Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



sábado, 30 de maio de 2020

Seremos (mesmo) um povo que não se deixa governar?



A ver por alguns dos dados disponíveis estamos a confirmar essa observação de um general romano que dizia sobre um tal povo que vivia nos confins da Iberia: é um povo que não se governa nem se deixa governar!
Ora, passados tantos séculos, mantemos bastantes tiques desta caraterística nacional, pois somos capazes de razoáveis atos de tenacidade, mas com relativa facilidade nos deixamos descair para a vulgaridade. Vejamos episódios do nosso tempo coletivo mais recente: com que sacrifício vivemos as agruras das fases de confinamento no estado de emergência e na situação de calamidade e, tão rapidamente, nos resvalou o pé para a asneira, deitando quase tudo a perder, ao parecermos aliviar as restrições e logo dispararam os números de afetados (infetados, internados e até falecidos) pelo vírus fatal!


Há quem considere que a nossa extensão de luz solar nos faz um tanto mais distendidos nas razões de aceitarmos as restrições – foram muitas e duras…outras virão piores – mesmo que disso dependa o sucesso das medidas, das regras e mesmo das melhores intenções. Dá a impressão que ainda não interiorizamos de que o sucesso dos outros depende do compromisso de todos e que estes todos contêm cada um…mesmo nos seus pequenos interesses. É verdade que raramente tivemos de nos unir para reconstruir o país – como aconteceu na maior parte dos países da Europa há cerca de setenta anos – e fomos vivendo ao ritmo do mais fácil e no mero desenrascanço à portuguesa…Nem a pertença à Europa dos ricos nos fez conciliar a preguiça com o trabalho, pois aquela suplanta este, bastará um pequeno sinal de abrandamento no esforço… para voltarmos ao ponto de partida, a miséria nacional. 

= Esperando que não seja uma leitura abusiva dos factos, a vaga da epidemia veio do norte para o sul, encalhando, por agora, no pântano da (dita) área metropolitana de Lisboa, que inclui o espaço entre Vila Franca de Xira e Setúbal, passando por Cascais, Loures ou Sintra.

Os primeiros infetados com o vírus foram os industriais de calçado e têxteis da área metropolitana do Porto, que foram ‘apanhar o bicho’ nas feiras e exposições do norte de Itália…por isso, os números impressionantes nos primeiros dias do ‘covid-19’. Decorridos mais de dois meses com o ‘credo na boca’ e escutando as notícias diariamente graves, vemos que na coroa envolvente da capital emergem casos cada vez mais preocupantes e com tendências pouco animadoras.

Praias a abarrotar de povo, atitudes pouco respeitadoras do espaço sanitário, gestos de quem não se cuida nem atende aos perigos dos outros ou se acautela em ser perigo para os demais… temos visto nas ruas, mais naquelas que percorremos do que nas que nos vendem nas televisões. Com efeito, os meios de comunicação social, que foram tão importantes para a prevenção, estão agora a tornarem-se os maiores difusores da confusão e até da promiscuidade de comportamentos de pessoas, de grupos e de inúmeros abusos de uns espertos sobre o resto da população… 

= Quando se quer conduzir um povo fazendo-o acreditar que o consumo é a raiz de todo o sucesso, não poderemos ter outras consequências do que aquelas já estamos acolher. Efetivamente dá a impressão que não soubemos aprender com o que vivemos nos tempos mais recentes. Continua-se a insistir na opção restaurante em vez da vivência da família em casa. Despeja-se dinheiro sobre os problemas em vez de os diagnosticar e resolver com honestidade e lealdade. Opta-se por fingir que está tudo bem, quando o bem que se diz que está não passa de uma ilusão alicerçada no engano, na patranha e na mentira, tanto política como económica e mesmo social.

O melhor retrato desta pandemia da inconsciência coletiva reinante é terem lançado mais um programa televisivo ‘big brother’, onde as pessoas colocam a sua vida no estendal da desvergonha e com isso pensam ganhar notoriedade. Pior ainda é a subtileza dos preconceitos com que são apresentados certos problemas – ou serão fait-divers de nichos de interesses ou de lóbi? – quando não passam de modas de circunstância e que, por tanto insistirem, podem vir a tornar-se um outro modelo cultural.  

Se não somos capazes de nos governarmos como convém, queira Deus que nos deixemos governar como é melhor…sem preconceitos nem recorrendo a modelos que já faliram noutras latitudes!       

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Com máscara não seremos desmascarados?


Eis que, de repente, a máscara se tornou um dos adereços mais importante de todos e para todos. Uma simples tira de pano – com maior ou menor simplicidade ou com um ou outro toque artístico – é hoje algo que nos faz estar em comunhão na prevenção para que não haja tanta desgraça ou nos faça tornar a todos vigilantes da saúde própria e alheia.

Numa visão cultural clássica saber-se-á que a ‘máscara’ era usada no teatro grego e posteriormente no de cultura latina, funcionando, entre outras coisas, para amplificar a voz e até para criar novas personagens nas representações. Claro que a função era diferente e a própria máscara tinha outra configuração, deixando a descoberto os olhos e a boca, órgãos que agora são resguardados com a utilização da ‘nova’ máscara.

O recurso à máscara como disfarce vemo-lo (ou melhor, víamo-lo), bastante difundido, na época do carnaval, tanto naquilo que tem de sério – repare-se no ‘baile de máscaras’ veneziano – como de folclórico – atente-se aos caretos de certas regiões rurais – ou ainda à tendência bizarra de comediantes populares… Neste âmbito a máscara como que poderá servir para a assunção de outros papéis nem sempre aceitáveis por quem a ela quer recorrer num misto de ser e de parecer…sabe-se lá a que preço e com que intenção. 

= Que tem, então, de especial a máscara fomentada, difundida e usada nesta contenção de pandemia? Será que já nos apercebemos dos riscos que corremos se não usarmos a máscara – cirúrgica ou social – no contexto da vida com os outros? Já percebemos que temos de nos defender e de cuidar da proteção alheia? 

= Desde meados de março que temos vivido etapas para enfrentarmos as causas, debelando as consequências deste coronavírus ‘covid-19’: desde o estado de emergência – duas fases de 19 de março a 2 de maio – até à situação de calamidade – em vigor desde 4 de maio – passando por dias de confinamento bastante restritivo – por ocasião da páscoa e no início de maio – fomos aprendendo a lidar com ‘algo’ que tem tanto de perigoso quanto de inesperado e sem rosto.

As mais variadas atividades foram reduzidas ao essencial, senão mesmo algumas suspensas ou até anuladas. Esta pandemia viral tornou-se quase tanto mais psicológica do que de saúde físico-biológica. Foi crescendo a desconfiança das pessoas, emergiu o medo mais tétrico e quase floresceu o que seria impensável de macabro na nossa condição humana.

De algum modo faliram muitas das certezas em que andávamos entretidos, mesmo as de âmbito mais profundo e considerado inabalável. Os ritos cultuais entraram em colapso, veja-se o encerramento dos templos e a suspensão dos atos religiosos… desde 15 de março até 30 de maio – setenta e sete longos dias – em que ‘o povo de Deus’ esteve, normalmente, em grande jejum do alimento de Jesus-eucarístico. Foram surgindo múltiplas formas de fazer chegar a eucaristia – de domingo ou à semana – àqueles que estavam confinados à sua casa… a capacidade de resposta foi impressionante, mas os riscos podem continuar se não forem dados passos de resposta a um catolicismo que seja comunitário e não de mera solução dos ritos e do cumprimento de preceitos…. Tanto quanto me foi dado perceber e executar consegui celebrar – com transmissão via Net radio católica – em cerca de cinquenta daqueles dias de confinamento e afins, com especial incidência aos domingos e, neste espaço que decorreu na parte final da quaresma e todo o tempo pascal… daí o ressurgimento em domingo de Pentecostes. 

= Eis-nos chegados ao momento em que não podemos abrandar na vigilância, pois os dados continuam a dizer que o vírus não está dominado e tão pouco isso acontece por decreto-lei ou por publicação de qualquer portaria… A pressa em querer pôr a economia a render poderá deixar-nos à beira do precipício, pois desgraçado será um país que viva mobilizado pelo consumo e não pela produção, que tente enganar os incautos com dinheiro para gastar e não ensine a poupar ou ainda que julgue sobreviver com balões de subsídios na medida em que terá a fatura a pagar mais depressa do que pensa… Foi, assim, que entramos, por três vezes – sempre com a mesma cor governante – na bancarrota… Já é tempo de aprendermos com o passado e não nos deixarmos manipular pelo que parece sucesso (salário), sem trabalho!     

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 26 de maio de 2020

Proposta de ato penitencial no domingo de Pentecostes 2020 (celebração comunitária da penitência na missa)


Decorridos mais de dois meses sem presença comum na celebração da eucaristia, eis-nos re-unidos (não é erro ortográfico nem gralha de escrita): ‘voltados a unir’ para a vivência da eucaristia dominical, essa – como diziam os primeiros cristãos – que ‘não podemos viver sem ela’. Mas tantas e tantas vezes temo-la vivido – ou será melhor dizer: temos estado por rotina – de forma displicente e talvez menos atenta e atenciosa. Por isso, queremos fazer um ato penitencial comum de pedir perdão a Deus dos nossos pecados para com Ele, para connosco mesmos e para com os outros.
Servimo-nos dos quatro aspetos que rezamos na confissão na missa: por pensamentos e por palavras; por atos e por omissões.
* Por pensamentos:
- quantas vezes, Senhor, pensei mal de Ti, por ocasião desta pandemia, talvez até possa ter praguejado contra Ti, por nos dares e permitires estas coisas que consideramos más e perigosas;
- quantas vezes, Senhor, não Te vi e Te julguei fora de toda esta confusão, culpando-Te de tantas das coisas desagradáveis com que temos de nos confrontar;
- quantas vezes, Senhor, me poderei ter julgado a mim mesmo, por não conseguir entender os acontecimentos da vida e questionei a minha fé incapaz de perceber com Tu velas por nós, sem disso nos darmos conta;
- quantas vezes, Senhor, julguei os outros e poderei tê-los avaliado sem compaixão;
- quantas vezes, Senhor, poderei ter desejado mal aos outros, culpando-os do que está a acontecer e não vendo, pelo contrário, as minhas culpas.
Porque pecámos, dizemos: Senhor, tem piedade de nós.
* Por palavras
- de quantas formas posso ter dito palavras mais de maldição do que de bênção, escandalizando os outros;
- de quantos modos posso ter tido conversas de maledicência para com Deus, criando mau ambiente à minha volta;
- de quantas formas posso ter dito palavras de revolta contra quem possa ter originado esta pandemia e até desejando mal a todos esses;
- de quantos modos poderei não ter tido paciência, quando fui confrontado com filas de espera ou com momentos de contrariedade;
- de quantas formas poderei ter tido conversas de coisas mais negativas do que positivas, mesmo sobre questões de fé, de Igreja ou quanto ao estado geral dos problemas, gerando mais revolta do que esperança.
Porque pecámos e fizemos pecar os outros, dizemos: Cristo, tem piedade de nós.
* Por atos
- quantas vezes, Senhor, aquilo que fiz coisas que Vos desagradaram, na medida em que não fui cristão na vida, mas antes me envergonhei da minha fé, ofendendo a esperança e prejudicando a caridade;
- quantas vezes, Senhor, poderei ter vivido mais no açambarcamento (de coisas, de comida ou de outros bens) do que na confiança em Deus e na atenção aos outros;
- quantas vezes fui mais materialista nas minhas reações do que crente na Providência divina;
- quantas vezes vivi mais fechado aos que me rodeiam, centrado mais nos meus interesses, do que atento às necessidades dos outros;
- quantas vezes tentei impor-me aos outros, não os respeitando nem lhes dando as oportunidades que têm ou que precisam.
Porque pecámos contra os outros e para contigo, dizemos: Senhor, tem piedade de nós.
* Por omissões
- de quantas formas, Senhor, fui egoísta, desculpando-me para não atender aos outros e aos seus problemas;
- de quantos modos, Senhor, me fechei àquilo que via nas notícias, ficando à espera que outros façam aquilo que eu, na minha modesta condição, deveria fazer como cristão;
- de quantas formas me refugiei nalgum tipo de vingança, sem ver nesta pandemia um convite à conversão;
- de quantos modos permiti que se gerassem em mim sentimentos de má-vontade até para compreender as dores e os sofrimentos das vítimas do ‘covid-19’;
 - por todas as vezes que me envergonhei da minha fé nas coisas do dia-a-dia.
Porque pecámos e Vos ofendemos queremos dizer: Cristo, tem piedade de nós.

 

Aqui fica uma mera sugestão. Pela minha parte irei tentar propô-la com quem celebrar a eucaristia nesse dia de reabertura dos nossos espaços de celebração à comunhão presencial dos irmãos. Mais irmanados no pecado poderemos celebrar melhor os santos mistérios!

 

António Sílvio Couto

domingo, 24 de maio de 2020

Entre o Papa e o rapper




Neste tempo assaz complexo que temos estado a viver de confinamento originado pelo coronavírus ‘covid-19’ dá a impressão que estamos mais suscetíveis de refletir e mesmo de discernir os sinais dos tempos nas coisas desta época.

Tenho bem marcado na minha memória – poderá ser até o mais impressionante de tudo isto – a simbologia do Papa Francisco a caminhar só, ao cair daquela tarde de chuva, na Praça de São Pedro (Vaticano), no dia 27 de março, nesse momento marcante de oração de intercessão pela pandemia…com as palavras e sinais que daí decorreram. Muito mais do que um episódio pretensamente religioso, aquilo que o Papa fez envolve uma leitura que exige ser descodificada, tanto no conteúdo como na forma: no conteúdo pelas palavras ditas – estamos todos no mesmo barco ou pelo apelo à intervenção divina; pela forma por aquilo que nos quis referir sobre a fragilidade de todos, começando pelos responsáveis e envolvendo todos os outros, seja qual for a idade, a condição social ou mesmo a capacidade de leitura atual e para o futuro…

Por outro lado, tenho ficado muito apreensivo sobre a significação mais profunda das imagens algo exuberantes de um rapaz com menos de vinte anos, dito de ‘rapper’, onde se misturam palavras e expressões, sinais e impressões de alguém que vive (vivia) num mundo onde certos códigos comuns estarão um tanto fora da normalidade. Terá sido isso que se conjugou para que tenha sido morto, com laivos de atrocidade…à mistura com um certo exibicionismo de riqueza, não se sabendo se verdadeira, se inventada ou até manipulada.

Dizem que estes dois factos poderão ser contemporâneos nas datas, dado que o rapper foi dado como desaparecido em meados do mês de março. Seja como for este acontecimento funesto tem algo de misterioso deve-nos fazer ir um tanto mais ao fundo no seu significado mesmo social.

= Não queremos colocar as duas figuras em contraposição, mas antes como possíveis ‘guias’ de leitura dos contraditórios do nosso tempo, sem recorrermos ao juízo barato nem com quaisquer tendências morais. Com efeito, que lições podemos colher de um e de outro? A ‘solidão’ do Papa tem algo a ver com a paixão solitária de Jesus? A exuberância do rapper fala-nos dos objetivos de vida (e não só) dos nossos jovens? A caminhada titubeante do sumo pontífice exibe a Igreja na sua linguagem não-percetível pelo mundo? Os artefactos que o rapper ostentava revelam as intenções mais subtis da nossa juventude, crente ou agnóstica? A disponibilidade o Papa para assumir ser a voz tribunícia de todos consegue captar a atenção da maioria? A imitação do rapper colhe mais efeitos do que o possível desacordo de quem possa pensar de forma diferente dele? A linguagem de simplicidade do Papa não entrará em confronto de significação com a postura do rapper e seus seguidores?

= Estamos perante dois claros estilos de vida e isso não tem a ver só com a idade – o Papa tem mais de oitenta anos e rapper falecido menos de vinte – mas com os possíveis critérios e valores de conduta, atendendo ao processo educativo, as motivações e até à definição de objetivos ou mesmo analisando o substrato cultural.

Para muitos dos jovens da nossa sociedade parece que tudo é fácil, desde o dinheiro até ao conforto, passando ainda como dado adquirido, mas que, por ocasião desta pandemia, se viu estar em forte perigo, tal como a saúde, a segurança ou mesmo a sobrevivência económica nacional e internacional. Urge, por isso, comunicar a todos quantos fazem da contestação – social, política, sindical ou profissional – o critério de conduta que há muita outra gente que não tem o essencial e que eles podem estar a desperdiçar as oportunidades, pelas quais não tiveram de lutar o mínimo.

Certos setores da reivindicação têm de ser mais lógicos – dizemo-lo em relação às questões europeias e outras – pois se não querem o modelo de Europa que temos porque continuam a lançar candidatos para lugares que contestam. Não seria mais acertado não perderem o tempo com coisas que rejeitam em vez de indistintamente disso usufruírem?

Quem porá juízo na cabeça de tantas pessoas que continuam a pretender influenciar os outros com o ridículo da sua exibição de novo-riquismo? O rapper, dizem, foi vítima dessa ostentação. Aprendamos…     

  

António Sílvio Couto

terça-feira, 19 de maio de 2020

Confinamento: intervenientes…antes, durante e depois


Uma das vertentes mais singulares da complexa situação de confinamento que temos estado a viver, é a dos vários intervenientes…em todo este processo: pessoas singulares e coletivas, desde as autoridades (políticas e governativas, de saúde e de segurança, de vigilância e de observação/notícias, no sentido religioso ou na envolvência social, económica ou mesmo cultural) até aos cidadãos (os atingidos pela doença – infetados, internados, recuperados e falecidos – e o resto que viveu este confinamento), passando pelas diversas etapas psicológicas de perplexidade, de medo, de ansiedade, de angústia, de reflexão…até à tentativa de descompressão e de reaprendizagem em viver com ‘algo’ – dizem que é vírus com diversas mutações – que não conhecemos e nos faz humilhar nas nossas tão altivas convicções.

Embora este seja o enunciado de um texto que já foi publicado, vamos agora esmiuçar os diversos itens:

* Autoridades (políticas, governativas, de saúde, de segurança ou de vigilância) que tiveram de provar a qualidade, a competência e a maior ou a menor assertividade das decisões. Com efeito, o processo de comunicação de quem, atualmente, ocupa o poder teve um método um tanto errático, mas minimamente camuflado ou sob a cobertura dos inquisidores ditos externos, a comunicação social, pois, em muitas situações quase se notava que estava vendida a quem lhe fornecia os dados cozinhados, apresentados e mesmo mastigado e era só reproduzir o que vinha da agência governamental…sem espinhas nem ossos. O menu da ‘hora de almoço’ deste itinerário tinha um fidedigno do guião: se um dia era tomada uma decisão, ainda mal articulada, na manhã seguinte surgia um decreto-lei, que rapidamente era esclarecido ou contraditado por um diploma mais acertado e assertivo para a questão em presença…

Momentos houve em que a confusão era tal que o melhor foi retrair os intervenientes para que o espetáculo não fosse mais degradante. Quem teve de dar a cara diariamente no briffing da saúde, por volta do meio-dia, foi aprendendo que notícias graves e lutuosas não se apresentam com sorrisinhos baratos e que até podem ser entendidos como ofensivos da dor da perda… A arte de comunicação foi corrigindo defeitos de simpatia sem nexo nem articulação. Em tantos momentos tive a sensação de estar a ser enganado não só no conteúdo das comunicações como naquilo que de subterrâneo emergia. Uma estranha perceção de que muito daquilo que nos era comunicado era uma verdadeira ‘fake news’ (falsa notícia) e o tempo se encarregará de o confirmar!

A nota de leviandade – que é muito mais do que leveza – com que certas figuras se apresentavam diante dos outros cidadãos deixa muito a desejar na capacidade de conduzir os destinos da nação, pois esta mais parece um feudo de uns iluminados que a pátria de todos… Muitos dos atores deste cenário são artistas de classe secundária, bafejados pelas circunstâncias da incapacidade dos opositores.

* Do lado dos cidadãos, ficou a impressão de que nem sempre houve verdade nos números, sobre a avaliação do problema: quantos foram os atingidos pela doença – infetados, internados, recuperados e falecidos – sem esquecer o resto que viveu este confinamento? Pequenos grandes dados nos devem fazer refletir: a forma como foram vividos o ’25 de abril’ e o primeiro de maio’ são dignos de uma democracia que trata todos de forma igual ou há – como na linguagem orwelliana – porcos que são mais iguais do que os outros…embora, aparentemente, se sirvam do mesmo espaço de alimentação. Veja-se ainda a confusão de usar ou não máscara no trato com os outros, quanto mais a perplexidade em entender quem pode ou não ser transmissor do vírus, se os mais ricos ou se ele atingia, sobretudo, os pobres. Os meios técnicos e humanos envolvidos no combate à pandemia dá a impressão que ficaram aquém do que seria necessário, embora tenha parecido suficiente…na medida em que os avaliadores são os mesmos que os promotores!

Houve coisas sérias tratadas a brincar e outras mais ligeiras que foram empoladas como se fossem muito importantes. Repare-se no (dito) fenómeno do futebol, que balanceou entre retomar o campeonato principal e ser dado como acabado, enquanto outros de escalões inferiores foram encerrados à la carte!

Os últimos dias foram dignos de análise para compreendermos o nível cultural/educacional da população portuguesa: a invasão das praias, transgredindo regras e provocando as entidades fiscalizadoras. Mais uma vez se notou que uma boa parte não sabe viver em harmonia cívica… Pasme-se, agora: o governo, mais uma vez por diploma, fez a vontade aos transgressores e já deixa todos irem à praia. O sistema sanitário higienista aguentará as benesses populistas dos senhores da capital?

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Entre a quaresma e o ramadão…em confinamento


Grosso modo de 15 de março a 15 de maio, isto é, dois meses, vivemos em confinamento. Vivemos isso que tem sido a retração de contatos sociais e de cumprirmos a recomendação de #fiqueemcasa…com que fomos matraqueados, sem dó nem piedade.

Por outra perspetiva e se atendermos às datas e ao seu significado podemos ver, numa certa linguagem ‘religiosa’ de incidência quase social, que o (dito) estado de ‘emergência’ começou a meio da quaresma (os católicos deixaram de ter missa com assembleia no dia 15 de março, 3.º domingo quaresmal) e a (pretensa) situação de ‘calamidade’ quase termina no último dia do ramadão deste ano, a 23 de maio…

Tentemos, numa espécie de retrospetiva, rever alguns dos aspetos mais relevantes deste tempo de confinamento…até para sabermos colher lições em relação ao futuro próximo.

- Uma das vertentes mais singulares desta situação complexa poderemos colocá-la nos vários intervenientes…pessoas singulares e coletivas, desde as autoridades (políticas e governativas, de saúde e de segurança, de vigilância e de observação/notícias, no sentido religioso ou na envolvência social, económica ou mesmo cultural) até aos cidadãos (os atingidos pela doença – infetados, internados, recuperados e falecidos – e o resto que viveu este confinamento), passando pelas diversas etapas psicológicas de perplexidade, de medo, de ansiedade, de angústia, de reflexão…até à tentativa de descompressão e de reaprender a viver com ‘algo’ – dizem que é vírus com diversas mutações – que não conhecemos e nos faz humilhar nas nossas tão altivas convicções.

- Haverá, no desenrolar do espetro da História, um tempo que será dedicado a tentar interpretar tudo isto que temos estado a viver. Já foi assim noutras situações de epidemia, com perdas de vidas humanas, noutros casos inesperados e de alcance mais ou menos generalizado. Dizem os entendidos na matéria que há duas formas de equilibrar a demografia: pela guerra ou pela doença. Daquela temos estado livres, particularmente na Europa, de forma generalizada, desde há setenta anos. Por entre laivos de algum desenvolvimento temos conseguido suplantar etapas de doença – muitas delas provenientes como agora do Oriente – e, com muito esforço disso a que chamaram, desde o final da segunda guerra mundial, o ‘Estado social’, isto é, o estado/governo cuida das pessoas atendendo à saúde, à segurança e ao bem-estar coletivo… a baixo custo.

- Apanhados de surpresa, estamos a enfrentar novos desafios, colocados a um tempo marcado pelo consumismo. Para uma imensa maioria uma boa parte do sucesso, de tranquilidade ou de regalias não foi conquistado nem envolveu qualquer participação na luta, foi-lhe dado sem esforço e tão pouco desejado, mas antes fornecido como se fosse algo inquestionável e adquirido para sempre. Esta pandemia fez abalar tudo, desde os alicerces até aos frutos da ‘nossa’ vida pessoal ou coletiva, onde conta(va)m mais os direitos do que as obrigações, onde quase tudo se compra sem que tal tenha sido ganho com trabalho e o empenho correspondente. Quem conheça, minimamente, a História do passado perceberá que algo idêntico se viveu na cultura romana – bastará visitar cidades dessa época – onde o epicurismo se tornou forma de vida e o hedonismo critério moral… Temos estado a viver um reflorescimento dessas tendências na nossa cultura. Lá como agora, a dimensão espiritual é subordinada ao imediatismo, à superficialidade, à imposição do ‘eu’ sobre o ‘nós’, sem tempo para gastar com coisas que não sejam palpáveis, sensitivas e de prazer, não temendo atingir os fins sem olhar a meios…

- Preocupa-me seriamente qual deve ser o papel do cristianismo em tudo isto que estamos (ainda) a viver. No passado, o cristianismo foi suporte de uma nova cultura e construiu uma nova civilização…mesmo do pântano social vigente. Agora – a ver pelas reações e atitudes de muitos dos nossos cristãos, incluindo responsáveis eclesiásticos – temo que sejamos engolidos por esta maré apocalíptica e de onde possam surgir alguns messianismos mais integristas e conservadores, saudosistas da cristandade, enredados numa ‘liturgia’ gongórica sem mistério nem compromisso de evangelização. Um tanto significativamente não vimos grande alusão às grandes figuras de proteção em tempos de epidemias, como São Sebastião ou São Roque. Não foi tão claro quanto devia ter sido a envolvência no suporte de fé em Deus como seria expetável… Tirando a imagem impressionante do Papa Francisco na tarde de 27 de março, na Praça de São Pedro, pouco mais foi profético de forma questionadora de tudo e de todos!   

 

António Sílvio Couto

sábado, 16 de maio de 2020

Quem se destaca nas épocas de crise?


Embora estejamos sem saber em que etapa estamos desta crise da pandemia do ‘covid-19’ podemos, de algum modo, ir fazendo uma leitura de algumas coisas/situações/casos/figuras que fomos percebendo…

Se usarmos como critério de leitura outras vivências anteriores – possivelmente piores, mas não tão empoladas, dado que havia muito menos meios de comunicação – poderemos encontrar vítimas dessas pestes, de tais epidemias, de surtos ou de doenças fatais…onde se destacaram tantos e tantas pela sua forma como lidaram com os problemas, como os tentaram resolver, pagando, por vezes, com a vida a sua entrega em favor dos outros.

Dentro de um quadro socio-religioso cristão faz parte da referência à ‘ajuda’ – intercessão, intervenção milagrosa, suporte ou defesa – alguns daqueles que viveram momentos de provação e que foram, posteriormente, invocados por ocasião ‘da fome, da peste e da guerra’, como São Sebastião ou São Roque.

Vejamos a configuração destes dois grandes testemunhos em maré de peste e como são ainda hoje invocados.

* Sebastião nasceu em Narbonne (sudoeste de França), no final do século III, e desde muito cedo seus pais se mudaram para Milão, onde ele cresceu e foi educado. Atingindo a idade adulta, alistou-se como militar, nas legiões do Imperador Diocleciano, que ignorava que Sebastião era cristão, mas devido à sua valentia foi nomeado chefe da guarda pretoriana. Denunciado por um soldado devido à proteção que dava aos cristãos perseguidos, foi Sebastião condenado à morte e executado, uma primeira vez a que sobreviveu e uma segunda, torturado com setas, como se vez na sua imagem iconográfica. Sepultado com veneração, foram as suas relíquias trasladadas, no século VII, para uma basílica construída pelo imperador Constantino. Ora, nessa ocasião, grassava uma forte epidemia em Roma e, conforme iam passando as relíquias as pessoas ficavam melhores e a dita epidemia desapareceu. Desde, então, começou a ser invocado por ocasião da ‘fome, da peste e da guerra’, como aconteceu em Milão, em 1575, e em Lisboa, em 1599, que invocaram com sucesso, São Sebastião em momentos de epidemia...
Repare-se que, sobretudo nas povoações mais antigas, há algum testemunho de súplica a este santo, colocando essa referência (igreja, capela, nicho ou estátua) à entrada da povoação, como que em jeito de defesa e de proteção...
* Roque nasceu em Montpellier (sul de França), nos séculos XIII-XIV, filho de uma família abastada, ficou órfão muito novo e foi educado por um tio e estudou medicina. Ao atingiu a maioridade distribuiu os bens pelos pobres e partiu em peregrinação a Roma. Pelo caminho foi-se confrontando com várias cidades a viverem surtos de peste. Usando simplesmente um bisturi e uma cruz foi socorrendo as vítimas, que eram curadas. No regresso de Roma a Montpellier, São Roque foi ele próprio atacado pela peste, em Piacenza. Terá sobrevivido no isolamento que escolhera graças a um cão que lhe levava pão todos os dias. Curado milagrosamente, Roque regressou a Montpellier para doar o resto dos seus bens. Porém, com a cidade em guerra civil, foi confundido com um espião e preso. O governador da cidade, seu tio, não o reconheceu, nem ele se terá identificado. Roque permaneceu em esquecimento, preso durante anos, a viver a pão e água e em oração. Numa tentativa de confirmar se ele estava morto, o carcereiro, que era coxo, tocou-lhe com a perna menor e ficou curado. Identificado o morto perceberam que era Roque pelo sinal de uma cruz que tinha no peito desde a nascença. São Roque é invocado contra as pestes e epidemias, sobretudo na proteção do gado contra doenças contagiosas. É geralmente representado com uma ferida na perna, com um cão aos pés e com um bastão e uma vieira típica dos peregrinos... 

Estes dois protetores/defensores/intercessores – cristãos com dez séculos de diferença e originários da mesma região francesa – contra as doenças epidémicas não foram tão noticiados como seria previsível nesta vaga pandémica. Será que já não precisamos deles ou que eles foram invocados em fases menos ‘científicas’ da humanidade e até do cristianismo? Será que nos envergonhamos dos nossos heróis e santos…cristãos?

Voltaremos ao tema para apresentarmos outras figuras – santos ou não – que dedicaram a sua vida em maré de epidemias, de fome e de guerra…ontem como hoje.

 

António Sílvio Couto

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Numa certa cultura homofílica?


Pé-ante-pé vemos sair do armário algo que, depois de motivo de exclusão, se tem vindo a revelar razão de promoção, desde o nível individual até ao mais social e mesmo cultural.

Nada nem ninguém acentua algo que possa ser referido como passível de ser visto, julgado ou interpretado em tempo algum de menos boa aceitação de alguém que se assuma como homossexual. Nunca o fiz nem espero ter de sinalizar. Por isso, aquilo que motiva esta sucinta reflexão é, tão simplesmente, a contestação a um certo ambiente assaz favorecedor dessa cultura homofílica, que é muito mais do que ser avesso a alguma visão, comportamento ou vinculação anti-homofóbica. 

Deixo duas situações veiculadas pela comunicação social…antagonicamente interpretadas:

- Uma de quase exaltação de um responsável banqueiro que referiu ter sido escolhido como chefe máximo europeu por ser gay, dizendo: ’se não fosse gay provavelmente não seria CEO do banco’. Claro que omito a entidade bancária envolvida, mas registo a ousadia – será isso ou tem algo de subterrâneo? – de trazer para a vida pública e empresarial as opções/tendências mais reservadas e/ou pessoais. Será desta forma acintosa que pretendem fazer ambiente para vulgarizar tudo e o que mais desejam impor? Este folclore poderá servir para épocas de crise – como aquela que estamos a viver – mas será revertida em tempos bem mais racionais!

- Um outro caso de sinalização contrária percorre as reações a um programa televisivo – continuam a insistir no formato com duas décadas – onde um concorrente ousou declarar que preferia ‘ser mulherengo do que ser gay’…naquilo que interpretaram – no programa e fora dele, mesmo na estação televisiva – ser uma declaração machista e homofóbica… Já está: começou o espetáculo na tentativa de angariar audiências para um programa de tão baixo teor mental, social e de rasca conteúdo cultural. É, assim, que querem que o povo se esqueça das agruras do confinamento pandémico? Usem outros truques e melhores habilidades! 

= Depois de termos vividos tempos de alguma intolerância para com quem manifestava opções/tendências/vivências fora do comum tolerado, moral, social ou culturalmente, eis que parece ter chegado um outro tempo em que do excluído se quer fazer promovido em exclusividade. Nalguns casos quase dá a impressão de que é preciso pedir desculpa por não entrarmos na onda da ‘ideologia de género’ com que alguns setores querem varrer os que pensam de forma diferente ou não-concordante com essa (nova) maioria.

Mal vai uma sociedade que precisa de desvalorizar – às vezes reveste até a faceta de perseguir de forma tácita e capciosa – uma tendência para equilibrar qualquer outra. Nalguns momentos a dimensão heterossexual está a ser colocada no armário, onde antes estavam os que – segundo dizem – de lá saíram. Sem prejuízo de outros entendimentos – científicos, artificiais e muito caros – como se renovará, de forma natural, a população, se ‘todos’ recorressem à fórmula de vida homossexual? Como seriam realizados os sonhos de paternidade/maternidade se fôssemos confinados à opção homossexual nos desejos de ter crianças e a quem se dedicar afetuosamente? Será que a exaltação do cuidado dos animais funciona como mecanismo de substituição/compensação desses desejos mais profundos de cada ser humano?

Fique claro: qualquer pessoa bem formada – segundo os valores humanos de civismo, de critérios morais/éticos cristãos ou de respeito elementar pelos outros – saberá aceitar cada pessoa como ela é, sem atender àquilo que divide, antes ao que une. Embora a sexualidade seja um valor intrínseco a cada ser humano, as opções de a revelar, de a assumir ou mesmo de a exercitar deverá ser respeitada acima de qualquer diferença ou processo de educação.

 

= Há gente que terá de recolher a pedra acusatória que pretende atirar a outros, quando pode ter nalgum momento, mesmo anedótico, veiculado intenções, proferido palavras ou tido comportamentos menos respeitadores da diferença para com os outros. Sim: todos diferentes, todos diferentes…para sermos, de verdade, todos e mais iguais!  

   

António Sílvio Couto

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Fátima: vazio, não deserto!


«Mesmo estando em nossas casas viveremos esse momento em espírito de peregrinação. O recinto do santuário estará vazio, mas não deserto. Ainda que separados fisicamente, estaremos todos aqui espiritualmente unidos como Igreja com Maria, de modo intenso, com o coração cheio de fé».

Foi deste modo simples, direto e sincero que D. António Marto, cardeal-bispo da Diocese de Leiria-Fátima, caraterizou a vivência da noite de vigília do dia 12 de maio passado.

Efetivamente o largo recinto do santuário de Fátima estava quase às escuras, sem pessoas – como não é costume nas noites e dias de peregrinação aniversaria – com representantes das vinte e uma dioceses, alguns elementos eclesiásticos dos serviços, os bispos metropolitas…e ainda com milhares de velas – representando os peregrinos vivos e defuntos – que iluminavam o corredor central daquilo a que alguns designam de recinto, por contraste com as basílicas e a capelinha.

Associando-se a esta ‘peregrinação do coração’ houve também milhares de velas nas janelas de muitos dos portugueses espalhados por todo o mundo, numa vivência que teve tanto de inédita quanto de simbólica e necessariamente de profética.

Em tudo isto ganhou importância e foco a comunicação social, pois se não fossem as transmissões não teríamos acesso às celebrações. Embora se não deva meter todos no mesmo saco, houve ‘comunicadores’ que manifestaram mais interesse pelos pormenores do que pelo essencial. Ver comentar uma homilia depois de ouvirmos as primeiras frases – sobrepondo-se à comunicação – só porque já tinham acesso ao texto, não sei se é sério eticamente… Fixar-se no ‘espetáculo’ – é deste modo que alguns se referem à procissão das velas – sem atingir o seu significado, talvez seja abordar as coisas pela superficialidade…Servir uma transmissão sem enquadramento histórico-espiritual pode não ser bom serviço nem ajudar quem não entenda o que vê e escuta, embora se possa dirigir a emissão mais para ‘praticantes’ à distância… 

= À luz daquilo que vimos, sentimos e rezamos podemos colocar algumas questões mais para o futuro do que fixando-nos no presente atribulado ou lendo o passado com o mínimo de nostalgia.

Que Fátima (local, mensagem e testemunho) vamos ter a partir de agora? Quem vai alimentar o projeto económico, que por ali vemos ainda em desenvolvimento? Como educar um sentido comunitário à luz das ‘promessas’ individuais vistas, sentidas e permitidas em Fátima? As devoções que deambulam por aquele espaço podem ser exportadas sem adaptação adequada para o resto do país e do mundo? Como um dos fatores identitários dos portugueses no mundo, não teremos de voltar à genuína mensagem de Fátima para prosseguirmos, como povo eleito, para difundir a manifestação da Senhora?       

= Há frases e pensamentos que podem ser considerados chavões de mais de um século de história e de vida religiosa a partir de Fátima. ‘Não foi a Igreja que impos Fátima, foi Fátima que se impos à Igreja’. Vista como ‘altar do mundo’ para ali peregrinaram quatro dos cinco últimos Papas, dando-nos a entender que a mensagem é universal e não de teor nacional, que mais do que a diversidade das línguas nas celebrações tem de ser acolhedoras das linguagens católicas. À provocação – ‘Fátima nunca mais ou nunca menos?’ – temos de saber responder com sinais teológicos que não cultivem meramente o tradicionalismo nem acoitem o que sobra das dioceses. Como lugar de graça, a Cova da Iria – nome do local da aparição da Senhor – é chamada e ser isso mesmo: ‘berço da paz’, por entre dúvidas e ignorâncias disfarçadas de velinhas (queimadas ou a oferecer)…mais de devoção do que como fé esclarecida, celebrada e comprometida. 

= Se a celebração do centenário, em 2017, trouxe novas oportunidades de aprofundamento da mensagem de Fátima – muito mais do que o nome de um movimento – nas mais diversas vertentes de vida social, eclesial, teológica e cultural, o que aconteceu na peregrinação aniversaria de maio de 2020, sob o espetro da pandemia do ‘covid-19’, exige que tenhamos humildade para interpretar os sinais audíveis, os silêncios percetíveis e as mensagens que devemos decifrar à luz de um tempo novo porque nunca antes vivido por ninguém e onde todos ajudamos e somos ajudados a discernir o que Deus nos quer dizer… Assim o percebamos!  

 

António Sílvio Couto

segunda-feira, 11 de maio de 2020

‘A fragilidade humaniza a vida’


É este o tema da 27.ª ‘semana da vida’, que decorre, em Portugal, de 10 a 17 de maio.

Certamente que temos por substrato a vivência mais recente da pandemia e que o ‘dia internacional da família’ (15 de maio), aliado à celebração aniversaria das ‘aparições’ em Fátima (dia 13), fazem desta semana algo de grande intensidade, simplicidade e humildade. 

Da mensagem apresentada no guião para a ‘semana da vida 2020’ da Comissão Episcopal do Laicado e Família – Departamento nacional da pastoral familiar, respigamos alguns aspetos, aos quais acrescentamos algumas outras considerações.

«Reconhecer e aceitar a própria fragilidade e cuidar das fragilidades em que ela se manifesta torna a pessoa mais humana, é condição indispensável de humanização pessoal» - diz-se na abertura daquele guião.

Idêntica atitude se deve ter para com os outros, na medida em que «conhecer e aceitar a fragilidade do outro, suportar, acolher e perdoar as suas consequências e cuidar das fragilidades em que ela se manifesta, ajuda o outro a ser mais humano e humaniza as relações, que se tornam fonte de humanização». Nas indicações da CELF é salientado que esta sensibilidade «é particularmente relevante para a vida das famílias».
Por seu turno, «cuidar dos mais frágeis humaniza-os, humaniza aquele que cuida e humaniza a sociedade.
A qualidade humana de uma sociedade avalia-se na qualidade dos dinamismos de solicitude e estratégias de cuidado dos seus membros mais frágeis
». Efetivamente, considera a CELF que «só é verdadeiramente humana uma sociedade compassiva, capaz de promover a justiça social e os mecanismos da solidariedade que a reequilibrem quando as consequências da fragilidade humana partilhada por todos se abatem sobre alguns».

À luz destas observações, poderemos perguntar: temos aprendido a ser mais humanos porque mais sensíveis às fragilidades pessoais e dos outros? Não teremos andado mais a camuflar, maquilhar ou iludir as nossas fragilidades, desviando as atenções alheias para os nossos disfarces e travessuras quase infantis? Certo pietismo – mesmo religioso com verniz cristão – não enferma de alguma imaturidade, de suficiente negligência e mesmo de razoável mentira? As famílias serão, de facto, escolas de humanismo e cordialidade ou mais antros de maledicência e de chacota dos defeitos alheios?

Aquele bacoco slogan – ‘vai ficar tudo bem’ – é bastante revelador da confusão em que temos andado a viver e em que parece que pretendemos ludibriar os outros…incautos como nós! 

Como orientações para esta 27.ª semana da vida, o Departamento nacional da pastoral familiar sugere, em conexão com a vivência da Igreja católica quanto ao sofrimento, as seguintes diretrizes a cultivar e a propor: «uma saudável espiritualidade do sofrimento; uma nova e transversal pastoral da fragilidade e do cuidado; a promoção das condições para uma competente participação evangélica e evangelizadora nos debates em curso na cultura e na sociedade contemporâneas: o debate antropológico sobre a fragilidade humana, o debate ético sobre a vulnerabilidade e o cuidado, os debates nos ‘fora’ de definição das consequentes opções político-económico-sociais».

Não teremos andado a tentar dourar o sofrimento com pinceladas de autodomínio e salamaleques de religiões orientais? Teremos sabido apresentar Cristo como Aquele que não disfarçou, mas assumiu a sua fragilidade sem medo nem adiamentos? Depois de uma tal ataraxia estoica – com tantas influências nas resignações católicas – conseguiremos ainda dar sentido ao sofrimento/dor cristão? Não faltará à formação espiritual de muitos dos nossos praticantes – mesmo na eucaristia – uma salutar vivência dos sacrifícios, dores e privações tal como os vivenciaram os pastorinhos de Fátima?

De referir que a ‘semana da vida’, celebrada na terceira semana de maio, foi instituída, em Portugal, na sequência do ‘ano internacional da família’, em 1994, dando ainda cumprimento a um desejo expresso pelo Papa João Paulo II no encerramento do sínodo da Europa, em 1991, e corroborado pela encíclica ‘Evangelho da vida’ (n.º 85) de 1995.

Mais do que viver sob o regime de pandemia, em medo e temor, importa viver a vida na sua fragilidade…

   

António Sílvio Couto

domingo, 10 de maio de 2020

Mudanças ou adaptações…com o vírus?


Vimos confirmando a perceção desde a primeira hora: não, não vai ficar tudo bem! Com efeito, este slogan bem depressa deu para perceber que era um bluff senão pessoal ao menos social e até cultural.

Reafirmo ainda que foi de mau gosto e de pior sentido de oportunidade ter associado àquele estribilho o símbolo do ‘arco-íris’, usado como bandeira de interesses (morais, civilizacionais e culturais) menos claros e de motivações (atingidas só por iniciados nesse exoterismo) que beneficiam quem sob a sua coloração se esconde, refugia ou atua…

Bastará ver a longa lista de recomendações que os vários organismos, entidades ou serviços nos apresentam para ‘voltarmos’ ao novo normal: desde as de higienização até ao convívio social, passando pelas áreas ligadas à saúde e mesmo à prática religiosa…  

= Desde logo poderemos colocar certas questões sobre esta temática…em contexto de vírus:

- Vamos viver um tempo de adaptação – como já foi noutras crises mais ou menos recentes – ou isto terá repercussões na mudança de comportamento, de atitude ou de convivência?

- As aprendizagens não deverão ser mais lentas para serem mais consistentes e duradouras?

- Como irão ser corrigidos certos exageros, desde o excesso de cumprimentos sociais – beijocava-se por tudo e por nada! – até a uma espécie de abuso nas refeições extrafamiliares?  

- Não teremos de corrigir alguns dos rituais de convivialidade por sinais que sejam significativos, tanto no conteúdo como na forma?

- Mesmo no sentido económico das questões não teremos de reaprender a enfrentar os problemas – de trabalho, de família, de sindicalismo ou de compromisso politico – com mais inteligência e não de andarmos a adiar com paliativos de circunstância as soluções que tardam em acontecer?

- Não será chegada a hora de querermos mudar de sistema e não de iludirmo-nos em modificar o regime?

- Quem estará disponível para dar o contributo em ensinar a ‘governar a casa’ e não de continuarmos a fornecer coisas, que adiam a solução dos problemas?

 

= Mesmo que de forma sucinta vou centrar a atenção nas orientações emanadas – são 79 e destas 32 referem-se à eucaristia – da Conferência Episcopal em ordem a voltarmos ao ‘novo normal’ da prática religiosa…simbolicamente delineada para a celebração do Pentecostes – 30/31 de maio – onde se inclui também a festa da visitação de Nossa Senhora e data celebrativa da ‘padroeira’ das Misericórdias. Já lemos a simbologia? Vejamos os vários itens só no tocante à celebração da eucaristia (incluímos a numeração das ‘nomas’ da CEP de 8 de maio):

a) antes da missa
- As comunidades cristãs deverão organizar equipas de acolhimento e ordem que auxiliem os fiéis no cumprimento das normas de proteção (5);
- É obrigatório o uso de máscara, a qual só deverá ser retirada no momento da receção da Comunhão eucarística (9);
- O acesso dos fiéis às Missas dominicais, às celebrações da Palavra e a outros atos de culto será limitado no número de participantes, de acordo com a dimensão da igreja (10);
- Deve respeitar-se a distância mínima de segurança entre participantes de modo que cada fiel disponha, só para si, de um espaço mínimo de 4m2 (11);
b) durante a missa
- Os fiéis ocupam os lugares previstos, mantendo as distâncias estabelecidas, sob a supervisão das pessoas a quem a comunidade cristã confia esta tarefa (15)
- Os leitores e cantores desinfetarão as mãos antes e depois de tocarem no ambão ou nos livros (18);
- Os recipientes para recolher a coleta não se passarão no momento do ofertório, mas serão apresentados à saída da igreja pela equipa de ordem e acolhimento, seguindo os critérios de segurança apontados (19);
- O sacerdote desinfetará as mãos antes da apresentação dos dons (21);
- O diálogo individual da Comunhão («Corpo de Cristo». – «Amen.») pronunciar-se-á de forma coletiva depois da resposta «Senhor, eu não sou digno…», distribuindo-se a Eucaristia em silêncio (25);
- Continua a não se ministrar a comunhão na boca e pelo cálice (27);
c) depois da missa
- Após a Missa, proceda-se ao arejamento da igreja durante pelo menos 30 minutos, e os pontos de contacto (vasos sagrados, livros litúrgicos, objetos, bancos, puxadores e maçanetas das portas, instalações sanitárias) devem ser cuidadosamente desinfetados (32). 
  

= Eis algumas questões teológico-pastorais, umas que deveriam ser incrementadas com mais regularidade depois desta circunstância social e outras que não podem subverter a dimensão católica por ocasião destas ‘normas’ higienistas.

* O serviço de acolhimento/ordem deveria ser um investimento em todas as paróquias e não só por mero controlo sanitário. Talvez seja bom não confundir higiene com limpeza, pois a partir desta se poderá ver o estado da cada paróquia…na igreja.

* Não se deverá misturar a desinfeção das mãos do padre com o rito de ablução após a apresentação dos dons… Repare-se na oração que ele diz em silêncio: ‘lavai-me, Senhor, da minha iniquidade e purificai-me do meu pecado’… É algo de espiritual e não de limpeza meramente corporal.

* O recipiente para recolha da coleta/ofertas deveria ser colocado no princípio da missa, à entrada do espaço celebrativo e não no final, pois neste momento parecerá mais ‘pagamento’ do serviço recebido, enquanto se for colocado no início e levado ao altar na hora do ofertório poderá ter outro significado e envolvência de toda a assembleia…e da semana vivida.

* A resposta, no momento da receção da comunhão eucarística, poderá continuar a ser o ‘Ámen’ habitual pessoal e não o genérico, como é apresentado na norma 25… Um gesto de adoração também pode conter essa resposta pessoal.

Estamos a aprender. Seria bom que ficasse algo de novo de toda esta crise: maior fé e vivência comunitária.

 

António Sílvio Couto

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Entre a ‘bolha’ e o preconceito…quanto aos ciganos


Desgraçadamente vivemos num tempo onde se diz que temos liberdade, mas não respeitamos a dita no trato com os outros; onde uns tantos se acham donos da verdade (a sua) e anatematizam a opinião alheia; onde uns tais setores sociais se incluem numa bolha, conjeturando em preconceito contra quem não diz o que eles falam…mesmo sem o assumirem que pensam.

- Uma advertência de princípio: não tenho, nunca tive nem espero ter algum desaguisado com ciganos. Não os obstaculizo nem os patrocino e tão pouco os considero de menor ‘qualidade’ social, cultural ou mesmo económica. Das poucas vezes que lidei com eles tentei tratá-los o mais possível nos direitos e deveres, mesmo que eles não cultivem estes e enfatizem (ostensivamente) aqueles…

- Uma segunda nota de esclarecimento: não aprecio minimamente a esperteza de uma boa parte dos ciganos, quando tentam usufruir de todas regalias possíveis e imaginárias para andarem a enganar o fisco, a segurança social, os serviços de saúde, as entidades autárquicas nem as associações de caridade/solidariedade católicas ou não só.

- Terceira salvaguarda: custa-me ver a ostentação, por vezes, a roçar algum escândalo – o termo deveria ser ‘pornográfico’ – com que certos grupos de ciganos se exibem com ouros e lantejoulas, brincos e relógios, anéis e bijuterias… numa prosápia de ‘novos-ricos’ – onde um tal manipulador da bola se tornou o expoente máximo de um tal ridículo e da inconsequência fiscal – deambulando inter-pars ou sugestionando incautos…bimbos.

- Quarta observação: em maré de crise surgem uns tantos profetas da desgraça que tentam vislumbrar culpados por entre as sombras, mesmo a própria. O extremismo nem sempre é bom conselheiro, criando, na maior parte dos casos, fantasmas, alguns deles míticos e tantos outros dispensáveis.

= Este tema dos ciganos tem algo de complexo, tanto na sua origem, história e desenvolvimento, como no modo como que eles são vistos, entendidos e tratados. Segundo dados, os ciganos são a maior minoria da Europa com cerca de onze milhões de pessoas…e, em Portugal, haverá cerca de trinta e sete mil – 0,5% da população – espalhados por várias regiões do país. Na sua maioria trabalham, embora se possa tratar de um trabalho informal, sem contrato nem salário. Dizem que metade dos ciganos sobrevive com o rendimento social de inserção. Uma boa parte dos ciganos portugueses têm baixo nível de escolaridade (muitos não sabem ler nem escrever ou têm o ensino básico ou primeiro ciclo incompleto) e casam cedo.  

= A ‘bolha’ a que nos referimos no título deste texto tanto vale para os ciganos – na medida em que se consideram alguém à parte com as suas regras, comportamentos e (quase) leis específicas – como para quantos deles se dizem defensores ou detratores, pois se pretendem imiscuir numa questão que é mais do que meramente social, sendo antes do nível cultural. Por isso, criar lutas contra ou a favor não faz diluir o problema antes o acirra e/ou complica.

Pelas caraterísticas apresentadas, o povo cigano precisa de ser respeitado, mas também não pode querer usufruir de benesses para as quais não colaborou, antes só se faz beneficiário e não contribuinte, desde os encargos de segurança até aos proventos do trabalho.

Por outro lado, o preconceito com que muitas vezes os ciganos são julgados podem não ser tão justos quanto seria aceitável, dado que, sentindo-se acossados, têm tendência a fecharem-se e, possivelmente, de forma gregária a atacarem. Não será pela hostilidade que se fará diálogo, mas também não será pela esperteza pouco inteligente, que se criarão pontes, antes surgirão muros, senão físicos ao menos psicológicos… = Não chega (!) dizer mal nem encurralar os ciganos, é preciso fazê-los participar na vida cívica de todo o país, dando-lhes condições para que sejam cidadãos de participação inteira. Não interessa criar blocos (!) de defesa, quando se poderá estar a esconder pessoas sem cultura cívica mínima e suficiente…tanto ao nível pessoal como de grupo. A quem interessa fazer-de-conta que tudo corre bem, quando há problemas com a autoridade, com a justiça, com a vizinhança e mesmo com quem possa contrariar os ciganos. Eles têm de saber estar em sociedade, respeitando e sendo respeitados nos direitos e nos deveres…seus e alheios!    

 

António Sílvio Couto

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Amargura do luto não-feito…ainda


Decorriam os primeiros dias desta sequência ligada ao ‘covid-19’, quando alguém, ligado à área da assistência em saúde, referia: o pior de tudo isto vai ser o que se refere ao luto não-feito, pois muita gente nem vai ter tempo de se despedir dos seus defuntos e tão pouco será possível ter um funeral a condizer, onde o tempo de luto possa ser vivido convenientemente.

De facto, nestes dois meses de confinamento, de estado de emergência ou de calamidade, temos visto certos sinais que denotam algo de preocupante e que trarão, num futuro muito próximo, consequências consideradas imprevisíveis.

Ao jeito de ilustrar aquilo que desejo trazer à colação para aqui refletir, deixo duas situações, por sinal ocorridas em Braga: a morte e sepultamento de um professor universitário e a ocorrência na reabertura do cemitério municipal… um e outro caso podem ser paradigmáticos de toda a envolvência em que nos encontramos, mesmo sem disso nos darmos, totalmente, conta.

Sobre a ‘oportunidade’ do falecimento há cerca de duas semanas do dito padre-professor de matemática talvez tenha sido como que por ele ‘escolhida’, tal a discrição do mesmo e a subtileza em que nem déssemos conta da sua partida. Amigos dele não puderam participar nas exéquias, pois o estado de emergência a isso obrigava. Daquilo que eu dele conhecia – pelo menos há anos atrás – foi como que um esgueirar-se de mansinho sem déssemos por tal…Quantos tantos outros falecidos nestes tempos obrigaram ao afastamento da presença nos derradeiros momentos terrenos! Quantos, mesmo sem terem nada a ver com a doença em curso, foram levados na onda de irem sem despedida humana e psicológica! Quantos foram anonimizados e reduzidos quase ao esquecimento!

Sobre aquilo que aconteceu, por estes dias, no acesso ao cemitério de Braga podemos ver nesse caso algo que revela muito mais do que uma mentalidade ou uma mera coincidência. O congestionamento de pessoas teve a ver muito mais do que uma menos boa (ou exagerada) organização no acesso às entradas. Teve a ver muito para além da confusão de muitas pessoas ao mesmo tempo. Teve a ver com algo mais do que um recuperar o tempo perdido em não poderem honrar os seus falecidos…muitos deles sepultados segundo os condicionamentos deste tempo. Efetivamente a enchente na reabertura do cemitério bracarense revela algo que trará à memória de quantos viveram a não-despedida dos seus falecidos, pois a rutura em relação à morte é algo que tem de ser assimilado no enquadramento psicológico da separação, fazê-lo de forma abrupta custará a ser digerido e, sobretudo, a ser enquadrado no nosso – é de todos e não só dos crentes – processo de luto, de choro e até mesmo de alguma religiosidade. 

= Podemos, agora, colocar algumas questões sobre todo o processo em que temos estado, de uma forma ou de outra, envolvidos, na medida em que esta pandemia viral veio por a nu tantos dos fantasmas e quantos dos mitos que nos envolvem, mesmo sem disso nos apercebermos. Onde está a segurança tão adulada nas nossas questões vitais? Não seremos mais vulneráveis do que aceitamos, de verdade, ser? Como podemos ser afetuosos em tempo de perigo de contágio viral? Como poderemos exprimir de forma simples, serena e sóbria os sentimentos de dor, de amargura e de saudade pela partida dos nossos falecidos? Até onde irá a nossa capacidade de conter as lágrimas ao vermos separarem-se de nós aqueles a quem não conseguimos exprimir o nosso afeto, visual ou táctil, nos derradeiros momentos sob condição terrena? Como nos poderemos cristã e afetivamente ajudar a fazer o luto de entes não-vistos em processo de falecimento? Será que o recurso às memórias fotográficas pode ser melhor aproveitado nesse processo de luto atropelado e, talvez, demasiado rápido? 

= Mesmo que em jeito de sugestão e sem exploração sentimental de nada nem de ninguém talvez devamos, nos momentos de oração comunitária, introduzir um pouco mais a memória daqueles que partiram pelo recurso às fotos e outras recordações, tentando atenuar as agruras da despedida feita ou não-concretizada. Não pretendemos prolongar sem nexo estados de ansiedade menos bem vividos, mas podemos, segundo critérios cristãos saudáveis, ajudar a separação daqueles/as que amávamos e de quem temos memória grata.        

 

António Sílvio Couto

domingo, 3 de maio de 2020

’13 de maio’ como o ‘primeiro’ - (Igreja católica vale menos do que a CGTP?)


À luz daquilo que aconteceu na manifestação do ‘1.º de maio’ da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) poderemos questionar tantas outras iniciativas de caráter público, seja qual for o promotor ou os participantes. Isto é, o modo de disposição no terreno dos presentes poderá ditar que algumas propostas com presença de pessoas possam ter idêntica configuração: colocadas em filas, com distanciamento considerado de segurança – dizem que com dois metros de separação – e com espaço ainda entre as filas…até à ocupação total do terreno.

Perguntado à ministra da saúde se, deste modo, poderão acontecer as celebrações religiosas do dia 13 de maio, em Fátima, ela não descartou a possibilidade, senão na prática, ao menos teórica, dizendo: ‘é uma possibilidade… desde que sejam respeitadas as regras sanitárias’! 

= Efetivamente a manifestação do ‘1.º de maio’ da CGTP, em Lisboa, apresentou um role de atropelos à lei em estado de emergência: pessoas acotoveladas umas às outras, nos passeios e em muitas das imagens televisionadas; pessoas procedentes de fora do concelho lisboeta (viram-se autocarros de várias localidades da ‘margem sul’), quando era proibido sair do concelho de residência; a presença de elementos maiores de setenta anos, quando são considerados, genericamente, em idade de risco; figuras sem máscara a dar ordens ao telemóvel, quando esta já era obrigatória na presença de mais pessoas em volta…

As filas armadas no terreno não são novidade, pois nos desfiles já é costume irem daquele modo, só que os cartazes colocados estrategicamente encobrem mesmo a ausência de pessoas. Ali não era possível disfarçar. Com efeito, um oficial da polícia deixou escapar esta frase: ‘aquilo é uma máquina bem oleada’… Sim, só que desta vez se tornaram mais evidentes as lacunas, noutros anos ofuscadas… 

= Tendo em conta os ardis da CGTP não será oportuno intentar que as celebrações do ‘dia 13 de maio’ possam realizarem-se, este ano, ainda em Fátima? A organização não deveria reconsiderar a sua posição, mesmo que trazendo à liça as razões de exceção aduzidas para a CGTP? Ou será que teremos – como é costume na arte de comunicação da governança – dentro de dias uma portaria a condicionar o decreto-lei que rege o ‘estado de calamidade’? Não terá chegado a hora de nos (os católicos, cidadãos, eleitores e contribuintes) colocarmos mais em confronto do que estarmos tão submissos ao poder, que, afinal, sabe proteger quem o vota, o elege e o suporta? Teremos ainda cristãos que não se atemorizam e defendem a sua fé, mesmo que pareçam menos cordatos do que os responsáveis episcopais? Até onde irá a nossa falsa resignação, acomodação ou cobardia, quando era preciso ser destemido, audaz e lutador? Não foi, por sinal Fátima quem desmentiu o político que prognosticou o fim da fé no espaço de duas gerações em Portugal? Se fosse hoje – e os indícios estão à vista – a ‘profecia’ não seria facilmente cumprida, tal o amorfismo generalizado em que vivemos….a começar pelas cabeças? A máquina católica – dioceses, paróquias, movimentos, associações, fiéis (bispos, padres, religiosos/as e leigos) – não terá capacidade de se mobilizar ainda para as celebrações do ‘dia 13’? Mesmo que os ‘peregrinos a pé’ tenham sido desmotivados, não há muitos outros recursos que poderiam dar uma resposta superior à máquina sindicalista? 

= Não há qualquer interesse em colocar-nos em confronto ou de entrarmos em comparações, mas não podemos permitir que sejamos tratados como cidadãos de segunda ou de terceira perante as regalias de uns tantos bem-pensantes, maldizentes ou provocadores. Como cristãos/católicos somos e devemos ser cidadãos que se regem pelas leis do estado, mas não podemos permitir que este seja o primeiro a criar estratos sociais, que foram abolidos e nunca deveriam ter existido. Confesso: não gosto de ser privilegiado por ser cristão (católico ou padre), mas também não aceito ser depreciado ou discriminado por sê-lo…

Basta de conluios entre a ‘espada e o altar’, onde este parece mais servir aquele do que em ser parceiro com igualdade de direitos, de obrigações e respeitando-se, mutuamente, nas suas funções. Foi assim que calaram tantas vozes proféticas, não pelo combate, mas pela adulação!    

 

António Sílvio Couto