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domingo, 13 de março de 2022

Quaresma 2022 - figuras da Paixão

 

3. Pilatos: executor político


Pilatos é uma figura com reconhecimento histórico – presente nas palavras que rezamos no Credo niceno-constantinopolitano: Jesus ‘padeceu sob Pôncio Pilatos’ – como que nos reporta a uma autoridade que tem poder, mas este nem sempre lhe confere autoridade! Pilatos, de alguma forma, simboliza os autoritários de todos os tempos, inclusive os dos nossos dias.
«28 De Caifás, levaram Jesus à sede do governador romano. Era de manhã cedo e eles não entraram no edifício para não se contaminarem e poderem celebrar a Páscoa. 29 Pilatos veio ter com eles cá fora e perguntou-lhes: «Que acusações apresentais contra este homem?» 30 Responderam-lhe: «Se Ele não fosse um malfeitor, não to entregaríamos.» 31 Retorquiu-lhes Pilatos: «Tomai-o vós e julgai-o segundo a vossa Lei.» «Não nos é permitido dar a morte a ninguém», disseram-lhe os judeus, 32 em cumprimento do que Jesus tinha dito, quando explicou de que espécie de morte havia de morrer.
33 Pilatos entrou de novo no edifício da sede, chamou Jesus e perguntou-lhe: «Tu és rei dos judeus?» 34 Respondeu-lhe Jesus: «Tu perguntas isso por ti mesmo, ou porque outros to disseram de mim?» 35 Pilatos replicou: «Serei eu, porventura, judeu? A tua gente e os sumos-sacerdotes é que te entregaram a mim! Que fizeste?» 36 Jesus respondeu: «A minha realeza não é deste mundo; se a minha realeza fosse deste mundo, os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às autoridades judaicas; portanto, o meu reino não é de cá.» 37 Disse-lhe Pilatos: «Logo, Tu és rei!» Respondeu-lhe Jesus: «É como dizes: Eu sou rei! Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz.» 38 Pilatos replicou-lhe: «Que é a verdade?»
19 1 Então, Pilatos mandou levar Jesus e flagelá-lo. 2 Depois, os soldados entrelaçaram uma coroa de espinhos, cravaram-lha na cabeça e cobriram-no com um manto de púrpura; 3 e, aproximando-se dele, diziam-lhe: «Salve! Ó Rei dos judeus!» E davam-lhe bofetadas.
4 Pilatos saiu de novo e disse-lhes: «Vou trazê-lo cá fora para saberdes que eu não vejo nele nenhuma causa de condenação.» 5 Então, saiu Jesus com a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Disse-lhes Pilatos: «Eis o Homem!» 6 Assim que viram Jesus, os sumos-sacerdotes e os seus servidores gritaram: «Crucifica-o! Crucifica-o!» Disse-lhes Pilatos: «Levai-o vós e crucificai-o. Eu não descubro nele nenhum crime.» 7 Os judeus replicaram-lhe: «Nós temos uma Lei e, segundo essa Lei, deve morrer, porque disse ser Filho de Deus.»
8 Quando Pilatos ouviu estas palavras, mais assustado ficou. 9 Voltou a entrar no edifício da sede e perguntou a Jesus: «Donde és Tu?» Mas Jesus não lhe deu resposta. 10 Pilatos disse-lhe, então: «Não me dizes nada? Não sabes que tenho o poder de te libertar e o poder de te crucificar?» 11 Respondeu-lhe Jesus: «Não terias nenhum poder sobre mim, se não te fosse dado do Alto. Por isso, quem me entregou a ti tem maior pecado.»
12 A partir daí, Pilatos procurava libertá-lo, mas os judeus clamavam: «Se libertas este homem, não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei declara-se contra César.»
13 Ouvindo estas palavras, Pilatos trouxe Jesus para fora e fê-lo sentar numa tribuna, no lugar chamado Lajedo, ou Gabatá em hebraico. 14 Era o dia da Preparação da Páscoa, por volta do meio-dia. Disse, então, aos judeus: «Aqui está o vosso Rei!» 15 E eles bradaram: «Fora! Fora! Crucifica-o!» Disse-lhes Pilatos: «Então, hei de crucificar o vosso Rei?» Replicaram os sumos-sacerdotes: «Não temos outro rei, senão César.» 16 Então, entregou-o para ser crucificado. E eles tomaram conta de Jesus» (Jo 18,28-38 // Mt 27,1-2.11-26; Mc 15,1-15; Lc 23,1-7.13-25; Jo 19,1-16 // Mt 27,27-31; Mc 15,16-20).

O evangelho de São João dá grande importância e destaque ao processo de Jesus perante Pilatos (1). Nota-se, no desenrolar da narrativa, um grande contraste dos intervenientes: serenidade e segurança de Jesus, enquanto os seus ‘inimigos’ manifestam agitação e ansiedade… e onde Pilatos flutua ao sabor das suas inconstâncias pessoais e de poder.
Numa leitura dinâmica vemos que esta etapa do processo de Jesus decorre em sete cenas, no exterior e no interior da ‘sede do governador’ Pilatos. Eis os momentos:
- ‘Pilatos veio ter com eles cá fora’ (v. 29) - dá-se o diálogo inicial e de acusação-entrega de Jesus ao braço político do acontecimento, numa espécie de mistura entre o sagrado e o profano;

-’Pilatos entrou de novo no edifício da sede’ (v. 33) - verifica-se o primeiro diálogo entre Pilatos e Jesus, tendo por base a questão da realeza de Jesus, desfazendo-se a impressão de que era um poder temporal até se compreender que essa ‘realeza’ é do foro espiritual e terminando com a questão de Pilatos sobre ‘o que é a verdade? (v. 38 a);

- Pilatos ‘foi ter de novo com os judeus’ (v. 38 b) - baralhado com a conversa tida com Jesus, onde nada daquilo que suspeitava - o perigo ao seu poder - Pilatos confronta-se com os judeus - já não só os chefes e introduz um novo item: quem desejam que seja, este ano, libertado: o ‘rei dos judeus’ (sem qualquer crime) e um tal Barrabás (um salteador), que foi trazido de repente à colação? A escolha está inquinada e a turba manipulada... (2). Pilatos percebe que as autoridades do templo e a multidão têm critérios diferentes dos seus e, numa espécie de populismo barato, deixa-se ir pelo que deseja a maioria, mesmo que fosse injusta.

- ‘Pilatos mandou levar Jesus e flagelá-lo’ (19, 1) - numa espécie de intervalo - passamos para o capítulo 19 - e, num contexto interior, é referida a técnica romana da flagelação (3), que mudará em maior agressividade para com Jesus

- ‘Pilatos saiu de novo’ (v. 4) - Pilatos apresenta Jesus: ‘eis o homem’ (v. 5), flagelado, coroado de espinhos e, por troça, revestido com um manto de púrpura. Pensando que arrefecia os ânimos com aquela figuração, Pilatos recebeu, da parte dos sumos-sacerdotes e dos seus sequazes, um grito de condenação ainda mais atroz, a crucifixão... Parece que tudo muda em desfavor de Jesus, pois é introduzido um novo elemento: a lei divina - ‘Nós temos uma Lei e, segundo essa Lei, deve morrer, porque disse ser Filho de Deus» (v. 7). Não era, afinal, essa a razão - o de se ter feito ‘filho de Deus’ - do julgamento já produzido pelos chefes religiosos? Ao introduzir isto no braço político vemos que se unem todas as forças contra Jesus...

- Pilatos ‘voltou a entrar no edifício da sede’ (v. 9) - o poder de Pilatos parece estar em risco, pois, pode ter diante de si um ‘ser divino’. O diálogo, que antes fora cordial e de alguma ascendência sobre Jesus, passa, agora, a ser de medo - ‘ficou assustado’ (v. 8). Mais uma vez Jesus desfaz os mitos que povoavam Pilatos, o seu poder é de outra natureza, que não interfere nos seus pequenos poderes terrenos...

- ‘Pilatos trouxe Jesus para fora e fê-lo sentar numa tribuna’ (v. 13) (4) - chegamos ao momento derradeiro do julgamento - político, instrumentalizado pelo religioso, que, por seu turno manipulou as multidões - feito por Pilatos. A perícope relativa a Pilatos começa com a referência à celebração da Páscoa (18,23) e termina com a alusão ao ‘dia da preparação da Páscoa’ (v. 19,14) - de manhã cedo até por volta do meio-dia (ou hora sexta)... Condenado à crucifixão, Jesus toma a cruz...«às costas» (v. 17). São João é o único dos evangelistas que faz referência ao levar a cruz às costas...

O evangelista São Mateus regista ainda dois outros aspetos sobre Pilatos: a advertência do sonho da mulher (cf. Mt 27, 11-19) e o gesto de lavar as mãos, em sinal de não-compromisso com a decisão de condenarem Jesus (cf. Mt 27, 24-25). Este último gesto referido em relação a Pilatos – o lavar-das-mãos – tem sido usado, na cultura popular, ainda insuflada por alguns critérios e imagens cristãs, para significar ou exemplificar a cobardia e o não-tomar decisões difíceis, numa linha de incoerência e de fuga ao compromisso em Jesus e com Jesus… Não haverá tantos que usam esta mesma técnica, numa fuga para o lado? Pior do que não tomar posição, é fazer-de-conta que se é anódino, neutro ou de um diálogo sem resposta…

«O facto é que a realeza de Jesus é bastante diferente daquela mundana. «O meu reino – diz a Pilatos – não é deste mundo» (Jo 18, 36). Ele não vem para dominar, mas para servir. Não chega com sinais de poder, mas com o poder dos sinais. Não está vestido com insígnias preciosas, mas está nu na cruz. E é precisamente na inscrição colocada na cruz que Jesus é definido “rei” (cf. Jo 19, 19). A sua realeza está deveras além dos parâmetros humanos! Poderíamos dizer que ele não é rei como os outros, mas é Rei para os outros. Pensemos nisto: Cristo, diante de Pilatos, diz que é rei no momento em que a multidão está contra Ele, ao passo que quando o seguia e o aclamava, ele distanciou-se daquela aclamação. Por outras palavras, Jesus mostra-se soberanamente livre do desejo de fama e glória terrena. E nós – perguntemo-nos – sabemos imitá-lo nisto? Sabemos governar a nossa tendência a sermos continuamente procurados e aprovados, ou fazemos tudo para sermos estimados pelos outros? No que fazemos, particularmente no nosso compromisso cristão, pergunto-me: o que conta? Contam os aplausos ou conta o serviço?» (5).



1. Pilatos aparece-nos referido por Flávio Josefo (37-100 d.C.) e Tácito (56-117 d.C.), escritores/historiadores, respetivamente, judeu e romano, e de forma pouco abonatória sobre a sua ação, nalguns casos, ofensiva para com os sentimentos religiosos dos judeus. Os evangelhos referem-no sobretudo como juiz do processo de Jesus. Vide Dicionário enciclopédico da Bíblia, col 1190-1191.
2. Cf. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, pp. 72-73.
3. A flagelação era uma das penas mais duras previstas no Direito romano, jamais aplicável a um cidadão romano. Os golpes, sem conta prevista, eram desferidos nas costas nuas da vítima atada a uma coluna, com chicotes de tiras de couro munidas de peças de metal ou osso nas extremidades, uma tortura suficiente para causar a morte. Em Mt e Mc, a flagelação aparece depois da sentença de condenação, como habitualmente sucedia, para debilitar as forças dos condenados à cruz (Mt 27, 26; Mc 15,15); em Lc, é anunciada como um castigo prévio (Lc 23,16); em João, que parece reproduzir com mais rigor o que se passou na realidade, tem o carácter de mais um expediente para evitar a sentença de morte contra um inocente: um rei tão abatido e esfacelado não constituía perigo para ninguém. Vide nota a Jo 19, 1-7 na Bíblia Sagrada (dos capuchinhos).
4. O texto permite outra tradução: “Pilatos...sentou-se”; mas a cena passa-se no exterior do tribunal e não há sentença. Esta ambiguidade parece intencional, para exprimir que o prefeito romano só na aparência é que é juiz; ele apenas entroniza Jesus, aquele que faz o julgamento decisivo (12,31). Esta entronização de Jesus poderia visar pôr a ridículo as autoridades judaicas (v.14.19-22), ao jeito de Pôncio Pilatos. Vide nota a Jo 19, 13, na Bíblia Sagrada (dos capuchinhos).
5. Cf. Papa Francisco, ‘Angelus’, 21 de novembro de 2021

António Sílvio Couto

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