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sábado, 19 de março de 2022

Quaresma 2022 - figuras da Paixão

 4. Criada provocadora: para além das negações de Pedro


Temos de saber responder às provocações...nem sempre inócuas ou inocentes, mas antes servidas com subtileza nem tão ‘santa’ quanto poderíamos considerar. Pedro será sujeito a essas provocações: de um soldado, de um servo do sumo-sacerdote e de uma criada/porteira…naquilo que são consideradas as ‘negações de Pedro’. Enquanto Jesus declarava a sua identidade de Messias de Deus, perante o sinédrio, Pedro, paredes-meias, negava-o, não O reconhecendo diante daqueles que o interrogavam…
Fixamos a nossa atenção na criada provocadora… e naquilo que tal atitude pode significar.
«66 Estando Pedro em baixo, no pátio, chegou uma das criadas do Sumo-Sacerdote 67 e, vendo Pedro a aquecer-se, fixou nele o olhar e disse-lhe: «Tu também estavas com Jesus, o Nazareno.» 68 Mas ele negou, dizendo: «Não sei nem entendo o que dizes.» Depois, saiu para o átrio e um galo cantou. 69 A criada, vendo-o de novo, começou a dizer aos que ali estavam: «Este é um deles.» 70 Mas ele negou outra vez. Pouco depois, os presentes disseram de novo a Pedro: «Com certeza que és um deles, pois também és galileu.» 71 Ele começou, então, a dizer imprecações e a jurar: «Não conheço esse homem de quem falais!» 72 E logo cantou o galo pela segunda vez. Pedro recordou-se, então, das palavras de Jesus: «Antes de o galo cantar duas vezes, tu me terás negado três vezes.» E desatou a chorar» (Mc 14, 66-72 // Mt 26, 69-75; Lc 22, 54-62; Jo 18, 15-18.25-27).
Neste contexto da paixão vamos abordar mais do que as negações de Pedro, quem o provoca para que tal aconteça. As negações de Pedro continuam a ser um mistério idêntico ao da traição de Judas Iscariotes: como que dois discípulos, que viveram no círculo de intimidade com Jesus, se tornam ’exemplos’ a não-seguir? Se bem que a diferença entre Pedro e Judas seja o arrependimento, ambos atraiçoaram o Mestre; ambos se envergonharam dele: um vendeu-o e outro disse que não O conhecia; ambos fugiram a serem discípulos desse com quem conviveram e aprenderam na escola da vida…simples, pobre e entregue.
Atendemos, neste contexto da Paixão-morte-ressurreição de Jesus, mais ao significado da mulher (e dos outros interpelantes) que confronta Pedro do que ao alcance das suas negações. Com efeito, ao repisar das três abordagens (segundo os diferentes textos dos evangelhos) a Pedro – ora pela criada do sumo-sacerdote, ora pelo parente de Malco, ora por um soldado ou ainda um circunstante que se aquecia na mesma fogueira que ele – e a incapacidade em ser assumir discípulo de Jesus, isso terá sido importante – embora não desculpe – para os discípulos de todos os tempos que fraquejaram, quando foram desafiados a darem testemunho do Mestre e Senhor.
Veja-se o caso dos ‘lapsi’ (1), que não se assumiram cristãos e baquearam na hora da provação, sobretudo em maré de perseguição… dando escândalo, mas que, posteriormente, se arrependeram e quiseram ser novamente aceites na comunhão dos irmãos. Seria nesse sentido a inserção das provocações a Pedro? Como se poderia considerar digno de assumir alguma responsabilidade quem teve medo e se envergonhou do Senhor? Isso mesmo será reposto na tríplice confissão de Pedro em Jo 21, 15-18. Afinal, a incongruência e a falta de coragem no testemunho percorre toda a história do cristianismo, tanto dentro como fora da Igreja católica!
Em tempos não muito recuados era habitual usar uma expressão, que, entretanto, foi perdendo visibilidade ou que se foi vulgarizando a atitude: ‘respeitos-humanos’ (2). Em que consiste tal conceito? Como se manifesta essa ‘vergonha’ sobre o ser cristão? Terá Pedro, desafiado pela criada nas passagens das negações, vivenciado esse comportamento, hoje, tão comum e tolerado?
A Igreja católica sempre cuidou dos seus filhos – tanto os que se dizem ‘estar dentro’ como aqueles que qualquer fora se foram excluindo – nessa contínua maternidade. Porque será que o prevaricador – o que negou o Mestre – é Pedro e não outro do grupo dos doze? Ser aquilo que envolve o ‘chefe’ dá maior escândalo? A reintegração será, por isso, um sinal com um significado mais especial?
«Mas a generosidade impetuosa de Pedro não o salvaguarda dos riscos relacionados com a debilidade humana. De resto, é o que também nós podemos reconhecer com base na nossa vida. Pedro seguiu Jesus com ímpeto, superou a prova da fé, abandonando-se a Ele. Contudo chega o momento no qual também ele cede aos receios e cai: trai o Mestre (cf. Mc 14, 66-72). A escola da fé não é uma marcha triunfal, mas um caminho repleto de sofrimentos e de amor, de provas e de fidelidade a ser renovada todos os dias. Pedro, que já tinha prometido fidelidade absoluta, conhece a amargura e a humilhação da renegação: o atrevido aprende à sua custa a humildade. Também Pedro deve aprender a ser frágil e carente de perdão. Quando finalmente perde a máscara e compreende a verdade do seu coração frágil de pecador crente, cai num libertador choro de arrependimento. Depois deste choro ele já está pronto para a sua missão» (3).
É digno de referência ainda neste contexto aquilo que se diz sobre o ‘galo’, como o despertador da consciência de Pedro: «Depois, saiu para o átrio e um galo cantou» (v. 68); «E logo cantou o galo pela segunda vez» (v. 72). Associado à atitude de despertar – ‘a hora do cantar do galo’, isto é, ao romper do dia – isto que nos é referido no contexto da paixão de Jesus, após as três negações de Pedro, está associado à atitude de vigilância que devia caraterizar a vida de cada discípulo de Jesus (cf. Mc 13,35), pois, como Pedro precisamos de estar atentos para não O negarmos de forma alguma, sobretudo nas horas em que temos de dar testemunho, por palavras e por obras, dele (4). Enquanto acontece o interrogatório a Jesus, perante o sinédrio, Pedro negou o Mestre, mas foi despertado dessa sonolência, quando o galo cantou…Precisamos de ser acordados também hoje, nesta Igreja católica adormecida!  


1. «Vede, irmãos, como deveis proceder vós também: se corrigirdes com a vossa exortação aqueles que caírem, e eles forem de novo presos, confessarão a fé, para reparar o erro anterior. Igualmente vos lembramos outros deveres que haveis de ter em conta: se aqueles que sucumbiram nesta provação e, arrependendo-se do que fizeram, desejarem reentrar na comunhão, devem ser socorridos, também as viúvas e os indigentes, que não podem valer-se a si mesmos, os que estão na prisão, os que foram afastados para longe de suas casas, todos devem ter quem os ajude; do mesmo modo devem ser socorridos  os catecúmenos que adoecem, para que não se sintam desiludidos na sua esperança» - S. Cipriano, ‘Carta 8’, 3, in Antologia litúrgica, 1022.
2. «É preciso recuperar e revigorar uma sabedoria política autêntica; ser exigente no que se refere à própria competência; servir-se criticamente das pesquisas das ciências humanas; enfrentar a realidade em todos os seus aspetos, indo além de qualquer reducionismo ideológico ou pretensão utópica; mostrar-se aberto a todo o diálogo e colaboração autênticos, tendo presente que a política é também uma complexa arte de equilíbrio entre ideais e interesses, mas sem jamais esquecer que a contribuição dos cristãos só é decisiva se a inteligência da fé se torna inteligência da realidade, chave de juízo e de transformação» - Papa Bento XVI, ‘Discurso na plenária do Pontifício Conselho para os leigos’, 24 de maio de 2010.
3. Cf. Papa Bento XVI, ‘Audiência geral’, 24 de maio de 2006.
4. Cf. Dicionário enciclopédico da Bíblia, col 620; Manfred Lurker, Dicionário de figuras e símbolos bíblicos, S. Paulo, Paulus, 1993, pp. 112-113; Gerd Heinz-Mohr, Dicionário dos símbolos: imagens e sinais na arte cristã, S. Paulo, Paulus, 1994, pp. 170-171.


António Sílvio Couto


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