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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Densas sombras e ténues luzes

 


O paradoxal momento que estamos a viver desta pandemia pode – ou será que deve? – provocar em nós (pessoal, familiar ou socialmente) uma leitura de contrastes: densas e profundas sombras/trevas cobrem o nosso ‘eu’ coletivo, enquanto ténues e frágeis luzes parecem despontar…

Numa quase ousadia, cito um documento da Igreja católica de meados do século passado, mudando a tónica para a enquadrar nas emoções dos nossos dias: «as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história» (Vaticano II, Constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ sobre a Igreja no mundo atual, n.º 1).

Retiramos no documento citado as referências às ‘alegrias e esperanças’ e deixamos dele a alusão às ‘tristezas e angústias’ deste tempo de provação que estamos a viver…com razoável intensidade. De facto, esta comunhão nas angústias e nas tristezas é, hoje, maior do que nunca. Vejamos, então, algumas sombras, tentando ainda descortinar possíveis luzes de esperança.

 * Sinais de densas trevas/sombras: temos no nosso país mais de dez mil infetados por dia de ‘covid-19’, centena e meia de mortos/média diária na última semana; somos o país do mundo com mais mortos por cem mil habitantes; temos o sistema de saúde em colapso… Os profissionais de saúde estão exaustos, os hospitais saturados…já não se pode estar doente (seja de que maleita for) nem ter qualquer acidente, a capacidade de absorção entrou em rutura… Nos lares de idosos rebentou a bolha – onde ela ainda existia – e utentes, funcionários e outros colaboradores estão infetados, em risco ou assintomáticos, criando um ambiente de suspeita, de medo ou mesmo de ansiedade… Pela segunda vez, desde março passado, o país foi colocado em ‘estado de confinamento’ – embora se notem bastante pouco os efeitos, as atitudes e nos comportamentos – social, económico e sanitário… As exceções – mais de cinquenta – permitem que uma boa parte da população tente tornear os constrangimentos, colocando, no entanto, tudo e todos em risco, senão mesmo em perigo crescente e descontrolado… À boleia da pretensa ‘atividade política’ – em tempo daquilo que desejavam que fosse a tal companha eleitoral – vemos as maiores tropelias, os erros agravados e até as insinuações sobre os outros, sem repararem antes nos seus…

Quando vamos parar para aceitarmos que caminhamos para o atoleiro sem regresso? Para quando vermos responsabilidade em cumprir e fazer respeitar os outros, sem andarmo-nos a ludibriar capciosamente?

Dizem e com razão: quem viveu na pele ou naqueles que lhe são próximos os efeitos deste fatídico vírus, que as pessoas mudam. Não poderemos aprender sem precisarmos de sentir as consequências das nossas más ou negligentes opções?

 * Ténues luzes de esperança – num tempo quase recorde surgiram diversas vacinas…depois de alguma incerteza sobre as etapas, as prioridades ou mesmo as quantidades disponíveis, já se começam a vislumbrar alguns efeitos da vacinação…com três semanas de processo dá a impressão que ténues luzes se acendem, no horizonte ou ao fundo do tal túnel. Os múltiplos cuidados recomendados deveriam ser mais bem aceites e/ou assumidos. Se em muitos casos tem havido excesso nas exigências, noutros é fundamental que as pessoas se não sintam tão invulneráveis, pois um leve sopro – o termo é literal – ou descuido poder-nos-á ser fatal.

Em todo isto – já decorreram dez longos e penosos meses – tenho sentido muito pouca referência a Deus. Noutras épocas sentir-se-ia isto como um castigo divino. Agora qual a razão para não colocarmos a dimensão divina, que nos veio (vem) corrigir e até unir na fragilização? Não será que a nossa prosápia humanista não nos deixa ver a humilhação humanitária? Não somos donos de nada, tão pouco de ninguém e nem de nós mesmos.

Rezamos neste domingo: ‘concedei a paz aos nossos dias’… Que paz? Dada por Quem? Em quantos dias?     

 

António Sílvio Couto

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