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terça-feira, 22 de março de 2022

Folha-em-branco

 


Foi com estupefação e vergonha que se viu, na Rússia, um jovem ser preso pela simples razão de ostentar uma folha em branco na rua… As autoridades policiais consideraram que isso seria uma manifestação individual contra os interesses políticos da cidade e, por conseguinte, do país…

Já pensávamos ter visto todas as formas de ditadura, mas, cada dia, somos espantados como novas figurações de despotismo, mesmo que possa ser legal ou legalizado, sob a alçada da normalidade ou roçando o que possa ser mais inverosímil…

 1. Por que se mantem uma espécie de manto silencioso sobre tantas tropelias vindas do país das matrioskas? Será este conflito – para já com a Ucrânia – mais uma artimanha saída de dentro de outra e que esconde tantas mais? Teremos estado atentos às subtilezas de pseudodemocratização que por aquelas bandas disseram existir? Por que há forças em países sob o regime da democracia que ainda têm laivos de condescendência para com os sequazes de Lenine, Trotsky ou Brejnev? Os tentáculos imperialistas alguma vez foram cerceados naquelas regiões?

 2. Vivemos num tempo onde é fácil manipular, mesmo que se pense estar a noticiar. Mais do que as ‘falsas notícias’ são graves as notícias falsas, pois estas alimentam aquelas e fazem-nos acreditar em balelas de mau gosto e de péssimo agoiro. Por ocasião dos tempos de guerra surge, de alguma forma, uma expressão recorrente: a ‘manipulação psicológica’, isto é, uma espécie de desinformação onde não se diz a verdade toda (ou só aquela que interessa) e com isso se tenta ganhar ascendente sobre os contendores: dados mais relevantes são tornados de pouca monta e as pequenas ‘vitórias’ exaltadas como façanhas. Será sempre desconfiar de quem nos quer dizer ‘a’ verdade, pois pode afinal, estar a impingir-nos a maior mentira. Será aconselhável que não se veja sempre o mesmo canal nem sequer a mesma cadeia informativa…

 3. Já na pandemia assistimos ao mesmo fenómeno: uma avalanche de peritos – o termo castelhano é ‘expertos’ – tem vindo a enxamear os canais televisivos para falarem da guerra: táticas, argúcias, movimentações, subtilezas…à mistura com posições nem sempre claras sobre de cada lado da barricada se posicionam… até os jornalistas se convencem que sabem e nos dizem o que foi colado (literalmente) com saliva, portanto, sem arte nem jeito para disfarçar a ignorância sobre os assuntos… Esta pantominice de pequeninos faz com que não saibamos se o que aparece nas televisões é para entreter ou se manifesta algo de menos sério em tantas das notícias. Quando quiseram fazer dos noticiários – longos e fastidiosos – espaços de entretenimento-espetáculo começamos a suspeitar se não querem fazer da miséria alheia algo a explorar até ao espremer do limão…

 4. Olhemos com atenção mínima para a folha em branco, motivadora do ato censurável de prisão…na Rússia. Recordemos outras situações em que alguém usou uma folha em branco – com a diferença de nela ter sido colocado um ponto negro no centro da mesma. Foi solicitado que escrevessem sobre aquela folha com o ponto negro escrito: uns filosofaram sobre o espaço vazio; outros – poucos, diga-se – tentaram encontrar a razão do ponto lá colocado; outros ainda não sentiram inspiração para refletirem sobre a simbologia da folha-branca-com-um-ponto-negro.

Agora que estamos em guerra em território europeu – depois de mais de sete décadas após a segunda guerra mundial, à exceção do tempo de conflito nos Balcãs (décadas de 80 e de 90) – podemos perceber um tanto melhor como é preciosa a paz e como ela está presa por arames, se houver alguém que pretenda impor-se aos outros ou, à maneira medievalesca, conquistar terrenos para expandir as suas pretensões hegemónicas.

 5. Os nossos dias estão mais sensíveis às questões da paz, da solidariedade e mesmo da justiça, mas faltam valores e princípios capazes de fazer destes sinais mais difundidos de comunhão coletiva – pandemia e guerra – como apelos à conversão de vida e de culturas. Seremos capazes de mudar de critérios?

 

António Sílvio Couto

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