O paradoxal momento que estamos a viver desta pandemia pode – ou será que deve? – provocar em nós (pessoal, familiar ou socialmente) uma leitura de contrastes: densas e profundas sombras/trevas cobrem o nosso ‘eu’ coletivo, enquanto ténues e frágeis luzes parecem despontar…
Numa
quase ousadia, cito um documento da Igreja católica de meados do século
passado, mudando a tónica para a enquadrar nas emoções dos nossos dias: «as
tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos
aqueles que sofrem, são também as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco
no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em
Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino
do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este
motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua
história» (Vaticano II,
Constituição pastoral ‘Gaudium et spes’ sobre a Igreja no mundo atual, n.º 1).
Retiramos
no documento citado as referências às ‘alegrias e esperanças’ e deixamos dele a
alusão às ‘tristezas e angústias’ deste tempo de provação que estamos a
viver…com razoável intensidade. De facto, esta comunhão nas angústias e nas
tristezas é, hoje, maior do que nunca. Vejamos, então, algumas sombras,
tentando ainda descortinar possíveis luzes de esperança.
Quando
vamos parar para aceitarmos que caminhamos para o atoleiro sem regresso? Para
quando vermos responsabilidade em cumprir e fazer respeitar os outros, sem
andarmo-nos a ludibriar capciosamente?
Dizem e
com razão: quem viveu na pele ou naqueles que lhe são próximos os efeitos deste
fatídico vírus, que as pessoas mudam. Não poderemos aprender sem precisarmos de
sentir as consequências das nossas más ou negligentes opções?
Em todo
isto – já decorreram dez longos e penosos meses – tenho sentido muito pouca
referência a Deus. Noutras épocas sentir-se-ia isto como um castigo divino.
Agora qual a razão para não colocarmos a dimensão divina, que nos veio (vem)
corrigir e até unir na fragilização? Não será que a nossa prosápia humanista
não nos deixa ver a humilhação humanitária? Não somos donos de nada, tão pouco
de ninguém e nem de nós mesmos.
Rezamos
neste domingo: ‘concedei a paz aos nossos dias’… Que paz? Dada por Quem? Em
quantos dias?
António Sílvio Couto
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