Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



terça-feira, 24 de setembro de 2013

Saber queixar-se… à portuguesa


Faz quase parte da nossa psicologia de portugueses uma certa ‘arte’ de queixume. Nas ruas e nos espaços privados escutamos tantas vezes pessoas que desfiam as suas lamúrias… fazendo-o de forma sincera ou com a arte de cativar a atenção alheia, criando um certo ambiente dalguma negatividade, seja na componente social, seja na perspetiva familiar, tanto quando as coisas correm em registo escuro, como nas ocasiões em que se está (ou pode estar) mais aliviado… Culturalmente os portugueses vivem mais ao sabor da melancolia – veja-se a vivência estrutural do fado… como expressão cultural e musical – do que das energias positivas, que o sol lhe deveria comunicar…

- Há, no entanto, uma atitude que nem sempre colhe no relacionamento com os outros: se alguém não se queixar não consegue atrair a atenção dos outros e poderá, mesmo que de forma inconsciente, funcionar como alguém que se pretenda colocar num patamar de superioridade que, em maré menos benéfica, reverterá contra essa espécie de sobranceria.

- Normalmente a atitude de vítima ou de vitimização – seja como ‘coitadinho’, seja nas garras dalguma pobreza explorada – conquista mais adeptos do que quem joga na equipa da sinceridade. Estes podem tentar disfarçar mas sobrevivem, enquanto aqueles flutuam mesmo que à custa de mentiras e de dislates… conjunturais ou estruturais.

- Se alguém ousar não dizer ou desfiar as suas ‘desgraças’ poderá ser (pretensamente) entendido como um tanto presunçoso, seja porque se considera acima dos outros, seja porque não se ‘irmana’ na miséria, pois esses têm uma posição que pode atrair a atenção e – tal como se diz nos adágios populares – ‘quem não chora não mama’!... Só nesta vivência poderemos entender que somos um povo propenso a viver mais no desgraçadismo do que na correta visão do que somos sem mazelas nem rótulos!

= Para uma visão cristã do cuidado… dos outros

Enquanto cristãos vemos os outros como irmãos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nos bons como nos maus momentos… descobrindo e expondo-nos uns aos outros – sempre numa correta visão do pudor e do respeito – tanto na presença em família como nos círculos de amizade, numa intercomunhão que sabe (e procura saber) mais o que nos edifica do que aquilo que nos pode escandalizar.

Nesta época do virtual há quem se esconda por trás de imagens de facebook, de considerações de ‘gosto’ (‘like’) ou ‘não gosto’… numa espécie de exibição da privacidade onde o buraco da fechadura foi substituído pelo clique do computador ou a manipulação do que se quer mostrar… às vezes sem tino nem senso!

- Ora, na componente mais básica de uma visão cristão de nós mesmos e dos outros precisamos de viver na verdade, sobretudo para com aqueles que connosco caminham, dando-nos a conhecer sem vitimizações nem disfarces. Se não permitimos ser amados – mesmo nas nossas fragilidades e fragilizações – como poderemos criar confiança para amar? Se não nos damos a conhecer na verdade como poderemos aceitar que nos amem sem medos nem preconceitos?

- Na recorrente do pensamento do Papa Francisco recordamos essa nota de cuidarmos dos outros e de nos deixarmos cuidar… pois só desta forma viveremos a partilha não dos aspetos negativos ou até negativizados, mas das marcas de simplicidade da nossa história e nas estórias dos outros que Deus coloca no nosso caminho… Com mais simplicidade de vida poderíamos ser mais felizes e criaríamos outros círculos de felicidade à nossa volta!

- Pelo que vamos conhecendo de nós mesmos – tanto das fragilidades como das boas prestações – e dos outros com quem vivemos, torna-se urgente gerar uma arte de benevolência, de compaixão e de pacificação, provindas do nosso interior espiritual – particularmente cristão – pacificado, seja pelo perdão dado e recebido, seja pela comunhão em Cristo e com Cristo uns para com os outros.

Afinal, a vida não se resume àquelas vertentes da «salve rainha»: ‘gemendo e chorando neste vale de lágrimas’. Que as há, há… mas não são tudo nem sequer o mais importante!   
 

António Sílvio Couto
(asilviocouto@gmail.com

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Escândalo dos alimentos desperdiçados


Segundo dados da FAO (organização para a alimentação e agricultura), um terço dos alimentos produzidos em todo o mundo é desperdiçado. Este desperdício corresponde a 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos e tem um custo global de 570 mil milhões de euros… o equivalente ao produto interno bruto da Suíça. Por seu turno, no mundo 870 milhões de pessoas passam fome todos os dias…

Em tempos recentes assistimos a um episódio global que pode ser bem elucidativo da falta de vontade em resolver o problema da fome no mundo: quando as entidades bancárias entraram numa espécie de colapso, logo os mais diversos governos – sobretudo os mais poderosos – injetaram dinheiro para salvaguardar aquelas fontes de prosperidade… Ao tempo foi dito que os fundos disponibilizados correspondiam à verba necessária e suficiente para acabar com a fome no mundo! De algum modo poderemos interrogar-nos sobre se haverá interesse fundado e capaz para deixarmos de assistir à tragédia de tanta gente que morre de fome! Será que o tema da fome condiciona as respostas sem prejuízo dos métodos usados no seu prolongamento? 

Porque acreditamos que a fome – esse flagelo desumano tanto ou mais mortífero do que a guerra – pode ser evitada, se houver novas atitudes dos humanos uns para com os outros, ousamos sugerir pequenas propostas para a combatermos de forma ativa, consciente e consequente: 

- Saber alimentar-se pode ser, desde logo, uma forma de comunhão com quem não tem o necessário para sobreviver, passando fome ou vivendo em subnutrição. Neste aspeto de saber alimentar-se se inserem os cuidados para com a obesidade e ainda o não comer por excesso ou por defeito o que pode fazer mal ao equilíbrio somático-psíquico-espiritual. Quantas vezes é o corpo que paga as debilidades desequilibradas do nosso inconsciente! Se fossemos mais equilibrados naquilo que comemos outros poderiam ter o suficiente para viverem!

- Educar o desperdício logo desde o prato em que comemos, sabendo ser moderado nos apetites, desde os mais simples até aos mais condimentados, tanto no uso do sal como de outros aperitivos… até às compras que fazemos, pois, senão estivermos atentos aos prazos e às quantidades dos artigos de alimentação bem depressa estarão fora de validade e irão escusadamente para o lixo. Por vezes as promoções das grandes superfícies são meras artimanhas que seduzem, mas que nos levam a estragar a curto e a médio prazos…  

- Cultivar a caridade com gestos que ultrapassem a mera conjuntura – repare-se nas campanhas do ‘Banco alimentar contra a fome’ ou alguma outra iniciativa local, nacional ou esporádica – mas que tenham o cuidado dos outros como tarefa de sensibilidade cultural… Há um esforço pedagógico que deve ser semeado logo nas crianças, fomentado na idade da adolescência/juventude e cimentado em projetos de compromisso com os outros na idade adulta, sem nunca tratarmos os outros como (meros) necessitados, mas como participantes na sua dignificação… atual e futuramente. Não fosse o tecido capilar de tantas instituições – muitas delas ligadas à Igreja católica – e o fenómeno da fome seria, neste momento, em Portugal, um drama de consequências quase incomportáveis! A caridade também é uma forma de viver a justiça e a solidariedade na vida prática.   

= Desafios políticos da fome

Mais do que um problema social, a fome é um problema político, que uns tantos usam para manipular os outros, tornando-os seus lacaios e servidores, pois pela boca os fazem escravos. Até quando teremos fazedores da política a ralharem com a barriga cheia, enquanto os seus votantes se entretêm com migalhas que lhe são lançadas da mesa opulenta da avareza, da vaidade e da cobiça?

Mais do que nunca o slogan: ‘pão e jogos’ está hoje em vigor, pois se há pão, os jogos servem de disfarce para a incompetência de tantos e se há jogos, o pão pode servir de arma para conquistar novos apaniguados… até que descubram o logro em que foram induzidos.

 
António Sílvio Couto (asilviocouto@gmail.com)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Arte de praticar a democracia

Um autarca não candidato às próximas eleições, numa espécie de balanço dos mandatos exercidos, referiu recentemente: «é fácil dizer-se democrata mas praticar a democracia é uma arte e nem sempre os políticos têm essa arte».

Atendendo ao que pode estar subjacente a esta a afirmação e dadas as lutas em vista das eleições autárquicas do final deste mês, poderemos tecer alguns comentários, tendo em conta a necessidade de que os eleitos sejam os melhores e não (meramente) os menos maus.

= Conceito de ‘democrata’… partidário ou servidor?

Tempos houve, em Portugal, em que o conceito de ‘democrata’ se tornou um adjetivo de rótulo para distinguir algumas fações político-sociais, dependendo de quem usava tal epíteto. Aliás, ‘democrata’ era uma espécie de preconceito – normalmente de uma certa esquerda – de quem discordava do regime anterior ao 25A74. Parece que ainda hoje subsiste esta pretensão, nalgumas mentes, de que quem não é dos meus é dos outros… por isso, não ‘democrata’!

Em certos sectores da nossa vida sindical e empresarial ainda há quem viva (ou talvez sobreviva) à custa de ideias ‘democratas’, desde que digam e façam o que dá mais gosto a quem contesta. Veja-se o que se passa com o Tribunal Constitucional, onde uns tantos – na sua maioria devedores das famílias ideológicas/partidárias – servem uma certa democracia de quem se revê nuns tantos conceitos de há quarenta anos e não evoluiu para um mundo onde já não há ‘muros de Berlim’ nem barreiras semelhantes e tão pouco blocos sociais que se constroem à sombra da guerra fria… entre leste e oeste.  

Temos ainda um razoável caminho a fazer na aceitação das ideias dos outros, pois nem sempre temos a absoluta certeza da (nossa) verdade, mas antes aprendemos a fazê-la com pequenos gestos, dando aos outros também sinais de aceitação e de respeito pelas suas ideias…

Ser democrata não é viver na artimanha de rotular os outros nem de os enganar com ataques mais ou menos subtis, mas antes em saber crescer na diversidade dos outros… respeitando-os e sendo respeitado!

= Democracia: o menos mau dos regimes?

Há quem atribuía a Winston Churchill a frase de que ‘a democracia é o menos mau dos regimes políticos’.

Respigamos de um almanaque uma descrição de três figuras políticas dum passado recente e deixamos ao critério de quem nos leia o juízo.

Figura 1: Sabe-se que esteve associado a políticos corruptos, que consultava regularmente astrólogos, teve duas amantes, fumava que nem uma chaminé e bebia cerca de dez martinis por dia.

Figura 2: Foi despedido de dois empregos, costumava dormir até ao meio dia, fumou ópio na universidade e bebia um quarto de garrafa de whisky todas as noites.

Figura 3: foi um herói de guerra, teve várias condecorações, era vegetariano e não fumava, bebia ocasionalmente uma cerveja e nunca teve relações extraconjugais.

Quem serão estas figuras… do passado? Que têm em comum?

Figura um – Winston Churchill, primeiro-ministro inglês duas vezes, orador, estadista, escritor, artista, oficial do exército e responsável pela recuperação da Inglaterra após a segunda guerra mundial.

Figura dois – Franklim Roosevelt, presidente dos EUA entre 1933 e 1945.

Figura três – Adolfo Hitler, chefe da Alemanha na segunda guerra mundial e responsável pela morte, em extermínio, de milhões de polacos, judeus, ciganos, deficientes… em campos de concentração nazis.

Agora que somos chamados a escolher que saibamos exercer a arte da democracia, praticando-a em pequenos gestos, que podem trazermos bons ou maus resultados a curto e a médio prazo. Temos de nos pronunciar, pois se o não fizermos poderão surgir pequenos ditadores… e amanhã já pode ser tarde. Porque ainda podemos escolher não deixemos a outros o que é da nossa total responsabilidade, agora!

 

António Sílvio Couto

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Cuidar e deixar-se cuidar


«Cuidar, guardar requer bondade, requer ser praticado com ternura (...) Ternura não é a virtude dos fracos, antes denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude, de compaixão, de verdadeira abertura ao outro, de amor. Não devemos ter medo da bondade, da ternura».

Estas palavras foram proferidas pelo Papa Francisco na missa inaugural do seu pontificado, no dia 19 de março passado, na Basílica de São Pedro do Vaticano, na cidade de Roma.

Sem pretendermos reduzir o ministério do nosso Papa a uma frase ou tão pouco a uma palavra, poderemos considerar (até agora) que a expressão ‘cuidar’ – tanto de si mesmo, como dos outros e até da natureza – pode ser uma chave de leitura do Papa Francisco nas mais diferentes vertentes e funções dele e nossas.

Atendendo ainda a uma certa ‘cultura do descarte’ – a expressão é também do Papa Francisco – podemos e devemos reflectir sobre o conceito de ‘cuidar’ seja na dimensão activa, seja na relação (dita) passiva.

Na leitura sobre a ‘cultura do descarte’ – onde se pode ver que o descartável (isto é, o usa e deita fora) é algo com que somos diariamente seduzidos – o Papa refere: «esta cultura do descarte tornou-nos insensíveis aos desperdícios e aos restos alimentares», sendo como que «uma mentalidade comum, que nos contagia»...

Vejamos, então, tonalidades do cuidar e do deixar-se cuidar:

= Cuidar de nós mesmos, isto é, vigiar sobre os nossos sentimentos e sobre o nosso coração. Isto parece ser um tanto diferente da cultura, entretanto bem organizada, da auto-estima, pois esta faz-nos voltar sobre nós mesmos, enquanto o cuidar de nós mesmos nos faz reconhecer a nossa fragilidade – quantas vezes mais viva com o passar dos anos! – e a dimensão de abertura ao reconhecimento de que precisamos uns dos outros... nas pequenas como nas grandes coisas, nos momentos importantes como nos de banalidade.

O cuidar de nós mesmos repercute-se desde a atenção à saúde física e psicológica até à dimensão espiritual pessoal e comunitária. Com dizia alguém: a higiene pessoal é respeito pelos outros, pois do bom convívio connosco mesmos se criará um bom ambiente social e humano. 

= Cuidar dos outros é essoutra vertente que exige atenção e descentramento do nosso egoísmo, dando aos outros o tempo e o espaço de que precisam... muito para além daquilo que nós lhes queremos dar.

Numa intervenção simples e breve o Papa Francisco disse, na noite que precedeu o início do seu pontificado aos diocesanos argentinos reunidos em oração: «vivam o desejo de cuidar uns dos outros». Com efeito, aqui pode estar contido um programa de vida: desejar que os outros – em família, na sociedade, nas relações profissionais, na Igreja ou mesmo na cultura – sejam cuidados com atenção a eles/elas e não a nós que cuidamos deles/delas...

Que dizer de alguém que não recebeu, na devida conta e hora, gestos, palavras e sinais de carinho. Poderá essa pessoa cuidar e deixar-se cuidar sem medo nem preconceitos?

Que dizer ainda de alguém que foi educado mais na repressão do que no incentivo das coisas positivas. Poderá essa pessoa não ser desconfiada quando lhe dão mais atenção do que a menor valoriozação de si e das suas qualidades? 

= Vivemos num mundo – interior e exterior – onde nem sempre cuidamos de nós mesmos e tão pouco uns dos outros. Por isso, a linguagem e os sinais com que o Papa Francisco nos têm desafiado apresentam algo que tem tanto de simples como de surpreendente... embora sintamos que é disso que precisamos: humanizar as nossas relações culturais com o essencial sem disfarces nem exoterismos.

Sem moralismos nem odores de sacristia, tentemos cativar os outros sem os prendermos a nós e façamos deste cuidado mútuo um programa de vida cristã... a começar pelos que nos são mais próximos! Nós merecemos e eles/elas também!

 

António Sílvio Couto