Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sábado, 29 de fevereiro de 2020

Quando a Moita faz tremer o governo


Por estes dias tem sido recorrente ouvirmos que o município da Moita é um daqueles que se opõe à concretização do ‘aeroporto no Montijo’, criando com tal posição um imbróglio suficiente para vermos os responsáveis governativos a tremerem…ameaçando mudar a lei e fazendo crer que algo tem de ser modificado para que os objetivos – ditos essenciais, mas falidos de razões – possam não ser atingidos…

O que diz o tal decreto-lei? Identificação do documento: decreto-lei n.º 186/2007 de 10 de maio sobre ‘condições de construção, certificação e exploração dos aeródromos civis nacionais e respetiva classificação operacional’. Quando se fala da apreciação prévia de viabilidade da ‘construção, ampliação ou modificação’ de aeródromos civis, diz-se no artigo 5.º, n.º 3:

«Constitui fundamento para indeferimento liminar a inexistência do parecer favorável de todas as câmaras municipais dos concelhos potencialmente afectados, conforme previsto na alínea f) do número anterior [Parecer favorável de todas as câmaras municipais dos concelhos potencialmente afectados, quer por superfícies de desobstrução quer por razões ambientais], bem como a inexistência do parecer técnico mencionado na alínea g) do número anterior [Parecer técnico vinculativo, emitido pela autoridade nacional competente no domínio da meteorologia que define o tipo de informação meteorológica compatível com as características do aeródromo, nomeadamente o tipo de aproximação à pista]».

Isto foi feito por um governo socialista… há cerca de treze anos, com vários estudos e convénios de permeio… com partidos de outra coloração, mas com idênticos efeitos, senão teóricos ao menos práticos, isto é, de decidir com pompa e circunstância, mas nada fazer! Não esqueçamos o espetáculo dado com largueza e fartura de beberete antes das recentes eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2019! 

= Decorridos estes anos, porque se coloca, agora, a questão de querer modificar a lei? Por que razão se está a querer mudar as regras com o jogo a decorrer? Não teria advertido o legislador que se poderia verificar indeferimento do assunto por parte dos mais diversos intervenientes? Com tantos municípios envolvidos não se considerou que a construção/adaptação da base aérea n.º 6 no Montijo poderia ter quem se lhe opusse? Na diversidade e/ou divergência com os governos não se intuiu que alguma das autarquias se poderia opor? Não haverá algo de negligência ou mesmo incapacidade de prevenção, quando se quer mostrar serviço sem olhar a meios, mesmo que atropelando as leis vigentes? Não cheira a demagogia que se queira mudar a lei, pela simples razão de que a que está não serve os intentos mais populistas e com sabor a impreparação democrática? Não andarão por aí alguns tiques ditatoriais travestidos de pressa e de falta de rigor para consigo mesmo? 

= Dos dez municípios que se pronunciaram no processo para a construção/adaptação da base aérea n.º 6 a extensão do aeroporto de Lisboa, quatro foram a favor (por sinais todos da cor do governo central): Montijo, Barreiro, Almada e Alcochete) e os outros seis (com autarcas eleitos num dos partidos da antiga geringonça) pronunciaram-se contra: Moita, Seixal, Sesimbra, Benavente, Palmela e Setúbal.

De referir ainda que os dois municípios que mais têm contestado a decisão de transformar a base aérea em extensão do aeroporto de Lisboa são a Moita e o Seixal, segundo os respetivos autarcas traria afetação pelo ruído dos aviões a mais de 65 mil pessoas (30 mil no Seixal e 35 mil na Moita), podendo ainda mais 35 mil serem atingidas na convergência entre os concelhos de Sesimbra (Quinta do Conde), Barreiro (Lavradio) e Moita (Baixa da Banheira).      

Independentemente de haver diversas razões ideológicas subjacentes a esta questão do ‘aeroporto no Montijo’ seria de considerar se a solução tem futuro ou se não estará esgotada ainda antes de ser construída. Também será de perceber se queremos uma coisa que sirva de arma de arremesso de uns contra outros ou se é favorável a todos e, sobretudo, a todo o país. Se a lei previa aquele desfecho de poder se indeferida por algum dos municípios atingidos, deixará muito mal quem ouse fazer leis a gosto ou criar condições para ganhar o jogo, quando já estava a perder nos descontos. Será bom que os autarcas defendam os cidadãos e não sejam mera correia de transmissão dos partidos a que pertencem ou onde militam…acriticamente.

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Paróquias e movimentos, como se podem/devem articular?


Quem está na vida prática das coisas em Igreja católica, por vezes, tem de se revestir de uma arte suficiente para conciliar algum do tradicionalismo/ritualismo das paróquias em contrapoder com alguma outra (pretensa) desinstalação/provocação da maior parte dos movimentos eclesiais.

Numa espécie de declaração de ‘interesses’ fique claro que sou favorável e fomentador da presença dos movimentos – anteriormente ditos apostólicos, mas que devem ser, isso sim, todos católicos – no tecido das paróquias, respeitando a autonomia destas e construindo na vida a chama que fez surgir cada movimento. Desde há mais de quatro décadas que procuro fazer caminhada num determinado movimento eclesial e, tanto quanto tenho procurado, isso não me tem afunilado nele, antes tenho procurado ver e ajudar todos os outros a serem o que devem… 

= «A paróquia é uma certa comunidade de fiéis, constituída estavelmente na Igreja particular, cuja cura pastoral, sob a autoridade do Bispo diocesano, está confiada ao pároco, como a seu pastor próprio» - Código do Direito Canónico, cânone 515 § 1.º. Atendendo a esta definição-descritiva podemos e devemos considerar que tudo quanto aconteça no espaço da paróquia deve ser enquadrado na visão mais ampla de Igreja e no cuidado mais simples daquele que tem a cura pastoral. Por seu turno, no mesmo Código de Direito Canónico se faz a discrição de ‘associação de fiéis’: «na Igreja existem associações, distintas dos institutos de vida consagrada e das sociedades de vida apostólica, nas quais os fiéis quer clérigos quer leigos, quer em conjunto clérigos e leigos, em comum se esforçam por fomentar uma vida mais perfeita, por promover o culto público ou a doutrina cristã, ou outras obras de apostolado, a saber, o trabalho da evangelização, o exercício de obras de piedade ou de caridade, e por informar a ordem temporal com o espírito cristão» (cânone 298, § 1.º).

Diante destas duas citações da lei de referência na Igreja católica podemos e devemos colocar algumas questões sobre a tal articulação serena, sincera e sensata entre a territorialidade da paróquia e a (possível) transversalidade da associação de fiéis, seja ou não movimento. Mesmo que numa imagem tosca não poderemos resumir uma paróquia numa espécie de mesa com várias gavetas sem ligação entre si…

Já foi – felizmente – ultrapassado o tempo em que os leigos tinham de pedir autorização à hierarquia para se reunirem e/ou associarem. Embora para serem eretas as associações precisem de ser reconhecidas pela competente autoridade eclesiástica (CIC cân. 301), aquelas devem respeitar os estatutos devidamente aprovados para o seu reconhecimento.

A título informativo valerá a pena citar, que, no Anuário católico em Portugal, estão registadas oitenta e oito ‘associações, instituições, movimentos e obras’…com expressão de âmbito nacional e, na sua maioria, com implantação em todas as dioceses do país…numas mais do que noutras, mas significativamente abrangentes da realidade social, eclesial… e cultural. 

= Atendendo à dinâmica de cada movimento e/ou associação de fiéis poderá ser questionável como se relacionam estes com as paróquias, dado que, na maior parte dos casos, nestas se poderá verificar mais uma espécie de trabalho pastoral de manutenção e não numa necessária dinamização evangelizadora e/ou missionária. Em muitos casos – desgraçadamente – aqueles/as que participam nos movimentos/associações de fiéis não se sentem tão atraídos ou mesmo acolhidos nas paróquias… como acontece no ‘aconchego’ ou sintonia do seu grupo mais particular. Não será que, muitas vezes, as pessoas se desconhecem ou mesmo se ignoram na fé, que dizem professar ou celebrar? Será que os paroquianos, quando não reagem devidamente às propostas dos responsáveis – tanto do cuidado pastoral, como dos movimentos/associações de fiéis – com isso podem desmotivar quem tenta incentivar à participação? Certas acomodações não revelam mais falta de conversão do que menos boa aceitação?

Numa palavra: paróquias e movimentos/associações de fiéis são como que as duas mãos de um grande louvor divino, onde quem teve (ou tem) a graça de se deixar dinamizar precisa de colocar essa força ao serviço de tanta massa amorfa que povoa as nossas paróquias. Estas não podem ser o reduto de uns tantos que se cristalizaram numa fé ritualista ou um tanto tradicionalista. Renovação de todos, precisa-se, já!           

   

António Sílvio Couto

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Quem vos recebe a Mim recebe…



Lemos nos evangelhos que Jesus prometia àqueles que fossem enviados em seu nome, que seriam recebidos como Ele seria recebido e que falariam na força do Espírito Santo, quando estivessem em missão.

Esta passagem bíblica veio-me mais intensamente à lembrança por ocasião da presença de sessenta jovens universitários – concretamente do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa – Lisboa – que estão a ‘missionar’ na Moita, desde 22 deste mês até 1 de março. Este é o segundo ano do conjunto de três com que a ‘Missão país’ quis investir nesta paróquia ao sul do Tejo.

Mais do que falar do método da ‘Missão país’ e da sua implantação no tecido socio-eclesial português gostaria de centrar a atenção na disponibilidade de tantas pessoas – bem mais do que julgamos, embora possam parecer menos do que seria preciso – para se colocarem à disposição com tempo e qualidade para esta tarefa da evangelização.

Há um largo e salutar leque de pessoas – muitas delas jovens (masculinos e femininos) – que responde aos desafios de se unirem para o anúncio de Jesus e do seu evangelho. Outros há que entregam a vida em totalidade para que essa missão seja projeto de toda uma existência. Mas diante do amorfismo de uma parte significativa da Igreja católica, algo nos deverá questionar e até fazer pensar sobre o futuro da vida eclesial. E neste âmbito que gostaria de situar a função dos ministros da mesma Igreja, pois dá a impressão que nem sempre eles conseguem falar de si mesmos com a necessária propriedade de entrega e de serviço a Deus e aos outros ou pelos outros em Deus.  

= Desde logo talvez possa ser útil colocar algumas questões sobre o afrouxamento das vocações à vida religiosa e ao sacerdócio. Será que Deus não continua a chamar? Ou será que não conseguimos escutar a sua voz, porque andamos demasiado ocupados nas coisas urgentes e não centrados no essencial? Como se explica, de forma clara, sucinta e capaz, que algumas congregações, institutos ou até ordens religiosas – tanto masculinas como femininas – tenham entrado em crise e corram o risco de desparecerem em breve? Terá sido pela adulteração do carisma ou já cumpriram a sua missão em tempo e espaço, dentro e fora da Igreja? Não se terão voltado tantas ‘comunidades religiosas’ mais para o fazer (social) do que para o ser eclesial e espiritual? Mesmo os/as que surgiram com incidências educativas, de saúde ou de ensino não terão preferido as implicações do imediato mais do que as tarefas de promoção integral a longo prazo? A denominada ‘crise de vocações’ não será reflexo da ausência de testemunho ou até pelo impacto de algum mau testemunho? 

= No âmbito mais específico da vida sacerdotal não teremos andado a correr para tratar coisas que competem ao Estado em vez de cuidarmos da vida espiritual – pessoal, comunitária e eclesial – como seria recomendável? O tempo dedicado aos ‘centros paroquiais’ não deveria ser entregue a quem saiba do assunto e não aos padres/párocos? Porque há tantos padres que menosprezam os momentos de encontro, de reunião, de formação e de convívio com os que lhes são próximos (vigararia, arciprestado ou diocese) e privilegiam mais as confluências com movimentos não-eclesiásticos? Haverá uma correta e clara formação do espírito diocesano entre os padres da mesma diocese? Até que ponto não se anda a investir mais nas coisas transversais e menos nas transcendentais? Certos trajes eclesiásticos servem para afirmar-se (como é ou pretende ser visto socialmente), para assumir-se ou para defender-se? 

= De tudo quanto me tem sido dado ver e viver, considero que só pela entrega a Deus se pode compreender tanto daquilo que nos é dado apreciar. Com efeito, aquele texto que prometia cem vezes mais a quem tenha deixado tudo por amor do Reino é, na minha perspetiva e vivência, bem entendido e realizado por quem assuma este desafio. De facto, quantas oportunidades são dadas a quem se entrega numa vida de serviço a Deus e aos outros. Desde as mais insignificantes coisas até às consideradas mais complexas, tudo se torna relativo e abençoado no trato com as pessoas e na gestão das coisas. Com toda a humildade se pode e deve reconhecer que aquilo que nos fazem e proporcionam é porque o querem fazer e dar a quem dá a vida por Jesus. Quem tiver dúvidas tente experimentar…juntamente com incompreensões e até perseguições!       

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

O Espírito conduziu Jesus ao deserto…no mundo


Então, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, a fim de ser tentado pelo diabo’.

É com estas palavras de Mt 4,1 que começamos a caminhada (dominical) da Quaresma, contemplando Jesus a ‘ser tentado’ na sua condição humana/terrena.

Na abordagem deste tema recorremos ao significativo livro do papa emérito Bento XVI/Joseph Ratzinger, Jesus de Nazaré (JN), numa edição de 2007, feita em Portugal, pela editora ‘esfera dos livros’, indicando as páginas.

«Contam os evangelhos sinóticos, para nossa surpresa, que a primeira disposição do Espírito O impele para o deserto ‘a fim de ser tentado pelo demónio’. A ação é precedida pelo recolhimento, e este é necessariamente também uma luta interior em prol da sua missão, uma luta contra as deturpações da mesma que se apresentam como suas verdadeiras realizações. É uma descida aos perigos que ameaçam o homem, porque só assim o homem caído pode ser levantado» (JN 56). 

É diante desta profunda e altíssima experiência de Jesus, na sua condição de tentado segundo a carne, que vamos sugerir um breve itinerário de vivência quaresmal, cujo mote principal é dado pelas tentações de Jesus…do deserto até à cruz. Efetivamente, Jesus vive na condução do Espírito Santo, esse que O ungiu como Cristo/Messias, desde o batismo ministrado por João…até ao derramamento último, quando expira na Cruz.  

= Deserto: lugar ou atitude?

«O deserto – imagem oposta do jardim – torna-se o lugar da reconciliação e da salvação» (JN 57), onde cada um dos elementos – as feras e os anjos – têm significado da nova criação iniciada com Jesus e por Jesus. Não deixa, por isso, de ser essencial perceber que o tempo de Quaresma – a que está aliado o número 40 (JN 59-60) – é esse tempo de deserto pela qual temos de passar rumo à Pascoa, tal como o viveram Moisés e Elias, antes de iniciarem o seu ministério, assim como os quarenta anos de peregrinação pelo deserto do povo de Israel para chegar à Terra prometida. 

Um tanto à semelhança das nossas raízes mais profundas, presentes nestes exemplos vetero-testamentários, assim a caminhada quaresmal nos pode e deve levar a viver em atitude de deserto, isto é, de escuta e de oração, de atenção e de humildade, de abertura e de comunhão, fazendo deserto no mundo, concretamente na nossa casa, no trabalho diário, na vida em família, nos locais de diversão ou de compromisso social e político…até mesmo na Igreja. Efetivamente será ao criarmos condições para viver em deserto que as tentações se manifestarão com maior agravo – cf. JN 61-78 – se bem que a vitória será conseguida pela fidelidade ao Espírito Santo em cada um de nós e na Igreja.   

= Como fazer deserto na cidade?

O título de um livro com mais de quatro décadas – Carlos Carreto, ‘Deserto na cidade’ (1978) – poderá servir-nos de mote para que, na Quaresma deste ano, sigamos rumo à Pascoa: ‘cruz – árvore da vida’.

Podemos servir-nos das letras da palavra ‘Cristo’ e lançamos pistas de caminhada em cada semana:

Caminho em vivência de tentação (Mt 4,1-11);

Renúncia enquanto recurso de penitência e de acolhimento da palavra de Deus (Mt 17,1-9);

Itinerário de abertura a Deus, como a samaritana (Jo 4,4-42);

Salvação à luz de Deus, no reconhecimento de Jesus como o cego (Jo 9, 1-41);

Tocados pelo poder de Deus, ajudados pela vivência de Lázaro (Jo 11,1-45);

Oblação de eterna eucaristia…em mistério pascal (Mt 26,14-27,66).

Pela composição dinâmica e progressiva da palavra ‘Cristo’ poderemos, semanalmente, ir crescendo na abertura à Palavra de Deus, numa contínua refontalização do batismo, que há de ser renovado – pessoal e comunitariamente – na grande liturgia da vigília pascal.

Que o Espírito o Senhor nos guie e conduza, preparando a Páscoa e vivendo a dinâmica que dela emerge até à plenitude do Pentecostes.

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A quem interessa empolar um tal ‘racismo’?


Uns tantos – políticos, jornaleiros (os que escrevinham ideologicamente nalguma comunicação social), comentadores, dirigentes associativos e/ou desportivos e quejandos) – andavam ansiosos porque fosse incendiado o rastilho do ‘racismo’.

As manifestações de alguns adeptos – sócios ou não – num jogo de futebol, no domingo dia 16 de fevereiro, foi a pedra de toque para que se gastem horas a discutir uma coisa que em Portugal não tem expressão como eles desejavam. Podem dizer o que quiserem, os portugueses não são nem nunca foram racistas e tão pouco xenófobos. Somos, pelo contrário, um povo aberto – talvez em excesso e desmesuradamente condescendentes – a todas as raças e cores, mesmo em nosso prejuízo. Somos um povo que sempre criou laços de fraternidade e de harmonia entre os povos e as culturas, muitas delas bem menos respeitosas para com a nossa liberalidade. Somos, por natureza, bem mais solidários do que nos julgamos, pois ainda somos capazes de tirar do nosso essencial para partilhar o que falta a tantos, embora estes nem sempre se mostrem convenientemente agradecidos senão nos atos ao menos nas atitudes. 

= Muitos e variados setores tentam cavalgar sobre pequenos indícios desse tal ‘racismo’, mas bem depressa se esboroam as suas pretensões e, nem mesmo, a intoxicação ideológica de uns tantos consegue criar algo que tenha consistência ou significado. Vivendo numa área onde moram tantos cidadãos procedentes de outros continentes e culturas será muito fácil desmentir que o racismo tenha algo a ver com isso que pretendem dizer que existe. Com que facilidade se dilui a cor da tez ou a forma de se exprimir, percebendo somente que estamos perante pessoas e não em confronto com alguém que nos incomoda.

Foi nitidamente ignóbil, na intenção e nos resultados, essa publicidade – ‘todos diferentes, todos iguais’, pois pretendeu nivelar o racismo pela diferença acintosa e não combatê-lo pela dignificação das pessoas. Estas não se distinguem, mas convivem. Cada cidadão não pode ser reduzido à mera expressão numérica, mas acolhido na diferença daquilo que é e merece ser.

De entre todas as formas de convivência pela dignidade e não pela distinção, o cristianismo foi, na maior parte dos casos, aquele que melhor o idealizou, o pensou e o executou. Falamos do cristianismo na sua génese e nos atos de fraternidade que sempre cuidou. Deixamos de fora quantos usaram a expressão de fé cristã para escravizar, manipular, torturar ou até matar. Outras designações religiosas têm feito também uma razoável evolução e abertura à diferença que não só para com os da sua cultura…

Só uma acentuada ignorância histórica continuará a relevar mais aquilo que foi mau do que tanto do que a civilização foi conduzindo na aproximação dos povos, das nações e mesmo na formação dos países. Talvez seja preciso lavar os preconceitos de certas ideologias para vermos tanto que foi desenvolvido nos dois últimos séculos…

Certa virulência antirracista – sobretudo protagonizada por setores aderentes ao marxismo-leninismo-trotskismo – como que denota alguma tentativa de desviar a atenção dos crimes étnicos, rácicos e xenófobos praticados pelos seus mentores ideológicos, sobretudo, no último século…em várias latitudes e com milhões de vítimas.  

= O pior racismo que se pode difundir ou cultivar é o da indiferença, na medida em que as pessoas deixam de ser consideradas como tal para se tornarem meras coisas ou objetos.

Diante de certos episódios como que se torna lamentável o empolamento de ‘casos’ de racismo, pois só mentes diminuídas podem considerar algum ascendente de supremacia sobre pessoas que tenham a cor da pele distinta da dominante no meio. Na dimensão humana somos todos cidadãos de direitos e com deveres iguais, embora diferentes no modo de os vivermos e de nos fazermos ser comportamento social, político e cultural.  Através de uma educação para a diferença poderemos saber estar com quem não pensa como nós, não escolhe como nós e não sente como nós.

O racismo ainda é uma fase muito primária da evolução da história da humanidade. O racismo é a negação da cultura, seja qual for a instância, o nível de instrução ou o estádio de liberdade. Racismo, nunca!

  

António Sílvio Couto

Eutanásia: individualismo coletivista


Pasme-se: quem mais defende a despenalização da eutanásia são os que perfilam, preferencialmente, ideias de teor coletivista, isto é, os promotores da eutanásia consideram que a escolha individual se sobrepõe à dimensão comunitária da pessoa.

Efetivamente o que está a ser proclamado pela despenalização da ‘morte medicamente assistida’ é um direito de âmbito individual usando os meios técnicos, humanos e recursos daqueles que clamam a absorção (impostos, taxas e cobranças) pelo Estado das economias das pessoas.

Aos que contestam a iniciativa privada e tudo quanto ela significa, reclamam agora que os meios estatais (e não só) possam servir o individualismo elevado à sua maior potência.

Situações há em que aos valores estatais para prosseguir os intentos da eutanásia são associados os de caráter particular, fazendo com que os ‘perigosos’ privados tenham de participar na feitura dos atos médicos em favor da eutanásia. Isto é, para cuidar da saúde são considerados abjetos, mas para concretizar a matança já podem constar da solução… 

= Com a evolução tremenda da medicina não seria expetável que houvesse melhores condições para cuidar da vida, sobretudo em situação de sofrimento e de dor? Não faltará, em muitas das discussões (vistas e ouvidas) sobre a eutanásia, uma noção mais apropriada da dor e do sofrimento nos nossos dias? Não andaremos ainda a discutir estes assuntos enfermando de preconceitos, de estereótipos e de razões pensadas, ditas e decididas em circuito fechado…de alguma bolha pseudocientífica? Por que haverá tanta arrogância por parte de alguns setores mais exaltados – tanto pró como contra a eutanásia – em vez de vermos humildade na escuta das razões alheias? A experiência pessoal da fragilidade, na doença, não nos fará (faria) mais humanos e sinceros, sem peias de pedantismo e/ou de falsa intelectualidade? Não será que querem esconder, sob a capa de ‘medicamente assistida’, a intenção de liquidar quem possa ocupar espaços considerados necessários no (dito) serviço nacional de saúde? 

= Com toda a frontalidade é preciso proclamar: a vida não se referenda nem pode andar ao sabor dos humores – muitas vezes mais negros (no sentido de fúnebres) do que coloridos – da maioria dos políticos ou dos devotos. A dignidade da pessoa humana não pode estar sujeita às conjunturas circunstanciais de certas forças, que não a cuidam devidamente durante a vida e querem reclamar essa dignificação na hora de matar. Com que facilidade vemos surgirem do esgoto – noticioso, social, político e mesmo cultural – certas figuras secundárias, que, como no caso do aborto, vieram trazer à liça os argumentos materialistas mais primários e onde a dimensão psicológico-espiritual não tem grande conceito de reflexão nem de aceitação vivencial.  

Não deixa de ser sintomático que a maioria dos órgãos de comunicação social – televisiva, radiofónica, impressa e até no âmbito da internet – ouça com mais regularidade – e talvez com maior apreço – quem defende a eutanásia como recurso de serviço de saúde e, de forma muito menos clara e habitual, quem apresente argumentos contra a onda da eutanásia...

Os dados apresentados em favor da ‘morte medicamente assistida’ surgem como uma tendência mais ou menos aceitável, embora não sejam ditos os números nem as categorias em que se enquadram. Os promotores da facilitação da eutanásia vão conquistando um certo ascendente não confirmado, mas aduzido pelos dados induzidos. Como tantas outras iniciativas não-claras, também esta sofre do perigo da manipulação duns entendidos sem rosto nem credibilidade. 

= É notório que hoje se discute tudo e o resto mais na base dos direitos individuais do que das relações e dos deveres interpessoais, onde cada um se considera (quase) o centro do mundo ou do ‘seu’ mundinho egoísta, egolátrico e fechado. Com que facilidade vemos tanta gente a reclamar para si aquilo para o qual não contribuiu minimamente. Nesta temática da eutanásia precisamos de não nos deixarmos resvalar para alguma emotividade, mas o assunto deve continuar na área da racionalidade, procurando cada um refletir sobre o sentido da sua vida, ontem, hoje e no futuro. Assim sejamos dignos daquilo que o porvir nos reserva!       

   

António Sílvio Couto

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Discussões numa sociedade envelhecida e podre


Há dias conversava com um padre africano e chegamos à triste conclusão que muitos dos nossos problemas, na Europa e por especial incidência em Portugal, são próprios e típicos de uma sociedade velha e envelhecida, podre embora pretensamente rica, vazia de valores à mistura com questões de quem se entretém com o secundário em vez de atender ao essencial.

A questão da eutanásia como que consubstancia estas diversas ramificações e os tentáculos mais complexos…deixando pouco espaço para percebermos que somos guiados por outros interesses que não sejam ideológicos e quase maquiavélicos.  

Enquanto noutras partes do mundo se tomam medidas para controlar a natalidade – nalguns casos através da laqueação não autorizada ou da vasectomia invasiva – aqui entretemo-nos a discutir quando se pode retirar a vida com ou sem consentimento da família. Quando em tantos lugares da Terra se tenta salvar vidas, correndo os maiores riscos daqueles que intervém, por cá fazem-se discussões e projetam-se leis para permitir matar a pedido ou sem autorização. Quando se tenta sobrepor o individual ao mais correto da convivência interpessoal, não estaremos a entrar em colapso cultural, escavando a sepultura de todos? Quando vemos a interferência da legislação no campo da consciência e da ética, não estaremos a estatizar tudo e todos, submetendo-os aos interesses de maiorias nem sempre lícitas?  

= Já dizia Nicolau Maquiavel no seu célebre livro: O príncipe – ‘não se pode chamar de valor assassinar os seus cidadãos, trair os seus amigos, faltar à palavra dada, ser desapiedado, não ter religião. Essas atitudes podem levar à conquista de um império, mas não à glória’.

Efetivamente, muitos daqueles que nos governam precisariam de umas lições mínimas para serem capazes de perceberem que, por muito que tentem disfarçar, não conseguem esconder quais os objetivos que os movem e que, muitas das vezes, são demasiado pouco subterrâneos para não serem percetíveis nas propostas que levam a serem votadas no lugar da aprovação das leis. Neste caso da discussão trazida outra vez para o público da eutanásia percebe-se que será um novo fait-divers para esconder os problemas de não entendimento em matérias laborais, após o congresso da central pró-comunista e numa quase antecipação do carnaval, cujos eflúvios já se notam… Não basta parecer, se não se é!

Claramente se vê que isso não é sério nem se pode ser levado com seriedade, pois não passa pela cabeça de ninguém que se autorize a matar – pasme-se mais uma vez o eufemismo de ‘despenalização da morte medicamente assistida’ – como se um médico possa prestar-se para matar, quando a sua função é, digna e altamente, salvar vidas. Não brinquemos com as palavras para que estas possam ainda tomadas como forma de comunicação entre os humanos… 

= Por entre tantas posições – a favor ou contra a eutanásia – é digna de reflexão a recente da Conferência Episcopal Portuguesa. O comunicado do conselho permanente diz: «Queridos profissionais da saúde: qualquer intervenção de diagnóstico, de prevenção, de terapêutica, de investigação, de tratamento e de reabilitação há de ter por objetivo a pessoa doente, onde o substantivo “pessoa” venha sempre antes do adjetivo “doente”. Por isso, a vossa ação tenha em vista constantemente a dignidade e a vida da pessoa, sem qualquer cedência a atos como a eutanásia, o suicídio assistido ou a supressão da vida, mesmo se o estado da doença for irreversível». A opção mais digna contra a eutanásia está nos cuidados paliativos como compromisso de proximidade, respeito e cuidado da vida humana até ao seu fim natural».

Esta proclamação poderá parecer uma espécie de atitude de ‘bombeiro’ a tentar apagar um fogo já a lavrar em incêndio sem controlo. Talvez devêssemos ter tido uma ação mais preventiva sobre o tema e não de conjuntura meramente reativa como nesta em que estamos. Não soubemos colher as lições – mesmo de mobilização, de esclarecimento e de dinamização – na década em que foi discutido e votado o tema do aborto. Se a vida não se referenda, e bem; então, não se peça nunca o estratagema do referendo. Se não conseguimos apresentar a vida como valor essencial e transcendente, então de pouco adiantam estes recursos…quase dilatórios. Até quando andaremos a manquejar entre a verdade e os feitiços da mentira?           

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Unidos pelo ódio?


‘Um grupo torna-se sempre mais unido se tiver algo que odiar’.

Esta frase foi proferida por um iraniano, que é professor de psicologia numa universidade americana. Para suportar esta indicação, o professor considera que os responsáveis políticos introduzem, naquilo que dizem e no modo como atuam, conceitos como o medo e a ansiedade para condicionarem as reações e os desafios da sociedade mais aberta…  

= Mas haverá algo de abusivo naquela frase citada, ou, pelo contrário, ela revela mais do que uma mera conjetura na leitura dos acontecimentos? Será que aquela frase pode parecer incentivadora a mais ódio? Por seu turno, poderemos ver naquela frase algo que explique muito daquilo que vemos, sentimos e vivemos… mesmo sem disso nos darmos totalmente conta? Como podemos e devemos interpretar certas manifestações de ódios, onde se espicaçam traços de raça ou de etnia? Não viverá muita gente encapotada à sombra daquela frase, mesmo que teoricamente a contestem?  

= Desde logo ‘ódio’ será útil interpretá-lo como algo de positivo, pois em muito daquilo que colocamos a oposição está mais do que a mera inimizade ou a dimensão de inimigo. Se atendermos à formulação psicológica de ‘ódio’ poderemos encontrá-lo como um inverso de ‘amor’, na medida em que este possa explicar a dedicação mais do que apaixonada por algo ou por alguém, enquanto ‘ódio’ exprime o seu contrário, na linha de desejar mal a alguém.

Naquilo que envolve as pessoas humanas, o ódio exprime-se através dos insultos ou das agressões físicas. A violência tende a ser uma das consequências do ódio… No casos de países e nações é costume incentivar ódio de uns para com outros, levando – como se refere supra – a unir aqueles que poderão concretizar ações de ódio com os outros… nesse caso considerados como inimigos. 

= Atendendo à complexidade do nosso tempo talvez possa ser útil apresentar algumas situações em que ‘um grupo se torna unido, se tiver algo que odiar’. Não será isso que explica uma espécie de fanatismo (quase religioso) de certos grupos desportivos, tenham ou não a designação de claques? Por vezes não acontece de dirimirem-se contendas internas (ou intestinas), polarizando as de fora contra outros que defendem as suas cores com idêntico fervor ou mesmo ódio? Não será que alguma apatia, indiferença ou negligência, que tem vindo a criar episódios sem-sentido, quando outros se apegam a rituais nada abonatórios dos princípios que os norteiam?

Quem não se recorda dos tempos em que os cristãos eram considerados minoria social e eram até odiados pelos que não comungavam da sua fé? Nessas ocasiões – e não são só dum passado longínquo, mas também percorrem muitos locais atualmente – os cristãos uniam-se, não só porque eram perseguidos e mesmo odiados, mas porque estava em causa a sua própria sobrevivência. Vemos já nos textos bíblicos e nas reflexões da patrística essa necessidade de se unirem, não já para odiarem, mas para conseguirem ultrapassar as dificuldades colocadas pelas condicionantes exteriores.

Não será que agora – no nosso tempo e na nossa terra – baixamos a guarda em matéria de vigilância, mas também de unidade. Fomo-nos tornado mais inseridos no meio, mais pela descoloração do que pela afirmação. Se alguém destoa desta onda de boa aceitação – tanto em palavras como em ações – corre o risco de ser facilmente rotulado com fanatismo, fundamentalismo e, mais recentemente, com populismo, isto é, domesticaram o cristianismo e os cristãos com doses de compreensão anódina e de aceitação insípida de princípios, valores e critérios…

Onde está o sabor do sal, que somos? Por onde para a luminosidade proclamada nos evangelhos? Onde está a verticalidade da linguagem do ‘sim, sim; não, não’? Seremos ainda fiáveis para encetarmos a evangelização deste tempo? Daqui a meio século haverá fé nos lugares onde agora a celebramos a meio gás?

Por muito que apelemos a novos métodos de anúncio de Jesus, há um que nunca falha nem estará desatualizado: o testemunho pessoal, o encanto por Cristo e a correção de vida…na sendo do Evangelho!        

   

António Sílvio Couto

domingo, 9 de fevereiro de 2020

‘Não’ ao referendo sobre a eutanásia…


Lamento que tenham vindo a ganhar algum significado as movimentações em ordem a solicitar, ao parlamento, um referendo sobre a eutanásia. É preciso que sejamos ponderados e argutos naquilo em que nos – os que são contra a eutanásia – queremos meter.

Desde logo é preciso afirmar sem rodeios nem meias palavras: a vida não se referenda…nunca.

Mesmo que já tenham sido realizados dois referendos sobre a matéria do aborto…nenhum deles deu resultados representativos, à luz das regras previamente estabelecidas, em que só seria vinculativo o resultado se votassem mais de metade dos eleitores inscritos.

Tenha-se ainda na devida conta, que, quando se põe em marcha um processo, se devem ponderar quais serão as consequências daquilo em que nos envolvemos. Ora, os responsáveis sobre o hipotético referendo a propósito da eutanásia precisam de saber ler os sinais ‘favoráveis’ – fora e dentro do quadro da fé cristã – para com uma tal mentalidade pró-eutanásia. Os mentores da iniciativa a partir dos gabinetes têm de ouvir as ideias da rua. Os proponentes do (pretenso) referendo necessitam de vir para os espaços de opinião – internet, redes sociais, conversas e atitudes de vida – e de lerem o que se diz e não o que gostaríamos, cristãmente, que fosse dito. Não podem ser defraudados os subscritores do (hipotético) referendo, se a onda pró-morte está a ganhar mais espaço do que a sensibilidade à vida…na sua totalidade.

Tentemos, ainda que de forma abstrata, considerar a possibilidade de referendar a vida – entre a conceção e a morte natural – e de vermos diversos fatores não-aceitáveis dessa hipótese. Não basta aduzir o ‘endeusado’ tal tema da qualidade de vida para fazer da opção pela morte assistida uma imprescindível referência ideológica, pois muitas vezes quem, aparentemente, pode não manifestar essa tal qualidade de vida, à luz dos conceitos mais utilitários, talvez não seja compatível com a dedicação de outras pessoas que possam estar a precisar de mais atenção e de sincero cuidado.

Há, no entanto, na minha perspetiva, uma solene reserva para com o referendo sobre a eutanásia: uma grande maioria das pessoas – mesmo dos ditos praticantes mínimos – não subscreve a inquestionável defesa da vida humana, pois pela linguagem e, sobretudo, pelo comportamento há um ambiente bastante favorável para com a tendência eutanásica e uma derrota, em referendo, sobre a matéria tornaria o assunto enterrado – como aconteceu no aborto – enquanto a maioria sociológico/política para com a eutanásia, no parlamento, pode modificar-se, fazendo, assim reverter a matéria, quando as condições forem mais favoráveis…à vida.  

= Uma questão tenho e que me aflige: como foi possível passar com razoável facilidade a termos uma sensação de que há, no nosso país, uma maioria sociológica mais propensa para com a eutanásia? Que falhou por parte de quem tem a missão de proclamar a vida como valor? Não teremos andado mais a falar de coisas secundárias, deixando o essencial para espaço e oportunidade laterais? Não teremos andado mais a atender ao social – preocupados em dar o pão, mas não a educação – do que ao ético/moral? Dá a impressão que se quis moralizar, mas não formar as pessoas na sua consciência e na assunção das responsabilidades inerentes à vida…em todas as suas etapas de vivência.

Como dizia um prelado: a eutanásia não acaba com o sofrimento, acaba com uma vida! Ora, uma boa parte dos defensores da eutanásia fazem-no por pseudo-defesa dos direitos dos doentes, pois querem impor aos outros a sua forma de ver e de viver, mesmo que se esforcem por não sofrer. Atendendo à evolução dos meios técnicos e humanos postos ao serviço da saúde, seria aceitável que se quisesse facultar as melhores condições de médicas e assistenciais, mas não, uns tantos acham que esses meios devem ser usados para tirar a vida, mesmo que usando termos e expressões eufemísticas para dizer matar de forma irreversível.

Pior ainda é a tentativa de considerar o tema da eutanásia como se fosse um assunto religioso e não antes um assunto cultural e civilizacional. Estão, de facto, em confronto visões, entendimentos e comportamentos nos quais perpassam questões de âmbito ideológico, de antropologia e mesmo de postura onde Deus conta ou não. Será, por isso, essencial cada um de nós questionar-se sobre quem é e aquilo que anda por cá a fazer, respeitando os outros, sem lhes impor uma decisão não-desejada nem necessária.

Fique claro: embora seja contra o referendo, se este acontecer, direi: não à eutanásia…sempre!

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Dignidade e vida da pessoa…doente


«A vida há de ser acolhida, tutelada, respeitada e servida desde o seu início até à morte: exigem-no simultaneamente tanto a razão como a fé em Deus, autor da vida».

Ocorre, no próximo dia 11, o 28.º mundial do doente, sob o tema. ‘vinde a Mim, todos vós que andais cansados e oprimidos, que Eu vos aliviarei’ (Mt 11,28).

Na mensagem para este dia, o Papa Francisco apresenta-nos (sobretudo a nós cristãos/católicos) alguns aspetos, quando nos colocamos diante desta faceta da nossa vida – o ser/estar doente – e no trato para com os outros também eles a viverem idêntica situação de fragilidade.

Isto é (ou pode ser) tanto mais importante quanto está previsto para o dia 20 deste mês a discussão, no parlamento, de vários projetos de lei em ordem à almejada legalização da eutanásia. Não deixa ainda de ser significativa a coincidência, pois, nesse mesmo dia, celebra-se o centenário da morte da pastorinha de Fátima, Jacinta Marto, uma criança que morreu com quase dez anos, vítima da pneumónica espanhola que dizimou parte significativa do país…  

a) Passar pela experiência pessoal do sofrimento

«Só quem passa pessoalmente por esta experiência [do sofrimento] poderá ser de conforto para o outro. Várias são as formas graves de sofrimento: doenças incuráveis e crónicas, patologias psíquicas, aquelas que necessitam de reabilitação ou cuidados paliativos, as diferentes formas de deficiência, as doenças próprias da infância e da velhice, etc ...»

Com que importância temos de saber estar unidos aos que sofrem, cuidando e sendo cuidados. Se há vivência que nos humaniza é a do sofrimento, pois nos irmanamos como tanta gente que sofre e que procura sair desse fosso mais alentada e não derrotada. Será que vivemos o sofrimento de olhos postos em Jesus ou antes centrados em nós mesmos? Como educar para a cristianização correta do sofrimento?  

b) Comunhão de uns com os outros…em família

«Na doença, a pessoa sente comprometidas não só a sua integridade física, mas também as várias dimensões da sua vida relacional, intelectiva, afetiva, espiritual; e por isso, além das terapias, espera amparo, solicitude, atenção, em suma, amor. Além disso, junto do doente, há uma família que sofre e pede, também ela, conforto e proximidade».

A doença é sempre uma limitação e não pode ser o centro das questões. Por esta razão se fala, hoje, mais de pastoral da saúde e menos da doença. Embora seja algo de menos bom, podemos e devemos cristianizar a nossa forma de viver o sofrimento e em sofrimento. Certas expressões da nossa linguagem, porém, atraiçoam-nos, dado que dizemos: ‘estava a sofrer tanto, ainda bem que Deus o levou…’; ‘foi uma esmola ter morrido’…como se não pudéssemos crescer na maturidade pela vivência adulta do sofrimento!   

c) Sem cedências à eutanásia

«Queridos profissionais da saúde, qualquer intervenção diagnóstica, preventiva, terapêutica, de pesquisa, tratamento e reabilitação há de ter por objetivo a pessoa doente, onde o substantivo «pessoa» venha sempre antes do adjetivo «doente». Por isso, a vossa ação tenha em vista constantemente a dignidade e a vida da pessoa, sem qualquer cedência a atos de natureza eutanásica, de suicídio assistido ou supressão da vida, nem mesmo se for irreversível o estado da doença».

O Papa refere aos profissionais da saúde, onde inclui também os voluntários e tantos outros intervenientes, algumas linhas da sacralidade da vida, manifestando concordância na objeção de consciência quando tiverem todos de serem, efetiva e afetivamente, coerentes com o sim à vida e à pessoa.

Pelo que se pode enquadrar a reflexão do Papa Francisco para o 28.º dia mundial do doente pode ser uma boa oportunidade, dada aos crentes, para refletirem sobre a barbárie que os parlamentares portugueses irão cometer se aprovarem, como parece, a despenalização da eutanásia… será um grande retrocesso cultural e civilizacional cometido na linha de endeusamento dos critérios inumanos que percorrem o mundo…atual!

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Em queda…livre


Imensas coisas estão a acontecer que planam numa espécie de ‘queda livre’…

Desiluda-se quem ousasse pensar que estava a referir-me a uma tal formação partidária autoapelidada de ‘livre’, pois, pelo que lá se vê e ouve, o adjetivo não condiz, quanto seria desejável, com o substantivo…Diz o povo e com razão; quanto mais alto se sobe (ou quer subir), maior é o trambolhão ou a queda.

* Reparemos nos casos de justiça – denúncias, insinuações, acusações, tentativas de julgamento, condenações – e da comunicação social, nalgumas situações arvorada em detive, sob a alçada duma pretensa investigação. Com que facilidade se promove um delinquente cibernético/hacker em quase herói…só porque trouxe ilegalmente à luz do dia assuntos e coisas que interessavam a uns tantos ditos quase-impolutos/as… 

 * Por breves momentos olhemos para os tentáculos do fenómeno desportivo, com o futebol em particular, por entre tantas negociatas quem terá ainda capacidade para ser dizer incorrupto…dependendo do preço. 

* Campos como a saúde – e nem será preciso deixar-se tomar pelo pânico do coronavírus – ou a educação caem de uma forma tão abrupta que o lamaçal das intrigas será o palco mais do que previsível…à mistura com laivos de resolução adiada, por parte de quem tutela as áreas em apreço.

* Questões como a vida – não nascida, ainda não morta e a que pretende sobreviver – perdem importância no quadro dos valores – éticos/morais, sociais ou culturais – fazendo com que pareça mais fácil decidir quem morre (agora ou no futuro) do que quem há de ser digno de suplantar tantas das conjeturas e conjunturas da legislação e da ocasião. Não deixa de quase ser sintomático da desconformidade total que fautores do serviço à vida, como médicos e enfermeiros, entram na propagação deste clima anti-vida, reinante e inconsequente.  

* Espaços onde se exercia o mínimo de fé religiosa vão ficando vazios e menos agradáveis do que em ocasiões de antanho. A queda vertiginosa com que declinaram os praticantes faz (ou deve fazer) questionar os responsáveis, tanto da organização, como da difusão. O número de ateístas cresce a olhos vistos, senão na teoria ao menos na prática: só no nosso país serão já vinte por cento da população…com uma larga maioria a dizer que teve raízes cristãs.

* Um outro campo em progressiva degenerescência de queda livre é o das (ditas) artes – teatro, cinema, televisão, ‘stand up comedy’ em particular, rábulas e cançonetismo – pois o fácil recurso à ofensa – em especial com o recurso ao léxico religioso/cristão – denota encolhimento da imaginação, senão mesmo pelo estafado recurso a clichés nem sempre dignos e tão pouco respeitadores da prática religiosa/cristã alheia… O humor exige inteligência e capacidade de inovação, mas nos tempos que correm ela passou pelos autores/atores em maré de tempestade…improvisada!

* O modo como se enfrentam temas tão essenciais como a doença, a perda ou a morte, vai-se percebendo que a forma de estar, sobretudo nesses momentos, nem sempre questiona o como se vive, ficando numa certa apatia quase negacionista ou mesmo destruída pelo sem-nexo. Mais depressa do que seria desejável – digo desde uma postura de crente cristão – entramos em círculos vivenciais nem sempre articulados com uma cultura ou ética judeo-cristã. Dá a impressão que passamos, rapidamente, de um quase fideísmo acrítico para uma outra visão agnóstica pela indiferença…pessoal e social.  

= Como poderemos suster e até inverter esta catadupa de quedas em campos, espaços e situações onde já algo houve de bom e até de muito bom? Por onde se pode e deve começar a investir para que esta queda vertiginosa de qualidade dos intervenientes possa ser revertida? Ainda iremos a tempo de não cairmos na fossa total e mortífera?

Desde logo é preciso investir na descoberta e preparação de lideranças, pois sem pessoas capazes de porem os seus dons ao serviço dos outros andaremos a rastejar pela mediocridade. Urge elevar a qualidade daquilo que é feito e apresentado, não bastando entreter, mas questionar, educar, gerar (e não só gerir) cultura, onde os valores, princípios e virtudes sejam tidos em conta e não nos deixarmos explorar pela mera brejeirice e a malcriadez reinante. Temos de ultrapassar, urgentemente, essa nota medíocre do tanto vale o que tem interesse como aquilo que não presta, expurgando este sem medo nem receio. Temos de saber escolher entre a qualidade educada e a vulgaridade barata…até no preço.    

   

António Sílvio Couto