atente-se ao tempo gasto por televisões e outros meios de comunicação para discutir questiúnculas do futebolês, onde a linguagem já tem código e gramática. Cuide-se o escândalo de silêncio quando as questões emergem do submundo do futebol, nalguns casos com o conluio de políticos e de outros responsáveis sociais.

5. Mesmo atendendo aos benefícios do futebol pela unidade de povos, de línguas e de culturas, não podemos calar questões básicas da dignidade humana, por vezes, atropeladas pelo futebol. Desde logo a condenação da ‘compra-e-venda’ de jogadores como se fossem mercadoria na praça de interesses menos claros. Também a tentativa de subverter os valores éticos com as negociatas entre certas figuras quase saídas do esgoto social. A proteção – tácita ou implícita – dada a dirigentes nem sempre capazes de respeitarem os adversários fazendo deles inimigos, ao menos à luz do dia.

6. Seja qual for o resultado da presença das ‘conquistadoras’ no outro lado do mundo, elas merecem respeito e, porque não, admiração… Dignos na vitória, reconhecidos pela derrota!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Prudentes e simples

 

«Envio-vos como ovelhas para o meio de lobos; sede, pois, prudentes como as serpentes e simples como as pombas» (Mt 10, 16). Aqui a ordem dos fatores não é arbitrária, pois, se a mudarmos corremos o risco de perverter a mensagem: ter cuidado é mais fundamental do que parecer simplório. De outro modo veremos a concretizar-se a imagem de os simples serem fascinados/seduzidos pelos mais espertos...

No contexto de vários acontecimentos, casos e situações – sociais/políticos, religiosos/cristãos, de grupos/coletivos, ético-morais/emocionais-afetivos, distantes ou mais aproximados – tentaremos ler e discernir como a prudência é bem mais benéfica do que a mera simplicidade ou simpatia.

1. Não será avisado procurar entender que um governo com menos de dois anos de funções tenha perdido quase dezena e meia de integrantes? Mesmo com o código de trinta em tal cláusulas por que ainda continuam a ocorrer erros de casting? Será que nem a pescar no aquário as escolhas conseguem ultrapassar as meias verdades e jogos de bastidor? Os exemplos do passado recente com outro chefe de governo a contas com a justiça – todos o adulavam até cair em desgraça – não serviu ainda de exemplo para os atuais? A sede de protagonismo e o poleiro parecem ofuscar a capacidade de perceber o ridículo pessoal no desempenho alheio.

2. Embora o Papa venha repetidamente a dizer que se deve combater a tentação do carreirismo, o que podemos observar é, pelo contrário, a consagração desse tal pecado grave. Nota-se que certas forças conseguem colocar no posto de mando – diz-se, em teoria, ministério (serviço) – aqueles que melhor lhe podem dar cobertura às suas façanhas. A mais recente elevação às vestes cardinalícias é disso um bom exemplo: desde longa data tal ascensão foi cultivada, mesmo que se diga o contrário, mas os factos falam mais do que as palavras de circunstância. Aliás, na arte da comunicação há os estudados, os protegidos e mesmo os lançados... Dizia um dos mentores ancestrais do agora purpurado: se quisermos conhecer o vilão coloquemos-lhe o pau na mão!

3. Em matéria de ridículo a programação televisiva não poderá cair mais baixo: horas e horas a discutir futebol sem bola, antes na conjetura das intrigas; julgamento de personalidade pela noite dentro, feito por uns camafeus sem moral para criticar seja quem for, pois a cabeça não pensa, mas antes destilam má-língua sem rede nem pejo; na pior das hipóteses teremos os ofendidos a lavarem a honra por meios à semelhança com a ‘justiça de Fafe’ ou desafiando os prevaricadores para algum duelo de sabre e pistola... Quem investiu estes novos inquisidores – televisivos e das (ditas) redes sociais – de poderes morais? Quem põe ordem nesta tabanca? Para quando a implementação de bom senso e de ética com responsabilidade? Certas figuras acham-se acima de qualquer suspeita, quando o que fazem é disfarçar os podres do passado...dizendo mal dos outros, agora!

4. Nunca como atualmente os números envolvidos nos negócios dos jogadores de futebol foram tão escabrosos: milhões e milhões pela simples habilidade de saber jogar à bola... até os mais decrépitos fazem fortuna com os louros de antanho. O lóbi do futebol lava mais branco: quantos se escondem atrás das influências que pensam ter, na expetativa de sobreviverem às contas – económicas ou éticas – que terão de aprestar com a justiça quando saírem de mandar. Este mundinho à parte que é o desporto e o futebol em particular fascina muitos jovens, seduzindo-os com regalias (quase) nunca alcançadas...



5. Num país de emigrantes – chegamos a ter fora do espaço territorial metade dos que viviam dentro das fronteiras – eis-nos chegados a uma nova realidade: vimos crescer como país de imigrantes, muitos deles cumprindo a meta de fazerem por cá o que nós fomos buscar lá fora: melhores condições de vida, sobretudo para os vindouros. Como estamos a enfrentar este desafio: com prudência ou como simplórios que não acautelam o futuro próximo? Os conflitos noutros países da Europa têm-nos servido de lição ou só vemos isso neles? Será avisado ser mais prudente do que lamurioso, já!



António Sílvio Couto

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Católico – quê: praticante, não-praticante, pouco-praticante… pirilampo, sanguessuga?

Na sequência da apresentação à Conferência Episcopal, durante as jornadas de estudos realizadas, em Fátima, em meados de junho, foi por estes dias tornado público um estudo intitulado: jovens, fé e futuro.

Realizado pelo ‘centro de estudos dos povos e culturas de expressão portuguesa’, da Universidade Católica Portuguesa, o inquérito – entre abril e outubro de 2022 – envolveu cerca de 2500 jovens, entre os 14 e 30 anos, num questionário on-line e que foi enviado também a alunos de escolas e universidades bem como em abordagens presenciais para a recolha de dados.

1. Aquando do inquérito/diálogo com os nubentes, por ocasião do processo para a celebração do sacramento do matrimónio aparece-nos uma pergunta (a quarta da lista de dezassete) sobre a situação religiosa dos ditos, encontramos como hipóteses: católico praticante, não praticante, doutra religião, não batizado, sem fé… Por vezes, numa espécie de tentativa em quebrar o gelo do desconhecimento, ouso incluir a hipótese de católico pouco-praticante ou praticante às vezes… Estas últimas sugestões ainda colhem nas respostas…Que significa algum dos epítetos aqui elencados? Nada, assim parece, pois a atendermos à cara de espanto da maioria até dá a impressão que isso não faz diferença ser esse ou aquele dos casos… como se ser ou não ser, seja a mesma coisa!

2. Diante dos resultados do inquérito supra citado e perante o parâmetro de idades abrangido (14 aos 34 anos) – por sinal o mesmo do público-alvo das JMJ 2023 – talvez possa ser útil refletir sobre alguns dados:

* 56% dos jovens portugueses dizem-se religiosos, afirmando-se 49% católicos… embora um terço do total (34%) se diga religioso não-praticante, mas com hábitos de oração e sem participação regular nas celebrações e sem vínculo comunitário;

* A guerra é principal preocupação dos jovens a respeito do futuro, com 63% dos inquiridos a colocar nesse problema o principal desafio do futuro, seguindo-se as alterações climáticas (55%) e a equidade e discriminação (54%);

* Os católicos, mais do que a estabilidade no trabalho, valorizam terem um trabalho que os faça felizes e encontrarem um parceiro/a para partilhar a vida, bem como constituir uma família com um ou mais filhos;

* Em relação aos valores que consideram mais importantes, o estudo apontou o respeito (59%), a liberdade (57%), o amor (52%) e a honestidade (51%), com os jovens não religiosos a colocarem a ênfase na liberdade e os religiosos no amor;

* De referir que os jovens não são muito participativos em termos de ativismo (15%) ou voluntariado (26%) e que 45% dos católicos acreditam que a oração pode contribuir para um futuro melhor;

* Ainda em resultado do estudo se pode inferir que o fator que mais marca a diferença entre os jovens religiosos e os não religiosos será a família, quer como preocupação, que como fator de felicidade.

3. Estes e outros dados permitem-nos fazer um certo diagnóstico dos jovens na nossa sociedade. Quando tantos pensavam que tudo parecia perdido podemos perceber que este leque etário e social continua a sentir que a diferença pode marcar toda a vida: há momentos que serão essenciais para o resto da existência. Ainda há quem queira deixar marca no mundo, mas que não seja só de lixo, mas de construção de algo melhor do que encontrou. Mesmo que de forma ténue podemos considerar os jovens do nosso tempo olham mais para a frente do que para trás, querem ser protagonistas e não assistentes, querem fazer parte da solução e não do problema…

4. Os dois termos apresentados no título – pirilampo e sanguessuga – ainda têm muitos seguidores entre os jovens. E a pandemia agravou a questão: os cristãos-pirilampo são aqueles que andam de lado em lado sem se comprometerem com ninguém nem consigo mesmos, flutuando por onde lhes dê mais gosto, numa espécie de cristianismo de rito e não de vínculo aos outros e à Igreja. Os cristãos-sanguessugas são os que nada fazem, vivendo à custa dos outros, mesmo que nem os conheçam… serão capazes de criticar tudo e todos!



António Sílvio Couto

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Distúrbios em França: para quando uma vaga por cá?

 


A morte de um jovem, de ascendência argelina, em França, no dia 27 de junho, tem espalhado em várias cidades daquele país, o caos, a destruição, os confrontos, em distúrbios muitos deles pela sombra da noite.

Os factos divulgados dizem que um carro com três jovens não parou numa operação de controlo de trânsito. O condutor – vítima fatal – já teria cadastro em pequenas coisas. No entanto, nessa fatídica noite o que aconteceu foi filmado e divulgado, deixando a polícia sob pressão popular. Daí seguiram-se noites e dias de confusão social, de segurança, de interpretação política e – como não podia deixar de ser – cultural.

1. As imagens provindas de França – em vários pontos do país – deixaram-nos a sensação de que estalou o verniz da ‘harmonia’ à francesa. O caldo de culturas entornou-se com acusações de racismo sistémico e as pilhagens com incêndios a edifícios públicos deram-nos um pouco o alcance de algo que estava arrolhado e que saiu sem controlo que não o disparate… Diga-se a França está a colher os frutos de uma política de abertura aos emigrantes, descontrolada. Será esta leitura uma visão algo xenófoba? Como poderemos viver em concórdia social, se há sectores desfavorecidos e marginalizados, quase em regime de ghetto? Dá a impressão que a sociedade francesa só precisa de um pequeno rastilho para incendiar as estruturas mais básicas, vejam-se os protestos dos ‘coletes amarelos’, a contestação da reforma da previdência, indícios vários de terrorismo…

2. Algo aconteceu neste episódio do adolescente árabe que morreu em finais de junho: um determinado político – dizem – de incidência de extrema-direita desencadeou uma campanha de recolha de fundos em favor da família do polícia acusado e, por estes dias, já tinha ultrapassado quase um milhão e meio de euros. Por seu turno, a avó do rapaz falecido tinha feito o mesmo também com uma conta solidária e não tinha atingido ainda trezentos mil euros. Conhecidos estes factos, logo surgiram interpretações tão díspares quão bizarras. Não se pode desenvolver uma iniciativa que possa destoar da leitura que me convenha? Só terão razão os que pensam como eu ou poderá haver diversidade mesmo que seja diferente da minha visão ou leitura? Mais uma vez se nota que a liberdade de pensamento e de ação tem que ser segundo uma perspetiva e nada nem ninguém pode fugir daquilo que uma certa ideologia reinante pense, julgue e faça… Os impropérios lidos deixam muito a desejar sobre a democracia daqueles que tais coisas defendem sobre os outros, pois, se for invertido o processo, estaremos a roçar a ditadura mais básica.

3. Em declarações, num canal francês, uma mulher de tez magrebina contestava que carros fossem queimados, que espaços de trabalho fossem destruídos, pois, como ela dizia: essas pessoas que ficaram sem os seus bens, certamente, fizeram esforço para conseguirem tais coisas e agora veem ser tudo destruído…

Efetivamente, na linha da sabedoria popular diria: não te rias do mal do vizinho que o teu vem de caminho. Com efeito, também entre nós podem verificar-se tais acontecimentos: as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto são contêm idênticos ingredientes aos vistos em França? Os sentimentos de revolta lá sentidos não pululam na surdina de muitos bairros e complexos habitacionais de tantos lugares e sítios, por cá?

4. Não sejamos inocentes nem continuemos a adiar a necessidade de enfrentarmos problemas sociais, que não vimos a resolver, adiando: cuidamos das condições materiais, mas damos parcos recursos para unir as pessoas de modo cultural. Fazemos de conta que não há problemas, mesmo que lançando dinheiro sobre as questões, mas evitamos falar do descontrolo de quem nos queira procurar… Segundo se diz um setor de transporte de carro em aluguer mais parece um modo de enganar do que de servir. Será isto uma posição de não-acolhimento aos imigrantes? Se acontecer algum problema mais grave não teremos os abutres de uma certa esquerda a clamar pela boa vontade, quando eles espicaçam a revolta e patrocinam a contestação? Os efeitos da amnistia pelas JMJ serão antes ou depois dos acontecimentos? Haveria grande diferença!



António Sílvio Couto

segunda-feira, 3 de julho de 2023

‘Chamados e enviados como testemunhas’

 

Este é o título do novo livro de António Sílvio Couto, que vai ser apresentado, na Moita, no dia 17 de julho, data em que comemora o quadragésimo aniversário de ordenação sacerdotal.

Num texto com mais de trezentas páginas e numa edição com a chancela da Paulinas Editora, são aprofundadas ‘50 figuras dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos’ (subtítulo do livro).

José Carlos Carvalho – biblista e professor na Faculdade de Teologia – Porto da Universidade Católica Portuguesa – escreve no prefácio: «António Sílvio Couto oferece-nos nesta obra uma leitura de 50 figuras dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos, na condição de ‘Chamados e enviados como testemunhas’, assim aparece no título. Divide o seu texto em cinco partes, escolhendo cerca de dez personagens em cada uma delas: A) Nos ‘Evangelhos da infância’; B) De discípulos a apóstolos; C) Encontros e simbologias; D) Contexto da paixão-morte; E) Dinâmica pós-Pentecostes (nos Atos dos Apóstolos).
Dialogando com o magistério dos Papas Bento XVI e Francisco, e com a tradição da Igreja, somos levados ao encontro de meia centena de figuras da primeira parte canónica do Novo Testamento. Num esforço de actualização, o autor ajuda-nos a conhecer melhor estas personagens para que nós, leitores ouvintes, nos espelhemos diante destas figuras que construíram a história da salvação, e com as quais os evangelistas pretendem continuar a construir connosco essa mesma história. O autor respeita essa intenção, e fá-lo servindo-se da clássica leitura dos textos bíblicos segundo a teoria dos sentidos».

De referir que a ilustração da capa apresenta uma foto – um barco típico do Tejo – de uma autora com sensibilidade marítima e em alusão às Jornadas Mundiais da Juventude, que decorrerão dentro de dias em Lisboa.

Qual o significado das três palavras contidas neste título?

- Chamados
Todos foram chamados pela benevolência de Jesus para terem com Ele um encontro pessoal, pois foi isso que fez a diferença com aquelas figuras que apresentamos. Mas esse processo continua hoje com cada um de nós: também cada um de nós é chamado, pelo seu nome, por Jesus para esse encontro inolvidável, esse que muda a vida para sempre. De facto, o chamamento – vocação – a ser cristão é algo que continua em diálogo aberto entre Deus e cada pessoa, dado que a via desse diálogo foi aberta por Jesus e exprime-se da forma mais simples, embora silenciosa: a escuta é a condição mínima para que este diálogo possa acontecer...

- E enviados
A comunicação do encontro com Jesus a outros é algo que emerge desde a primeira hora, mesmo ainda na sua vida pública: quantas vezes Jesus dava ordem para que nada fosse dito – sobre uma cura ou um exorcismo – e o beneficiado não podia conter a força desse encontro, anunciando-o a outros. Isso mesmo decorre depois do encontro com Maria Madalena ou dos discípulos de Emaús, nas revelações do Ressuscitado. A força do envio marca todo processo do cristianismo, desde a evangelização até à catequese. É significativo que a eucaristia termina com a expressão –‘ite, missa est’: ide, sois enviados – na caraterização de irmos da missa para a missão... em contínua atualização.

- Como testemunhas
A raiz grega de ‘testemunho’ é ‘martiria’, o que faz de cada cristão chamado e enviado a ser uma testemunha de Jesus ressuscitado, mesmo até à dádiva pelo sangue. Nas belas palavras da epístola de São Pedro - «sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça» (1 Pd 3,15). Com efeito, temos uma tarefa neste mundo e em cada tempo: tornarmos Jesus presente pelo testemunho, na linha de que nos dizia Paulo VI (1975): «Nós sabemos bem que o homem moderno, saturado de discursos, se demonstra muitas vezes cansado de ouvir e, pior ainda, como que imunizado contra a palavra. Conhecemos também as opiniões de numerosos psicólogos e sociólogos, que afirmam ter o homem moderno ultrapassado já a civilização da palavra, que se tornou praticamente ineficaz e inútil, e estar a viver, hoje em dia, na civilização da imagem» (Evangelii nuntiandi, n.º 42). Explicar o que vivemos é o essencial...



ASC