Partilha de perspectivas... tanto quanto atualizadas.



quinta-feira, 17 de março de 2022

Um saramago na campa do zeca...

 


Mais do que algo irónico, este ‘episódio’ resulta de uma visita esporádica a um cemitério – no final deste texto diremos qual (*) – onde pude constatar o estado de abandono de tantos lugares de repouso dos restos mortais lá colocados. Embora seja um espaço primigénio de sepultamento de uma cidade média no nosso país, por ali se podem já verificar as conquistas de uma etnia que vai adquirindo os jazigos abandonados, dando-lhes o seu toque de aparente modernidade, embora sem gosto nem enquadramento adequado...

 1. Com a vaga de mortes da recente pandemia – onde tantas vezes faltou o tempo de luto necessário – vemos que o tema da morte saiu de um certo armário (quase) ideológico: embora deixado à distância, o assunto surgiu de roupante na vida de tantas pessoas, umas tentando fugir-lhe, outras como que varrendo-o para debaixo do tapete de uma certa existência fútil e outros ainda querendo resolver o caso foram incinerando os restos para não mais voltar a enfrentar-se com fantasmas e medos.

 2. Várias questões me têm assaltado, neste últimos anos: por que não conseguiu esta pandemia atrair as pessoas a Deus, pelo contrário mais pareceram exorcizá-lo das suas vidas? O confinamento social não foi mais uma desculpa do que um modo de enfrentar o problema? As agruras para debelar o vírus não trouxeram outros vírus bem mais mortíferos e insanáveis? O enquistamento de tantas mentalidades não será resultado de más opções, mesmo religiosas, nas diversas fases de fechamento de uns aos outros? Os cuidados higiene-sanitários não conspurcaram muitas cabeças, que agora vemos mais vazias e ocas?

 3. Confesso, na minha possível tacanhez inteletual, que me custa entender as reações dos nossos contemporâneos às questões de morte, seja antes dela se verificar, seja nas manifestações a ela referidas: dá a impressão que muita gente não se considera na possibilidade certa – a única que temos em toda a vida – de virem a morrer, isto é, vivem como se isso seja coisa para outros, mas não consigo mesmas. Já lá vai o tempo em que as pessoas viviam em função da morte, cuidando de terem medos para o funeral, guardando um-pé-de-meia para esse derradeiro momento. Quantas vezes as pessoas deixavam modos e meios de sufrágio para depois de falecerem. Quem podia até doava os seus bens (ou parte deles) para as obras da Igreja... daí termos tantos templos e espaços de fé com dignidade e dignificação.

 4. Nesta sociedade, que trata tão atenciosamente o corpo (na sua dimensão material), como que podemos perceber a desvalorização da dimensão espiritual e religiosa. É confrangedor que vejamos tantas pessoas a desperdiçarem a força psicológica que contêm, menosprezando o que há de mais forte na dedicação aos valores espirituais: ver rastejar quem devia erguer-se, torna-se impressionante no descalabro e, sobretudo, na perda de experiência de quanto é mais belo e forte do que as meras sensações pouco-mais-do-que-animalescas.

 5. Urge, por isso, que não vivamos só nesta onda de horizontalismo – esse estar só na horizontal, sem capacidade de se elevar nem de ser elevado – com que tantos cidadãos gastam o seu tempo. Não podemos continuar a cuidar só do corpo, tornando-o um tanto saudável, mas depreciando as coisas da alma, pois sem esta nada seremos nem vida teremos. Do tempo em que se descurava o corpo e se enfatizava a alma, caímos no oposto, apresentando as pessoas saudáveis biologicamente, mas vazias de valores, de princípios ético/morais e ao sabor de um epicurismo demasiado materialista... É preciso equilíbrio tanto na vida como na morte! Os saramagos na campa florescem como mensagem nova!

 (*) A campa era do zeca afonso, no cemitério da Piedade, em Setúbal, onde está sepultado o cantautor revolucionário, mas de cuja tumba retiram os adereços – percebe-se pelo espaço vazio na lápide – ideológicos a que o quiseram aferrar...indevidamente!

 

António Silvio Couto

Sem comentários:

Enviar um comentário