Com a aproximação
à celebração litúrgica dos Fiéis Defuntos poderá ser útil refletir sobre a
temática das exéquias católicas, sua envolvência e consequências na vida da fé
crista.
Deixamos aqui um
pequeno estudo sobre o assunto.
«As exéquias cristãs são uma celebração
litúrgica da Igreja. O ministério da Igreja tem em vista, aqui, tanto exprimir
a comunhão eficaz com o defunto, como fazer participar nela a comunidade
reunida para o funeral e anunciar-lhe a vida eterna» (Catecismo da Igreja
Católica, n.º 1684).
Algumas perguntas
se podem colocar sobre a celebração das exéquias: que sentido tem celebrar
exéquias cristãs/católicas a quem não foi minimamente ‘praticante’? Haverá
algum sentido dar a quem morreu algo que não quis em vida? Serão as exéquias
cristãs para os defuntos ou para os vivos? Se atendermos à marca de índole
social que percorre um funeral, será aceitável a sua realização – como momento
de possível evangelização – ou deve recursar-se a participar em algo que pode
exigir um mínimo de fé? As orações do ritual a quem têm por direta referência:
aos vivos ou para com os defuntos? A evocação do defunto é razão ou
oportunidade para que se celebrem as exéquias?
* Privatização/anonimato da morte…fora do contexto familiar
Se atendermos a
todo um processo crescente da privatização – isto é, de fazermos deste momento
da vida algo que atinja o foro privado e não incomode ou o faça no mínimo – do
tema da morte podemos ver como certos rituais por ocasião da morte até de um
cristão na nossa sociedade ocidental estão a ser esvaziados de conteúdo mínimo
cristão. Repare-se na difusão do velório em espaços não-familiares, atirando
para fora do convívio da família quem partiu. Isto vem sendo acompanhado com o
processo de falecimento já não ao pé da família, mas no contexto hospitalar.
Foi (ou é) com naturalidade que fomos enquadrando esta vivência, deixando de
haver tanta proximidade ao ente querido que morreu. Certamente que os espaços
hospitalares fazem o melhor que podem, mas a frieza na partida deixa
marcas…Quantas vezes a assistência espiritual-religiosa não consegue colmatar o
que o consolo da fé poderia proporcionar.
* Etapas das exéquias – casa, igreja, cemitério
«A liturgia romana propõe três tipos de
celebração das exéquias, correspondentes aos três lugares em que se desenrolam
(a casa, a igreja, o cemitério), e segundo a importância que lhes dão a
família, os costumes locais, a cultura e a piedade popular» (CIC, n.º 1686).
A isto podemos ainda acrescentar os quatro momentos nos quais se pode
desenvolver esta celebração exequial, a saber: acolhimento na comunidade,
celebração da Palavra de Deus, eucaristia exequial e encomendação/último
‘adeus’.
O Ritual das Exéquias apresenta alguns
momentos de oração ‘no momento da morte’ – feitas por qualquer cristão presente
ao ato, mesmo que não seja ministro ordenado – com indicações e sinalética
(como traçar o sinal da cruz sobre a fronte do moribundo ou dando-lhe um
crucifix a beijar), acompanhada de orações… Outra etapa sugerida pelo Ritual é
para a ‘colocação do corpo no féretro’, que é muito mais do que o trabalho de
uma ‘agência funeráriia’, associando momentos de oração pelo defunto. Por
último, ainda nesta etapa pré-exequial, o Ritual, apresenta um ‘vigília de
oração pelo defunto’, na casa do falecido ou na casa mortuária, sugerindo-se
também a Liturgia das Horas do ‘ofício de defuntos’.
Ora, tendo em
conta alguma experiência pastoral de quase quatro década de ministério
sacerdotal, deixo as minhas impressões, atendendo às possibilidades e às
condições dos vários casos, lugares e situações.
Desde já fique
ressalvado: as exéquias são dos momentos mais propícios à evangelização até
mais do que à catequese, tal a possibilidade de uma boa parte dos que nelas
participam, pelas razões emocionais que envolvem, poderem aceitar uma palavra
de anúncio da Pessoa e da mensagem de Jesus Cristo…atendendo ainda à razoável
ignorância, apatia ou mesmo indiferença com que temos de enfrentar, em boa
parte desses momentos. o que deveria ser de luto e não de mera convivência
social.
Vejamos as três
possibilidades – cumulativas ou autónomas – para a celebração das exéquias e
qual o seu significado:
– Acolhimento: «Uma saudação de fé dá início à celebração. Os parentes do defunto são
acolhidos com uma palavra de «consolação» (no sentido do Novo Testamento: a
fortaleza do Espírito Santo na esperança. Também a comunidade orante, que se
junta, espera ouvir «as palavras da vida eterna». A morte dum membro da
comunidade (ou o seu dia aniversário, sétimo ou trigésimo) é um acontecimento
que deve levar a ultrapassar as perspetivas «deste mundo» e projetar os fiéis
para as verdadeiras perspetivas da fé em Cristo Ressuscitado» (CIC, n.º
1687). Tanto pode haver o acolhimento do féretro na igreja, seguindo-se as exéquias,
como se pode verificar esse acolhimento e, posteriormente, serem celebradas as
exéquias. Em cada um dos casos estão propostos momentos de escuta da Palavra de
Deus – repare-se como é fundamental incluir o que Deus nos quer dizer nesses
momentos – bem como o recurso a vários salmos de índole penitencial e também
orações onde se coloca quem parte diante de Deus e todos nós em processo de
conversão.
– Temos também a «liturgia
da Palavra, aquando das exéquias,
[que] exige uma preparação, tanto mais atenta quanto a assembleia presente pode
incluir fiéis pouco frequentadores da liturgia e até amigos do defunto que não
sejam cristãos. A homilia, de modo particular, deve «evitar o género literário
do elogio fúnebre» e iluminar o mistério da morte cristã com a luz de Cristo
ressuscitado» (CIC, n.º 1688). Efetivamente, sobretudo, em regiões onde a
prática religiosa é menos acentuada esta é a forma mais usada de celebrar as
exéquias – ‘exéquias sem missa’. Tal como se refere neste enunciado podemos
encontrar nesses momentos oportunidades de evangelização, particularmente de
tantos ditos ‘menos crentes’, senão mesmo de muitos outros que estão fora do
contexto religioso básico. Por vezes uma palavra corretamente proferida pode
atingir quem se disponha a ser tocado por Deus!
Que dizer, então,
do desfile de coroas de flores e de salamaleques de circunstâncias por ocasião
de tantos funerais? Não se quererão substituir as orações pelos arranjos
florais à mistura com conversas sem nexo nem conteúdo? Até quando continuaremos
mais ou menos a colaborar/tolerar neste disfarce não assumido? Nota-se uma
grande falta de educação humana e cristã nesta etapa derradeira da vida…que ou
se tem ou não se inventa!
– Exéquias com missa: «Quando a celebração tem lugar na igreja, a Eucaristia
é o coração da realidade pascal da morte cristã. É então que a Igreja manifesta
a sua comunhão eficaz com o defunto: oferecendo ao Pai, no Espírito Santo, o
sacrifício da morte e ressurreição de Cristo, pede-Lhe que o seu filho defunto
seja purificado dos pecados e respectivas consequências, e admitido à plenitude
pascal da mesa do Reino. É pela Eucaristia assim celebrada que a comunidade dos
fiéis, especialmente a família do defunto, aprende a viver em comunhão com
aquele que «adormeceu no Senhor», comungando o corpo de Cristo, de que ele é
membro vivo, e depois rezando por ele e com ele» (CIC, n.º 1689). De facto,
será natural que haja missa de sufrágio por quem viveu em comunhão de Igreja,
mas seria algo quase aberrante que se faça ‘missa de corpo presente’ para quem
pouco ou nada se fez presente à Igreja em vida. Em certas circunstâncias em
regiões onde a prática religiosa é menos significativa seria algo a rever ao
celebrar missa por quem não fez comunidade em vida… ou, então, como vai crescendo
noutras regiões com mais religiosidade social, estaremos a conferir
sacramentalidade sem evangelização.
– Após a
celebração das exéquias, com missa ou sem missa, segue-se a última encomendação e despedida, que
consiste no ‘adeus («a Deus») ao defunto é a sua «encomendação a Deus» pela Igreja. É ‘a última saudação dirigida pela
comunidade cristã a um dos seus membros, antes de o corpo ser levado para a
sepultura’» (CIC, n.º 1690). Efetivamente podem ser usados ainda dois
sinais religiosos de respeito pelo ‘corpo onde viveu um cristão’: a água benta,
evocativa da água batismal e o incenso como símbolo da oferta das orações dos
fiéis a Deus por aquele irmão falecido.
As propostas de
oração apresentadas (sete no conjunto) pelo Ritual das exéquias procuram criar
nos participantes no funeral uma expetativa de encontro daquele que partiu com
Deus – chamado de ‘bom pastor’, Pai de misericórdia – na comunhão de irmãos
fundada no batismo e manifestada na Igreja e pela Igreja pela comunhão dos
santos… Isso mesmo se exprime no responsório breve: vinde em seu auxílio,
santos de Deus. Vinde ao seu encontro, anjos do Senhor. Recebei a sua alma,
levai-a à presença do Senhor… ressusscitado. A oração final de encomendação
recolhe, em ação de graças tudo quanto Deus concedeu a quem morreu, suplicando
a misericórdia infinita e o perdão de todas as fragilidades…
Fazendo-se agora o
transporte do defunto para o cemitério ou local de cremação em meio automóvel
as propostas para a ’procissão para o cemitério’ quase não têm viabilidade.
* Sepultamento – em cemitério ou pela
cremação
Embora esta etapa
do sepultamento possa continuar ligada às exéquias, colocamos este tema noutro
enquadramento pela razão de queremos abordar a questão da cremação, tentando
responder à pergunta: se é lícito ou não um cristão recorrer a esta forma
derradeira de tratamento do corpo humano falecido?
As rubricas sobre
o sepultamento em cemitério são simples: acolhimento final dos participantes,
profissão de fé (a meu ver, caso o defunto tenha sido praticante de fé
comunitária), oração dos fiéis e oração final com a bênção e o envio ‘na paz’.
Por razões várias
tem vindo a crescer, sobretudo em contextos urbanos, a tendência a optar pela
cremação dos defuntos. Por isso, pode ser útil neste contexto de abordagem do
sepultamento dos defuntos percorremos o que diz a doutrina da Igreja Católica,
desde o Catecismo até a uma Instrução da Congregação para a Doutrina da Fé, de
2016.
Diz o Catecismo da
Igreja Católico sobre o cuidado para com os defuntos: «Os corpos dos defuntos
devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e esperança da ressurreição.
Enterrar os mortos é uma obra de misericórdia corporal que honra os filhos de
Deus, templos do Espírito Santo». Ora sobre a cremação diz o mesmo Catecismo: «A Igreja permite a cremação a não ser que
esta ponha em causa a fé na ressurreição dos corpos» (CIC, n.os
2300-2301). Mais recentemente foram aprovados textos e orações para a
celebração das exéquias com a possibilidade da cremação…Por vezes não bastará
estar atento ao formato do caixão na hora da encomendação, serão precisos mais
dados e melhores informações…até sociológicas, culturais e religiosas de tal
opção pela cremação.
Com data de 15 de
agosto de 2016, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou a Instrução ‘Ad resurgendum cum Christo’ a
propósito da sepultura dos defuntos e da conservação das cinzas da cremação.
Depois de algum enquadramento teológico à luz da ressurreição de Cristo, o
documento lembra a antiga tradição cristã em que ‘a Igreja recomenda
insistentemente que os corpos dos defuntos sejam sepultados no cemitério ou num
lugar sagrado’.
É partindo desta
teologia e práxis secular que a Congregação para a Doutrina da Fé procura
atalhar alguns erros e abusos no que toca ao recurso, entretanto, muito
difundido da cremação. A Igreja ‘não pode, por isso, permitir comportamentos e
ritos que envolvam conceções erróneas sobre a morte: seja o aniquilamento
definitivo da pessoa; seja o momento da sua fusão com a Mãe natureza ou com o
universo; seja como uma etapa no processo da reincarnação; seja ainda, como a
libertação definitiva da “prisão” do corpo’.
Do mesmo modo se
insiste que a ‘sepultura nos cemitérios ou noutros lugares sagrados responde
adequadamente à piedade e ao respeito devido aos corpos dos fiéis defuntos,
que, mediante o Batismo, se tornaram templo do Espírito Santo e dos quais,
“como instrumentos e vasos, se serviu santamente o Espírito Santo para realizar
tantas boas obras’.
O documento da
Congregação para a Doutrina da Fé salienta que ‘onde por razões de tipo
higiénico, económico ou social se escolhe a cremação; [esta] escolha que não
deve ser contrária à vontade explícita ou razoavelmente presumível do fiel
defunto, a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis; uma vez que
a cremação do cadáver não toca o espírito e não impede à omnipotência divina de
ressuscitar o corpo. Por isso, tal facto, não implica uma razão objetiva que
negue a doutrina cristã sobre a imortalidade da alma e da ressurreição dos
corpos’.
Explicando depois
o modo de proceder para com as cinzas, a Instrução
refere que ‘as cinzas do defunto devem ser conservadas, por norma, num lugar
sagrado, isto é, no cemitério ou, se for o caso, numa igreja ou num lugar
especialmente dedicado a esse fim determinado pela autoridade eclesiástica’.
Com efeito, ‘a conservação das cinzas num lugar sagrado pode contribuir para
que não se corra o risco de afastar os defuntos da oração e da recordação dos
parentes e da comunidade cristã. Por outro lado, deste modo, se evita a possibilidade
de esquecimento ou falta de respeito que podem acontecer, sobretudo depois de
passar a primeira geração, ou então cair em práticas inconvenientes ou
supersticiosas’.
Sobre a
conservação das cinzas e outros artefactos com elas praticados, a Congregação
para a Doutrina da Fé salienta que ‘a conservação das cinzas em casa não é
consentida... não podendo ainda as cinzas serem divididas entre os vários
núcleos familiares e deve ser sempre assegurado o respeito e as adequadas
condições de conservação das mesmas’.
Desejando corrigir
certas visões e atuações menos respeitosas para com as cinzas dos defuntos, a Instrução diz que ‘para evitar qualquer
tipo de equívoco panteísta, naturalista ou niilista, não seja permitida a
dispersão das cinzas no ar, na terra ou na água ou, ainda, em qualquer outro
lugar. Exclui-se, ainda a conservação das cinzas cremadas sob a forma de
recordação comemorativa em peças de joalharia ou em outros objetos, tendo
presente que para tal modo de proceder não podem ser adotadas razões de ordem
higiénica, social ou económica a motivar a escolha da cremação’.
Ao longo da breve ‘Instrução’, faz-se ainda uma abordagem
da correta celebração das exéquias pelo defunto e a posterior atitude de
sufrágios...numa leitura e vivência sem oscilações nem fundamentalismos.
António Sílvio Couto