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domingo, 6 de março de 2022

Quaresma 2022 - figuras da Paixão

 2. Anás e Caifás: decisores religiosos

 


São duas autoridades religiosas que intervieram no processo da paixão de Jesus, apresentando ‘assuntos’ religiosos que O pudessem incriminar… Anás e Caifás como que simbolizam os inquisidores de todos os tempos, mesmo dos nossos.

 «19 Então, o Sumo-Sacerdote [Anás] interrogou Jesus acerca dos seus discípulos e da sua doutrina. 20 Jesus respondeu-lhe: «Eu tenho falado abertamente ao mundo; sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se reúnem, e não disse nada em segredo. 21 Porque me interrogas? Interroga os que ouviram o que Eu lhes disse. Eles bem sabem do que Eu lhes falei.» 22 Quando Jesus disse isto, um dos guardas ali presente deu-lhe uma bofetada, dizendo: «É assim que respondes ao Sumo-Sacerdote?» 23 Jesus replicou: «Se falei mal, mostra onde está o mal; mas, se falei bem, porque me bates?» 24 Então, Anás mandou-o manietado ao Sumo-Sacerdote Caifás» (Jo 18,19-24 // Mc 14, 55-65; Mt 26, 57-68; Lc 22, 66-71).

 Anás e Caifás (1) aparecem-nos evangelhos associados ao exercício de serem sumos-sacerdotes. Caifás era o sumo-sacerdote em exercício naquele ano (cf. Jo 18,13), enquanto Anás seria o sumo-sacerdote mais antigo, se quisermos o ancião da família, e que exerceu funções entre 6 e 17 d. C… era o sumo-sacerdote quando Jesus – na passagem dos evangelhos da infância (cf. Lc 2,41-52) – foi ao Templo, com doze anos. 

Sigamos, então, o interrogatório de Anás a Jesus sobre a sua pessoa, a sua doutrina e os seus seguidores.

Quem não conhece a expressão popular - ‘andar de Anás para Caifás’? Por certo quem usa tal frase, para além de conhecer, minimamente o contexto bíblico, quererá dizer que alguém quer adiar a solução de um problema e com isso, burocraticamente, usa os outros para não-resolver.

É precisamente nesta passagem de Jo 18,19-24 que encontramos a referência à expressão popular citada, isto é, Jesus é jogado e julgado – como num tribunal – entre os dois sumos-sacerdotes em funções na circunstância do seu julgamento (2).

Em primeira instância Jesus é interrogado por Anás sobre a ortodoxia da sua doutrina. Já em Jo 7,26 se fazia uma alusão àquilo que Jesus ensinava: «vede como Ele fala livremente e ninguém lhe diz nada! Será que as autoridades se convenceram de que Ele é o Messias?».

Uma questão: por que é que João narra este interrogatório de Anás a Jesus? Porque ele teve acesso ao espaço onde Jesus foi interrogado, em razão de ser «conhecido do sumo-sacerdote e pode entrar no seu palácio ao mesmo tempo que Jesus» (Jo 18,15)... coisa diferente aconteceu com Pedro, que só entrou em razão de ‘o outro discípulo’ ter conseguido tal favor...

No interrogatório, através da resposta de Jesus – «Eu tenho falado abertamente ao mundo; sempre ensinei na sinagoga e no templo, onde todos os judeus se reúnem, e não disse nada em segredo. 21 Porque me interrogas? Interroga os que ouviram o que Eu lhes disse. Eles bem sabem do que Eu lhes falei» (vv. 20-21) – podemos perscrutar que Jesus sabia que fosse qual fosse a sua resposta, o veredito já estava traçado, por isso, apela a que sejam chamados a serem testemunhas aqueles que, anteriormente, O escutaram e se entusiasmaram com as suas palavras, isto é, os seus discípulos: eram eles quem credibilizavam a sua doutrina...Jesus falou publicamente - na sinagoga e no templo - não andou a subverter pela calada da noite, como eles engendram na suas conspirações e artimanhas.

A agressão de um dos guardas a Jesus como que deixa expresso o desrespeito por Ele e que culminará na troça dos soldados romanos, após a sua condenação política, através de Pilatos. Não deixa de ser significativo que Jesus, silencioso em todo o processo, riposte à agressão: «Jesus replicou: «Se falei mal, mostra onde está o mal; mas, se falei bem, porque me bates?» (v. 23). Quererá dizer que, quando a injustiça é excessiva, não se pode ficar calado? Quererá dizer que, mesmo previamente sentenciado, não se pode calar a revolta, se ela for causada pela falta de conformidade entre a causa e o efeito? Como noutros momentos da paixão de Jesus, há perguntas que continuam a ecoar na História e exigem-nos, como discípulos de Jesus, uma resposta coerente e consequente...

E manietado, Jesus é enviado a Caifás, o tal que tinha profetizado após a ressurreição de Lázaro: «Mas um deles, Caifás, que era Sumo-Sacerdote naquele ano, disse-lhes: «Vós não entendeis nada, nem vos dais conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo, e não pereça a nação inteira.» Ora ele não disse isto por si mesmo; mas, como era Sumo-Sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus devia morrer pela nação» (Jo 11,49-51) e posteriormente, já no contexto do interrogatório de Anás, voltado a dizer: «tinha dado aos judeus o conselho: convém que morra um só homem pelo povo» (Jo 18,14). Com efeito, «o conteúdo da ‘profecia’ de Caifás é, antes de mais, de natureza absolutamente pragmática e, sob este aspeto, possui para ele, uma razoabilidade imediata; se por meio da morte de um indivíduo (e somente assim) se pode salvar o povo, a morte desse indivíduo é o mal menor e a via politicamente justa. Mas aquilo que soa assim e é entendido primariamente em sentido puramente pragmático alcança todavia, com base na inspiração ‘profética’ [do sumo-sacerdote Caifás], uma profundidade muito diferente. Jesus, o indivíduo, morre pelo povo, transparecendo o mistério da função vicária, que é o conteúdo mais profundo da missão de Jesus» (3). Esta função vicária vemo-la já, nos textos do Antigo Testamento, na figura do ‘bode expiatório’ (cf. Lv 16, 7-10) e mesmo na figura do ‘servo de Javé’ em Isaías (cf. Is 53,11), em que um morre por todos, tal como se diz em Jo 11,52: «E não só pela nação, mas também para congregar na unidade os filhos de Deus que estavam dispersos».

Em jeito de transição para o interrogatório perante o governador romano Pilatos, poderemos considerar que Jesus, ao ser levado diante do Sinédrio – composto por sacerdotes, anciãos do povo e escribas – foi inquirido sobre a sua identidade messiânica: «és o Messias, o filho de Deus» (Mt 26,63); «és tu o Messias, o filho de Deus bendito» (Mc 14, 61); «declara-nos se tu és o Messias Tu és, então, o filho de Deus» (Lc 22,67.70). Por seu turno, as respostas de Jesus abrangeram temas diferentes, segundo cada um dos evangelistas, nunca negando nem furtando-se a dizer quem era. «Jesus assumiu o título de Messias, que, com base na tradição, apresentava diversos significados, mas ao mesmo tempo o especificou de tal modo que só podia provocar uma condenação; esta, porém, poderia tê-la evitado com uma rejeição ou uma interpretação atenuada do messianismo» (4). O gesto simbólico da condenação vemo-lo nos rasgar das vestes, acompanhado da expressão: blasfemou! (cf. Mt 26, 65), com a declaração da sentença, que Pilatos haveria de ratificar, politicamente…   

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1. Anás é um sumo-sacerdote judeu, cujos cinco filhos e o genro, Caifás, e o neto Matias, foram também sumos-sacerdotes. No Novo Testamento é mencionado três vezes: Lc 3,2 - em referência ao ministério de João Batista; Jo 18, 13.19.24 - no contexto do interrogatório a Jesus; At 4,6 - no interrogatório a Pedro e João. Caifás aparece-nos nas mesmas passagens referidas a Anás, seu sogro. Em Mt 26, 3-4 coloca-se em relevo a intervenção de Caifás naquilo que foi a decisão de prender Jesus, à traição, e matá-lo. Vide Dicionário enciclopédico da Bíblia, Petrópolis, Vozes, 1992, col 69 e 222.

2. Em Lc 22,66-71 refere-se que Jesus foi submetido a um tribunal, o Conselho dos judeus, termo que designava a assembleia ou o lugar das reuniões. Segundo Lucas, só há uma sessão do Conselho de manhã; Mateus e Marcos falam de duas, uma de noite, outra de manhã. Lucas omite os depoimentos das testemunhas, apresenta o mistério de Jesus como Filho de Deus entronizado no seu Reino pela Páscoa e ignora a sentença do Conselho. Vide nota a Lc 22, 66, na Bíblia Sagrada (dos capuchinhos).

3. Cf. Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré – da entrada em Jerusalém até à Ressurreição, Cascais, Principia, 2011, p. 143.

4. Cf. Idem, p. 149.

 

 

António Sílvio Couto

 

 

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